Oliveira Lima

O MOVIMENTO DA INDEPENDÊNCIA

1821-1822

À MINHA IRMÃ
D. MARIA DE ARAÚJO BELTRÃO
TRIBUTO DE MUITA AFEIÇÃO
1.º de julho de 1921
– Washington, D.C. –
3536, 13th Street, N.W.

CAPÍTULO I

O REGRESSO DE DOM JOÃO VI PARA LISBOA
CAUSAS E EFEITOS DA REVOLUÇÃO
PORTUGUESA DE 1820

 

Tem-se dito da independência do Brasil que foi um desquite amigável entre os reinos unidos. Não há, porém, desquite perfeitamente amigável: precedem-no sempre incompatibilidades, rusgas, desavenças. Pode não ocorrer propriamente violência. Foi o que se deu nesse caso: a separação só teve que arcar com a resistência do general Madeira na Bahia, depressa vencida. O mais consistiu em amuos, ameaças e ajustes de interesses. Sobreviveu, entretanto, um como que ressentimento entre as duas partes que, querendo simular indiferença, de fato caíram num alheiamento, o qual, após durar bastante tempo, se foi progressivamente desvanecendo, já nos nossos dias, para dar lugar a uma cordialidade necessária e possivelmente fecunda.

A independência, tal como se operou, teve aliás o caráter de uma transação entre o elemento nacional mais avançado, que preferiria substituir a velha supremacia portuguesa por um regime republicano segundo o adotado nas outras antigas colônias americanas, por esse tempo emancipadas, e o elemento reacionário, que era o lusitano, contrário a um desfecho equivalente, no seu entender, a uma felonia da primitiva possessão e a um desastre financeiro e econômico da outrora metrópole. A referida transação estabeleceu-se sobre a base da permanência da dinastia de Bragança, personificada no seu rebento capital, a frente de um império constitucional e democrático, cujo soberano se dizia proclamado "pela graça de Deus e pela unânime aclamação dos povos", a um tempo ungido do Senhor e escolhido pela vontade popular.

Impossível seria, chegadas as coisas a certo ponto, continuarem por mais tempo como estavam: disto se achavam plenamente convencidos os que sobre elas meditavam e mais persuadido do que ninguém o próprio Dom João VI. No dédalo das suas hesitações buscava ele a solução mais consentânea com os interesses da monarquia dos seus maiores, que debaixo do seu cetro se ia cindir, o menos positivamente, o mais nominalmente que na sua vontade pudesse ser, afim de que se não perdessem as eventuais recíprocas simpatias e fosse até praticável algum dia a reunião das duas coroas, com a qual Dom Pedro havia de realmente sonhar.

A psicologia do rei não era complicada, mas eram complicados os seus processos psicológicos, porque provinham de vacilações filhas do seu raciocínio inteligente e obedeciam não só a móveis íntimos, que ele tinha o hábito de dissimular, como também a pressões externas que alternadamente com aqueles agiam sobre a sua vontade. "Il a autant de finesse dans l'esprit que de fausseté dans le caractère" - escrevia sobre Dom João VI a Metternich (1) o barão de Sturmer, chegado ao Rio de Janeiro a 23 de dezembro de 1820 e que enxergara depressa e argutamente a situação.

No entender desse diplomata, o conde de Palmela, seu companheiro de viagem pois que, tendo-o encontrado desembarcado em Gibraltar por motivo de desconcerto no paquete que o levava de Lisboa ao Brasil e que ali tivera de arribar, o ministro da Áustria oferecera-lhe transporte a bordo da corveta de guerra Carolina, estivera perdendo seu tempo em querer dizer as verdades ao rei, acerca da revolução constitucional que fermentava em Portugal. O rei só fazia o que lhe convinha, e o que lhe convinha na ocasião era não fazer coisa alguma.

Entretanto, não estava mais nas mãos do monarca o garantir de algum modo a tranqüilidade nacional sem empreender sérias reformas. Os outros tinham também os seus móveis a atuarem como impulsos. A antecipada aprovação, por exemplo, da constituição que as Cortes de Lisboa viessem a elaborar e que teria seguramente por modelo a constituição espanhola de 1812, fora imposta a Dom João VI por agitadores de quartel e de rua que para tanto amotinaram tropa e populaça, em oposição ao projeto mais prudentemente aventado de redigirem no Rio de Janeiro, com destino ao Brasil, uma lei orgânica particular, de acordo com as condições e interesses do reino americano, os procuradores das câmaras da sua capital e cidades de províncias.

À primeira vista traduziu o pronunciamento o despeito dos partidários da metrópole lutando para recuperar seu prestígio: por trás destes havia contudo os republicanos das lojas maçônicas, ansiosos por verem o rei de barra fora porque nele divisavam, e com razão, o principal obstáculo à independência de acordo com os ideais da grande revolução. E tanto os adivinhava Dom João VI, que não partiu afinal sem deixar o filho de sentinela aos acontecimentos, alvitre adotado após uma crise prolongada de dúvidas, pois que seu desejo muito ardente seria ficar em São Cristóvão ainda que Portugal se tornasse constitucional. Um constitucionalismo à distância não humilhava assim tanto e o reino europeu carecia absolutamente do reino americano. O Brasil - acreditava ou antes fingia acreditar o astuto monarca- já se achava afeito ao seu paternalismo: deixá-lo entregue ao herdeiro da Coroa, moço ambicioso e estouvado como ao próprio pai se afigurava, era facultar uma transformação radical como a que se verificou.

Se o regresso de Dom João VI para Portugal, efetuado em abril de 1821, não fora absolutamente do agrado real, tampouco o fora do da maioria dos seus súditos transatlânticos. Apenas embaraçava assaz aos facciosos na execução dos seu planos a presença no país da família real. Os facciosos eram pura e simplesmente em bom número os constitucionais, mas Sturmer não fazia distinção entre eles e os contagiados do mal democrático, adeptos das idéias republicanas "que tout habitant du Nouveau Monde nourrit au fond de son coeur" e que escandalizavam o representante austríaco. O descontentamento era geral antes mesmo da retirada da corte. Além da agitação produzida nos espíritos pelo choque das doutrinas, havia que notar o péssimo efeito por fim causado pela venalidade de homens em evidência e pelos abusos na administração. O príncipe herdeiro, cheio de ardor político, andava de coração com os constitucionais, mesmo porque era a esse tempo Dom Pedro português na alma, da mesma forma que Dom João VI se tornara brasileiro. No dizer de Sturmer(2), "il gémissait de l'abandon ou on laisse le pays qui l'a vu naitre" e chegava a mostrar-se disposto a rebelar-se contra a autoridade paterna, com o fato de assumir uma posição de iniciativa e responsabilidade próprias. A darmos inteiro crédito à versão exarada em semelhante correspondência oficial, precisava até a princesa Leopoldina de empregar seus melhores esforços para conservar o marido no caminho do dever e da honra que competiam ao primeiro dos súditos da monarquia.

Não escapava à perspicácia, que era grande, de Dom João VI, o que se passava no íntimo do filho, e isto contribuía para que mais hesitasse em mandá-lo para Portugal na qualidade de seu lugar-tenente, segundo lhe aconselhavam tantos, no numero o ministro inglês Thornton, ao urgir pela centésima vez o rei a adotar resoluções decisivas que impedissem a dissolução iminente da monarquia portuguesa. Enciumava-o aquilo que Dom Pedro poderia ultimar em Lisboa e redundasse em fama do herdeiro da Coroa, receando também concessões que fossem de natureza a deslustrar o poder real e a ofuscar sua autoridade soberana, da qual era mui cioso.

Tais zelos misturavam-se no seu espírito com o apego que ele nutria pela terra brasileira e que neste caso favorecia a indolência física tão sua característica e tão fácil de agravar, tratando-se de uma travessia prolongada e de uma mudança completa de hábitos adquiridos e de horizontes tornados familiares. Era de ver-se o ar desvanecido (épanoui reza o ofício de Sturmer) com que Dom João VI respondia – "n'est-ce pas, c'est un beau pays?" - à observação tendenciosa do ministro austríaco de que não perdera o rei seu tempo nos treze anos já decorridos da sua residência fluminense, ali fundando "un empire qui sera un jour un des plus florissans de la terre" (3).

Sabia Sturmer perfeitamente, e dizia-o mesmo, ter assim tocado no ponto fraco de Dom João VI, o qual sem demora se pôs a discorrer sobre o porto do Rio de Janeiro, a extensão do novo reino e suas riquezas, com o entusiasmo de um propagandista que fosse bem sincero nas suas convicções. Nem duvidou concluir respondendo afirmativamente e com a maior prontidão à reflexão do diplomata, de que bem percebia a mágoa que ao seu régio interlocutor causaria deixar esse extraordinário país. Com o seu natural desconfiado ajuntou porém logo Dom João VI - comme pour me sonder observava Sturmer na correspondência: - "Entretanto sou europeu, nasci em Lisboa". É claro que o ministro da Áustria não perderia o belo ensejo de replicar-lhe: "Treze anos de novos hábitos e o amor de um povo que tudo deve a V. M. são motivos bastantes para fazerem esquecer Portugal. Não se acha no mesmo caso o príncipe real, que é moço e arde em ambição de servir V. M. em qualquer hemisfério que seja". O rei contudo desconversou ao chegarem as coisas a tal ponto, falando da morte da mãe, do calor excessivo que fazia naquele momento, das suas mazelas e de outros assuntos alheios ao primitivo.

* * *

De fato tanto repugnava a Dom João ir como consentir em que fosse Dom Pedro. Ele próprio se iludia - porventura voluntariamente - quanto à gravidade do movimento revolucionário português, e pode ter-se como certo que refletia bem sua opinião o panfleto por essa ocasião clandestinamente editado, na verdade saído do prelo da Imprensa Régia do Rio de Janeiro, advogando a permanência de toda a família real na América. A razão dada era que o Brasil poderia dispensar Portugal, ao passo que a Portugal não era lícito dispensar o Brasil, o qual nenhuma vantagem estava auferindo do estado de união. A partida da família real marcaria o prelúdio da independência do Brasil; muito pelo contrário sua permanência, com a autoridade intacta, assinalaria a fundação ultramarina "de um Império de bastante peso na política do mundo" (4). A posse do Brasil era a garantia desse Império e o penhor do seu soberano.

O fundo do pensamento real era precisamente esse, e não pouco se orgulhava ele de se não encontrar no Rio, segundo à expressão do folheto, sob a ferula da Inglaterra, como o tinha estado a regência de Lisboa. A expressão ofendeu mesmo o ministro britânico que, ajudado por Arcos e Palmela, obteve a proibição da circulação da brochura, depois todavia que esta correra a cidade e fora expedida para a Europa, à qual se destinava especialmente pois que era em francês.

Para desnortearem a curiosidade pública, seu autor ou autores atribuíram ao folheto paternidade austríaca, dando-o até como escrito por Metternich; mas não era preciso ir procurar tão longe a sua origem. No Rio foi ele considerado obra de João Severiano Maciel da Costa (futuro marquês de Queluz), ou mais verossimilmente de Silvestre Pinheiro Ferreira, que manejava bem a língua francesa (5).

Não menos do que a ferula britânica, queria Dom João VI escapar à ferula revolucionária, que não deixaria de ser-lhe aplicada se o tivessem à mão. As Cortes admitiam um rei, mas um rei-títere, educado na obediência completa e passiva à representação nacional.

Em abril de 1821 publicava-se em Portugal uma contestação ao folheto do Rio, intitulada Considerações sobre a integridade da monarquia portuguesa (6), e na Bahia também logo se publicou um Exame analítico-crítico da solução da questão posta na brochura, contradizendo cada uma das suas proposições. Assim, se o Brasil podia ir buscar melhor alhures os artigos manufaturados e os imigrantes de que carecia, sendo no entanto de esperar que argumentasse extraordinariamente a emigração de Portugal, uma vez reduzido o velho reino à miséria pela separação, melhor faria o novo reino - comentava o autor da resposta - permanecendo unido, a fim de não cair nas garras dos estrangeiros.

O Portugal constitucional ia ter, sonhavam os seus fiéis, fábricas, artes, indústria, com que suprir o consumo brasileiro, e mais justo parecia ficar em casa o lucro enorme derivado pelas nações manufatureiras que ao Brasil vinham buscar as matérias-primas dos seus teares e maquinismos. Os benefícios colhidos pelo país americano de ser, treze anos havia, a sede da monarquia portuguesa, apareciam no fim de contas ilusórios, pois que se cifravam em graças para os favoritos e tributos para os demais - a saber, para o grande número. O regime constitucional português asseguraria, pelo contrário, as franquias necessárias: com ele não se faria mister um divórcio. "A Constituição Portuguesa tem a virtude da Arca Noemítica, hão de habitar à sua sombra diversos caracteres e todos em perfeita paz".

Escrevera o discursista do Rio que a fermentação dos espíritos no Brasil não significava muito, porque o descontentamento se originava em vícios de administração e não incidia propriamente sobre as bases do edifício social, procedendo sobretudo de cidades onde se aglomeravam europeus eivados do morbus revolucionário e não do grosso do país, fundamentalmente distinto. A supressão desses facciosos e a correção dos abusos apontados eram coisas relativamente fáceis e o essencial consistia em preservar-se a realeza envolta em toda sua dignidade. Guardando a plenitude do seu poder; o rei do Brasil e Portugal desempenharia na política que hoje se denominaria mundial o papel importante que lhe reservavam a magnitude do seu Império, a posição geográfica deste e as possibilidades infinitas que comportava.

"A América vai pesar na Balança das Nações com todo o peso do seu imenso e fértil território, da sua população sempre crescente, do vigor, enfim, que acompanha a mocidade dos povos, como a dos indivíduos". Assim se expressava o folheto fluminense e, prosseguindo nas suas considerações, vaticinava que o oceano seria o futuro campo de batalha entre as nações e que, neste caso, grande relevância caberia ao Brasil num conflito geral. Poderia assumir a dinastia a importância correspondente a essa ingente tarefa se continuasse encolhida no seu cantinho europeu, oscilando entre o temor da opressão espanhola e o respeito à palmatória inglesa? Não lhe cumpriria antes, no seu próprio interesse, não abandonar o Brasil, a fim de não perder aquilo que unicamente permitia a Portugal sustentar sua categoria, a saber, a grandeza territorial ultramarina?

No fundo de toda esta argumentação política o que já se divisava era o litígio entre as duas seções da monarquia; os portugueses apregoando a constituição como panacéia para todos os males e dela fazendo manto para restabelecerem seu monopólio, representando o seu constitucionalismo um bom emprego de capital pois que se baseava na recolonização (7); os brasileiros não querendo abrir mão das vantagens obtidas com a trasladação da corte para o seu seio e encarando mesmo a hipótese de uma separação, no caso de pretenderem privá-los dos benefícios auferidos.

É curioso como, no intuito de vincularem o liberalismo ao passado nacional, os publicistas e políticos de então recordavam a cada instante as imaginárias Cortes de Lamego e as tradições de governo representativo que diziam ser as da realeza lusitana. Porventura com isso intentavam também acalmar os receios de Dom João VI, educado nas tradições do puro absolutismo e temendo, não só atentados contra a sua soberania, mas contra o seu decoro.

Os argumentos históricos, as velhas tradições, assim serviam para responder aos conselhos de permanência no Brasil, ocasionados, quando mais não fosse, pelo propósito de poupar ao soberano do Reino Unido desacatos como os sofridos por Luís XVI, prisioneiro da Assembléia Nacional antes mesmo da Convenção o tornar seu joguete. O rei estava aliás convencido de que no Brasil escaparia à arrogância dos revolucionários e lhes ditaria a lei em vez de receber-lhe a imposição. O citado folhe-to em francês, o qual levava seu antagonista da Bahia a escrever que "nem todos os portugueses têm juízo sólido, nem só os franceses dizem frioleiras", externava portanto o pensamento recôndito do monarca sagaz que apenas pecava pela fraqueza de vontade.

* * *

Instado no entanto de muitos lados, fingiu Dom João VI anuir à partida do seu herdeiro, sozinho porém, sem a filhinha de ano e meio e sem a esposa, cujo estado adiantado de gravidez não permitia empreender sem risco uma longa e penosa viagem marítima. A restrição parecia ter por fim levar Dom Pedro a renunciar à partida ou então proporcionar ao rei o penhor de um pronto regresso do filho. "L'état de grossesse avancée ne permettant pas à cette Princesse de s'exposer aux périls d'une longue traversée et aux inquiétudes d'un voyage dont l'on ne peut encore considérer les resultats comme assurés, et la tranquillité do Brésil exigeant qu'un nombre si considerable de membres de la famille royale ne le quitte en méme temps..." - eis como rezava a tradução remetida para Viena do exórdio da circular com que, nos começos de fevereiro de 1821, foi comunicada às legações estrangeiras no Rio de Janeiro a ida iminente do príncipe real no caráter de Condestável, levando por missão restabelecer a ordem e a paz entre os espíritos portugueses.

A melhor prova contudo de que isto não passava do que em linguagem de jogo se chama um bluff está em que logo se alterou a data dessa partida para depois do bom sucesso da princesa; e como o movimento constitucional fosse menos paciente do que a natureza e não esperasse o termo prescrito para arrastar o Brasil na órbita da nova política portuguesa, surgindo a revolução na Bahia e estando a estalar no Rio, um outro decreto, de 22 de fevereiro, pela segunda vez prometeu formalmente o embarque do lugar-tenente real. O paquete de 24 velejou para o velho reino com tão grande e jubilosa novidade, ficando Dom João VI momentaneamente livre das importunações de Palmela e de Thornton, que ambos instavam pela partida de alguém que pudesse ainda sustar o movimento no seu pendor democrático.

Tão pouco disposto se mostrava todavia o rei a respeitar seu compromisso oficial, que pela filha favorita, a princesa Dona Maria Teresa, viúva de Dom Pedro Carlos, infante de Espanha, mandava dizer em sigilo à princesa Dona Leopoldina que se não agoniasse com a idéia da separação do marido porquanto este não iria, apesar da participação pública declarar o contrário (8). O que em seguida se passou caberia antes no domínio das comédias agitadas, absurdas e hilariantes do repertório do Palais-Royal.

Palmela continuou, é claro, a fazer pressão para que não fosse deixado de honrar o compromisso internacional assumido, mas com toda sua hábil diplomacia só conseguiu ser uma vez mais ludibriado pelo rei. Na frase de Sturmer para Viena, "il fut joué d'une manière cruelle". Já à chegada de Lisboa do seu ministro de estrangeiros e da guerra - cargo de que Palmela viera tomar posse - Dom João VI o persuadira de seu desejo de regressar para Portugal, quando o certo é que não pensava absolutamente naquela ocasião, nem mesmo depois, em retirar-se do Brasil. Sabedor entretanto do prestígio de que gozava Palmela pela sua inteligência fora do comum e serviços importantes prestados no congresso de Viena e em várias missões, quis de algum modo cercá-lo para que não fosse dado ao ministro, com suas idéias mais largas que as dos outros conselheiros, tomar grande autoridade sobre a revolução portuguesa, guiá-la e servir mesmo de intermediário entre o trono e a nação. Com tal fim, segundo se conta, promoveu Palmela, de uma assentada, de major de voluntários a marechal de campo, fazendo destarte maquiavelicamente crer ao público que o ministro se aproveitava da sua situação nos conselhos da Coroa para satisfazer suas próprias ambições, vaidades e conveniências.

Palmela, militar de empréstimo mas diplomata nato, era temperamento de conservador simpático a um liberalismo moderado: por outras palavras era um constitucional da escola a um tempo adiantada e tradicionalista desse Benjamin Constant, com quem ele convivera na intimidade de Madame de Staël. Seu objetivo atingia mais longe do que o campo pessoal, o terreno das instituições, e seu afã voltava-se para não deixar abolir a realeza como daninha ou mesmo inútil, antes assinalar-lhe uma função essencial no novo mundo político, recordando que na Idade Média fora a coroa quem protegera o terceiro estado contra os vexames e iniqüidades da nobreza e do clero.

Ao pisar em terras brasileiras, com o pessoal e os acessórios que o acompanharam, o príncipe regente exclamara sem ambages que nelas viera fundar um novo Império. Dados o cenário e os atores, que espécie de monarquia podia ele porém criar no meio americano? Aquela somente a que com efeito deu origem: uma monarquia híbrida, misto de absolutismo e de democracia; absolutismo dos princípios, temperado geralmente pela brandura e bondade do príncipe, e democracia das maneiras, corrigido o abandono bonacheirão pela altivez instintiva do soberano. Foi esta a espécie de realeza levada ao seu auge, e tomando em consideração a diversidade do meio político e o desenvolvimento do regime representativo, pelo imperador Dom Pedro II, personagem em muitos traços parecida com o avô.

De Dom João VI não se podia esperar impulso diferente. Por um lado crescera o orgulho da aristocracia transplantada da Europa e mais intimamente ligada com a família real, cujos sofrimentos e humilhações compartilhara e de cuja confiança imediata gozava, educada como classe nas máximas do direito divino e machucada na sua vaidade pela atual relativa modéstia de recursos em contraposição com os da gente abastada da terra. Por outro lado a despretensão gerada no intercurso menos cerimonioso e mais direto dos graúdos locais com os vice-reis representantes da suprema autoridade da metrópole, não excluía, quer urbanidade, quer deferência.

Os brasileiros estavam pois inconscientemente mais preparados para uma monarquia constitucional, ao passo que não faltavam entre os portugueses os que por seus sentimentos e interesses tinham que se manter instintivamente aferrados à monarquia absoluta. E na verdade, quando se deu o movimento geral e impetuoso de adesão do reino ultramarino ao programa revolucionário de Lisboa, encarnado legal e ordeiramente nas Cortes de 1820, muitos eram os brasileiros arrastados pela quimera liberal e muitos eram os portugueses instigados pelo ideal da recolonização.

As Cortes de Lisboa ultrapassavam as opiniões políticas de Palmela, mas tinham ainda assim estacado diante da majestade do trono, posto que pensando em reduzi-lo a satélite da soberania popular. Passadas as primeiras efusões, determinadas pela adesão brasileira, que começara sendo uma incógnita, a obsessão da assembléia liberal portuguesa foi reduzir o Reino Unido à anterior condição de metrópole e colônia, isto quando a independência do Brasil, examinada pelo prisma da história e da simples lógica, era um acontecimento fatal.

* * *

É natural que o filho chegado à maioridade se emancipe, e sucede entre as nações como entre os indivíduos. A fase de subordinação cessara pela força das circunstâncias; a de igualdade poderia ter-se prolongado um pouco mais, mas também tinha forçosamente de acabar embora houvesse sido sincera a intenção e inteligente o plano do monarca e dos seus conselheiros do momento. A igualdade feria porém o sentimento geral do reino que por três séculos representara o papel de metrópole, com tudo quanto na concepção daqueles tempos encerrava a expressão em matéria de autoridade e de exclusivismo. Havia de por isso chegar, como chegou, o dia em que a mesma igualdade seria iludida no espírito e desvirtuada na prática.

A revolução portuguesa de 1820 foi pois a causa apenas próxima de uma separação que contava muitas causas remotas e obedecera ela própria a diversas razões das quais nenhuma contrariava, antes todas militavam a favor da solução radical, sem ser quase violenta, que o problema político da união veio a receber. Foram sobretudo quatro os motivos determinantes do movimento liberal que implantou o constitucionalismo em Portugal. Em primeiro lugar a miséria do velho reino, refletida não somente no atraso do pagamento de ordenados e soldos - miséria financeira - como no fechamento das fábricas e no abandono da agricultura - miséria econômica -; depois a dupla humilhação da tutela britânica e da primazia brasileira; por fim o contágio espanhol (9).

Às três invasões francesas, sucedendo-se a curto prazo e assolando a Península com o caráter invariavelmente feroz das guerras, juntara-se, como geradora de pobreza para Portugal, a concorrência mercantil inglesa provocada pela abertura dos portos brasileiros em 1808. Esta medida, a um tempo diplomática e econômica, tivera por efeito direto cerrar tão amplo mercado quanto o da América Portuguesa ao monopólio comercial da sua antiga mãe-pátria e indiretamente trouxera a esta os graves males de penúria do erário e de vagabundagem por falta de trabalho. Fácil é de ver que não só o povo sofria de tal situação: dela sofria não menos, pela natureza mesma dos fatos, a burguesia de negociantes e lavradores que foi quem fez a revolução, de mãos dadas com o exército enciumado. O povo por si, desacompanhado de outros elementos, jamais conseguiria levar por diante um empreendimento desse gênero, não só destruidor como construtor. O desespero produz jacqueries, mas, não organiza regimes.

A tutela britânica não era disfarçada, antes bem visível, pois que se achava representada pelo procônsul Beresford, o algoz de Gomes Freire, desempenhando junto à regência o papel que, já antes do franco protetorado de hoje, cabia no Egito a lord Cromer ou a lord Kitchener. Ainda depois da revolução o governo britânico dava como uma das razões para não querer intervir nos negócios de Portugal, o que era um meio de deles afastar a Santa Aliança, o azedume que ficara no exército nacional, produzido pela subalternação dos seus oficiais aos oficiais estrangeiros, quais eram os ingleses, durante e após a campanha peninsular contra Napoleão.

Ao passo entretanto que Portugal andava assim humilhado na sua mais briosa instituição, dava o rei mostras inequívocas de não querer mais regressar do Brasil, transformando quiçá de direito, como de fato já o era, a antiga colônia em sede da monarquia. No Campeão, que se publicava em Londres, considerava-se assente que Dom João VI, nem queria voltar, nem repartir sua autoridade.

O exemplo da Espanha não podia deixar de ser imitado no país vizinho, onde as condições reclamavam as mesmas reformas. Desde poucos anos que no Porto se organizara uma sociedade secreta sob o nome de Sinédrio, cujo fito era fazer vingar em Portugal os princípios do governo representativo. É natural que esta associação (10) tivesse ligações com agremiações congêneres da Espanha. O certo é que a revolução de Cadiz ocorreu a 7 de março e a 24 de agosto do mesmo ano a do Porto. Nenhuma delas visava a estabelecer um regime republicano: não o toleraria o resto da Europa, entregue à reação. Visavam porém ambas a reduzir quanto possível as prerrogativas da realeza e a firmar a preponderância da nação. A regência portuguesa, organizada a 30 de janeiro de 1821 para exercer o executivo em nome do rei ausente, tinha um caráter conservador e mesmo tradicional, compondo-se de cinco membros com outros tantos secretários de Estado. Esses cinco membros foram tirados, dois da nobreza (o marquês de Castelo Melhor e o conde de Sampaio), um do clero (o patriarca frei Francisco de S. Luiz, também conhecido como cardeal Saraiva) e dois da burguesia (José da Silva Carvalho e João da Cunha Souto-Maior).

O egoísmo não desampara contudo as manifestações políticas, nem sequer as que proclamam guiar-se por máximas liberais. Os manes das vítimas portuguesas de 1817 reclamavam um sacrifício expiatório, mas o fito essencial do movimento de 1820 foi, à sombra do constitucionalismo, exaltar o reino europeu e deprimir o reino americano que além-mar se estendia numa vastidão colossal, vaidoso dos seus recursos e desejoso de aproveitá-los para seu único desenvolvimento, no benefício da sua própria população.

A América Inglesa estava livre, afora as ilhas do mar do Caribe, a Guiana equatorial e o domínio gelado do Canadá; igualmente em vésperas de tornar definitiva sua independência a América Espanhola, exceção feita das Antilhas que Os Estados Unidos não consentiram que fossem libertadas pelo esforço conjugado do México e da Colômbia, de medo que lhes escapasse para sempre aquilo sobre que já cobiçavam estender seu domínio. Por que não se havia de tornar livre o Brasil, que era um mundo e que acabava de dar seguro e honroso asilo por treze anos, à dinastia deposta por Napoleão? Quem tinha condições para tanto, tinha também condições para por si se governar, para assumir as responsabilidades do seu destino.

Apenas entre os homens públicos ou melhor dito, que iam surgindo para a vida pública, reinava, nos que melhor conheciam o meio europeu, o temor de incorrer nas iras da Santa Aliança com uma ofensa direta e grave ao princípio de legitimidade que ela fizera seu. Por isso Barbacena escreveria de Londres, quando ainda era Felisberto Caldeira Brant, a José Bonifácio, que o papel do príncipe regente estava traçado: convocar Cortes no Rio de Janeiro, retirando de Lisboa os deputados brasileiros; declarar seu pai em estado de coação e usurpadoras as Cortes de Lisboa, cujos atos deviam ser declarados nulos antes de eleita uma nova assembléia; finalmente entrar em relações diretas com os soberanos europeus.

O primeiro objeto dos trabalhos desse parlamento ultramarino seria a constituição do Brasil. "Nada há mais fácil, escrevia o futuro marquês de Barbacena numa afirmação instintiva de pan-americanismo; a Constituição Americana com palavras, e fórmulas monárquicas de quanto nos convém. Quando o rei estiver em Portugal o futuro sucessor estará no Brasil, e vice-versa" (11)

O que convinha a Portugal na situação criada era evitar os atritos e não provocá-los, proceder com magnanimidade e não com intolerância. Ora as Cortes foram levadas pela corrente de opinião apaixonada que as governava, e depois de uma curta fase de expansão que se pode crer sincera porque era uma explosão do liberalismo, primaram em demonstrar nas suas relações com o Brasil falta absoluta de tino e de previsão. Sua política consistiu em jogar com os ideais de liberdade com vista em recolonizar o Brasil, apesar do antagonismo dessas atitudes e como se a liberdade não devesse ser a mesma em qualquer latitude e sob qualquer céu na órbita da civilização.

Imaginar que o reino americano, pelo fato de ficar dispondo de representação parlamentar em Lisboa, abandonaria seus interesses mais vitais e renunciaria a privilégios que o soberano lhe facultara durante sua estada e que o punham no mesmo nível do reino europeu, era um plano por fim de contas infantil e digno tão somente da ingenuidade democrática que acima dos interesses colocava os princípios. De que serviriam os direitos do homem e o que significariam as garantias do cidadão, uns e outras exaradas num texto constitucional destinado a cercear os atributos da soberania real, se as novas prerrogativas avocadas pela nação ficavam quase todas aquém do oceano e apenas se concedia além-mar um simulacro de autonomia?

A constituição de Cadiz, de 1812, que a junta governativa de Lisboa fora compelida a aceitar provisoriamente por um novo pronunciamento militar e civil, poderia ser um fetiche para os espíritos abertos à doutrina da soberania popular, mas não assegurava afinal no Estado ultramarino aquilo que já passara a ser, expressa ou latente, sua aspiração comum e formava a base do seu desenvolvimento no porvir - a independência. E sem esta seriam falazes quaisquer seguranças constitucionais, vindas da antiga metrópole.

O papel das Cortes foi lógico quando de começo fomentou indiretamente a desunião do Brasil, privando este do seu centro natural de atração, que era a capital consagrada por Dom João VI, mediante o estabelecimento de ligações diretas com cada uma das capitanias, agora províncias, como ocorria nos tempos coloniais. Seu fito devia entretanto ser todo robustecer e consolidar o triunfo da sua obra política, e esta não só perigaria como soçobraria, caso o Brasil afrouxasse. Seu erro foi não compreender que seria impossível restaurar e combinar com a nova ordem de coisas a antiga fórmula de subordinação, e que o Brasil continuaria monarquia ou passaria a república dependendo da permanência ou não do príncipe regente, sendo porém inevitável a separação. O barão Wenzel de Mareschal, que ficou como encarregado de negócios da Áustria com a partida do barão de Sturmer - acompanhando os ministros estrangeiros o rei para Lisboa -, escrevia para Viena (12) que se Dom Pedro partisse, todos os brasileiros se apegariam à solução republicana.

O tratamento a seguir era portanto o brando, não o drástico. A ignorância mal desculpava o segundo, porque país algum que uma vez gozou dos foros da soberania se resigna de bom grado a abdicá-la. Este era o caso do Brasil, que a mudança da corte convertera em nação e não se resignaria a voltar a ser uma dependência, menos ainda um mosaico de colônias. As Cortes entenderam porém legislar para um país autônomo e praticamente independente como se se tratasse, na frase da escritora inglesa Mrs. Graham, cujo marido comandava a fragata de guerra Doris estacionada na baia do Rio de Janeiro, de um presídio nas costas da África selvagem.

O regime das juntas locais foi o instrumento de aplicação dessa política que tão mal avisada resultou, mas que constituíra no princípio a única a seguir, contanto que se tivesse prolongado no mesmo espírito de concordância. O ministro Tomás Antônio tinha razão quando dizia, num dos seus pareceres ao monarca, que "bem se via que a maior ânsia dos revolucionários era incendiar o Brasil; porque, se ele se separa e rompe a comunicação, Portugal tem de cair".

O Brasil pronto aderiu ao movimento constitucional português como o meio mais fácil e mais natural, conscientemente para uns, instintivamente para o maior número, de chegar ao fito supremo. O rastilho de pólvora estendia-se de norte a sul e bastou que no Pará se acendesse a mecha, para que as explosões se fossem sucedendo. O impulso era para perfilhar tudo quanto fosse liberdade. As províncias brasileiras emancipando-se porém da sua velha sujeição, transferiam ipso facto para Lisboa, de onde raiara o sol da liberdade, o seu vínculo de lealdade. No jogo revolucionário que se travara numa partida angustiosa, o Brasil, numa feliz expressão ( (13), serviu de trunfo para vencer a resistência real.

Vencendo esta resistência, servia-se na verdade a causa da união dentro da esfera constitucional, mas não é menos verdade que o Brasil não voltaria a ser, sob outro aspecto muito embora e como se fazia fé em Portugal, cuja revolução parecia vingar em todos os seus intuitos com a adesão brasileira, a salvação econômica prestada a troco de uma fantasmagoria política.

Nem constituiria o Brasil o mais sério dos amparos para a eventualidade, sempre possível, de uma intervenção da Santa Aliança, da qual Portugal até então se livrara, tanto pela reserva que punham as potências maiores em interferir com um país protegido pela Grã-Bretanha, sua virtual dependência política (14), quanto pela prudência e tino do rei, infenso "a chamar forças externas para sossegar as desordens internas", passo sempre arriscado e conducente a "desvarios a que a desesperação pode arrastar". A Vilafrancada, que foi a reação nacional personificada no infante Dom Miguel, manejado pela rainha Dona Carlota, viria no momento psicológico varrer as Cortes e derrubar a sua obra, mais tarde reconstruída.

* * *

A seqüência dos acontecimentos políticos entre a partida do rei e a proclamação do império torna-se em certo sentido mais compreensível observada à luz dos sucessos hispano-americanos, sobretudo platinos, e ainda o seria melhor, examinada na penumbra das sociedades secretas. As lojas maçônicas desde 1812 pelo menos que funcionavam na América do Sul e a denominada Lautaro, de Buenos Aires, a qual, adotando o nome de um herói araucano, só por isso dava a entender suas ligações com a costa do Pacífico, desenvolveu notória e fecunda atividade na perseguição do seu ideal, que era a independência com a república. O fito comum tornava irmãos todos os revoltosos da América sujeita à Europa e o laço que os prendia era o juramento de não reconhecerem outro governo legítimo senão o "eleito pela livre e espontânea vontade dos povos".

É inquestionável, posto que desconheçamos os pormenores, que lojas do Brasil e do Rio da Prata estavam então em comunicação e Rivadavia, numa das suas cartas editadas pelo Sr. Júlio Peña, erudito de Buenos Aires, diz ter tratado com Domingos José Martins pouco antes da revolução de 1817, na passagem do argentino para a Europa.

A junta de 20 de maio de 1810, conseqüência de alguns anos de agitação política que um historiador argentino chama orgânica, já fora segundo este mesmo historiador (15) o resultado de um acordo tácito entre as diversas facções que na capital do vice-reinado encarnavam as tendências de diversa finalidade. A imposição da junta pelo povo ou antes por alguns indivíduos em nome do povo, fez-se de viva voz: a representação escrita foi apresentada muito mais tarde, no mesmo dia. Também a representação do senado fluminense de que resultou o célebre Fico, traduziu um acordo entre facções que pautavam seus esforços por orientações distintas.

Em Buenos Aires ampliou-se a breve trecho a fórmula constitucional para dar nela entrada às forças políticas do interior, que sem isso logo se dispersariam. Entre nós foi mister empregar habilidade e nervo para atrair a um movimento harmônico as juntas provinciais que, entregues a si, seguiriam rotas separadas. A coroa atuava porém como um ímã muito mais forte do que qualquer outro prestígio, e a União tinha de brotar da implantação da monarquia ou antes da transformação liberal dessa instituição tradicional, como brotaria a desunião dos constantes atropelos constitucionais das Províncias Unidas, agrupadas pelo pacto do estatuto de 1816.

Mariano Moreno representara a tendência centrípeta que Rivadavia prolongaria; Artigas a tendência centrífuga que o federalismo manteria, em todo caso englobando aquele uruguaio no seu sistema os territórios ou províncias do litoral e contíguas Entre Rios, Corrientes, Santa Fé e até Córdova. No Brasil, em 1821, um observador estrangeiro como Mareschal notava que não havia entre as províncias unanimidade, nem sequer tendências comuns. Assim a junta organizada em Minas Gerais começou por ser oposta à regência e de fato independente, tratando com a de São Paulo de potência a potência, fazendo lembrar o Paraguai com relação à sede do vice-reinado. O diplomata austríaco opinava mesmo na sua correspondência pela transferência do governo central do Brasil para Minas, por causa do ciúme que a capitania interior nutria do Rio de Janeiro. Quanto a Pernambuco, escrevia ele que mostrara sempre um espírito de independência republicana.

A felicidade do Brasil foi não haver naufragado o princípio da autoridade e ir a nau do Estado, revelando maior capacidade de resistência à medida que ia deixando atrás de si os escolhos que a ameaçavam. Logo depois se daria entre nós o mesmo antagonismo entre a convocação de uma assembléia constituinte que engendrasse uma lei orgânica, corrente que em Buenos Aires personificava San Martin, e a instalação de uma ditadura, que lá personificava Alvear. Apenas o conflito no Brasil era muito menos cru e a divergência se disfarçava muito melhor.

A razão da segunda corrente argentina estava, não só em que as juntas de governo não expressavam com bastante plenitude a soberania nacional, como em que as Vistas de muitos andavam voltadas para a reconstituição da unidade hispano-americana sobre bases liberais, com uma monarquia limitada pela autonomia das suas partes integrantes, segundo a que fora concedida de jure ao Brasil em 1816. O carlotismo, como chamam escritores platinos aos esforços de Dona Carlota Joaquina para assumir a direção dos domínios americanos de seu irmão Fernando VII, era uma modalidade desta última tendência, que a restauração do soberano deposto por Napoleão e cativo desde então em Valença, não podia bafejar.

Não obstante ser militar de carreira, foi sempre San Martin muito mais adepto da doutrina constitucional do que muitos civis, da mesma forma que no Brasil ninguém amou mais romanticamente as liberdades políticas do que Dom Pedro, ainda que temperamento e educação freqüentemente o levassem a desprezá-las. A vantagem manifesta do Brasil foi que adotando a solução monárquica, não procurou nem governante nem regime político alheio às suas tradições: apenas adaptou a monarquia aos novos princípios, tornando-a não só constitucional, como democrática.

Mercê da trasladação da corte e dos benefícios resultantes da sua fixação no Rio de Janeiro, o sentimento público, pelo menos o fluminense, não criara incompatibilidades com a realeza. Pugnando pelos direitos políticos do cidadão, a opinião admitia contudo tal instituição acima dos partidos e das classes.

Foi também uma fortuna para o novo Brasil, independente e unido, que se houvesse fragmentado o vice-reinado do Prata, porque diante do seu território dividido politicamente e do seu meio físico dispersivo, ele teria sido levado a agir como um instrumento de destruição. O Uruguai, prolongamento do Rio Grande do Sul e onde, na opinião de alguns, devia ter sido a capital, achava-se nessa ocasião nas mãos dos portugueses; mas não o estava o Paraguai, prolongamento meridional do Mato Grosso, como o denominou Eliseu Reclus, que daria grande trabalho ao Brasil quando uma vez se organizasse em estado guerreiro, núcleo de resistência a absorções e agente de desagregação do Império.

O Brasil colonial fora expansivo, como o provam os tratados; de 1750 e de 1777 legitimando suas incorporações: o obstáculo agora deparado podia converter-se numa força que atraísse Mato Grosso e Rio Grande do Sul para a bacia platina. A posse do Uruguai trazia consigo porém a clausura política do estuário e com ela uma dupla volta de chave à porta mercantil das províncias litorais, desde Colônia até Corrientes (16). Convém não esquecer que Montevidéu fora o baluarte destinado a contrapor-se às tentativas de consolidação e de irradiação dos portugueses instalados na Colônia do Sacramento.

Ocupada a Banda Oriental pelas armas do pacífico Dom João VI, ao Brasil-reino abria-se uma carreira de conquista, mesmo involuntária, sem todavia possuir, nem as forças, nem os recursos, nem mesmo o espírito do conquistador militar. Faltava outrossim, à América Portuguesa como à Espanhola, a autoridade de uma classe dirigente educada e preparada para as altas funções políticas, da qual no entanto emergiram capacidades que se distinguiram, e até personalidades excepcionais, que modelaram as novas nações com a intuição fulgurante de Bolívar e com o entusiasmo entre estouvado e perspicaz de Dom Pedro, completado pelo patriotismo entre ardente e refletido de José Bonifácio, cujo principal mérito foi enxergar mais longe e sentir mais fundo do que a sua pequena pátria paulista.

 

CAPÍTULO II

A SOCIEDADE BRASILEIRA. NOBREZA E POVO

A classe dirigente existia em embrião na América Portuguesa e na Espanhola desde que em ambas havia uma aristocracia colonial, espécie de gentry, de caráter territorial - agrícola, ou pastoril, ou mineira -, que foi natural e fundamentalmente simpática à causa da emancipação política, a qual ela pôde tanto melhor servir quanto, no Brasil, formava essa classe os quadros de oficiais dos regimentos de milícias e os senados das câmaras municipais, encontrando-se também representantes dela nos cargos da magistratura e dos governos das capitanias menores (17). André Vidal de Negreiros foi mesmo governador de capitanias importantes, mas isso constituía uma exceção, justificada pelos seus relevantes serviços de guerra.

O fato de só se terem descoberto diamantes e ouro no Brasil nos fins do século XVII, deu contudo à evolução portuguesa na América uma base mais estável do que à evolução espanhola. Esta base foi dupla, agrícola e pastoril - a lavoura da cana e a criação de gado. Pernambuco e sua expansão civilizadora para o norte foram o produto da primeira; a ocupação dos campos do Piauí foi a conseqüência da segunda. No sul o traço ambulatório foi mais acentuado e os bandeirantes mais constantes nas suas pesquisas. A Bahia participa de ambas as feições. O povoamento do interior constituiu um efeito mais moderno da indústria mineira, que teve que ser criada, embora empiricamente.

A Espanha encontrara logo no início civilizações relativamente adiantadas e riquezas acumuladas. Seu papel foi assim mais de conquistar do que de colonizar: a Argentina, que não tinha minas como o México, o Peru ou Nova Granada, estacionou por longo tempo numa exploração primitiva. Portugal colonizou porém na América tanto quanto conquistou: no Oriente é que obedeceu ao critério das feitorias comerciais. A tradição colonial era em ambos os casos a romana - de anexação territorial sem representação, isto é, sem direitos para os habitantes (18).

Na América Inglesa, pelo contrário, a gente não só era toda arraigada ao solo para onde se havia transplantado no intuito de ali permanecer, como oferecia no seu aspecto um prolongamento da raça da qual procedia. As colônias eram dos que as tinham fundado e não dos adventícios da metrópole que, desempenhando cargos de justiça, de administração, de serviço militar ou eclesiástico e de comércio, desprezavam o elemento mestiço ou mesmo crioulo puro, que reputavam inferior. O conflito que na América Saxônica foi, em matéria de separação, puramente político, aparecia pois na América Latina também como social, numa modalidade que não a de cor.

A idéia de nobreza não podia ser idêntica nas colônias ibero-americanas à das suas respectivas metrópoles. Não foram os grandes nobres, os poderosos representantes das casas de alta linhagem, como, em Portugal, as de Bragança ou de Aveiro, que passaram ao ultramar: foram os representantes da petite noblesse, da que em França se chamava d'epée ou de robe, fidalgos já se sabe ou filhos de algo, constituindo a casta guerreira. Eram eles os samurais da Península, que nas possessões se equiparavam socialmente desde o século XVI aos plebeus, salientando-se como exploradores de sertões, ocupadores de terras, fundadores de povoações.

Cortez, Pizarro, Almagro, Quesada, se não eram "hombres del estado llano", eram hidalgos pobres como D. Quixote, "de lança em riste, velha adaga, magro rossim e galgo corredor", afeitos a uma mesa mais que frugal, de índole aventurosa, espírito brioso, vontade tenaz e pronta iniciativa, cheios de uma dignidade que ia até a prosapia (19). Pela freqüente ironia das coisas históricas, a colônia democraticamente organizada de Buenos Aires foi a fundada pelo adelantado Mendoza (os adelantados eqüivaliam aos nossos donatários e esse enricara no saque de Roma), ao passo que o Peru veio a ser a corte aristocrática de vice-reis faustosos.

Escreve o historiador venezuelano Becerra (20) que a aristocracia colonial espanhola tinha mais propriedades do que brazões: talvez fosse mais justo ainda dizer que preferia as propriedades aos brazões. Aliás as Leis de Índias tinham enobrecido todos os conquistadores que fundassem povoados e não se estabeleceu na prática distinção entre os caudilhos da conquista e os seus companheiros. Todos foram considerados primeiros povoadores e foram portanto fidalgos. O que entrou a diferenciá-los foi o grau da abastança e da influência adquiridas no país. Entre eles não havia exatamente sentimento de casta: o que havia era o gosto de um bem-estar mais generalizado do que nas terras de onde tinham procedido. Eis o que foi o mantuanismo (21) colonial.

A essa nobreza melhor assentaria, no conceituoso dizer do sociólogo Arcaya, cujas observações neste ponto se aplicam igualmente ao Brasil, a denominação de "burguesia". Se não era casta senão talvez num sentido bastante pálido, diferente da autoridade quase feudal desfrutada nos seus domínios, tampouco era uma aristocracia política ou mesmo uma oligarquia de governo, uma vez que este se constituiu autônomo e responsável. Ernesto Quesada pondera que nos países latino-americanos foram as ditaduras que desempenharam a função sociológica de amalgamar as diversas tendências sociais. Tal papel coube no Brasil à realeza.

Dava-se entretanto a circunstância, e nisto é que pode ter-se manifestado uma certa tendência oligárquica, difícil de medrar onde a monocracia era o regime mais popular, de haver uns tantos com audácia, energia e luzes para se colocarem acima da grande massa ignorante e inerte. Foram esses poucos que sobressaíram na eventualidade e pretenderam organizar os novos estados segundo suas preferências teóricas.

Os Suassunas, conspirando em Pernambuco em 1801 para o estabelecimento de uma república protegida por Bonaparte, correspondem aos Andradas em São Paulo, ainda que sua concepção estreita carecesse da visão nacional de José Bonifácio. Eles eram "os nobres", os que tinham oposto seu orgulho à vaidade dos "mascates". A colonização brasileira levada a cabo por degredados é uma lenda já desfeita. Nem ser degredado eqüivalia então forçosamente a ser criminoso, no sentido das idéias modernas. Punia-se com a deportação delitos não infamantes e até simples ofensas cometidas por gente boa. Os dois maiores poetas portugueses, Camões e Bocage, sofreram a pena de degredo na Índia, como Ovídio sofreu a do banimento no Ponto Euxino.

O Brasil tinha sua gente de nascimento. José Bonifácio, percorrendo a Europa como naturalista, nunca deixou de ser considerado nobre. Seu passaporte austríaco, que o Instituto Histórico conserva, reza ser ele um "portugeesischer Edelmann". O que não havia, quer nas colônias, quer na metrópole, era o rigor de preconceitos de raça como nas colônias inglesas da América. Da devassa de 1817 resulta que a melhor gente de Pernambuco - parte dela pelo menos - freqüentava a casa do Cruz Cabugá, que era filho de mercador e mulato: morreu aliás como ministro do Brasil na Bolívia. E como poderia exercer-se tal rigor se em maior ou menor grau foram mulatos João Fernandes Vieira, o herói da reconquista pernambucana, o padre Antônio Vieira, o grande espírito português do século XVII, e o marquês de Pombal, o ministro despótico e reformador? Na Argentina era mulato Rivadavia, o seu homem de Estado mais inovador. Este verdadeiro sentimento democrático, que é o da igualdade, foi o produto da organização social hispânica. O sentimento de liberdade política é que pode haver sido favorecido pelas idéias do filosofismo francês postas em prática pela revolução de 1789. O efeito dessas idéias na América Latina foi antes nocivo do que benéfico: elas não só se exageraram como se adulteraram, criando em muitos casos uma situação convencional e falsa. Ocupando-se da sociedade brasileira de 1821, escreveu Mrs. Graham, que tinha talento de observação, uma nota curiosa, a saber, que a maior parte dos homens versados em assuntos políticos era composta de discípulos de Voltaire, "os quais iam além das suas doutrinas em política e rivalizavam com sua indecorosidade em religião, pelo que suas falas eram por vezes repugnantes (disgusting) a pessoas de bom senso que tinham presenciado e compreendiam as revoluções européias". Pela boca de Mrs. Graham falava a Inglaterra hostil aos desmandos subversivos.

De resto, antes da guilhotina na França definir os direitos do homem, o espírito das comunidades ibero-americanas tinha, com limitadas exceções, desmanchado a vanglória da superioridade de raça fundada na nobreza do berço ou na alvura da tez. O próprio Império brasileiro foi democrático mais do que no rótulo, tanto que, ao organizar a sua nobreza, não a fez hereditária, condição de perpetuidade. A constituição monárquica de 1824 não reconhece privilégios de nascimento: a aristocracia que então se formou, era galardoada pelos seus méritos e serviços pessoais e parte dela era também representativa da riqueza, que é um dos esteios do Estado e um campo onde cabem as atividades individuais.

Na América Espanhola, onde as circunstâncias foram adversas à fundação de monarquias, o povo, em grande parte mestiço de índio e afeito ao paternalismo de governo - pois que toda a legislação tinha por objeto proteger a raça indígena se bem que não logrando evitar os abusos - não compreendia porque se queria substituir o rei, que era uma expressão palpável, por expressões abstratas. Na Venezuela, pátria de Bolívar, a popularidade do movimento de emancipação política só se tornou uma realidade quando Paez, filho da plebe, abraçou a bandeira independente e lhe trouxe o apoio da democracia "indômita e agreste" da qual ele próprio se faria no governo a encarnação.

No Brasil a aspiração nacional corporificou-se no representante da dinastia que a terra albergara numa hora de provação, e este caráter fez com que mais depressa se irmanassem os sentimentos da população. A resistência local por assim dizer não ocorreu. Não se conheceu um partido de tradicionalistas europeus, além dos próprios portugueses, ou uma devoção violenta de proletários privados da proteção efetiva de um governo sempre solicito em não permitir que a aristocracia lhe contrabalançasse a autoridade. O elemento de oposição à referida aspiração nacional foi o das Cortes de Lisboa, embora professando a doutrina do nivelamento das classes e da comunidade dos anhelos.

Desde os tempos coloniais, todavia, que a condição de nobreza não dava por si só direito sequer à constituição de uma aristocracia municipal. A partir dos começos do século XVII deixou-se mesmo de observar nas colônias espanholas a Lei de Índias que concedia aos descendentes dos conquistadores preferência para certos cargos municipais como, por exemplo, os de alcaides ordinários (22).

Algumas vezes os privilégios e títulos eram transmitidos pela linha feminina - caso ainda hoje comum na Espanha -, consorciando-se as filhas dessa gente de algo colonial com funcionários vindos da Espanha. Como porém semelhantes favores apenas podiam ser reclamados por indivíduos e não pelas corporações, estranhas a tais interesses pessoais, fácil era o irem caindo em desuso com a afluência dos espanhóis da metrópole e o advento de outras camadas sociais.

As barreiras entre as classes foram-se gradualmente abaixando e seu desaparecimento constituía o termo de um processo evolutivo, regular e próprio. A igualdade foi-se tornando legal, de fato como de direito, entre os nobres e os brancos "del estado llano", e as fronteiras entre estes brancos e os pardos livres, abastados ou remediados, por sua vez se fizeram imprecisas e fáceis de confundir ou de ultrapassar. Esse movimento geral de democratização social foi espontâneo: não obedeceu a sugestões de fora. As máximas e exemplos da Revolução que se diz mater do mundo contemporâneo, somente contribuíram para apressar o rompimento, determinando violentas explosões. O rompimento dar-se-ia de qualquer modo, porquanto era o fito da progressão de uma sociedade em formação sob os auspícios de uma metrópole mais atreita no ultramar aos proventos do que às tradições e que estava ela própria passando por uma transformação.

Tampouco foram no Brasil as funções municipais apanágio exclusivo da nobreza da terra. A chamada guerra dos mascates proveio de fato de se pretender criar, cerceando a jurisdição da câmara fidalga e brasileira de Olinda, a câmara burguesa e portuguesa do Recife. O conflito foi porém resultado do espírito de antagonismo que inspirou nesse caso a resolução, pois que nos senados das câmaras se sentavam indistintamente senhores de sangue azul e plebeus de sangue vermelho, cujas prerrogativas eram iguais às dos outros. O governo da metrópole até favorecia mais estes últimos por serem do reino e não das colônias, possuindo assim mais vivo o sentimento de fidelidade.

Mrs. Graham escreve que os portugueses ricos do comércio preferiam dar suas filhas a caixeiros sem vintém, vindos do reino, do que a brasileiros de posição, invocando a questão de raça pelo fato dos da terra; mesmo nobres, denunciarem freqüentemente cruzamento. A repugnância ao negro, praticamente abolida no trato social, subsistia bastante em matéria de casamento, mas não raro oferecia meramente um pretexto para menosprezo, tanto assim que muitos dos portugueses transplantados casavam nas famílias desde muito estabelecidas além- mar. Nem podia aquela repugnância corresponder a um sentimento senão assaz convencional, visto que em Portugal não havia escassez de sangue africano, dada a grande quantidade de negros importados, produzindo esta mescla de raças certa confusão social que redundou por fim em equilíbrio. O espirituoso escritor equatoriano Montalvo definiu em nossos dias a situação, lembrando que mal cabia o preconceito com relação à progênie, quando não tinha servido para refrear os amores dos conquistadores.

Se a bastardia nunca foi um empecilho à nobreza, pois que desde o começo das monarquias hispânicas foram os bastardos dos reis reconhecidos e ricamente dotados (no século XVIII ainda nascia bastarda em Portugal a casa de Lafões), não é de admirar que bastardos de valor fossem tão apreciados pelos seus serviços quanto os brancos puros. Francisco Barreto de Meneses, o general da campanha da restauração pernambucana contra os holandeses, era filho de português nobre e de índia peruana, tendo aliás nascido em Callao. É verdade que, mesmo nos Estados Unidos, a mestiçagem com índio nunca foi considerada humilhante, sendo os produtos socialmente tratados noutro pe. Nas colônias espanholas os mestiços seguiam a condição materna e portanto mergulhavam na raça aborígene, mas ainda assim, lá como no Brasil, os que tinham nas veias sangue negro muitas vezes apregoavam ter sangue indígena.

Contudo não constituía o sangue negro eventualmente obstáculo insuperável nem sequer a mercês e graças régias. Não foi só o índio Camarão quem recebeu foros de nobreza: o preto Henrique Dias teve o hábito de Cristo com tença. João Fernandes Vieira, apesar de ser de cor, governou Angola e Pernambuco. Os populares brancos formavam o elo médio da cadeia, prendendo-se por um lado aos nobres territoriais e por outro ao elemento plebeiamente mestiço. Em tais condições não podia mesmo haver diferenças fundamentais de classes. As divisões eram artificiais e os costumes modificavam até a legislação. Entretanto certas diferenças extremam a organização da vida social nas duas seções em que se divide a América Latina.

Da mesma forma que sucedia em Portugal, comparado com a Espanha e mau grato a carência nas colônias espanholas de um rigoroso sentimento de hierarquia, a aristocracia brasileira achava-se muito menos distanciada do povo. Se este mais depressa fraternizou com ela, é porque a relação em que viviam representava uma longa tradição a que não faltava o sofrimento, mas a que faltava o ódio. Os índios eram uma raça livre por lei, de fato serva adstrita à gleba e escrava nas explorações de minas. Os negros eram escravos por lei e formigavam no Brasil, que foi o seu grande mercado na América do Sul, ao passo que na América Espanhola a instituição servil tinha raízes menos fortes, sendo logo abolida quando ocorreu a independência ou pouco depois e não oferecendo o aspecto de uma instituição profunda e essencial.

É conhecida de resto a preponderância do elemento indígena na maior parte das sociedades neo-espanholas do Novo Mundo. Esses índios tinham sido as vítimas dos encomenderos pelos quais tinham sido repartidos, para que deles tomassem conta em troca de certa soma de trabalho, e no rei enxergavam vagamente um patrono e arrimo contra as iniqüidades. Aos negros no Brasil estava porém trancada esperança análoga, porque a legislação sancionava o seu cativeiro, com o único recurso da alforria pelo trabalho próprio ou pela filantropia alheia.

Nem poderia constituir-se uma nobreza regular sem os morgadios, que eram praticamente desconhecidos na América e que na Península Ibérica permitiram as grandes casas sustentarem até o século passado o seu fausto. Os morgadios do além-mar não eram vedados, antes autorizados isoladamente por lei, mas não entravam nos hábitos. De um ou outro se dá notícia no Brasil. O pouco valor relativo das terras era outrossim uma condição desfavorável à sua instituição: não se podia mesmo contar, como na Europa, com rendimentos mais ou menos certos. Havia muito de flutuante, de indeciso, nessa vida do Novo Mundo.

Grandes fortunas não existiam: o que havia eram extensas propriedades, proporcionalmente de escassa remuneração por não ocorrerem, com o sistema do monopólio mercantil, oportunidades de especulação. Aliás as grandes fortunas são por via de regra antes industriais e comerciais do que agrícolas: os lucros agrícolas costumam ser moderados, sendo precisas circunstâncias excepcionais, como as da última guerra e, com relação ao algodão, como as da Guerra de Secessão, para certos artigos darem elevados proventos.

Os latifúndios coloniais apresentavam-se em larga proporção baldios e não podiam nestas condições assegurar um rendimento sequer suficiente e estável. O número dos ricos andava limitado, graças à divisão da propriedade, a não ser pelo resultado do próprio trabalho e felicidade: ora, com a obrigação do esforço individual, maior ou menor, cessava a primeira condição de uma aristocracia de lazer. Em toda a América Hispânica assim acontecia. Se um hidalgo pretendia estabelecer um morgadio, não podia para isto dispor senão da quarta parte da sua fortuna porque, pelo eqüitativo direito espanhol, as três outras partes eram legítima dos filhos. De ordinário a partilha dos bens tinha lugar sobre a base da igualdade. As encomiendas de índios não substituíam propriamente os morgadios porque não eram hereditárias: eram apenas vitalícias, algumas vezes outorgadas por duas ou três vidas.

Na Venezuela os vínculos de terras conservadas indivisas eram em proveito de todos os descendentes do fundador, para serem desfrutadas em comunidade perpétua, alguma coisa no gênero do mir russo; ou então consistiam de capellanias fundadas com determinado rendimento para sustento e ordenação (estado e formatura como se dizia) dos clérigos da família, em troca na obrigação de umas tantas missas. Os que apenas queriam aproveitar o ensejo de estudarem, recebiam ordens menores e antes de se tornarem presbíteros, abandonavam o benefício a outros. Também havia um ou outro morgadio nos puros moldes europeus: Bolívar, por exemplo, era morgado, o que o não impedia de mofar da nobreza americana.

De lado a lado se estabelecia por essa América Latina um desafio escarninho. Os governadores vindos das duas metrópoles timbravam em mostrar escassa consideração pela fidalguia colonial, mesmo para indicarem a superioridade da sua própria nobreza e assim, pensavam, melhor firmarem seu prestígio (23). Troçava-se dos nobres trotando para suas ruins plantações, montados em ruins bestas, envergando ruins vestes e empunhando ruins chapéus de chuva.

A raça branca depauperara-se nos trópicos sob a dupla ação do clima e das doenças, apesar da resistência peninsular primar qualquer outra e de serem os espanhóis e portugueses os melhores colonizadores da zona quente. A degenerescência era porém visível em muitos casos, quando a não corrigia a infiltração de sangue mais rico de seiva, vindo de fora, fosse da Europa, fosse da África, ou a não sustava o cruzamento com os indígenas. A superioridade da família humana transplantada no intuito de conquistar ou de colonizar revelava-se ocasionalmente em tipos anormais como o de Bolívar, no qual reviveram, sobre o mesmo fundo psíquico dos seus maiores, "a necessidade de sensações violentas, o prazer das batalhas, a satisfação de anhelos ingênitos de glória e de poderio". No Brasil o tipo que se lhe assemelha mais é o de Dom Pedro, um peninsular que da mãe herdara muitos traços do caráter espanhol.

Sonhadores de liberdade, o Brasil os teve, como os de Minas em 1789 e os de Pernambuco em 1817, uns e outros manifestando pronunciada tendência à Organização. Mais tarde porventura, era também o português mais legalista, posto que se denunciando freqüentemente seu espírito jurídico pelas formas do litígio e da chicana. O pessoal político das Cortes de Lisboa e da Constituinte do Rio recrutou-se entre essa gente que era a que, ainda depois da independência, promovia revoluções como a de Pernambuco e outras províncias do norte em 1824, instigada por motivos constitucionais mais do que pelo simples prurido de mudança de regime.

Os nobres da terra como o morgado do Cabo, contra quem e sua investidura oficial se fez a citada revolução de 1824, constituíam em suma os únicos representantes da tradição, porque o clero era todo ele ou quase todo revolucionário. Esses nobres afluíram das capitanias próximas quando a realeza foragida estabeleceu sua corte tropical, e nela defrontaram com os cortesãos de gema, que formavam o séquito português do monarca, e com os mercadores também vindos do reino europeu, agora mais ricos do que os demais pelo desenvolvimento tomado pelo comércio e igualmente com ambições aguçadas pelo desdém de que eram vítimas da parte de ambas as aristocracias.

Esta expressão, no tocante à brasileira, não significa absolutamente, muito pelo contrário, que fosse ela adversária de reformas: em toda a América Hispânica contaram-se os nobres coloniais entre os partidários mais decididos das idéias liberais. Estas idéias imperavam entre a inteligência do século XVIII, nos países reputados de maior atraso, muito mais geralmente e muito mais fundamente do que se pode à primeira vista supor, dada a impressão que anda de ordinário consorciada com essas sociedades beatas e supersticiosas. O voltairianismo foi um traço freqüente em Portugal e portanto no Brasil, não só na França (24).

A luta não era tanto de idéias como de interesses. A família real emigrara de Portugal com 15.000 pessoas de comitiva e esta gente tratava de viver, ocupando não só os melhores lugares, mas mesmo aqueles a que por lei tinham direito os da terra. A presença da corte tinha indiretamente trazido muitos benefícios e dotado o Brasil da categoria de nação. O espetáculo era porém desolador para o observador estrangeiro, juiz mais imparcial, uma vez que se lhe oferecia ensejo de assistir a ele. O bávaro von Weech, que em 1830 escreveu suas recordações de viagem entre 1823 e 1827 ao Brasil e Províncias Unidas do Prata25, fala da rotina dos negócios, da almoeda dos favores e graças, da exploração da população pelos estancos e pelos absurdos entraves aduaneiros postos ao tráfico inter-provincial, que assinalaram o reinado de Dom João VI no terreno econômico e moral.

A realeza acabara por viver da corrupção e na corrupção e a corte portuguesa retirara-se após dar um verdadeiro assalto ao erário brasileiro. São de von Weech as seguintes palavras: "Os portugueses de torna-viagem despojaram a terra de avultadas somas e, fiéis ao seu sistema de esgotamento até o último momento, esvaziaram todos os cofres públicos, até a caixa das viúvas e órfãos. Só Sua Majestade carregou em ouro em barra e amoedado mais de 60 milhões de cruzados, sem falar nos diamantes, empenhados no Banco do Rio de Janeiro a troco de fortes somas e que foram transportados sem o Banco ser indenizado".

No Brasil, como em toda a América Hispânica, faltava povo. Num dos seus ofícios para a chancelaria austríaca o encarregado de negócios Mareschal observa que mesmo que o país viesse a sofrer dos horrores da revolução, "o povo se cansaria da anarquia mais cedo do que na Europa, porque ele se compunha na sua totalidade de fazendeiros e não havia a ralé que se torna nas mãos dos agitadores cego instrumento". A ralé existia, mas era um elemento inteiramente fora da vida política: o grau de ignorância, a condição de falta de cultura, vedava ao povo propriamente qualquer participação na vida consciente da comunidade.

Eduardo Prado notou com sua habitual finura a intuição genial do pintor Pedro Américo, colocando no seu quadro da proclamação da Independência, em plano inferior ao príncipe e à sua comitiva militar vibrante de entusiasmo, com as espadas nuas e alçadas e nos lábios o grito épico, o carreiro boçal, guiando seus bois, atônito diante daquela cena cujo sentido completamente lhe escapava.

Segundo Condy Ragúet, o encarregado de negócios americano, que era porém um maldizente e um petulante com quem a nossa chancelaria teria mais tarde dificuldades e dissabores, o governo brasileiro "mais desejava reduzir do que acrescer o conhecimento político do povo", ajuntando que os americanos "eram vistos pelo governo com olhares suspicazes e eram tão postos de quarentena pelas autoridades e seus incensadores, como se receassem ser contaminados pelos princípios republicanos dos quais é sabido sermos advogados" (26).

A própria liberdade de conversação, portanto de palavra, era na opinião desse diplomata menor sob o imperador constitucional do que o fora sob o rei absoluto. Verdade é que este possuía qualidades excepcionais para um soberano da época de governos paternais. A atmosfera, primeiro turva por eminentemente cortesã da Lisboa pré-napoleônica, depois singularmente agitada pelo fluxo e refluxo da maré liberal, não lhe permitira brilhar nesse meio: fora mister à personagem o sol dos trópicos para inundá-la de luz.

O rei era justamente o que o comerciante inglês Luccock, vinte anos residente no Brasil, descrevia rico de bom senso, de uma bonomia espontânea que ele acentuava, servindo-a com sua extraordinária memória e seu conhecimento dos pequenos fatos ou incidentes relativos às pessoas com quem se encontrava e com quem se entretinha, da mesma forma que ao serviço do Estado punha a penetração notável do seu entendimento, sua capacidade de estudo refletido dos problemas da administração e a astúcia, predicado peculiar à sua família.

Estas últimas qualidades tinham-no predisposto a uma política larga de melhoramentos, com que o Brasil amplamente aproveitou e que contrabalançou no espírito da gente melhor da terra o efeito deplorável do intercurso com os fidalgos da corte, o qual sobretudo originou enfado e provocou o retraimento de grande número de nacionais. Luccock nutria aliás a opinião que os brasileiros eram no geral " independentes, violentos e politicamente mal-educados". Estavam de certo mais perto da natureza do que os europeus, e sua independência era a manifestação de um sentimento que se generalizara nos últimos tempos.

Escreve Luccock que nas camadas menos cultas esse sentimento degenerara num falso respeito humano, verdadeira impostura que fazia até ser reputado degradante o sobraçar pacotes e carregar utensílios de trabalho (27): entre as camadas mais cultas o sentimento se deparara e acrisolara ao ponto de traduzir-se por uma nobre aspiração política. Quando o marquês de Sapucaí dizia no Instituto Histórico, do qual foi presidente, que "ninguém pode arrogar-se a glória, não digo só de ter feito, mas de ter apresentado a declaração da emancipação política do Brasil; este ato operou-se tão aceleradamente e por tal unanimidade de votos de todos os brasileiros, que pode dizer-se com verdade que os fatos encaminharam os homens e não os homens os fatos" - não podia ter em mente abranger o povo no sentido restrito da palavra. Este, antes de emancipar-se politicamente, tinha que se emancipar civilmente; antes de independência, carecia de alforria.

Acreditavam não poucos, mas tudo gente de fora, que os escravos dariam grande trabalho, contagiando-se nesse meio revolucionário que estava sendo o brasileiro e tentando contra os senhores represálias como as do Haiti. A recordação do quilombo de Palmares fortalecia essa impressão. Entretanto, seja mercê da influência da servidão, seja pela vigilância constante e pronta repressão dos brancos - oficiais e particulares - os casos de sublevação negra foram esporádicos, não se espalharam, antes foram facilmente sufocados (28).

O africano não foi o elemento perturbador, mesmo porque se ia diluindo no europeu, e o mestiço era antes politicamente amimado. Conta o encarregado de negócios da Áustria que no dia do batizado da princesa Januária, em 1822, a guarda da cidade foi confiada aos regimentos de mulatos, assim se respondendo à queixa dos regimentos de milícias, compostos na maior parte de caixeiros portugueses, que tinham apresentado uma petição a D. Pedro contra o excesso de serviço que para eles representava a retirada da divisão portuguesa, obrigando-os a descurarem seus próprios negócios.

O Rio de Janeiro em 1821 era uma cidade absolutamente sui generis. Colônia de Portugal até um lustro antes, não parecia uma cidade portuguesa: tinha todo o exotismo do Novo Mundo dentro da sua moldura tropical e americana, encaixilhando um arremedo de cidade peninsular, de ruas estreitas à moda árabe e chácaras de recreio à moda inglesa. Botafogo apresentava sua pequena baía orlada dessas chácaras, a que servia de sentinela do lado do mar o Pão de Açúcar e de pano de fundo montanhas cobertas de matas escuras, entre as quais se destacava o Corcovado, aonde costumavam de quando em vez subir a cavalo o príncipe real e a princesa Dona Leopoldina, que von Weech nos descreve como excelentes ginetes, ele resplendente de mocidade, queimada do sol a tez trigueira, ela rechonchuda e com a pele de loura afogueada pelo calor.

Centro de escravidão, parecia por esse lado o Rio de Janeiro uma cidade africana, com negros a fervilharem em todos os cantos - negros de ganho, carregando toda espécie de fardos, desde os mais leves até os mais pesados; negros do serviço doméstico, as negras de carapinha comprida e alta formando cilindro, denotando escravas de estimação, ao lado das outras, de carapinha curta; negros nas fileiras dos regimentos; negros remando nas catraias, puxando carroças de mão, transportando cadeirinhas metidos nos varais, de grilheta aos pés cumprindo sentenças e executando os serviços da edilidade; negros barbeiros ambulantes, operando ao ar livre in anima vili, porque os da gente melhor (29) tinham suas lojas e eram ao mesmo tempo sangradores; negros dentistas, de condição livre, ao passo que os barbeiros entregavam ou repartiam os lucros com o senhor.

O caldeamento das raças é que a princípio emprestara à capital brasileira seu aspecto peculiar e próprio, em que já havia um quê de alacre, de buliçoso e de irrequieto fornecido pelo céu transparente, pelo ar, ora de fornalha, ora de suave e fresca brisa, pela natureza de galas perpétuas, pela fusão de povos diversos na cor, na origem, no temperamento. Em 1822, por ocasião da independência, o Rio de Janeiro tomara porém o aspecto de uma cidade bastante cosmopolita na feição européia.

O comércio em grosso achava-se em grande parte nas mãos dos ingleses, que proviam os retalhistas nacionais e franceses. Estes tinham-se especializado como retroseiros, vendedores de miudezas e de artigos de modas. Havia contudo bom número de lojas inglesas, principalmente de seleiro, e os chamados ship-handlers, fornecedores de viveres e bebidas para as embarcações fundeadas ou em trânsito. Os alfaiates eram em parte franceses, em parte ingleses, assim como os padeiros; as tavernas todas inglesas, rivalizando com as dos portos britânicos; os ourives, da terra, traficando em artefatos do Porto - cruzes, cadeias, botões, corações e figas.

O artigo inglês - London superfine - primava no mercado. Eram as chitas e madapolões estampados, as casimiras, as quinquilharias, além das ferragens de Birmingham e da cutelaria de Sheffield. Diz Mrs. Graham que os retalhistas brasileiros, aliás mais descuidosos no atender aos fregueses, vendiam mais barato do que os estrangeiros, e que se encontravam sedas, crepes e outros produtos da mão-de-obra chinesa, o que se explica pelas comunicações diretas com Macau.

O trato com os estrangeiros alterara assaz os antigos hábitos de retraimento; modificara até a cozinha e introduzira certos hábitos de civilização, de antes desconhecidos e que o clima dificultava na maior parte do ano, convidando às sestas durante o dia e aos deshabillés caseiros. Escreve Debret que as senhoras vestiam com apuro (recherche), garridice e até espavento, usando geralmente cores claras e vivas. Primeiro houve no vestuário feminino uma infiltração inglesa, antes de vir a francesa, definitiva, que baniu de todo o capote - o josézinho, cujo sestro fora importado de Lisboa com a corte. O cosmopolitismo desse tempo ainda era porém um cosmopolitismo especial, de terra quente, ultramarina e apenas começando a conviver diretamente com os grandes centros de cultura.

A mudança da corte trouxera um acréscimo repentino e avultado de população das classes superiores, mas era um elemento descontente, que não encontrara nem boas acomodações, nem distrações do seu gosto no novo meio, pior no seu conceito do que qualquer meio de província portuguesa, porque era um meio dependente, um meio colonial, bárbaro no seu entender. Os fidalgos lisboetas enfastiavam-se a morrer no Rio, sem as óperas e bailados de São Carlos, que o São João nunca desbancaria: nem as tertúlias e serões dos seus palácios, esparsos por todos os bairros da cidade montanhosa e pitoresca debruçada sobre o Tejo; nem as vivas e alegres touradas ao sol quente, mas não inclemente do verão português.

Só Dom João VI gostava. A família real vivera todo o tempo dispersa. A rainha Dona Maria I, louca sem remédio, com suas enfermeiras, numa ala de convento improvisado no palácio, onde recebia a visita diária do filho extremoso; o príncipe regente em São Cristóvão, numa quinta particular transformada em paço, sem grandeza nem conforto sequer, onde os dois filhos se criavam à rédea solta, domando potros no picadeiro, pregando sustos às visitas com disparos de canhõesinhos e touros desembolados, entremeando de palavradas as conversas; a princesa Dona Carlota e as filhas, umas louras e delicadas, outras morenas e azougadas, pessimamente alojadas no casarão dos vice-reis, adorno principal do largo do desembarque, o qual era o prazo dado dos marítimos, das meretrizes e da gente do comércio.

Esta formava o grosso da melhor população fluminense até que se lhe agregasse o elemento aristocrático emigrado do reino. O Largo do Paço continuara porém a ser a distração favorita do pequeno burguês que vivia do aluguel de um ou dois escravos, ia pela manhã à missa, passava à fresca na casa de telha-vã as horas de calor e ali aparecia das quatro horas às Ave Marias a tomar ar, comer doces de taboleiro e beber água do chafariz refrescada nos moringues de feitio egípcio e mourisco, aurindo a viração marítima. Ao mesmo ponto afluíam e à mesma hora os negociantes à espera de navios que lhes vinham consignados e os capitães das embarcações mercantes surtas no porto. Sentados sobre o parapeito do cais, davam trela à má língua antes de continuarem a sessão nas boticas do seu conhecimento. Os oficiais das marinhas estrangeiras com unidades estacionadas no Rio costumavam desembarcar à noite, mas para passar algumas horas nos cafés dos começos da rua Direita, onde depois se chamou o Carceller, do nome da pastelaria que aí se abriu.

Pelas ruas do Rio de Janeiro deparava-se um carnaval perpétuo comparado com o qual o movimento de hoje figura de monótono. Era tal diversidade a imagem de uma sociedade de transição, na qual se misturavam os preconceitos do velho tempo e as aspirações da idade moderna, o ceticismo das crenças tradicionais e o ardor dos novos ideais, as recordações da época colonial e as promessas do período independente que se aproximava a vapor. Pouco faltava de resto para que, exceção feita dos estrangeiros, não se encontrasse pelas ruas um homem, sobretudo branco, sem o laço verde e amarelo e o mote Independência ou morte (30). Tempo esse de intenso nativismo, em que o sentimento público mirava até com escassa simpatia os ingleses pelas estreitas relações que a Grã-Bretanha mantinha com Portugal31.

Uma nota interessante que então se acentuou, mas que já soa na correspondência do enviado dos revoltosos pernambucanos de 1817, Cruz Cabugá e que deve ter florescido entre as lojas maçônicas do Novo Mundo, é a do espírito americano, em contraposição ao espírito europeu. Um dos capítulos de acusação ulteriormente formulados contra Dom Pedro I seria o de ser o imperador, embora constitucional, sectário do sistema europeu, a saber, do sistema monárquico, de opressão e tirania política, que a Santa Aliança não só simbolizava como aplicava. Por esse lado a doutrina de Monroe representava um produto das circunstâncias permanentes da América.

Não admira que mais tarde, Natividade Saldanha, o poeta e secretário da junta rebelde que proclamou a Confederação do Equador com Manuel de Carvalho Paes de Andrade à sua frente, referindo-se à política imperial, a tratasse não só de vacilante como de européia, e anti-americana, porque visava reunir nas mãos do mesmo soberano os cetros do Brasil e de Portugal. Já antes da independência, no discurso que, reunidos, proferiram ao príncipe regente os procuradores gerais das províncias do Brasil em 3 de junho de 1822, dele requerendo a convocação de uma Assembléia Constituinte do reino americano, declaravam esses primeiros representantes da nação: "O sistema europeu não pode pela eterna razão das coisas ser o sistema americano; e sempre que o tentarem será um estado de coação e violência, que necessariamente produzirá uma reação terrível". Entre os ministros de Estado que se conformaram com essa representação, já se achava José Bonifácio.

Na representação em que o comércio do Rio de Janeiro se dirigiu ao senado da câmara para sustar o efeito do decreto de 7 de março de 1821, determinando a partida real, eram recordadas como as grandes vantagens produzidas pela transferência da corte e que convinha consolidar: assegurar à dinastia um império "vasto e precioso que pela força das coisas e pelo andar dos tempos se separaria de Portugal como a América do Norte se separou da Inglaterra", conservar a Portugal na Europa um grau de consideração política que ele não poderia ter sem o Brasil e "poder dominar o Atlântico e o comércio do mundo, dando as mãos aos Estados Unidos da América" (32).

CAPÍTULO III

A AGITAÇÃO CONSTITUCIONAL

A primeira das províncias do reino americano a pronunciar-se pela nova ordem de coisas em Portugal foi o Pará, sendo o movimento insuflado por um estudante brasileiro de Coimbra, de nome Patroni, que para tal fim embarcou em Lisboa e aproveitou a ausência do capitão-general, conde de Villaflor, para pôr em ação as vontades dos seus patrícios. Da junta provisória fez parte como presidente o vigário capitular Romualdo Antônio de Seixas, mais tarde arcebispo da Bahia, marquês de Santa Cruz e defensor da disciplina eclesiástica contra o liberalismo do clero nacional, ardente na política e frouxo na moral, do tipo do padre Feijó.

O vigário Seixas aderiu ao regime constitucional contanto que fosse mantido o catolicismo romano como religião do Estado e Patroni voltou para Lisboa, não como deputado, conforme ambicionava, mas como procurador junto às Cortes, que ele surpreendeu mais do que eletrizou com sua maneira oratória à moda da Revolução, invocando enfaticamente, num jorro estonteador de palavras, os modelos clássicos da história romana e os princípios do Contrato Social.

Seguiu-se a Bahia com um movimento (10 de fevereiro de 1821) urdido por Cipriano Barata e alguns militares. Foi o regimento de artilharia que fez o pronunciamento, ao qual o capitão-general, conde de Palma, pretendeu resistir com o regimento de infantaria e a legião de caçadores, sob o comando do marechal Felisberto Caldeira Brant (Barbacena), que já aí deu prova da imperícia militar, mais tarde revelada em Ituzaingó, não sabendo aproveitar o seu encontro indeciso com Alvear. Avançou temerariamente com 200 homens até a posição ocupada pelos contrários na fortaleza de São Pedro, onde o capitão Veloso, sem querer ouvir-lhe, nem as ameaças nem as rogativas, mandou fazer fogo ao dar Caldeira Brant ordem à sua coluna para avançar. Foi esta posta em debandada pela repulsa, ficando entre os mortos o major Hermógenes Francisco de Aguiar e entre os feridos de gravidade o major Antônio Bernardes de Castro. Diante da defecção dos seus soldados, Caldeira Brant retirou-se a todo galope, morrendo-lhe na fuga, de metralha recebida, o cavalo que montava.

Cedendo o conde da Palma à sorte adversa, foi jurada na casa da câmara a futura Constituição portuguesa: o capitão-general invocou a razão, que confiava seria grata ao rei, de evitar maior derramamento de sangue dos seus fiéis vassalos. A junta organizada foi representativa das várias classes sociais segundo o espírito corrente e, nomeada das janelas para a praça, povo e tropa a aprovaram "com vozes e levantando as mãos para o ar". O marechal Felisberto Caldeira Brant assinou o termo, da mesma forma que o conde da Palma e todos os oficiais, inclusive os superiores. Apenas o conde da Palma recusou a presidência da junta provisória, apesar desta "ter protestado sua adesão ao governo supremo do reino de Portugal ante Deus todo-poderoso e todos os santos da corte celestial". O santo da terra e do dia era o tenente-coronel Manuel Pedro de Freitas Guimarães, o corijeu militar do pronunciamento, imposto pelo povo como membro da junta, por esse elevado a brigadeiro e desde logo encarregado do governo das armas. Palma e Felisberto acharam de melhor alvitre embarcar para o Rio de Janeiro (33).

As notícias do pronunciamento da Bahia alcançaram Lisboa a 15 de abril de 1821 (34) e pelo fato de tratar-se da mais importante e rica das capitanias brasileiras do tempo, apenas excedida em população por Minas Gerais, decidiam virtualmente da adesão do Brasil ao regime constitucional, como depressa se verificaria pelo ocorrido no Rio de Janeiro a 26 de fevereiro. A Bahia achara afinal o ensejo de despicar-se e tomar a dianteira em liberalismo à corte fluminense, onde as correntes políticas em redor do trono eram todas mais ou menos tintas do direito divino.

A Bahia não estava todavia muito segura do que viria a acontecer e as Cortes acudiram sem demora ao seu apelo, despachando para lá tropas com que a província lograsse resistir à capital, caso esta reagisse. Aliás não era desamparada a situação baiana. Segundo Mrs. Graham, havia em São Salvador, fora a companhia que servia de guarda de honra ao governador e o esquadrão de artilharia de campanha, que eram os dois corpos de linha que tomaram partes opostas no pronunciamento, dois regimentos de milicianos brancos, quase todos do comércio, um de mulatos e um de negros livres, de todos o mais útil no serviço como infantaria ligeira e o melhor exercitado. Eram ao todo 4.000 homens bem armados e equipados, e o total subia a 15.000 agregando-se-lhes as milícias de fora, Cachoeira, Piajá, etc. Os oficiais eram das melhores famílias e faziam essas forças parada aos domingos, às vezes com as tropas regulares portuguesas.

O Rio de Janeiro porém formaria também na vanguarda e, não obstante parecerem fazer o jogo de Lisboa, todas as províncias brasileiras acabariam por unir-se para levarem a cabo a obra nacional, que seria reconstituir na independência a unidade comprometida pela adesão desagregada ao liberalismo proclamado no Velho Mundo pelo reino europeu, implicando o repúdio da autoridade de um governo central no reino americano. Inconscientemente, instintivamente, o governo de Dom João VI visara um objetivo de coesão e ainda o seu decreto de 18 de fevereiro de 1821 foi bem o que dele diz Viveiros de Castro - o primeiro projeto governamental de uma Constituinte nacional.

No movimento constitucional qual ele se veio a desenhar na capital brasileira, houve uma progressão manifesta. Quando todos, como escrevia Silvestre Pinheiro Ferreira, pareciam ter fixado exclusivamente sua atenção sobre os interesses portugueses, o soberano enxergou que se não podia atender menos aos interesses do Brasil, cumprindo não abstrair de nenhum dos dois países "sempre que se tratasse de regular negócios em que se acham cumulativamente comprometidos os interesses de toda a monarquia" Silvestre Pinheiro Ferreira chamava neste particular a consideração do amigo a quem escrevia para a "fineza de tato que el-rei possui na justa determinação do ponto cardeal sobre que versa qualquer questão" (35)

A formação do constitucionalismo brasileiro evoluiu rapidamente: a assembléia de procuradores das câmaras e vilas com juizes letrados, a qual se projetara consultiva da natureza das reformas a empreender para melhorar a situação geral, deu na assembléia dos eleitores fluminenses violentamente dissolvida na praça do comércio, uma espécie de Jeu de Paume com menos ênfase, apesar de tropical; o próprio futuro conselho de Estado, feição peculiar do sistema imperial, corpo que organizou a Constituição e tinha por missão amoldar a legislação, esclarecendo-a quando não preparando-a, encontrou o seu esforço na junta consultiva que precedeu a assembléia e funcionou perto do trono, nesse período inicial de agitação, tão efemeramente que só contou uma reunião.

Seu fito era entender-se com os procuradores que fossem chegando, em obediência à convocação, acerca das medidas a serem adotadas, ocupando-se de todos os objetos do decreto (36), a fim de el-rei os poder decidir com pleno conhecimento de causa. Esta junta, composta quase exclusivamente de brasileiros, entre os quais Carvalho e Melo (depois visconde da Cachoeira), João Severiano Maciel da Costa (depois marquês de Queluz) e Mariano Pereira da Fonseca (depois marquês de Maricá) - todos conhecidos pelo seu liberalismo, o último até vítima da inconfidência mineira - mostrou que a certa distância do trono já circulavam outras correntes políticas de maior volume e velocidade.

Da sessão única, que foi presidida por Palmela e teve lugar na sua própria casa em Catumbi, não ficou ata, apenas a tradição corroborada pelos fatos, de que a maioria era favorável à ida do monarca de preferência à do príncipe, o que tendia a simplificar a solução da independência, a qual com a presença de Dom João VI seria infalivelmente retardada. Palmela por sua vez encontrou nessa gente da colônia apoio para a sua compreensão mais lúcida e mais ampla dos acontecimentos, na qual cabiam, no primeiro plano, providências imediatas como a reforma das finanças e a dos poderes dos capitães generais, e mais longe, porém a vista descoberta, as liberdades essenciais que o espírito de igualdade ditava em toda a parte e que iam da aplicação da justiça à repartição do imposto, o mesmo para os ricos que para os pobres, para os poderosos que para os humildes.

A junta contribuiria pois, ainda que não passasse por assim dizer de projeto, para dar uma orientação nacional à agitação constitucional que estava sendo principalmente provocada pelo elemento português das várias capitanias, dando a mão aos agitadores de profissão e outros quaisquer elementos arruaceiros, segundo aconteceu na Bahia e especialmente no Rio.

Propondo a Dom João VI a ida do príncipe real para Lisboa e a outorga de uma Carta liberal em antecipação a que as Cortes estavam elaborando, Palmela traçava o futuro à monarquia portuguesa para que se salvasse modernizando-se; assim como, sugerindo a elaboração de uma constituição brasileira, salvava porventura o dualismo e portanto a união, amparando uma autonomia que as Cortes pretendiam desfazer ao avocarem sua regulação, sob pretexto de garantirem os princípios constitucionais. Palmela oferecia pelo contrário aquela autonomia, que era de fato uma supremacia, como penhor iniludível à permanência no Novo Mundo da corte lusitana. O decreto de 18 de fevereiro como que confirmava tal supremacia, colocando na órbita dos destinos brasileiros as ilhas adjacentes ao reino e o arquipélago africano de Cabo Verde, o que teria tido como resultado fazer do Brasil a primeira nação sul-americana ou mesmo americana com interesses extra-continentais.

* * *

Por um momento, supôs Palmela bastante a consulta aos brasileiros conspícuos sobre as necessidades públicas e a maneira de as atender, começando pela restrição da autoridade despótica dos capitães-generais, mas como sua habilidade era mais que tudo diplomática e tecida portanto de oportunismo, ele sabia ir-se gradualmente e inteligentemente adaptando às novas condições que se iam criando e às novas exigências da situação como esta se ia desdobrando.

A defecção da Bahia foi o seu caminho de Damasco: provou-lhe que era mister agir mais eficazmente. Deparava-se-lhe porém um constante e apaixonado antagonista na pessoa do seu colega de gabinete Tomás Antônio, velho confidente do rei, cujo natural conservador embalava com argumentos jurídicos e sentimentais. Aprovar o soberano a revolução, seria no seu conceito desanimar o partido realista: "não lhe é decente seguir os malvados e desamparar os honrados".

A Carta Régia de 28 de outubro de 1820, autorizando umas Cortes consultivas, terminadas as quais, iria uma pessoa real governar os portugueses, afigurava-se ao ministro o cúmulo das concessões compatíveis com a preservação da autoridade do soberano, autoridade cuja eficiência estava na razão direta da sua integridade. Uma capitis diminutio convidava a novos ataques. Palmela citara a Carta outorgada por Luís XVIII, mas ela o fora como graça, estando a França subjugada pelos inimigos de fora. No caso de Dom João VI seria a causa mero temor dos revolucionários e eqüivaleria a uma quebra dos intuitos que animavam a política européia, além de constituir na inabilidade, porquanto dificultaria a obra da reação nacional.

Quando passasse a vertigem revolucionária - escrevia o proveto magistrado - era mister que se achasse um rei e não um presidente: naquele tempo os presidentes podiam menos do que os reis. Chamar a nobreza para com ela repartir o poder, como o fazia crer a instituição, ideada por Palmela, de uma Câmara dos Pares hereditária moldada pela dos Lords, qual veio a ser criada em 1826, era um perigo, um incitamento à ambição popular, que se desenfrearia, primeiro contra a nobreza, depois contra a coroa. A Inglaterra contemporânea já começou a mostrar o acerto das previsões do dedicado conselheiro do monarca.

Passava-se isto em janeiro de 1821. A 30 estava assente a partida de Dom Pedro na sua missão que Tomás Antônio persistia em considerar sobretudo consultiva: ouvir, indagar, remediar o possível dentro das leis vigentes e propor os melhoramentos de administração e de justiça. A missão era de confiança e de alcance. O fiel ministro achava o trono garantido com a permanência no Rio de Janeiro do rei e do neto que fosse um dia seu sucessor: ou a princesa Maria da Glória ou a criança que a princesa Leopoldina esperava.

Aceitou o príncipe a incumbência e Tomás Antônio rejubilava com suas intenções de fazer as coisas à portuguesa e não à estrangeira. As Cortes seriam as consagradas pelo antigo uso constitucional do reino e não o ameaçado arremedo de convenções nefastas, deliberando por si, sem aprovação ou beneplácito real. Nisto explode a primeira bomba dentro de casa. A notícia da adesão da Bahia ao regime constitucional português precedeu na chegada ao Rio a da adesão do Pará, apesar desta se haver verificado 40 dias antes, a 1.º de janeiro. A 17 de fevereiro entrava pela barra do Rio a dentro o despacho do cônsul britânico em São Salvador, relatando o ocorrido e anunciando que prestes embarcariam o capitão-general e comandante das armas a bordo da fragata inglesa Icarus.

Imagine-se o reboliço na corte. Palmela reclamava com a dobrada energia de quem vaticinara esse desenlace, que para o trono era um aviso, para os liberais um estímulo e para o povo um exemplo, a pública adoção de um programa constitucional. Urgia dirigir um manifesto à nação portuguesa e formular as bases de uma lei orgânica a serem imediatamente concedidas, estabelecendo a divisão dos poderes, a igualdade dos direitos, a liberdade de imprensa, a segurança individual e de propriedade, a responsabilidade dos ministros.

Recebeu Dom João VI essas propostas a 21, consultou a respeito o filho, que no dia seguinte se manifestou contrário a quanto fosse cercear a iniciativa real em matéria de legislação, devendo caber à coroa a apresentação das leis e às Cortes a sua discussão e aprovação antes de voltarem para a sanção suprema, e ouviu Tomás Antônio, igualmente hostil, como sempre, a tudo que significasse abdicar o monarca das suas atribuições e privilégios. Por isso discordava de toda e qualquer proposta do seu colega no sentido, em que ele as taxava, de ceder a exigências populares.

El-rei porém andava abalado com a argumentação persuasiva de Palmela e com o que se lia nas gazetas lá do reino, e entrara a concordar com essa linguagem nova. Uma frase sobretudo do seu ministro propenso a cartas constitucionais ficara gravada no seu espírito: "melhor é dar espontaneamente do que por contrato". Daí o sugerir a Tomás Antônio que se entendesse com Palmela antes de dar saída ao decreto. Tomás Antônio entendeu todavia que não era caso para novos ajustes, devendo julgar-se encerrada a discussão do assunto e parecendo-lhe excelente a teoria dos fatos consumados. O antigo desembargador e chanceler-mor do Brasil elevado a ministro assistente ao despacho, o que lhe dava foros de chefe do gabinete, cerrara os ouvidos mesmo às ponderações do intendente da polícia que, melhor inteirado do que se passava pelos conluios políticos, recomendara que não se deixasse de falar no decreto em Constituição: esta palavra mágica, aquela autoridade a reputava indispensável à manutenção da ordem pública que lhe cumpria zelar.

Muito pelo contrário o decreto brasileiro de 18 de fevereiro assim datado, quando de fato era simultâneo na redação e na publicação com a provisão de 23 - mutilava o projeto de Palmela, tendente à conservação de um dualismo que se esboçara pouco antes tão favorável ao Brasil que até lhe dava uma projeção extra-continental. A provisão nomeava os membros da junta consultiva pela qual se afervoravam os adversários de uma Constituinte. A essa junta se confiava o encargo de "preparar os trabalhos do Congresso".

O princípio dual subsistia em todo caso, mas a situação ficava indefinida pela falta de franqueza de lado a lado. O decreto anunciava a partida do príncipe real para Lisboa, sem poderes para aprovar em nome do soberano a Constituição que ali fosse elaborada e, convocando para o Rio em cortes privativas os procuradores das câmaras das cidades e vilas de juizes letrados, destituía ipso facto de representação boa parte do país, mesmo para o exame das disposições orgânicas que deviam ser aplicáveis aos domínios ultramarinos.

Sofriam assim restrição na sua amplitude as promessas ou antes garantias constitucionais feitas ao Brasil: de onde, combinando-se esta com a outra falha da falta de poderes, da qual se doeu o elemento português e com razão, desde que a Constituição ia ser obra da nação e não dádiva do soberano, a agitação pelo juramento das bases e por fim pelo juramento prévio de todo o instrumento, exigido pelo pronunciamento militar e civil de 26 de fevereiro.

Espíritos havia mesmo para os quais a questão da preservação da unidade luso-brasileira era secundária ao lado da questão puramente constitucional. O visconde de Porto Seguro cita (37) o jornal lisboeta - O Cidadão liberato (um precursor do Homme libre do Sr. Clemenceau), no qual colaborava o mais tarde visconde de Seabra, emérito mestre de direito civil, e que no seu primeiro número, de 1 de janeiro de 1821, se externava em favor da independência mútua dos governos de Portugal e Brasil, ficando Dom João VI no Rio de Janeiro, ali outorgando uma constituição livre ao reino ultramarino e mandando Dom Pedro na qualidade de rei constitucional de Portugal. "Compostas assim ambas as partes, um tratado que assente em bases de comum interesse e recíproca utilidade ligará estes dois reinos independentes com um vínculo mais apertado e consistente que esse que até aqui tem existido".

Na verdade a idéia da independência brasileira precedera o estabelecimento em Portugal do regime constitucional. Sem falar na conjuração mineira e outras sedições coloniais, falhas de solidariedade e sem as condições precisas para vingar, a trasladação da Corte Portuguesa do Velho para o Novo Mundo provocara um movimento geral de tendência à libertação política de que fora manifestação ardente a revolução de 1817, ao mesmo tempo que proporcionara ao príncipe regente verificar em pessoa a grandeza do país que Portugal conservava na sua dependência.

Refere Melo Moraes que já em 1812 se fundara na freguesia de São Gonçalo da Praia Grande uma loja maçônica denominada Distintiva, cujo emblema no selo grande era um índio vendado e manietado com grilhões - o Brasil - e um gênio - o da Liberdade - em ação de o desvendar e desagrilhoar (38).

* * *

A junta consultiva foi um achado para ambos os homens de Estado, conselheiros do rei, pensando um e outro muito embora de modo oposto. Tomás Antônio não a dispensava, se e que a não suscitou, porque temia que a publicação do decreto, sem as bases, pudesse parecer que era para enganar. Assim aventava que se deixasse à junta discutir as referidas bases e entretanto esforçou-se com Dom João VI para organizá-la com pessoal capaz (39) - "para não parecer paixão, mas só desejo de acertar", comentava ele no parecer a el-rei.

A ambos estes, conquanto pretendessem ser surdos às vozes correntes, chegara por fim a convicção de que a opinião pública se estava declarando de modo inequívoco por uma mudança séria. O comandante da polícia avisara o soberano logo que se fez conhecido o decreto sobre a ida de Dom Pedro, que este "fora mal recebido e que já se falava descaradamente que o que queriam era a Constituição de Portugal", pelo que, no mesmo dia 23, avisava o rei o seu ministro de confiança que "como hoje se deve publicar o decreto da junta, seria melhor ver se nele se dava a esperança de que se devia aceitar a dita Constituição, com as mudanças adaptáveis ao país, ou dar as bases" (40). Sobre a junta se queria descarregar a responsabilidade de ajeitar a nova Constituição portuguesa ao organismo político brasileiro.

Palmela achara o momento oportuno para pronunciar-se com a maior clareza e pusera, como hoje se diria, a questão de confiança, solicitando demissão no dia 24, desgostoso com não adotar a coroa "um sistema claro e segui-lo com lisura". Confessava-se cansado de lutar contra a teimosia de Tomás Antônio e persuadido de que "as meias medidas eram ainda mais nocivas do que uma total inação", irritando os ânimos e indicando a falta de meios de resistência conjugada com a falta de vontade de conceder, com a agravante de que as concessões que na véspera teriam porventura sido suficientes para evitar a comoção receada, já o não seriam depois daquela prova de tergiversação e de fraqueza.

À franqueza reuniu Palmela neste lance a habilidade que lhe era costumeira. Em tais condições não podia deixar de ser bem sucedida a cartada jogada, tendo aliás o diplomata tido o bom cuidado de conservar uma porta aberta para volver ao palco sem precisar fazer espalhafato. Com efeito declarou ao monarca que guardava silêncio sobre a súplica de exoneração que lhe dirigia, para não argumentar os embaraços da realeza e não parecer que procedia dominado pela ânsia de popularidade, a qual estava sempre disposto a sacrificar ao cumprimento do seu dever de súdito leal.

Aflito, como escreve Porto Seguro, despachou Dom João VI o seu inseparável Tomás Antônio para junto do colega de conselho e conversaram os dois - "com toda a boa fé", segundo no mesmo dia 24 informava o emissário régio, dando conta de que tinha concordado com Palmela na convocação da junta para casa deste, o qual se dizia agitado e incomodado, desaparecendo porém toda idéia de demissão diante dessa satisfação dada por el-rei (41).

O empenho agora estava todo em se assentarem as bases. "O conde entende, e eu também, escrevia Tomás Antônio a seu amo, que reconhecer já a Constituição de Lisboa, que vem a ser a da Espanha, é o último caso, e por isso se não deve já fazer, pois que dele se não pode passar adiante". O leme passara porém já para as mãos dos que Silva Lisboa chama os cabalistas das sociedades secretas e dos oficiais da tropa lusitana, um dos quais, general, apontando para a espada, dissera - esta faz e desfaz Constituições (42).

No seio da junta mesmo eram extremos os pontos de vista e houve quem tratasse de discolos os constitucionais portugueses, pelo que o visconde de Porto Seguro, que de verdadeiro historiador tinha o instinto do documento mas não tinha a imparcialidade proveniente da ausência de paixão, dá à junta a culpa do pronunciamento do dia 26, agindo o despeito sobre a tropa e não permitindo o ressentimento ainda vivo de Palmela que este se esforçasse para conter-lhe a insubordinação.

Silva Lisboa, o futuro visconde de Cairu, testemunha presencial destes fatos e neles ator, refere que Palmela propôs à deliberação da junta as bases da projetada constituição brasileira pelo modelo da constituição inglesa, mas que a maioria votou "pela recepção, pura e simples, da constituição que se fizesse nas Cortes de Lisboa". E Silva Lisboa explica que essa idéia de uma constituição para o Brasil, distinta da de Portugal, não se conciliava com a criação do Reino Unido e que aos brasileiros afigurava-se "decair do predicamento a que antes havia sido elevada a sua Pátria nativa" tal ameaça de ter "uma constituição menos liberal da prometida à intitulada Pátria Comum" (43).

Num ponto conseguiu Palmela chamar a junta ao seu modo de ver e ela pronunciou-se explicitamente pela permanência do príncipe e partida do rei. Dom Pedro mesmo, na frase de Silva Lisboa, intercedeu com franqueza e energia para que se adotasse como de inelutável necessidade o parecer da junta no tocante à constituição, convindo relembrar que nessa junta figurava parte do escol nacional que ia figurar na política e na alta administração do Brasil independente. Seu papel foi portanto de conseqüência, senão tanto pela sua ação, pelo menos pela sua organização, intuitos e pessoal.

Ajudavam desse modo a idéia de completa adesão às Cortes de Lisboa, repudiando a assembléia legislativa local como a melhor preliminar do seu regime constitucional, o elemento europeu e o elemento brasileiro. Este porventura não agia, nas suas inteligências mais representativas, sem uma segunda intenção, que era a de reservar-se para a solução inevitável do rompimento, imediato ou não, deixando ao outro elemento a prévia liquidação do saldo do regime colonial mediante a disseminação tumultuária das idéias democráticas. Os fatores diretos foram porém a guarnição portuguesa, que não podia deixar de entrar com entusiasmo no movimento, e os demagogos da terra.

A dar-se crédito ao que se relata e parece não só verídico como plausível, Dona Carlota Joaquina, que não era pessoa para passar sem se envolver em intrigas políticas, influía no conluio dos agitadores, sôfrega como andava pelo regresso da corte para Portugal e calculando que o melhor meio para isso era turvar as águas brasileiras. O príncipe real estaria também feito com os demagogos que trabalhavam na sombra, mas que uma vez entabulada a inteligência com Dom Pedro e por este recebidos no paço, na sala do seu guarda-roupa, onde lhes teria prometido seu eventual apoio para o movimento constitucional, considerando descabida qualquer postergação depois do pronunciamento da Bahia, chamaram a si para uma ação fulminante uns tantos oficiais professando as mesmas idéias. Estes militares dividiram entre si a tarefa da propaganda e do aliciamento dos soldados, no que estavam no seu papel, servindo os interesses da mãe-pátria ou o seu ideal revolucionário (44).

O dia pertenceu mais que todos ao padre Macambôa. Ele foi quem, esquivando-se à custódia que lhe preparava a polícia de Paulo Fernandes Viana, suspeitosa da conjuração, se fez o porta-voz da tropa portuguesa e brasileira congregada do largo do Rocio, sob o comando do brigadeiro português Francisco Joaquim Carreti, na madrugada de 26 de fevereiro, tendo o batalhão de caçadores 3 dado o exemplo, com o fim de impor a homologação antecipada e sem modificações da constituição desconhecida e em gestação em Lisboa, bem como um novo pessoal governativo.

Dom Pedro fez nessa ocasião em ponto pequeno o que em ponto grande faria com relação à independência: pôs-se à cabeça do movimento, no interesse imediato e egoísta da sua dinastia e também com a preocupação mais larga de que ele se não tornasse anárquico. Silva Lisboa pensa que "o herdeiro da coroa sendo de alto entendimento, tinha o bom senso de reconhecer que era vão e perigoso não seguir o espírito do século". Não admira assim que observasse quanto em redor de si se passava, chegando a estar informado de que ao mesmo tempo que os chefes militares tinham resolvido fazer aclamar com a força armada a constituição de Portugal "em clandestinos congressos de ambiciosos pretensores de estabelecimento de democracias, semelhantes as proclamadas no continente da América, já se havia organizado um Governo de seu molde, e repartido entre si os primeiros empregos, e até nomeando a um por Ministro dos Cultos, e a outro por Juiz do Povo, o que ameaçava as calamidades da Revolução da França" (45)

Veio o príncipe real de São Cristóvão acompanhado apenas de um criado, porque sua presença era parte obrigada; uma vez lá, no meio das tropas, ponderou pró forma que a constituição portuguesa não vira ainda a luz e que a Constituição para o Brasil ia ser convenientemente estudada por pessoal habilitado e de escolha popular, pois que as câmaras municipais representavam tradicional e fielmente o terceiro estado.

Macambôa desempenhou divinamente o seu papel. Não quis saber de razões: as tropas e o povo em fraternal demonstração reclamavam o reconhecimento e juramento da constituição, tal qual viesse a ser expedida pelas Cortes de Lisboa, e exigiam o saneamento da administração pela preferência dada no provimento dos cargos públicos a patriotas avisados que não mais iludiriam o rei e a nação. Marcelino José Alves Macambôa era lisboeta, de 40 anos, cheio de corpo e corado (46).

Tinha por acólitos o padre Francisco Romão de Goes e Duprat, igualmente mestres arruaceiros ou antes oradores de fórum, cujo aprendizado se fizera nas lojas maçônicas numa época em que a tribuna parlamentar e a da imprensa não se achavam ainda franqueadas.

O movimento por eles impelido não teria pois ido mais longe, como supõe Porto Seguro, do que estava pactuado, ou, mais precisamente, delineado com o príncipe real, a saber, que seria revogado o decreto do dia 18. Silva Lisboa, que foi um dos contemplados do dia, escreve textualmente que Dom Pedro obtivera do pai no dia 24 um decreto aprovando qualquer constituição portuguesa; "porém, estando a corte no paroxismo da crise, e não se promulgando logo tal decreto, como era indispensável para tranqüilizar o público, o príncipe ardente, com inspiração celeste, e feliz estrela, se resolveu a prescindir dos Conselhos vacilantes do Gabinete; e, como procurador em causa própria, tomou sobre si a responsabilidade do Dia, vendo que não havia momento a perder, e que a urgência do caso não admitia hesitação na decisão. Precaver irregular movimento da Tropa foi o seu heróico propósito. Ignora-se que prudenciais expedientes empregou no dia 25 para conseguir este fim" (47)

Porventura pretendiam os manifestantes ir até o extremo de substituírem a autoridade real pela de uma junta constitucional de governo, a qual Dom João VI aceitou, a conselho - um conselho hábil e salvador do Tomás Antônio -, distribuindo contudo entre os seus membros os ministérios e os principais cargos do Estado. Viram-se assim nomeados o vice-almirante Inácio da Costa Quintela para a pasta do reino; o vice-almirante Monteiro Torres para a da marinha; Silvestre Pinheiro Ferreira para a dos estrangeiros e guerra; o conde da Louzã, D. Diogo de Meneses, para presidente do Erário. O bispo capelão-mor foi feito presidente da Mesa da Consciência; Antônio Luís Pereira da Cunha (depois marquês de Inhambuque) intendente geral da polícia; José Caetano Gomes tesoureiro-mor; o desembargador Sebastião Luís Tinoco fiscal do Erário; José da Silva Lisboa inspetor geral dos estabelecimentos literários (48); João Rodrigues Pereira de Almeida diretor do Banco pela Fazenda Real; José de Oliveira Barbosa comandante da polícia; o visconde de Assêca presidente da Junta do Comércio; o general Carlos Frederico de Caula comandante das armas.

Subsistia desta forma a autoridade central brasileira, em vez de ceder o lugar a mais uma junta local, a qual seria simplesmente a junta fluminense, como já havia a baiana e a paraense. Apenas de Lisboa se podia naquele momento esperar do consenso dos constitucionais dos dois países o desvendar de mais rasgados horizontes e convinha irmanar os destinos dos dois reinos, conjugados para os mesmos ideais de liberdade, para realizar os quais pareciam porém insuficientes umas Cortes consultivas como as que se tinha querido organizar para o Brasil, sob a presunção de serem bastantes para o preparo político da terra e adequadas à sua condição social.

Entretanto a relutância ou antes a oposição com que na Bahia era acolhida a notícia dos decretos de 18 e 23 de fevereiro, recebida oficialmente pela junta respectiva antes da dos sucessos de 26, mostra que o sentimento brasileiro era idêntico nos seus principais centros de atividade e que nenhum se contentava mais com instituições imperfeitas. Graças porém ao caminho que tinham tomado os acontecimentos no Rio, pela intervenção do príncipe e sobreposição de uma autoridade central embora em véspera de regencial e para alguns nominal, é justo dizer com Porto Seguro que o Brasil se livrara de obter instituições mais adiantadas à custa do seu fracionamento.

Se as não obteve logo, acabou todavia por obtê-las muito breve e mais completas. Entrementes esta constituição portuguesa ou espanhola que a tropa e povo tinham aclamado, significava para os do reino europeu a continuação da união e para os do reino americano a cessação de uma enfiada de abusos e de iniqüidades, mormente cometidas por uma polícia despótica e irresponsável. Pelo menos não mais permitiam tais atentados os direitos exarados naquela carta de redenção - direitos de propriedade, de opinião, de locomoção, as liberdades essenciais, numa palavra, que até então faltavam.

Por isso era sincero e geral o regozijo. As Cortes de Lisboa exultaram com o sucedido, mas não menos exultou o jovem príncipe que figurava de verdadeiro dador ao Brasil da constituição por ele proclamada do terraço do teatro de São João, entre os membros surpreendidos do senado da câmara e na presença do bispo capelão-mor, pouco contrafeito porque fora chamado para lançar a benção e não a absolvição. As escolhas tinham sido de um raro acerto. Por certo a elas presidira algum critério mais alto do que o mero instinto popular, ainda que este possa ser geralmente feliz. Havia nomes verdadeiramente prestigiosos como o de Silvestre Pinheiro Ferreira, jurista e filósofo de elevada inspiração, nomes respeitáveis como o do economista Silva Lisboa, e uma porção de gente séria, ilustrada e capaz, tanto do ponto de vista administrativo como do ponto de vista moral.

* * *

El-rei tinha afinal que partir... mas no seu íntimo ainda hesitava, tergiversava e apelava para o imprevisto que até aí sempre lhe obedecera e até pressurosamente, mesmo porque o imprevisto não passava muitas vezes do resultado dos seus cálculos. Destarte o decreto de 7 de março foi o que os franceses chamam un ballon d'essai.

Este decreto, apologético de uma constituição política "conforme aos princípios liberais que pelo incremento das luzes se acham geralmente recebidos por todas as nações", declarava ser a primeira e sobre todas essencial condição do pacto social, nesta maneira aceito e jurado por toda a nação, dever o soberano assentar a sua residência no lugar onde se ajuntarem as Cortes, para lhe serem prontamente apresentadas as leis que se forem discutindo, e dele receberem sem delongas a sua indispensável sanção". Silva Lisboa achava mais capciosas que especiosas as razões de Estado dadas para tal residência voltar a ser em Portugal, não havendo motivo insuperável para não ficar el-rei imóvel na Corte do Brasil" e aí convocar os deputados do Reino Unido. O Brasil estava reconhecido pelas potências estrangeiras como sede da monarquia e a Santa Aliança devia mesmo preferir que a realeza aí permanecesse "para contrastar, ou contrabalançar, os impetuosos arrojos de irregulares Repúblicas".

Seguia-se no decreto um apelo sentimental, declarando el-rei exigir "a escrupulosa religiosidade com que me cumpre preencher ainda os mais árduos deveres que me impõe o prestado juramento, que eu faça ao bem geral de todos os meus povos um dos mais custosos sacrifícios de que é capaz o meu paternal e régio coração, separando-me pela segunda vez de vassalos, cuja memória me será sempre saudosa, e cuja prosperidade jamais cessará de ser em qualquer parte um dos mais assíduos cuidados do meu paternal governo".

O que significava semelhante justificação da partida do soberano, que fora aliás reclamada de Lisboa, pelas Cortes Gerais, em ofício de 15 de janeiro, juntamente com a vinda dos representantes brasileiros, que no mesmo dia 7 de março eram mandados eleger em todo o Brasil de acordo com o processo da lei orgânica espanhola, já para o mesmo fim adaptado em Portugal? Significava que a situação política não ficara regulada no espetáculo dado no Rocio. Os atores tinham tomado gosto pelos seus papéis e pelas representações provocadas pela persistência de um estado de coisas que o juramento da constituição deveria ter modificado. O novo governo depressa se inteirou de que se urdia novo pronunciamento entre a tropa de linha portuguesa e as milícias compostas de empregados de comércio.

Para melhor garantir a fidelidade da tropa nacional, outro decreto de 7 de março estabelecia certas equiparações de soldos entre os oficiais dos exércitos do Brasil e de Portugal. Qualquer movimento que se projetasse deitava porém raízes num solo fértil em agitações. Nem devia ser estranho ao que se preparava o herdeiro da Coroa, pois que Silvestre Pinheiro Ferreira aconselhou ao rei sua detenção na fortaleza de Santa Cruz, como o melhor meio de acabar com o desassossego público. Os doutrinários são por via de regra, quando se zangam, decididos e até violentos, mais facilmente talvez do que os profissionais da ação.

Dom João VI, sempre o mesmo, achou a solução em demasia audaz. Silvestre Pinheiro Ferreira não obteve mais do que a exigência, que as circunstâncias tornavam muito platônica, feita pelo príncipe real aos oficiais, de agirem somente de conformidade com as instruções governamentais, um paliativo para adormecer por alguns dias a indisciplina ou melhor a anarquia. Como porém governar um país que de fato se achava numa interinidade constitucional? Segundo fórmulas carunchosas, como o queria a corte? O povo ou antes a opinião dos que lhe assumiam o nome e avocavam os direitos antes das responsabilidades, entendia que, até entrar em função a constituição, já se poderia ir ensaiando uma co-participação entre a nação e o soberano por meio de um conselho ou junta mais do que consultiva, deliberativa, conquanto seu voto fosse apenas suspensivo, cujo assentimento seria declarado necessário para os casos de monta.

O caso da partida de el-rei era um destes, mas el-rei não o considerava definitivamente resolvido, apesar de publicamente anunciado que ao soberano deviam acompanhar os deputados procuradores às Cortes Gerais do Reino Unido cujo ponto de embarque fosse o Rio do Janeiro e que já se achassem eleitos na data da partida real.

Continuava o que Porto Seguro chama "as hesitações e maquinações" relacionadas com o regresso de el-rei, dando porventura causa à prisão na ilha das Cobras, até hoje muito pouco explicada, dos desembargadores do paço Maciel da Costa e Carvalho e Melo e do antigo tesoureiro-mor Targini (visconde de São Lourenço), não tendo a mesma sorte o almirante Rodrigo Pinto Guedes (futuro barão do Rio da Prata) por se haver escondido.

Esta prisão precedeu na verdade o decreto de 7 de março, pois que ocorreu a 3, sendo dada como razão o livrá-los de agressões populares contra eles preparadas, quiçá pelas suas idéias notoriamente liberais. A reclusão durou de resto mui pouco, sendo o futuro marquês de Queluz em breves dias despachado para a Europa, com uma missão ostensiva em Roma e a missão confidencial de prevenir o rei, em caminho para Lisboa, se lhe não parecesse prudente, pelo que ali observasse, que fosse a monarquia acolher-se à sombra das Cortes (49). Dom João VI mudaria então de rumo; na altura da Bahia aliás mostraria ele vivo desejo de aproar de novo na primeira terra brasileira que o recebera. Melo Moraes refere que a intenção de el-rei, diante das novas manifestações de fidelidade do seu povo ultramarino, provocadas pela decisão do seu regresso, fora dissolver as Cortes portuguesas e para tanto, isto é, estudar e preparar o terreno, enviara Maciel da Costa, malogrando-se o plano pela forçada arribada do emissário a uma das ilhas adjacentes ao reino.

Prisão e missão acham-se portanto igualmente envoltas em mistério. Das cartas de Silvestre Pinheiro Ferreira o que se colhe é que os por ele chamados anarquistas, a saber, os revolucionários, persuadiram o rei sob "cavilosos pretextos" a mandar efetuar aquelas prisões sem anuência nem sequer conhecimento do ministro, "satisfazendo vistas particulares de torpe ambição, ou de sanguinária vingança" com o intuito apregoado de proteger as aludidas personagens contra as iras da multidão. O rei protestou ao seu ministro, que solicitara exoneração pela ignorância em que fora tido do ato, haver agido tão somente no interesse da tranqüilidade pública, e de fato a custódia em que os detidos foram colocados, incomunicáveis, logo se levantou, tornando-se pública sua inocência.

A missão de alta confiança dada a Maciel da Costa exclui a hipótese de republicanismo de idéias, que foi aventada, podendo no entanto perdurar a de nacionalismo. Para Silvestre Pinheiro Ferreira os maquinadores desses movimentos sediciosos a que ele se refere eram os militares portugueses da divisão auxiliadora e "os paisanos da rua da Quitanda", isto é, gente de balcão -"mercadores, na sua frase, rudes e ignorantes nas matérias da administração". O publicista, a quem eram familiares os sucessos da Revolução francesa, comparava a fermentação da nossa rua da Quitanda com a do Faubourg St. Antoine de Paris, êmulos ambos os bairros no "espírito vertiginoso".

Contra o visconde de São Lourenço, o célebre Targini, tesoureiro culpado pela voz pública de malversações e que de fato podia por isso sofrer desacatos, é que foi mantido o ato de prisão durante a prestação das suas contas, dando-se assim satisfação à opinião, e a ele dando-se a cidade por menagem para não prejulgar o caso e estorvar a necessária defesa do alto funcionário, incriminado de alcance na sua gestão dos dinheiros públicos.

Targini tinha numerosos inimigos e começou a tê-los pela sua severidade burocrática quando esteve no Ceará como escrivão da provedoria da capitania, assim encetando em 1783 sua carreira de funcionário da fazenda, e depois em 1799 como escrivão-deputado da junta de fazenda autônoma. Malquistou-se então com os governadores por questões do fisco e com os ouvidores por denunciar seus furtos na arrecadação dos bens de defuntos e ausentes (50). Como é que o Cérbero se transformou depois em dilapidador? Não haveria grande dose de calúnia nessa difamação? Hipólito dele escreveu que nem português sabia e entretanto Targini traduziu corretamente em verso o Paraíso Perdido de Milton e traduziu também o Ensaio sobre o homem de Pope em versos soltos.

Culpam-no de fazer descontos em pagamentos, mesmo de honorários e pensões, aproveitando-se desses abatimentos: ele porém alegava falta de dinheiro no erário. O certo é que, como judiciosamente faz notar o Sr. Gomes de Carvalho no seu interessante trabalho histórico5l, todos os ministros sob cujas ordens serviu Targini - Aguiar, Barca, Bezerra, Tomás Antônio, Arcos - alguns até seus desafetos e homens de notória probidade, nunca encontraram o que exprobrar-lhe e aprovaram suas contas. O inquérito feito já sob a regência de Dom Pedro estabeleceu a integridade do funcionário, a quem foi concedida uma pensão, o que foi um motivo mais de acusação e malevolência contra Arcos, que nessa ocasião se supunha dominar o príncipe.

O visconde de São Lourenço, segundo o testemunho oficial, continuara de fato no Rio a mostrar o zelo com que no Ceará percebera os impostos e forçara os contratadores ao cumprimento dos seus encargos (52).

Nada disto porém resolvia definitivamente o problema da nova trasladação da corte. O conselho de governo votou pela ida de Dom João VI, com o parecer discordante de Silvestre Pinheiro Ferreira. Fomos vencidos, dizia-lhe o monarca, que remédio, e punha-se a chorar pelos cantos, já ralado de saudades, segundo relatava a marquesa de Jacarepaguá, que foi educada no paço (53). Alguma alegria devia voltar-lhe com a notícia da oposição que estava levantando a resolução. O comércio representava ao senado da câmara para que sustasse o embarque, recordando as vantagens acarretadas pela mudança da corte para o Brasil.

A Dom João VI deviam soar em extremo fagueiras as palavras dos que havia anos, e agora especialmente, o aconselhavam a abandonar Portugal - "aquele tão desgraçado, segundo eles se exprimiam, como insignificante pedaço de terra, aplicando todos os seus reais cuidados a organizar neste vastíssimo continente um império que pela sua extensão, pela variedade de seus climas e pela incomensurável riqueza das suas produções não pode deixar de vir a ser dentro em poucos anos o mais florente de quantos se conhecem na história" (54)

Por isso os que já pensavam na independência, os que formavam o que Silvestre Pinheiro Ferreira chamava: "o partido brasileiro", desde começo se empenharam pela ida do rei e permanência do príncipe. Os que queriam conservar o rei no Brasil, tivessem ou não uma intenção secreta, fossem conservadores sob uma face e revolucionários sob outra, desejavam a prolongação do dualismo, o qual se podia prestar à interpretação que lhe quisessem dar, embora redundasse numa falsificação do seu princípio básico. Esses constituíam a maioria da população apta a discernir os sucessos políticos. As soluções radicais pertencem sempre às minorias e a minoria "brasileira" via que o rei ainda era o maior obstáculo à separação.

Os últimos anos do reinado americano de Dom João VI foram infelizmente manchados de sangue. Já em 1817 a repressão da mais generosa das revoluções envolvera o sacrifício de patriotas abnegados, que eram a fina flor da inteligência e do caráter da terra. Agora registra-se como epílogo o incidente da praça do comércio, cuja repercussão foi enorme.

O constitucionalismo vitorioso não admitia que o regente ficasse com poderes discricionários: para que então haver feito vingar a limitação da autoridade absoluta do rei? Silvestre Pinheiro Ferreira deu razão aos que assim pensavam e convocou os eleitores das paróquias que deviam no Rio de Janeiro designar os da comarca, eleitores finais dos deputados, para funcionarem como um embrião de parlamento, aprovando os nomes dos auxiliares do príncipe e o regimento do governo a vigorar até a normalidade constitucional. A oficialidade entretanto tinha jurado neutralidade para não embaraçar o andamento das coisas públicas.

A assembléia dos eleitores, presidida pelo desembargador-ouvidor, teve por secretários José Clemente Pereira e Joaquim Gonçalves Ledo, o primeiro já nomeado juiz de fora da capital e ambos sólidas colunas da independência como vieram a salientar-se no ano imediato. Fosse influência dos que se improvisaram seus leaders, fosse reflexo do estado geral dos espíritos, essa assembléia revelou-se inesperadamente possuída de ânsia reformista, sendo tanto mais singular este fato quanto a compunha especialmente gente da roça, a pequena burguesia rural entre a qual são geralmente mais enraizados os instintos conservadores. As formas porém não foram respeitadas. Macambôa e Duprat (55), que se achavam na galeria, sentaram-se sem cerimônia entre os eleitores, intervieram nos debates e dirigiram-nos, tornando a reunião irregular e tumultuária.

A manifestação em favor da adoção provisória da constituição espanhola, para que o Brasil não ficasse sem uma lei fundamental de garantias, foi porém, sob instigação daqueles tribunos, feita coletivamente pela maioria, assim ganhando em imponência. Brasileiros e portugueses, fascinados pela liberdade, uma vez mais fundiam suas aspirações, sem arcas encouradas, para não imolarem aquilo que já tinham teoricamente conquistado em matéria de franquias constitucionais.

Não deixavam contudo esses de ter oposição, formada pelos partidários da regência, melhor dito, os adeptos do regente e do ministro que ia ser seu mentor - Arcos -, os quais viam os destinos do país em excelentes mãos e não descobriam necessidade de garantias, e pelos que no Brasil só queriam enxergar um escravo submisso.

Ressurgiu a idéia de uma junta fiscal do governo, que servisse de contrapeso à autoridade dos ministros escolhidos pela coroa os votos da assembléia foram levados à Quinta da Boa Vista por uma delegação composta de dois desembargadores, um sacerdote e um lente. El-rei cedeu no tocante à Constituição de Cadiz, que impediria o desgoverno, mas reservou seu parecer sobre a junta ou conselho para depois da sua organização. Tudo isto levou naturalmente tempo, acrescendo que chovia a cântaros e a delegação começou por ir ao Paço da Cidade, como se houvesse a probabilidade de encontrar Dom João VI junto da sua esposa.

Entretanto a assembléia, entregue a si, prestava ouvidos a boatos justificados pela exibição dos preparativos da retirada iminente da família real, completados pelo das tropas de prontidão nos quartéis, e agitava-se histericamente ao sabor de proposições tendenciosas. Espalhou-se que a família real embarcava, ficando os delegados retidos como reféns, e à vista disto pensou-se era impedir a saída da frota antes de ser dada satisfação às reclamações do povo. Erguendo-se num ímpeto à altura da soberania nacional e como que a encarnando, sem poderes para tanto, a assembléia mandou intimar as fortalezas da barra de não deixarem sair embarcação alguma sem o seu consentimento.

Neste ponto regressou a delegação portadora da anuência régia, o que deu origem a explosões inauditas de entusiasmo. Apesar da noite ir muito adiantada e do cansaço resultante dos debates e deliberações, tratou-se sem demora de eleger a junta. Parecia que a assembléia não queria dissolver-se sem haver resolvido todos os problemas da vida pública da futura nacionalidade. Sua dissolução, conseqüência desta atitude, teve lugar à força, num ataque inútil e traiçoeiro de que não coube a culpa a Silvestre Pinheiro Ferreira, a quem o rei dera faculdades para proceder ao despejo.

O resto do conselho real era pelo emprego da maior violência: só o ministro do reino fora pelo da persuasão. Do choque entre tropa e eleitores só podia resultar o desastre que ocorreu quando se frustou o plano de Silvestre Pinheiro Ferreira, que foi o que el-rei adotou. Consistia esse plano em intimar a principal autoridade militar o encerramento da assembléia com as forças porém postas à distância, nas embocaduras das ruas, apenas para inspirar respeito e colher na passagem os agitadores profissionais.

O ouvidor presidente solicitou um curtíssimo prazo - meia hora - para se concluir a eleição da junta, ao que o general Caula aquiesceu, partindo para o largo do Rocio, onde se estavam congregando as forças que, apesar da injunção do comandante das armas em nome do ministro da guerra, avançaram sobre a praça em obediência a novas ordens que, dadas embora pelo monarca, lhe foram na opinião geral arrancadas pelo seu herdeiro, açulado segundo muitos pelo conde dos Arcos, de quem se diz vagamente, mas não se pode dizer precisamente, que em toda esta crise se colocara do lado dos constitucionais.

O conde dos Arcos costumava colocar-se, como de si próprio espirituosamente dizia-o duque de Morny, du côté du manche. Não gostava de ser enxotado: preferia varrer os outros do palco onde se movia. Administrador diligente, homem de resoluções prontas e rápidas como se revelou por ocasião da revolução de 1817, que ameaçava propagar-se à Bahia, terra do seu governo, mostrou também quanto podia ser desumano. Por esse lado não é injusto atribuir-lhe a responsabilidade que tanto prejudicou a reputação do príncipe nas províncias, fazendo descrer dos sentimentos liberais de que parecera animado a 26 de fevereiro. Mais prejudicado seria ainda o mesmo Arcos, cuja influência pouco mais durou de um mês.

O que há de positivo com relação ao incidente é que, ao romper da alva, quando a praça do comércio já se achava em parte evacuada da concorrência que a ela afluíra, foi a reunião alvo de uma investida militar. Os que ainda ali se encontravam, bem como os que recuaram da rua e se refugiaram de novo no salão, presos de pânico, saltaram pelas janelas do lado da baía, fugindo à fuzilaria cerrada e depois à carga à baioneta do corpo de caçadores, de que resultaram três mortos e uma porção de feridos de gravidade, entre eles José Clemente Pereira.

Como sempre acontece, as versões diferem e à oficial não falta a parte obrigada da provocação. Segundo esta versão (56), ao marchar a companhia de caçadores para tomar a embocadura da rua do Sabão, um dos soldados, postado na entrada da praça, foi apunhalado por um indivíduo de dentro, dando motivo a que seus camaradas, sem esperarem ordens, matassem o agressor. Outro eleitor ou popular do lado dos eleitores disparou a pistola sem ferir ninguém, não podendo porém os oficiais ter mão aos soldados que iam dispersar a reunião e capturar os amotinadores.

Passava-se isto entre 20 de abril, sábado de aleluia, e o domingo, 21, aniversário da execução de Tiradentes. À 22 o rei, cuja natural pusilanimidade encontrara a reação em interesses cortesãos que vieram em seu socorro, revogou por um decreto a Constituição de Cadiz que outorgara e que fora nas suas palavras impetrada por "anarquistas mal-intencionados", quando na verdade o fora por gente de sisudez e posição. No mesmo dia Dom João VI, que desse modo se divorciava dos seus súditos ultramarinos patenteando a mais triste fraqueza, concedia a regência ao filho, cuja vontade se afirmara por um ato destemperado que sacudia sobre as cãs de seu pai uma responsabilidade que veio afinal a recair sobre a sua fronte juvenil.

Embarcando a 24, no meio do silêncio gerado pelo trágico episódio, Dom João VI deixava atrás de si o primogênito como seu lugar-tenente, dispondo por assim dizer de todas as faculdades reais, podendo prover todos os empregos civis, militares e eclesiásticos, à exceção dos bispados, para os quais lhe era entretanto lícito propor pessoas que achasse dignas; comutar ou perdoar penas de morte; resolver quanto dissesse respeito à administração da Justiça e Fazenda; fazer guerra ofensiva ou defensiva em caso de urgente necessidade e fazer tréguas ou tratados provisórios; conferir condecorações. O Brasil, para constituir um Estado independente, carecia apenas de possuir uma representação exterior privativa e o regente, para ser um soberano, precisava de não ter que mandar a Lisboa, à assinatura real, os diplomas dos funcionários por ele nomeados e que entravam logo no exercício e fruição dos seus lugares, constituindo a assinatura uma mera formalidade. Também precisaria de poder celebrar tratados de paz definitivos.

Formavam o conselho do príncipe regente dois ministros de Estado - o conde dos Arcos, do reino e negócios estrangeiros, e o conde da Louzã, da Fazenda - e dois secretários de Estado interinos - o marechal de campo Carlos Frederico de Caula, na Guerra, e o major-general da armada Manoel Antonio Farinha, na Marinha.

CAPÍTULO IV

A POLÍTICA ULTRAMARINA E A
POLÍTICA DAS CORTES
O 5 DE JUNHO

A política das Cortes anunciou-se verdadeiramente no decreto de 18 de abril, que reconhecia as juntas criadas nas províncias brasileiras para estabelecer o novo regime constitucional, considerando beneméritos os que tivessem promovido a mudança, e mandava proceder no reino ultramarino à eleição de deputados ao Soberano Congresso Constituinte, de acordo com o decreto de 22 de novembro de 1820.

Tomás Antônio achava absurdo que deputados brasileiros fossem "mandados para as opiniões perigosas de Portugal" em vez de se reunirem em redor do rei, que estava no Brasil. Um dos mais ponderados e esclarecidos espíritos brasileiros dos nossos dias (57) entende do mesmo modo que a política do reino ultramarino devia ter sido outra diversa da que foi nessa crise de emancipação nacional. A verdadeira política consistiria em "quebrar toda a solidariedade com as Cortes e reter o rei no Brasil, para tirar deste fato todo o partido possível".

Dom João VI não pedia outra coisa e só os acontecimentos, ou melhor, o jogo de interesses a que o soberano não teve o vigor bastante para sobrestar, o levaram a regressar para Lisboa. Sua permanência não podendo implicar, mesmo com o divórcio das Cortes, a renúncia à soberania lusitana e a conversão da Casa de Bragança numa dinastia somente brasileira, porque afinal Portugal é que era o berço da monarquia tantas vezes secular, teria porém significado a continuação da dualidade luso-brasileira. Ora contra esta dualidade, tal como a fundara Dom João VI, tanto eram os espíritos ultramarinos ávidos de independência como as próprias Cortes portuguesas.

As Cortes queriam um só reino com duas seções - européia e americana - e não dois reinos reunidos na pessoa do monarca, como a Áustria-Hungria e a Suécia-Noruega de ontem. A recompensa por elas dada pela prioridade do movimento constitucional no Pará foi fazer esta capitania "província de Portugal", assim se despedaçando a unidade administrativa que o Brasil carecia ter a peito para formar um composto forte como era homogêneo. Nestas condições não podia o intuito do constitucionalismo português ser outro senão promover a recolonização, disfarçada ou mesmo franca, capciosa ou mesmo violenta, e tanto se arreceava o Brasil desse perigo que, logo na sua adesão, a Bahia frisou o ponto da "igualdade absoluta de direitos entre os povos dos dois hemisférios". Não havia entretanto junta nem capitania mais devotada aos interesses portugueses, nem que maior repugnância mostrasse a obedecer à regência brasileira.

O Sr. Gomes de Carvalho não julga aliás o reconhecimento das juntas uma provocação, nem mesmo uma ameaça, porque a publicação no Brasil do decreto das Cortes de 18 de abril foi posterior ao pronunciamento de várias províncias - Pará, Bahia, Pernambuco - e da própria corte. Se não gerou a desagregação, definiu-a porém e aproveitou-lhe o impulso iniciado para assentar a situação que devia fatalmente estender-se ao sul do país e abrasá-lo por inteiro num delírio de constitucionalismo, repassado de lealdade para com a antiga metrópole.

Não competia certamente ao Brasil rejeitar as franquias políticas que lhe eram trazidas pela revolução portuguesa, contanto que se não prestasse ao plano último que continha essa transformação liberal e que era servirem-se os homens de 1820 das instituições representativas para chamariz do povo brasileiro e como fator do restabelecimento de uma união tal como já não tinha razão de ser. A cisão estava operada com a organização da colônia em reino: faltava tão somente legalizá-la criando o Império.

* * *

Para Portugal o aspecto mais importante da questão constitucional residia na atitude do Brasil com relação ao movimento iniciado no Porto e confirmado em Lisboa: dessa atitude dependeria o melhor do seu êxito. Se o Brasil, sede da monarquia como de fato o era, resistisse, a revolução estava mal parada, sem ser preciso entrarem os dois reinos em luta, porque ali se encontravam os seus principais recursos, tanto materiais como morais. E não corria logo como certo que o Brasil aderisse.

Mister era portanto prover outros apoios: deste modo sobretudo se explica a agitação de caráter ibérico, tendente a um enlace com a Espanha constitucional, a qual habilmente fomentada pelos agentes diplomáticos despachados de Madri chegou a tomar proporções sérias. Ambos os países calculavam ter que lutar contra a hostilidade da Santa Aliança, mas a anuência de Fernando VII à restauração da constituição democrática de Cadiz assegurava que se não daria lá uma intervenção pelo menos imediata - como realmente não se deu até 1822, quando o rei da Espanha se lançou nos braços da França, que ainda disputava à Inglaterra a ingerência e a influência nos assuntos continentais, prosseguindo uma rivalidade tradicional que apenas se interrompeu nos nossos dias.

No caso de Dom João VI, firmando-se na fidelidade brasileira, protestar contra a anulação da sua autoridade absoluta, a independência portuguesa ficava pois à mercê das potências chamadas reacionárias, uma vez que estas quisessem ou pudessem sobrepor-se à Inglaterra, defensora interessada da autonomia do reino lusitano. A Inglaterra prestigiava na Península Ibérica o regime constitucional, justamente porque era a política oposta à da Santa Aliança e aquela que melhor correspondia aos interesses britânicos.

Compreende-se por conseqüência o júbilo dos constitucionais portugueses perante a adesão do Brasil à ordem de coisas por eles implantada. A revolução pernambucana de 1817, espraiando-se por outras capitanias, provara de sobejo que na antiga colônia floresciam idéias liberais e que por amor delas se ia até o ponto de imolar a vida, mas ao mesmo tempo a crueldade da reação, qual se havia manifestado, deixava prever que não podia mais ser bem acolhida qualquer política comum. O Brasil estava aliado de Portugal pelo sangue dos patriotas.

Para atraí-lo, prometeram-lhe pelo manifesto de 31 de outubro de 1820 a cessação do regime colonial, o qual na verdade perdurava sob algumas das suas piores feições, pois que o reino americano continuava entregue aos caprichos e desmandos de capitães-generais irresponsáveis com relação à nação, agora gravitando em redor do despotismo real e empenhados em fornecer-lhe brilho.

Confiado nesta organização, para ele a mais sábia, e porventura na afeição dos povos, Dom João VI, no seu oportunismo de temperamento, que é a forma inteligente da timidez, sobretudo quando esta é ardilosa, quis como sempre pesar os prós e os contras e dar tempo às suas reflexões e hesitações antes de tomar qualquer deliberação, que por fim lhe era imposta pelas circunstâncias ou por outros de mais vontade. Ele não concedia pessoalmente à revolução portuguesa uma importância exagerada, nem mesmo a sua gravidade real, e o modo como o novo regime foi varrido em Vila Franca de Xira por alguns regimentos marchando entre nuvens de pó, e os anos de guerra e de perseguições que mais tarde custou a implantação do liberalismo, não deixavam de dar-lhe razão.

Vimos como Palmela, cujo ceticismo era de índole diferente e se educara noutros meios, julgava mais avisado e mais hábil tomar o rei a dianteira e dirigir o movimento para não ser devorado pela hidra revolucionaria. Era a teoria de Turgot que o seu espírito cosmopolita assimilara, a política de Necker que lhe fora revelada através de Madame de Staél e do seu círculo. Cumpria "assegurar à Coroa a proeminência na reconstituição política da Monarquia" - tal foi o programa formulado pela sua diplomacia, o que ele quis do Rio para Portugal aplicar em benefício da realeza. A opinião expressa pelo ministro ao monarca quando este lhe pediu seu parecer, à sua chegada da Europa, sobre os acontecimentos que presenciara, tem todo o valor de um documento sociológico e prova a sua superioridade intelectual.

"A revolução de Portugal, escrevia Palmela, não é o resultado de causas peculiares à nação portuguesa. As queixas dos povos sobre a administração da justiça e fazenda, a tristeza ocasionada pela prolongada ausência de V. M. contribuem sem dúvida para excitar algum descontentamento, mas este nunca teria chegado a desenvolver-se, nem a produzir os efeitos que desgraçadamente presenciamos, se os portugueses não tivessem sido excitados pelo exemplo dos espanhóis, pela tendência geral de todas as nações da Europa para o governo representativo, e enfim pela conspiração universal que existe contra os antigos governos, e pela espécie de exaltação que se apoderou de quase toda a geração atual. Não é, portanto, de esperar que o mal possa curar-se com remédios parciais, nem que ganhem os ânimos, contemporizando e deixando de se adotar medidas decisivas. Os espíritos não se hão de sossegar em Portugal enquanto estiverem exaltados em todo o resto da Europa, nem os Portugueses se hão de contentar jamais achando-se num estado de inferioridade política relativamente a seus vizinhos. Devo também assentar como base, pois tal é a minha inteira convicção, que V. M. necessita de ser rei de Portugal para conservar o reino do Brasil, e que pelo contrário as forças todas que tem no Brasil, ainda quando fosse possível conservá-las, de nada lhe serviriam para readquirir Portugal, se uma vez o tivesse perdido".

Era inútil porém querer obrigar Dom João VI a atitudes definidas. Não estava isto nem na sua natureza, nem nos seus gostos, nem na sua política. Não reagir e tampouco ceder, adiar, era o seu lema e às vezes dava resultado, mas nem sempre. Nos momentos sérios, nas crises agudas, qualquer resolução é necessária, e se o principal interessado a não toma, outros a tomam por ele.

Entre o soberano e o seu ministro havia em todo caso maiores afinidades do que entre este e os democratas das Cortes para quem a constituição era uma arca santa - "maravilhoso monumento, que vai ser levantado pelo sublime esforço da constância e da virtude sobre as ruínas do despotismo e da arbitrariedade" (58). O aristocrata que era Palmela podia querer até certo ponto liberalizar as instituições - outro tanto se pode em menor escala dizer talvez de Arcos -, mas a irredutibilidade das opiniões nascia logo do princípio, de que aquele partia, de que a nação não era soberana, competindo exclusivamente ao rei o direito de convocar os representantes da nação.

Quando Dom João VI chegou a Lisboa a 3 de julho, com 48 dias de viagem, e no dia imediato desembarcou para ser conduzido ao seio das Cortes a prestar juramento, encarregou Silvestre Pinheiro Ferreira da fala em resposta à do presidente da deputação que fora a bordo. O constitucionalista aproveitou o ensejo para assinalar, como princípio fundamental do sistema, "que o exercício da soberania, consistindo no exercício do poder legislativo, não pode residir separadamente em nenhuma das partes integrantes do governo, mas sim na reunião do monarca e deputados escolhidos pelos povos, tanto aquele como estes, para formarem o supremo conselho da nação, a que os nossos maiores têm designado pela denominação de cortes, e às quais coletivamente compete o exercício ordinário do poder legislativo, por maneira que, se jamais o monarca assumisse a si o exercê-lo sem a câmara dos deputados, se reputaria o governo degenerado em despotismo, bem como passaria ao estado não menos monstruoso da oclocracia, se a câmara dos deputados intentasse exercitar ela só o poder legislativo".

As Cortes não deixaram passar sem reparo a doutrina, ponderando ao monarca, por intermédio do ministro Quintella, que nas bases da constituição, em que se estabelecera a linha de demarcação entre os poderes legislativo e executivo, "se atribui somente às Cortes a representação nacional e o poder legislativo, com a exclusão da iniciativa direta do rei e só com a dependência subseqüente da sua sanção e de um veto que não será absoluto". Escusado é dizer que Dom João VI mandou responder que estava pela opinião das Cortes, "não podendo ser da sua intenção que houvesse no seu discurso expressões ou idéias que não fossem de acordo e conformes com as bases da constituição e com o seu juramento".

Triunfava a burguesia, radical em política e racionalista em filosofia, que enchera as Cortes de metafísicos revolucionários, deistas em religião se bem que afetando carinho pelo catolicismo, e quase republicanos no tocante a sistemas de governo, não o sendo de todo por causa da Santa Aliança. Não era gente essa que se prestasse à inteligência que el-rei quisera dar ao seu movimento, anuindo tão somente em que o herdeiro da coroa fosse "ouvir as queixas" e insuflar vida nova na antiga constituição da monarquia.

Palmela, que tinha visto mundo, compreendia que era forçoso ir além dessa interpretação tradicional e acanhada, que era indispensável consignar desde logo na legislação certas conquistas do pensamento filosófico e da ação revolucionária em matéria de liberdades civis e políticas, por outras palavras, ceder o mínimo para obviar ao máximo. Melhor seria dirigir do que obedecer, impor do que receber imposições. O dilema - se soumettre ou se demettre - já naquele meio e naquele tempo se formulava.

O decreto de 18 de fevereiro reconhecia aliás o perigo, pois que rezava que "as circunstâncias em que se acha a Monarquia exigem justas e adequadas providências para consolidar o Trono", e tanto contava com a solução que em Portugal fora dada ao problema se tornar definitiva, que se referia à constituição que devia ser transmitida de Lisboa pelo príncipe real, "a fim de receber, sendo por Mim aprovada, a Minha Real Sanção". Estas expressões supunham logicamente uma lei orgânica da nação, ultrapassando "as reformas e melhoramentos e as Leis que possam consolidar a Constituição Portuguesa", isto é, a velha ordem de coisas fundada nas Cortes de Lamego.

No seio da representação nacional ecoou mal o termo aprovação. Protestaram alguns deputados, observando que ao rei só cabia jurar e à nação aprovar. Fernandes Tomás assim pôs também a questão, ajuntando que se o rei "quiser sujeitar-se que se sujeite; senão, que se não sujeite: não há meio termo". O corolário do não se sujeitar era ir passear. Por essas e outras queria Tomás Antônio que já houvesse no Rio de Janeiro opinião formada pela troca de vistas entre os procuradores convocados e sucessivamente chegados e as pessoas gradas constituindo a junta consultiva, de modo a ser a assembléia apenas reunida para aprovar o que já estivesse acordado entre todos, sem afirmar veleidades de assembléia deliberativa tresandando a Cortes Soberanas.

Silvestre Pinheiro Ferreira enxergava nesse expediente, que tinha de sedutor o adiantar-se a reunião dos procuradores à obra das Cortes Gerais, o plano diabólico de frustrar o movimento genuinamente constitucional que abraçava os dois países. A linguagem do decreto de 18 de fevereiro prestava-se aliás neste ponto a qualquer das duas interpretações, pois que se faltava nas Cortes Brasílio-insulanas "examinarem e consultarem" os que dos artigos da futura Constituição Portuguesa fossem adaptáveis ao reino do Brasil e também em proporem ao rei novas medidas, novas leis, novas bases políticas e sociais. Tanto se podia dessa linguagem inferir Carta como Ordenações. As constituições porém estavam na ordem do dia e Tomás Antônio era quem estava atrasado.

Tinha ele então 66 anos e bastantes havia que gozava da confiança de Dom João VI, que por ele se afeiçoara quando o conhecera de corregedor em Vila Viçosa e se acostumara a ouvi-lo sobre os negócios públicos, achando sensatas e excelentes suas opiniões porque no geral concordavam com as próprias. Elevando-o à Casa da Suplicação e ao desembargo do paço, o soberano exaltava a noblesse de robe - Thomaz Antônio era filho de um probo e pobre advogado de província - que lhe era tão útil, senão mais, que a grande noblesse.

Com Silvestre Pinheiro Ferreira era a pura burguesia que se via chamada aos conselhos da coroa. Professor de humanidades em Coimbra, oficial da secretaria de estrangeiros em Lisboa, encarregado de negócios em Berlim, onde casou, vegetava no Rio de Janeiro como deputado à junta de comércio, tendo recusado uma missão secreta no Rio da Prata, quando sobreveio a revolução portuguesa. Suas preleções de filosofia mal tinham dado para as despesas da impressão e ele pusera-se a escrever em francês como, no seu dizer, o melhor meio para ser lido em português (59).

* * *

O momento político desse homem de bem veio com o pronunciamento de 26 de fevereiro. Seu espírito doutrinário inclinava-se à permanência de Dom João VI no Brasil, para que el-rei pudesse com sua presença conter a anarquia iminente e ao mesmo tempo meditar sobre a Carta a ser aprovada, parecendo-lhe a Constituição de Cadiz um modelo infeliz. Seus colegas de governo não lhe achavam contudo razão, parecendo-lhes, numa visão de menos alcance, que o essencial era antes acabar com a anarquia lá na Europa e sancionar depressa a organização constitucional, pondo remate à interinidade revolucionária.

Era evidente que Portugal se não satisfazia sem ficar reintegrado na sua condição de sede da Monarquia. Com a convergência política das províncias brasileiras para as Cortes Soberanas, a sede voltava automaticamente a ser Lisboa. A permanência do rei além-mar oferecia por sua vez ao reino americano vantagens positivas, que eram não o privar, quando uma vez revolto, do seu melhor fiador de autoridade e não expor o monarca, e portanto a nação, à aprovação precipitada e a contragosto de uma lei fundamental que um espírito equilibrado como o de Silvestre Pinheiro Ferreira reputava quase demagógica e pecando gravemente pela confusão dos poderes, como era a Constituição espanhola.

O mais interessante é que comungavam na mesma idéia espíritos reacionários e espíritos avançados. A ida do rei tinha em seu favor tanto os que queriam vê-lo prontamente na dependência das Cortes, porquanto sabiam perfeitamente que nas promessas e juras de Dom João VI não havia fiar, como os fidalgos que só em Portugal pensavam sentir-se à vontade e, ou aderiam às idéias novas ou nutriam a esperança de que o velho regime não tardaria a ressurgir vitorioso.

A sociedade brasileira do tempo, que melhor se chamaria luso-brasileira, estava tão dividida neste assunto quanto o conselho real. Entre os elementos partidários da permanência do soberano contavam-se o comércio ultramarino, que não queria sacrificar seus lucros ao restabelecimento do monopólio mercantil português, e o funcionalismo local, cioso do maior prestígio que lhe advinha da presença da corte. Dos elementos contrários faziam parte, além dos cortesãos, saudosos da sua mocidade de franças e sécias, os soldados da Divisão Auxiliadora, que na guitarra cantavam a nostalgia dos seus casais; os oficiais portugueses a quem o licenciamento da oficialidade inglesa abria vagas suspiradas para as promoções; os caixeiros-reinos, mal dispostos contra os patrões, desforrando-se nos maus tratos aos marçanos e dizendo-se "fascinados pela liberdade", embora esta se traduzisse ainda em fórmulas mais do que em realidades. Aquelas levariam a estas.

Pode dizer-se que, tomados em grosso, os portugueses, tanto os tradicionalistas como os liberais e até os mações, eram pelo regresso e os brasileiros pela permanência, incluindo-se no número o Correio Brasiliense, o qual aliás observava com o costumado bom senso do seu redator que, se fizesse o que se quisesse, ficariam sempre um queixoso e um satisfeito frente a frente. "A mudança de El-Rei para a Europa trará consigo a mudança do lugar dos queixosos, mas não remédio dos males..."

Os mais acomodados de um lado e de outro admitiam a partilha; os mais exaltados "queriam, cada qual para seu país, a família real toda" (60). Tomás Antônio não se fartava de escrever que el-rei não media bem a extraordinária vantagem da sua posição com relação a Portugal, onde a Santa Aliança não permitiria, nem mesmo contra o voto da Inglaterra, o estabelecimento de uma democracia republicana. Ficar no Brasil era sobrepor-se à tormenta.

No conselho real Arcos fora de começo pela ida do príncipe que, seduzido pelas suas maneiras insinuantes e pela sua inteligência prática muito mais do que teórica, dele fazia o confidente da sua imaginação exuberante. Tomás Antônio insistira sempre pelo statu quo, certo de que a revolução, entregue a si, se gastaria e concluiria por uma contra-revolução conservadora. Pouco depois Arcos, que não custava muito a mudar de opinião consoante suas conveniências políticas, entrou a preferir a ida do rei, ficando ele como conselheiro-válido ou mentor de Dom Pedro, que tinha então 23 anos incompletos. Por isto instou Arcos para deixar seguir para Portugal o correio anunciando o alvitre adotado da ida do príncipe como condestável, certo de que tal resolução levantaria ali protestos e exigências da presença de Dom João VI em pessoa.

Não é de admirar tanta divergência de vistas quando o desacordo alcançava os protagonistas da peça. Se Dom João VI escutava radiante as representações que fossem contrárias ao seu embarque, Dom Pedro era mais que todos favorável à partida do pai pela ambição de ficar governando a seção maior da Monarquia. Os interesses primavam, como quase sempre, os sentimentos, mesmo os mais naturais e íntimos.

A opinião liberal crescia entretanto, ao passo que diminuía a força do governo, atingindo a desordem o mais alto nível, pelo que se fazia mister salvar não só o principio de liberdade como o princípio de autoridade. Para atender ao primeiro, cuja consolidação se anunciava aos seus olhos mais premente, foi que Silvestre Pinheiro Ferreira pretendeu obter o assentimento público ao regimento provisional da regência, escudando-a com o apoio do eleitorado na forma do primary meeting da organização americana, de que as repúblicas espanholas tinham encontrado o equivalente nos seus cabildos abiertos. A assembléia de eleitores da praça do Comércio foi, não um arremedo, mas um núcleo de representação nacional, correspondente a um anelo geral e ao ideal sempre presente de uma assembléia popular e soberana.

Soberana mesmo pela razão que estava servindo de fundamento moral à guerra de libertação das colônias espanholas: que o vínculo da união entre metrópole e colônias era o monarca, não havendo sujeição das colônias à nação que foi sua mãe-pátria, mormente depois de atingirem sua maioridade. A obediência era de natureza toda pessoal e não nacional. Coagido o rei pelas Cortes, o reino ultramarino assumia sua liberdade de ação e tomava iniciativas, em virtude dessa doutrina.

Martinez de Rozas, no Chile, chegara a opinar que só no caso de Fernando VII, em nome de quem fora declarada a separação da América Espanhola, assim subtraída ao cetro do rei intruso, vir residir no Novo Mundo, deveria ser reconhecido como soberano. Por essa teoria Dom João VI perdia o trono retirando-se para Portugal. Assim devia pensar o "partido brasileiro", como Martinez de Rozas, que distinguia entre a pátria européia, representada pelo rei, e a pátria americana, representada pelo Congresso.

Era mais numeroso esse partido do que à primeira vista, se poderia calcular, uma vez abstraindo da grande massa inculta que constituía o número e cujo espírito, se o tinha, só poderia ser instintivamente tradicionalista, acatando a autoridade e quem a representasse. O elemento principal de cultura era o clero e este era nacional, como o era o elemento militar nos soldados e nos oficiais que não os superiores.

O rei, transferindo sua corte para o Rio de Janeiro, tinha de algum modo dado uma primeira, posto que involuntária, satisfação às aspirações nacionalistas ainda vagas, mas que em Minas Gerais já tinham assumido aspecto de conjuração. Dom João VI organizara pelo menos, e pouco importa que o fizesse mais por instinto que conscientemente, um Portugal americano, um país corri personalidade própria diferente da do Portugal europeu. Seu papel foi assim sociologicamente análogo ao das juntas que, desde 1810, se foram formando na América Espanhola para governar as colônias no impedimento do soberano e com desconhecimento da suserania estrangeira.

As medidas adotadas parecem-se. A abertura dos portos brasileiros ao comércio aliado e neutro por exemplo, decretada pelo príncipe regente em 1808, na sua passagem pela Bahia, foi imitada em Buenos Aires pelo vice-rei Cisneros, representante da junta suprema de Sevilha, em 1809, e em 1811 pela junta chilena, franqueando os portos de Valdivia, Talcahuano, Valparaizo e Coquimbo. O prestígio da autoridade tradicional de um monarca impediu apenas que a anarquia expulsasse a ordem e se instalasse no seu lugar no poder, regulada de quando em vez pelos pronunciamentos militares dizendo-se intérpretes da soberania popular.

Silvestre Pinheiro Ferreira percebeu claramente a situação que se lhe defrontava. O partido europeu apressara o motim de medo que o Brasil tomasse uma atitude constitucional diversa da procedente das Cortes, e o partido brasileiro por seu lado assistiu ao ato com prazer e até o atiçou, certos os seus adeptos de que "em último resultado hão de ser os indígenas, e não os advenas que hão de ficar senhores do campo de batalha" (61). Era-lhe portanto indiferente que, na forma por que se achava redigido o decreto sustado de 24 de fevereiro, se mandasse adotar para o reino do Brasil a constituição que as Cortes portuguesas fizessem, "salvas as modificações que as circunstâncias locais tornassem necessárias", ou que, como o exigiram povo e tropa congregados no Rocio, nada se tentasse modificar e se aprovasse a Constituição de Lisboa, aderindo o Brasil à mesma tal qual.

Os agitadores de rua trabalhavam, segundo Silvestre Pinheiro Ferreira, por conta de terceiros, os quais por trás da cortina puxavam os cordéis que faziam moverem-se esses títeres. Naturalmente a uns e outros foi crescendo a ousadia que logo se manifestou pela imposição à coroa de um verdadeiro conselho de vigilância, sem cuja anuência ficaria a suprema autoridade inibida de tomar qualquer resolução importante de caráter público. E esta desconfiança reapareceria em cada crise, ainda que imperfeitamente definida ou sem plano formulado, até que os atos do regente o mostrassem identificado com o sentimento nacional. Desvanecer-se-ia então a desconfiança para ressurgir depois, com violência.

O publicista do constitucionalismo em Portugal e no Brasil considerava uma tal limitação da autoridade régia a dissolução do vínculo que presidia às relações sociais do povo português e que obstava ao aparecimento "do espírito de reação e vingança". Ele enxergava igualmente a dissolução da monarquia na ida de Dom João VI para Lisboa, por mais que os seus colegas de conselho a reputassem necessária para fazer progredir a tarefa constitucional pelo concurso íntimo do soberano e das Cortes.

No intuito de ganhar Portugal, o qual de uma forma ou de outra, com ou sem demora, estava ganho, ia-se, no seu entender, sacrificar o Brasil, que ficaria sem uma autoridade respeitável para servir-lhe de centro de união, com autoridades desprezadas e desprezíveis, tropas impopulares e povos já acostumados a deporem seus governantes. Entretanto em Portugal ver-se-ia o rei intimado a aceitar uma constituição exótica, cujo liberalismo consistia numa absurda confusão de princípios políticos, quando no Brasil, longe da influência dos partidos nacionais e das potências estrangeiras, se poderia organizar em assembléia representativa um sistema constitucional adequado "às precisões de todas as diferentes e tão diferentes partes desta vasta monarquia".

O Brasil tornar-se-ia porém ingovernável para a dinastia que presidia ao dualismo, se o seu chefe o abandonasse e não era esse um caso para vir de fora um impulso de salvação. O sentimento constitucional ou democrático brasileiro não ultrapassava aparentemente um limitado círculo intelectual, seguro nas suas convicções e sequioso de inovações progressistas, mas pulsava à farta na sombra de sociedades secretas, onde manobrava o elemento civil que depois se enfileirou na marcha dos militares. Eram estes os únicos a poderem tomar a iniciativa prática de um movimento que só revestiria sua significação histórica e só ganharia para tanto consistência, quando o seu constitucionalismo tomasse o aspecto patriótico, exprimindo os anelos de uma nacionalidade (62).

Hipólito da Costa preparara no Correio Brasiliense durante anos seguidos esse movimento de organização nacional, delineando sua teoria e mostrando sua prática, para isto apontando para os exemplos estrangeiros na América e indicando como deveriam ser indicados e tratados os vários problemas políticos e sociais. Não dissimulou o mais grave destes últimos, que era o da escravidão, cuja abolição muito recomendou, bem como a introdução de imigrantes. No seu dizer, país algum apresentava "mais elementos de prosperidade nacional" do que o Brasil.

A ação do grande jornalista exercia-se porém à distância e para a realização dos desiderata liberais convinha ter agentes mais próximos e diretos. Foi este o papel da maçonaria combinado com o da imprensa local, por meio da qual aquela atuava sobre a opinião pública. Nas lojas e nas redações se formaram os estadistas da independência, do primeiro reinado e da regência, que prepararam o fecundo reinado de Dom Pedro II. Parecem talvez maiores do que os da época posterior ao Império porque a estes falta ainda o recuo do tempo e aqueles eram na sua grande maioria, autodidatas, mercê do baixo nível da instrução colonial, vendo-se portanto compelidos a maiores esforços intelectuais, ou então precisavam dispor, para se elevarem no conceito do país e de um soberano superior aos partidos, de talentos mais brilhantes e de mais aguda ânsia de saber do que aqueles que, para ilustrarem seus espíritos, dispunham de outras facilidades e obedeciam a mais altas ambições com menor dispêndio de energia. Na luta das capacidades desajudadas de fortuna e mais confiadas nos seus méritos, acontecia serem os medíocres mais facilmente sobrepujados e daí vinha aos vencedores uma certa fatuidade, da qual não só os Andradas foram culpados.

A maçonaria foi incontestavelmente uma escola de disciplina e de civismo e foi um laço de união entre esforços dispersos e dispersivos. A sua função foi essencialmente oportuna. Sem ela não teria o trono podido desempenhar nessa ocasião o seu papel histórico, fundido uma vez mais aspirações nacionais sob a sua ação mais desinteressada. Aos dirigentes locais faltaria o meio de se conhecerem, de se entenderem, de concertarem seus ideais e suas atividades numa combinação tanto mais urgente, quanto as províncias brasileiras tinham diante de si o espetáculo da desunião prevalecente nas províncias espanholas e acarretando males sem conta.

Na Venezuela as discussões do Congresso Nacional e a contenda dos dois partidos empenhados, um em fazer vingar a federação, outro o centralismo, tinham tomado o tempo precioso da defesa e feito perigar desesperadamente a independência, permitindo a reação de Monteverde e a reconquista espanhola. Nova Granada e Venezuela viram-se respectivamente abandonadas à sua sorte apesar do tratado de aliança e federação ofensiva e defensiva que as unia, pelejando cada Estado separadamente e ainda se desavindo o congresso federal de Nova Granada com o presidente de Cundinamarca. Um dos rasgos mais meritórios e de maior alcance político de Simão Bolívar foi levar Nova Granada a pelejar pela libertação da Venezuela e Venezuela pela libertação de Nova Granada, assim estabelecendo a ligação entre as duas repúblicas que por sua queda se desmanchou, quando predominaram as ambições pessoais valendo-se do particularismo.

O regime de sigilo das lojas permitira ampliar extraordinariamente o número dos adeptos da maçonaria, dos quais é lícito dizer que sonhavam todos com a independência. Numa carta escrita da Bahia a Tomás Antônio, referia Luís do Rego Barreto, a caminho de Pernambuco na qualidade de capitão-general, que o comandante do Carrasco lhe contara que, no ato de serem algemados os réus para desembarcarem, dissera o guardião dos franciscanos "que eles não eram os únicos culpados e que se houvesse de tratar desse modo todos os cúmplices que existiam nas diferentes capitanias da América, não eram bastantes nem todos os vasos, que El-Rei tem, para os conduzir, nem todos os ferros para os prender" (63).

Quando José Bonifácio, escolhido pelo príncipe regente para seu ministro - o primeiro brasileiro elevado a essa dignidade apesar de Tomás Antônio aconselhar, desde a aclamação de Dom João VI, que assim procedesse o monarca, bem como com relação à organização de uma aristocracia no reino americano - foi eleito grão-mestre pelo Grande Oriente, tendo por lugar-tenente o marechal Joaquim de Oliveira Álvares, seu colega de gabinete, significou isto que o mundo maçônico nacional nele enxergava o melhor executor do grande projeto comum. Por seu lado, querendo iniciar-se, para o que foi proposto pelo próprio José Bonifácio a 2 de agosto de 1822, tomando o nome de Guatimozim, prestaria Dom Pedro à maçonaria o preito mais expressivo, ainda que pudesse ter sido levado a pretender essa admissão pelos adversários dos Andradas, os quais visavam subtraí-lo à influência de José Bonifácio e para isto, querendo semear ciúme e discórdia entre ambos, o elegeram grão-mestre no lugar do seu ministro.

* * *

Politicamente e financeiramente não foi fácil o início do governo de Dom Pedro: sem dinheiro, por não virem mais as contribuições das províncias, tinha contra si virtualmente todas as facções. Tinha para começar os liberais, especialmente os mações, desconfiados do constitucionalismo de Arcos que, no conceito deles, aspirava aos louros de um Pombal, reformador onipotente, portanto prepotente, e ressentidos da frase contida na primeira proclamação da regência em que se dizia que todas as suas intenções seriam baldadas "se uns poucos mal-intencionados conseguirem sua funesta vitória, persuadindo-vos de princípios anti-sociais, destrutivos de toda a ordem ..."

A proclamação não dizia isto a esmo, sendo positivo que essa facção democrática existiu desde o tempo do rei, já não faltando na sublevação ocorrida no norte, e contra ela obrava a reacionária. Uma relação dos sucessos de 26 de fevereiro publicada por Melo Moraes acusa a última de, na sessão da primeira junta consultiva, realizada em casa de Palmela, ter feito "bastante injúria aos nobres e generosos habitantes de Portugal, tratando-os de rebeldes por quererem recuperar os seus direitos e a sua representação: um dos membros daquela comissão até ousou proferir que se devia bloquear Portugal e obrigá-lo à força de armas a submeter-se aos antigos estabelecimentos políticos".

Também o protesto de fidelidade da tropa a el-rei a 13 de março de 1821 prova claramente que já existiam tendências notórias à separação. A divisão portuguesa auxiliadora e as tropas da guarnição de 1.ª e 2.ª linha declaram nesse documento que agiram a 26 de fevereiro "pelo desejo de fazer causa comum com os seus companheiros de Armas de Portugal, procurando por este modo chamar o Brasil a mesma causa, e salvá-lo da anarquia, ou de outros projetos, que sobre ele se pudesse ter, e que tendessem a apartá-lo daquele centro de unidade política, que só é capaz de manter, e consolidar os interesses do reino unido" (64).

Por sua vez se queixava a facção lusitana de que o "despotismo" de Dom Pedro e do conde dos Arcos visava a desunir os portugueses dos dois hemisférios e reputava outros tantos atentados à união como ela a entendia, sui generis, os ofícios dirigidos do Rio de Janeiro para as províncias do Brasil a fim destas prestarem obediência ao príncipe regente e secundarem a autoridade central executiva criada por el-rei ao retirar-se. Os atos mais simples da regência eram interpretados como "maquinações sinistras" e a junta da Bahia, que era ferozmente portuguesa, increpava o governo de Dom Pedro de inteligências com Luís do Rego em Pernambuco e desígnios de atacarem a Bahia para destruírem esse baluarte do constitucionalismo português, que se erguia contra os projetos de independência do reino americano, por aqueles outros favorecidos.

Para os portugueses Arcos era partidário decidido do Brasil; para os brasileiros não passava o ministro de um reinol com todos os seus preconceitos. Este tratamento pejorativo não punha porém os brasileiros de acordo sobre a política a seguir: havia partidários da monarquia absoluta, partidários da monarquia constitucional, partidários da república unitária, partidários da república federativa, partidários do dualismo e partidários da independência. Esta era a solução que cada dia mais se ia afirmando, podendo prever-se que chegaria breve o dia em que, sob qualquer aspecto que se apresentasse o caso, de qualquer modo que se formulasse o problema, a solução não poderia deixar de ser a radical - a separação.

As soluções intermédias propostas num espírito de conciliação tinham que ser gradualmente eliminadas: a alternativa da residência do soberano dos dois reinos, que os punha num pé de igualdade, provaria nas Cortes ser um ponto de discórdia conduzindo ao rompimento. O ano de 1821 pode contudo denominar-se no Brasil o do constitucionalismo português: o de 1822 é que seria o do constitucionalismo brasileiro. A regência na fase em que foi seu inspirador o conde dos Arcos, como na fase imediata que se prolongou até o Fico, foi um governo bem intencionado, mas mal apreciado, quase impopular.

Bastariam para assinalar a ação benéfica dos seus primórdios a cessação das prisões arbitrárias, isto é, a proibição de qualquer prisão sem culpa formada e sem o competente mandado do juiz, a abolição do processo de torturas e a redução do exorbitante imposto do sal, de 750 para 80 réis por alqueire, um alívio para a população nacional que vivia das indústrias do charque e do peixe salgado ou se alimentava com estes artigos. Bastaria porém o recrutamento forçado - apesar do aumento dos soldos - para acirrar contra a regência certo sentimento, compartido pelos brasileiros, que sempre primaram em detestar o serviço de quartel e sabiam que os pobres e desamparados seriam as vítimas, ao passo que os abastados protegidos formariam o exército dos embusqués, que enxergavam na medida o meio de irem-se substituindo por forças nacionais as tropas portuguesas, cujos pronunciamentos se sucediam e estavam tornando impossível a normalidade da vida política.

O 5 de junho foi o mais desnecessário dos pronunciamentos. Chegadas de Lisboa em fins de maio as bases da Constituição, ali promulgadas a 10 de março, discutiu-se se deviam ou não ser juradas. Por um lado o amplo juramento de 26 de fevereiro parecia dispensar qualquer novo compromisso, tendo sido prestado sem reservas de princípios, nem sequer conhecimento do que se jurava observar, o que aliás o tornava nulo em direito; e por outro lado havia a questão de direito constitucional e também de moral política, se seria válida a sanção pelo executivo local de uma lei orgânica ou mesmo da sua doutrina aplicada a um país cujos representantes a não tinham votado, pois que não tinham ainda tomado assento nas Cortes constituintes.

Achava-se de resto expressamente declarado que, sem o consentimento dos representantes do Brasil, a constituição adotada não se tornaria obrigatória para essa seção da monarquia. Considerando finalmente que a forma solicitada de aprovação na praça pública era perfeitamente revolucionária, e que não era possível coexistirem processos legais e processos violentos no andamento constitucional, o escrúpulo do governo aparece de todo ponto legítimo e razoável.

O conde dos Arcos foi desta vez a vítima expiatória: atribuíram-lhe hostilidade, que talvez nutrisse, contra a assembléia portuguesa e até o propósito, que ele de certo não tinha, de urdir a independência do reino brasileiro. Gomes de Carvalho pensa que o antigo vice-rei do Brasil e capitão-general da Bahia e do Pará, era muito mais administrador do que político, não se lhe conhecendo planos de governo além dos de intensos melhoramentos materiais e morais, que o ilustraram e popularizaram na Bahia. Se teve um plano para salvar a situação quando sobreveio a crise do constitucionalismo, como Trochu tinha um para salvar Paris e a França da ocupação alemã, ficou desconhecido como este outro: a menos que a sua participação na cruel repressão do movimento republicano de 1817 em várias capitanias do norte o houvesse incompatibilizado para coadjuvar sinceramente uma agitação de caráter liberal.

Parece certo que Louzã, o qual andava desavindo com Arcos, opinava pelo juramento das bases e que influiu para o desenlace como se deu. Porto Seguro culpa Caula do antagonismo e da intriga. O príncipe regente afrontou a situação com denodo. Ouvindo falar em conspiração militar, interrogou os chefes da tropa, que negaram aos pés juntos qualquer intenção de insubordinação; mas querendo verificar por si próprio o que havia, deixou a fazenda da Santa Cruz às 11 horas da noite de 4 de junho e apareceu às cinco horas da manhã no quartel de caçadores de São Cristóvão, dirigindo ao capitão Sá algumas palavras que Melo Moraes qualifica de descabidas e que irritaram o oficial, o qual se sentia culpado. Mal Dom Pedro sabia, o batalhão armava-se e encaminhava-se para o centro da cidade, que ficou presa de pânico, aderindo ao pronunciamento o regimento de infantaria do largo do Moura, o de artilharia da praia de D. Manuel e mais outro batalhão.

O ponto obrigado de reunião era sempre o Rocio, onde o príncipe compareceu a cavalo, ouvindo dos oficiais comandantes e de um padre frei Narciso, antigo capelão do conde de Vila Flor, arvorado em procurador do povo, que tropa e povo queriam o juramento das bases, a demissão de Arcos e a organização de um "governo provisório". Com muito sangue-frio mandou o regente subirem essas pessoas para o salão do Teatro de São João e aí lhes declarou que mais legítimos procuradores do povo eram os eleitores, que acabavam de cumprir seu mandato, do que o padre e que a tropa brasileira também devia ter voz no capítulo - pelo que ia mandar convocar aqueles e esta a fim de se liquidar de uma feita o assunto, sem probabilidade de terceiro chamado, ao qual não compareceria, arranjando-se cada um como pudesse e indo ele não sabia ainda para onde (65).

A tropa nacional era pouca e bisonha, e os eleitores também poucos e acanhados: o padre levou de vencida o seu programa, apoiado em espingardas carregadas e peças prontas a disparar. Arcos teve por substituto o desembargador da Casa da Suplicação Pedro Álvares Diniz, de escolha do príncipe, e a junta foi designada, mas não tumultuariamente, antes em votação regular na qual tomaram parte os eleitores de comarca, o presidente da câmara e oficiais do exército, à razão de dois por cada companhia da 1.ª e 2.ª linha de guarnição.

Compunha-se a junta de 9 membros e dela eram ornamentos o futuro marquês de Maricá e o bispo capelão-mor, completando-a os nomes de José de Oliveira Barbosa, comandante da polícia, José Caetano Ferreira de Aguiar, marechal Joaquim de Oliveira Álvares, Joaquim José Pereira de Faro, desembargador Sebastião Luís Tinoco, Francisco José Fernandes Barbosa e Manuel Pedro Gomes - o mais votado com 38 votos, o menos votado com 15.

O artigo 31.º das bases constitucionais portuguesas impunha a responsabilidade aos ministros e secretários de Estado e ficava incumbida aquela junta de apurar semelhante responsabilidade, sendo ela própria responsável perante as Cortes Constituintes de Lisboa, bem como de examinar todos os projetos de lei elaborados pelo executivo antes de respectivamente sancionados. O decreto definia tais atribuições, mas nunca foi regulamentado o seu modus faciendi, pelo que a junta civil ficou sabendo ao que viera ao mundo, sem contudo aprender como proceder nele e morrendo sem haver dado sinal da sua utilidade ou da sua inconveniência.

Junto ao governo das armas, de que era titular o general Jorge de Avilez, de quem a tropa portuguesa dizia ter queixas mas de quem não quis então aceitar a demissão, com a qual lhe acenava o príncipe regente, foi criado, igualmente por imposição da praça pública, um conselho de dois assistentes de alta patente militar. A intenção era em qualquer dos casos limitar a autoridade, funcionando a junta civil como uma espécie de câmara de censores da constituição imaginada por Bolívar para a República batizada com seu nome.

Na falta de um parlamento que tomasse conta ao executivo dos seus atos e vigiasse a aplicação dos dinheiros públicos, e de um tribunal com poderes constitucionais que protegesse os cidadãos nos seus direitos, nas suas liberdades e nos seus bens, aquela junta representava no seu princípio fundamental uma instituição popular servindo eventualmente de barreira aos desmandos das autoridades e de garantia à execução das leis. A idéia da mesma não morreria enquanto não se enraizassem as instituições representativas.

A prisão e deportação do conde dos Arcos pela tropa foram para Dom Pedro uma verdadeira e penosa humilhação. Arrancado do seu palácio - o senado federal de hoje, que lhe fora oferecido pelo comércio da Bahia agradecido, juntamente com uma dotação de 100 contos - sem lhe darem tempo de mudar os trajes caseiros, transportaram-no com a filha para bordo do brigue Treze de Maio, que singrou para Lisboa a 10 de junho. A Gazeta do Rio, usando para com o regente de linguagem mais cortesã, publicou que o povo e a tropa tinham provas evidentes de que fora devida à influência do ministro conde dos Arcos a demora no juramento das bases, essencial para o cumprimento da promessa feita pelo príncipe de que anteciparia aos habitantes do reino americano todos os benefícios essenciais da constituição em gestação.

Não pararam porém aí os dissabores do conde. Da Bahia onde o brigue arribou, a junta local, esquecida de todos os benefícios da administração de Arcos, remeteu para Lisboa ofícios incriminando-o como "o chefe da mais execranda conspiração contra os interesses da nação e do rei" e compeliu o comandante, 1.º tenente Manuel Pedro de Carvalho, a assinar um termo de segurança que de fato reduzia à condição de preso quem embarcara munido de passaporte, apenas constrangido a deixar o reino americano. Outrossim obrigava-se o comandante a não tocar em Pernambuco, onde Luís do Rego, ao que se dizia, estava agindo no mesmo espírito anti-constitucional.

O caso de Arcos foi muito debatido nas Cortes e não lhe faltaram defensores, entre eles os deputados fluminenses e o antigo desembargador da relação da Bahia João Rodrigues de Brito, autor de uma conhecida Memória econômica dessa província, os quais prestaram justiça aos serviços e às intenções do ex-ministro que qualificaram de "principal atleta da causa de Portugal" e paladino do sistema constitucional. Manuel Fernandes Tomás devia porém nutrir prevenção contra ele, pois que considerou "corpo de delito" a vaga denúncia da Bahia a que o magistrado e deputado Brito deu a justa definição de "denúncia de tempos revolucionários para dar cabo dos homens eminentes".

Fernandes Tomás apenas consentiu em que se mandasse proceder a um sumário de testemunhas por parte do corregedor do crime, de que resultou a completa justificação do acusado, o qual apresentara uma memória e documentos comprobativos demonstrado a falta de fundamento da imputação formulada pela junta da Bahia referindo-se "a cartas que não manda e as pessoas que não nomeia". O conde dos Arcos, que entretanto estivera detido na Torre de Belém e depois noutra prisão menos úmida, foi mandado pôr em liberdade a 28 de novembro (66).

Se a primeira medida adotada pelas Cortes com relação ao Brasil, implicando a ligação permanente das suas províncias com a antiga metrópole, não foi diretamente inspirada pelo desejo de despedaçar uma unidade alarmante, obedecia em todo caso à política tradicional de Portugal que fora sempre ditada pelo ciúme de que na colônia se viesse a organizar alguma coisa de grande, que no futuro pudesse contrapor-se à sua dominação: daí a dificuldade oposta à formação espontânea de vínculos, para os quais se requeria permissão real, e a parca remuneração dos dignitários da Igreja, cujo culto a Coroa provia em troca dos dízimos que o soberano cobrava da qualidade de grão-mestre da Ordem de Cristo. Armitage (67), a quem acodem estas judiciosas considerações, ajunta que "a condição dos brasileiros era na verdade miserável comparada com a de que gozam os europeus pela sua civilização; contudo, a tirania sobre eles exercida apresentava mais um caráter negativo do que positivo. Suas necessidades eram poucas, e em razão da quase não existência de nobreza, de grandes proprietários, e de poderosas dignidades eclesiásticas, havia uma certa igualdade entre todos, que não fazia sensíveis as privações a que estavam adstritos".

A medida em questão correspondia até aos votos dos brasileiros que, a tudo antepondo um regime liberal, preferiam unir-se a Lisboa, uma vez que lá imperava um constitucionalismo que era verdadeiramente uma democracia, a continuar numa dependência política local que julgavam humilhante. Não se pode entretanto dizer das medidas ulteriores que fossem inóxias. Aos poucos se fora cristalizando entre os constituintes portugueses a convicção de que a política da persuasão falhando, restava a da força. Eles queriam realmente ver os deputados brasileiros no seio da representação nacional, mas para lhes prescrever a sua norma de ação de acordo com o plano político concebido.

Os constituintes portugueses tinham posto de lado suas apreensões diante do espetáculo das capitanias brasileiras, uma após outra organizando suas juntas, e da impotência do trono perante os pronunciamentos da capital brasileira. Quando a atitude das Cortes se desenhou com maior precisão, tinha desaparecido o último receio de uma reação por parte do Rio de Janeiro e Dom João VI via-se em Lisboa prisioneiro da nação.

A substituição das tropas da Divisão Auxiliadora por outras tropas portuguesas, em que desde logo se falou, podia parecer uma simples medida de serviço, as primeiras já contando uma longa estação nos trópicos: de fato era uma medida de precaução, eventualmente de opressão, já aconselhada pelos primeiros temores de separação, apenas tornada impraticável pela pobreza do Erário e extrema modéstia do exército. Desde então que as Cortes se deviam ter capacitado da sua falta de recursos para sufocar a independência, uma vez que o Brasil por esta se pronunciasse, mas quiseram obter pela ação legislativa o que lhes escaparia pela ação militar, se fosse preciso exercê-la, simulando no entanto confiança na lealdade brasileira e tão somente desconfiança no espírito despótico do príncipe regente.

À junta fluminense competia pronunciar-se neste ponto, na opinião de Manuel Fernandes Tomás. A assembléia desta vez foi porém refratária à vontade do seu maior líder e votou-se o despacho para o Rio de Janeiro de 1.200 praças (25 de agosto de 1821). Quatro dias depois tomaram assento os deputados pernambucanos, os primeiros a chegar, os quais já acharam firmada a teoria de que, sendo todos os deputados representantes da nação, tanto podiam os portugueses tratar de assuntos brasileiros como, vice-versa, os brasileiros de assuntos portugueses.

A reforma administrativa discutida e aprovada a título provisório era concebida num espírito manifestamente anti-brasileiro. Separando as atribuições civis das militares e deixando as primeiras às juntas de sete vogais, escolhidas pelos eleitores das paróquias, ao mesmo tempo que confiando as segundas aos comandantes de armas nomeados em Lisboa, as Cortes criavam uma espécie de procônsules representantes da soberania parlamentar, pois que eram independentes das juntas. A autoridade destas estendia-se sobre o funcionalismo paisano, sendo todavia os magistrados e oficiais de fazenda responsáveis para com o governo do reino europeu, cabendo em todo caso ao governo local a faculdade de suspendê-los por motivo de abuso, formar-lhes culpa e fazê-los julgar pela Relação do distrito.

A uniformidade administrativa trazia entretanto uma vantagem, que era permitir pôr cobro à situação anárquica de algumas províncias, umas ainda sob o bastão dos régulos do antigo regime que eram alguns dos capitães-generais que as juntas não tinham podido desalojar, outras perturbadas pelas lutas dos constitucionais entre si, acusando-se mutuamente de terem galgado fraudulentamente o poder e bradando todos pela mesma legalidade.

Os deputados presentes às Cortes nessa ocasião, que eram além dos pernambucanos os fluminenses, acharam por isso razoável a discussão imediata de tal reforma, mas as atribuições militares dos comandantes ou governadores das armas preocuparam alguns como Araújo Lima (futuro marquês de Olinda) e Martins Basto (comerciante brasileiro estabelecido em Portugal e eleito representante do Rio de Janeiro) e propuseram que semelhante autoridade fosse somente criada nas províncias expostas a agressões externas, como as do litoral e a de Mato Grosso, onde existissem corpos de linha, isentando-se as províncias interiores e as pequenas circunscrições desse presente grego.

Não havia porém razão bastante para a diferença, conforme pôs em relevo a argumentação portuguesa, que figurou a hipótese de desavenças armadas entre as províncias brasileiras, convindo que estivessem todas em condição de defesa. A esta razão ostensiva agregou-se outra reservada e era que, desde o momento em que se ia dar provimento posto que relutante, arrancado aos poucos pela pertinácia, ao projeto do deputado pernambucano Manuel Zefirino dos Santos, de repor nos seus postos os oficiais comprometidos na revolução de 1817, abonando-se-lhes os soldos vencidos durante o período da sua exclusão, detenção ou homizio, convinha não os deixar reintegrar nas fileiras com seus sentimentos não só exaltados como nativistas, sem os tornar dependentes de uma autoridade portuguesa, representante da união segundo o figurino constitucional.

Juntamente com esta providência, adotou o Soberano Congresso a de restringir a militarização que Luís do Rego estava praticando em Pernambuco, não só dispondo de vários regimentos portugueses como criando corpos de milícias pelo interior, com repetidos e vexatórios exercícios que deslocavam os nacionais das suas residências e profissões e que foram abolidos. Igualmente se ocupou de um caso que inesperadamente se lhe apresentou - a chegada de 42 presos, muitos de distinção, entre eles o morgado do Cabo (futuro marquês do Recife), um dos Suassunas, Francisco do Rego Barros (mais tarde conde da Boa Vista) e Sebastião do Rego Barros, depois ministro da Guerra e então contando 18 anos, remetidos de Pernambuco no porão de um navio, sob acusação de conspirarem em favor da separação do Brasil.

Não seria de todo falsa a acusação, porquanto as tendências separatistas de Pernambuco eram notórias e nenhuma província preocupou mais por esse lado a regência de Dom Pedro. As Cortes usaram porém para com os deportados da maior indulgência. Elas timbravam mesmo em ser condescendentes nas questões pessoais, que eram as menores, reservando sua intransigência para as questões de princípios ou de interesse nacional, indubitavelmente as maiores.

Muniz Tavares apresentou os presos como vítimas do espírito de 1817, que atormentava com remorsos os perseguidores implacáveis de homens cuja nobreza da alma era tão superior aos instintos rasteiros e malfazejos dos seus algozes. A voz cavernosa do futuro monsenhor soava plangente como um dobre de finados pelos justiçados à ordem de Luís do Rego e os encarcerados à ordem da alçada. A denúncia de agora, originando o despropósito do capitão-general, não era porém a continuação da mesma ferocidade. A esta sobrepusera-se a covardia, revelando-se pelo pavor da vingança que tomariam os presos da Bahia, restituídos à liberdade e ao ódio. Aí estava o segredo da deportação, não em serem eles republicanos e independentes.

Vilela Barbosa (futuro marquês de Paranaguá) secundou admiravelmente o seu colega pernambucano com a sua palavra abalizada, de uma argumentação cerrada, tão diferente do "estrondo do pororoca" - como espirituosamente lhe chamou Cairu - pelo qual se anunciaria a eloqüência ultramarina nos lábios de Patroni. Protestou o representante fluminense contra as suspeitas de fidelidade do reino americano e contra o prolongamento na província dessa autoridade tirânica, que era a causa de todo o mal-estar. "A liberdade comprimida, dizia ele, reage com todos os sentidos e estoura, e todos os caminhos que trilha para se restituir ao seu devido estado, são justos e quando menos desculpáveis. Removam-se do Brasil os déspotas e opressores, e então a voz da independência, a menor voz, será crime, e crime atrocíssimo, como ingratidão para Portugal, a quem devem aqueles povos o ser e ora o maior de todos os bens, a liberdade" (outubro de 1821).

As Cortes não eram mesmo insensíveis a apelos desta natureza. Nem queriam para o ultramar um tratamento diferencial quanto aos direitos civis ou às liberdades constitucionais dos brasileiros: o que queriam era assegurar a supremacia política e econômica da que ainda consideravam metrópole. O deputado português, padre Castelo Branco, desenhou com nitidez a situação quando disse num discurso que a expressão de reino do Brasil devia ser equiparada à de reino dos Algarves. Reino era um só. A tríplice designação redundava para o sacerdote numa trindade como a do dogma, em que a fusão fosse perfeita. Admitida esta preliminar, não havia da parte dos constituintes portugueses a menor idéia de escravizar os seus irmãos ultramarinos, criando para eles um status especial, inferior ao europeu. Borges Carneiro entre outros, que era a figura mais simpática dos constitucionais portugueses e era jurista, esteve mais de uma vez ao lado dos deputados brasileiros e neste caso, dos deportados por Luís do Rego, votou pela sua imediata soltura, fundando-se na ausência de culpa formada. Luís do Rego não era muito familiar com as fórmulas jurídicas e o processo que acompanhou os presos era uma verdadeira monstruosidade. Os presos não tiveram muito que esperar pela sua liberdade e anistia por acórdão da Casa de Suplicação.

Sanada esta injustiça, o Soberano Congresso entendeu não deixar correr à revelia a situação da província, onde os elementos separatistas tinham por si a tradição e podiam num momento dado explodir com todo o vigor do seu ressentimento. A despeito da oposição movida pela respectiva bancada, ainda ajudada por Vilela Barbosa, resolveu-se a expedição para o Recife de uns centos de soldados, a deduzir dos 1.200 destinados ao Rio de Janeiro, afim de ocuparem o lugar do batalhão dos Algarves, cuja retirada havia sido solicitada pelos representantes de Pernambuco (outubro de 1821).

A autoridade local havia que ser provida dos meios de fazer manter a ordem pública, com tanto mais razão quanto os deputados ultramarinos à porfia declaravam ser intento do Brasil conservar a união com Portugal sob a égide de uma constituição comum.

A desunião ia porém insensivelmente ressaltando dos debates, à medida que estes se animavam e davam a conhecer a oposição dos sentimentos e dos interesses, que não era transitória, e sim fundamental. Na questão que acabava de debater-se, Vilela Barbosa mostrava a inanidade do recurso desse punhado de homens impotentes contra o levantamento eventual de uma província, mas os deputados pernambucanos contestavam a própria constitucionalidade do ato das Cortes, acedendo às reclamações de um capitão general que ainda exercia seu cargo por nomeação real, sem o prévio beneplácito do poder legislativo e soberano, quando a autoridade passara legalmente para as juntas de eleição popular. Se a regência não era um poder regular e como tal constituído, muito menos o era aquele sobrevivente de um passado abolido e execrado, que relembrava horas de angústia e de martírio e junto ao qual a presença de novas tropas portuguesas só podia tomar ares de uma provocação com resposta certa.

CAPÍTULO V

O REGIME DAS JUNTAS PROVINCIAIS. LUÍS DO REGO EM PERNAMBUCO E JOSÉ BONIFÁCIO EM SÃO PAULO

Não foram somente o Rio e a Bahia, a nova e a velha capital do vice-reinado e do reino unido, que se pronunciaram pelo constitucionalismo. Sabemos que a iniciativa partiu até do Pará e de fato todo o Brasil novo se entusiasmou pela revolução portuguesa, nela enxergando a implantação de um regime liberal pela vitória das idéias democráticas lançadas pela França na circulação política. A começo não se podia lobrigar o intuito de recolonização deprimente, que teria entretanto de vingar no seio da antiga metrópole desde que sua penosa situação econômica fora um dos motivos essenciais do movimento constitucional.

Em Pernambuco Luís do Rego Barreto representava, pela sua forte individualidade e pelas circunstâncias em que lhe fora confiado e em que ele exercera o governo - imediatamente após a supressão do ensaio de república - um dos centros certos de resistência à separação que poderia resultar da agitação política criada em Portugal e propagada no Brasil, logo que os interesses respectivos entrassem em conflito. Podia-se mesmo considerá-lo o eixo da resistência à independência, se esta solução viesse a formular-se.

Inteligente e culto (68), o capitão-general de Pernambuco compreendeu perfeitamente que não se podia eficazmente opor à transformação em andamento, de um regime absoluto para um regime constitucional. É mesmo crível que não mentisse aos seus próprios sentimentos quando declarou que simpatizara com a revolução liberal, ao ter notícia dela. Sua noção da disciplina militar não lhe permitia contudo manifestar-se em caso algum antes do seu rei, e seu tino político, de certo avivado pelas luzes do genro, Rodrigo da Fonseca Magalhães, que veio a ser um homem de Estado dos mais notáveis do Portugal liberal, mandava-o encaminhar o movimento e adaptar as novas instituições às velhas tradições, em vez de fazer tabela rasa do passado. Eram em suma idéias idênticas às de Palmela e que se consubstanciam na seguinte frase: dirigir o trono a revolução para não ser por ela derrubado.

Às vistas do diplomata e às do general concordavam, ao que se vê, plenamente: apenas Palmela opinava por diferentes constituições para os dois reinos. Luís do Rego, ao mesmo tempo que dirigia ao soberano uma representação, acompanhada de algumas outras de câmaras municipais, expondo as aspirações da população que governava, relativas a uma representação nacional e a uma constituição política firmando os direitos e prerrogativas dos cidadãos, dava ordens para a convocação de uma assembléia de enviados de toda a província a fim de se resolver se se devia ou não jurar a constituição que fosse elaborada pelas Cortes de Lisboa (69).

A decisão arrancada na capital brasileira à pusilanimidade real, tirou-o desse embaraço, unificando a lei orgânica para as duas seções da monarquia e de antemão ratificando-a. Seu papel ficou mais simples, se bem que não isento de dificuldades, tratando-se de defender o monarca contra qualquer eventual tentativa de deposição por manifestação republicana ou de despojamento de uma parte dos seus domínios. Para livrar o Brasil do contágio jacobínico, as tropas portuguesas aquarteladas no ultramar constituíam o que se chamou o "cordão sanitário", e Luís do Rego gabava-se de poder agregar ao seu famoso batalhão dos Algarves, 12.000 pernambucanos fardados, armados e disciplinados, tropa de linha por ele adestrada e comandada por oficiais portugueses.

As forças lusitanas eram, mesmo por espírito de classe, aditas ao constitucionalismo, mas o constitucionalismo do Brasil tinha no entender delas que ser subordinado ao constitucionalismo de Portugal. Não assentava nem convinha que o reino americano tivesse uma economia ou uma psicologia podendo conduzir à dissolução da Monarquia. A adesão ultramarina à revolução portuguesa só devia ter o intuito de robustecer e não envolver o perigo de enfraquecer a união. O liberalismo da mãe-pátria encerrava um pensamento de desforra para com a colônia que a privara da supremacia política e econômica. A clâmide grega que esse liberalismo revestia, era apenas para figurar de clássico: de fato, como observava mordazmente Armitage, quando tratavam dos negócios do Brasil, as disposições das Cortes tornavam-se tão aristocráticas, quanto sobre outros tópicos eram democráticas. O resultado foi que a ex-colônia se persuadiu deveras de que chegara o momento de viver sua vida própria. Como escrevia aos 82 anos o revolucionário Mena Calado, "hoje e então ninguém duvida que o Brasil queria dever somente a si seus melhoramentos" (70).

Felipe Mena Calado da Fonseca, português e antigo escrivão da correição no Ceará, reivindica para si e para o seu amigo, Manuel Clemente Cavalcanti de Albuquerque, a honra e o mérito de terem preparado e organizado a reação local contra Luís do Rego, encarnada na junta de Goiânia. Fizeram ambos parte da leva de presos paraibanos por ocasião da revolução, ainda que Manuel Clemente tivesse caído prisioneiro no combate de Ipojuca, e vieram de São Salvador apostados com elementos liberais baianos a porem cobro ao perigo oferecido à implantação da liberdade pela presença no Recife de Luís do Rego e do seu excelente corpo de oficiais.

Para ser vencedor o espírito nacional, que era neste caso o espírito liberal, indispensável e inadiável se tornava arredar semelhante obstáculo. Ora esse espírito era o de 1817, que se propagara no norte, fora do seu berço pernambucano, sobrevivera às execuções, às perseguições e aos sofrimentos, e mais aceso ia aparecer com o regresso dos anistiados aos seus lares. Os presos de 1817 invocavam com muita razão a afinidade das suas idéias democráticas com as idéias vencedoras em Portugal e achavam-se mais no caso de as representar do que um capitão-general delegado de um poder discricionário (71).

Recorda Porto Seguro que Luís do Rego, procurou conciliar os presos da Bahia, soltos pela junta local de governo provisório, pagando-lhes os ordenados e restituindo-os aos seus lugares. Era ele o primeiro a perceber que sua luta mais renhida seria a que tivesse de sustentar com os elementos revolucionários restituídos à vida ativa, elementos mais combativos do que os outros e nos quais a devoção aos princípios republicanos se fora convertendo pela saudade das vítimas e pelo espetáculo da dor numa fé religiosa impregnada de proselitismo. O paiol para explodir carecia apenas que um incidente, mesmo fortuito, lhe pusesse fogo. A revolução de 1820 era em suma a justificação completa tanto da conspiração que ofereceu pretexto à execução de Gomes Freire quanto da que levou à morte Domingos José Martins.

A memória, tão fresca ainda, do movimento pernambucano de 6 de março, bastava para aconselhar Luís do Rego a proceder com a maior prudência ao experimentar pôr em vigor o gozo dos direitos constitucionais, máxime por um método revolucionário. Nem podia ser outro o método desde que se saíra da legalidade. Ele porém bem suspeitava que a revivescência de uma agitação política construtora acarretaria sua queda.

A tarefa da aclimação em Pernambuco das instituições representativas fora moralmente facilitada pela atitude de el-rei, ao jurar a 26 de fevereiro adotar a constituição que fosse elaborada pelas Cortes e aplicá-la a toda a monarquia. Surgira entretanto, como expressão da efervescência local, o alvitre de uma junta provisória como a do Pará e a da Bahia.

A notícia do pronunciamento do Rio chegou ao Recife justo um mês depois de ocorrido, a 26 de março, e Luís do Rego logo se pusera em guarda para impedir que o constitucionalismo, no seu parecer aceitável e até bem-vindo, se divorciasse da lealdade dinástica. A obra das Cortes era aliás de rótulo monárquico e na sua essência unionista. Para contemporizar todavia com a ebulição política que pressentia crescente, o capitão-general, que já anteriormente obtivera a mencionada representação em favor de uma constituição, como fruto da convocação em conselho extraordinário da câmara e do povo - espécie de cabildo abierto das colônias espanholas - promoveu por essa nova ocasião a eleição de um conselho consultivo de governo, composto naturalmente de pessoas da sua parcialidade. Com efeito nomeou a 31 de março, em virtude de autorização que para tanto lhe foi concedida pelo conselho convocado a 29, a chamada Junta Constitucional Governativa, que ainda recebeu outros nomes e cujo pessoal (72) se modificou no decorrer da sua existência, crescendo ou diminuindo ao sabor das desconfianças pessoais e dos interesses políticos do capitão-general. O pensamento oculto era sempre o mesmo: evitar a separação que ele melhor do que ninguém adivinhava iminente, segundo mesmo mandara dizer para as Cortes de Lisboa (73).

Paralelamente com a sua ação corria porém a ação clandestina dos revolucionários. Diz Mena Calado que, aliás sem aplauso seu, nem do seu amigo Manuel Clemente, foi o morgado do Cabo o primeiro escolhido para cabeça do projetado movimento pernambucano. José de Barros Falcão foi o segundo escolhido, mas com nenhum dos dois logrou tomar corpo o desígnio, que só assumiu feitio prático e entrou em caminho de realização depois da chegada a Pernambuco, nos princípios de junho de 1821, daqueles dois egressos do cárcere baiano, mais cheios de ardor ou mais pertinazes do que os precedentes emissários da Bahia.

Foram ambos sem tardança para o interior, para o engenho Cangahu, de Joaquim Martins da Cunha Souto Maior, e lá, durante mais de dois meses, urdiram em completo sigilo e com a máxima cautela a conspiração, cujas ramificações se estenderam à Paraíba, onde os dois agitadores foram a indagações e onde contavam com a cooperação de vários companheiros de enxovia, ao mesmo tempo que com a oposição do batalhão, cujo quadro se compunha de oficiais portugueses e de inferiores brasileiros. Entre estes se iniciou, como era lógico, a propaganda para recrutamento do pessoal revolucionário.

Luís do Rego, contrariando e negando o anelo de uma eleição popular de junta a fim de permanecer ele à frente do governo, pretendia agir de acordo com o decreto das Cortes de 18 de abril - o decreto que declarara legítimos os governos locais que se estabelecessem para realizar a regeneração política da nação portuguesa e responsáveis aqueles que, mesmo sendo autoridades, movessem oposição aos beneméritos da pátria que tivessem chamado a si tal regeneração. A Constituição fora proclamada na Paraíba a 29 de abril; Luís do Rego fê-la proclamar e jurar no Recife e Olinda a 29 de maio e mandou proceder às eleições para deputados às Cortes Constituintes, as quais tiveram pacificamente lugar a 7 de junho.

A legitimação pela assembléia portuguesa dos governos provisórios organizados tumultuariamente e que lhe tivessem prestado termo de obediência, uma vez posta em violento contraste com os sucessos de 5 de junho no Rio de Janeiro, que cercaram de entraves o governo civil e militar da regência, levou no entanto, o capitão-general de Pernambuco a pensar na real eleição de uma junta. O conselho porém por ele adrede convocado, adicionado de deputados eleitos, comandantes de corpos e outras pessoas gradas, opinou de preferência pelo reforço da junta consultiva já existente. Com isto não fez mais do que aumentar a oposição; concomitantemente cresceram as perseguições, que nem todas eram sem razão, e o regime das conspirações, denúncias e sumários de culpa chegou à crise aguda de 21 de julho, quando Luís do Rego escapou mal ferido à pontaria de João Souto Maior. Como conseqüência, as 42 deportações para Lisboa e 13 degredos para Fernando de Noronha.

Depois de restabelecer-se dos ferimentos recebidos por ocasião do atentado, Luís do Rego, não obstante amparar sua posição com o juramento de fidelidade às Cortes, resolveu, no dizer de Porto Seguro, pedir sua demissão e desde logo proceder à eleição de uma verdadeira junta de governo, a meio do que o teria surpreendido a notícia da organização da junta de Goiânia, a 29 de agosto. Parece mais razoável o que escreve Mena Calado, a saber, que o capitão-general teve notícia dos sucessos de Goiânia no dia anterior ao da recepção do ofício da respectiva junta e por isso, reunindo a câmara do Recife com os militares da sua escolha, "amassou uma coisa a que deu o nome de conselho governativo da província", a qual quis fazer passar pela junta ideal (74).

* * *

A iniciativa do movimento de Goiânia partiu de Nazareth, sendo o primeiro convidado a aderir e participar no levante o tenente-coronel de milícias Manuel Inácio Bezerra de Melo, senhor do engenho Tamataupe. Daí foram expedidos os estafetas a aliciarem outras forças para se levar a cabo a eleição de um governo provisório, no espírito, como se dizia, das ordens emanadas de el-rei Dom João VI. Goiânia foi marcada como prazo dado do pronunciamento das milícias. Mena Calado começou por ler seu enfático manifesto à brigada de Bezerra de Melo, e pelas cinco horas da tarde saíram de Nazareth uns 600 e tantos homens a pé e a cavalo. Após uma noite de chuvas torrenciais chegaram de madrugada às proximidades de Goiânia uns 200 homens: 400 e tantos tinham desertado, mau grado a eloqüência tribunícia do agitador português.

Conseguiram entretanto esses poucos insurretos que a vila de Goiânia aderisse ao movimento, apesar da oposição do juiz de fora Dr. Sarafana. A pequena força disposta com arte em volta e a distância do povoado, e entremeada com a gente que para lá se dirigia ou de lá saía e era propositadamente demorada, fez impressão. O vereador Gomes dos Santos, mandado a examinar a situação, volveu exclamando: "Tem gente como bicho". Logo em seguida era a câmara ocupada, forçada sua anuência, substituídos os oficiais portugueses do batalhão ou companhia por oficiais brasileiros, cortadas as comunicações com os outros centros de população e intimado o capitão-general.

Este achava-se politicamente assaz enfraquecido, mas não estava na sua natureza, nem era próprio do seu brio de militar, ceder sem lutar. O número dos seus presos políticos era avultado, turva a atmosfera que o cercava; mas julgou poder arrostar a hostilidade que se desenvolveu e espalhou rapidamente, logo que o descontentamento latente pôde firmar-se e agrupar-se em redor de um centro de ação. Tal centro vinha oferecer-lhe a junta rebelde? (75) e os senhores de engenho da redondeza foram os primeiros a manifestar-se em seu favor. O que houve porém de pior para o governador foi a deserção de milicianos brancos e de cor, que se seguiu na capital à divulgação da notícia da insurreição e que foi imitada por muitos jovens fora do serviço, mas em condições de pegarem em armas, e também por soldados de linha.

Mrs. Graham, que esteve em Pernambuco de 21 de setembro a 14 de outubro de 1821 - o tempo que aí estacionou a fragata de guerra britânica Dons, do comando do seu marido - escreve (76) que grande parte do regimento de caçadores abandonou o capitão-general para juntar-se aos revoltosos, formando o corpo mais eficiente do ataque contra o Recife, empreendido com armamento e cartuchame tirados por traição do depósito do Arsenal de Guerra. A impopularidade de Luís do Rego conduzia a atos tais. Nem a sua junta tinha prestígio para substituir o que a ele lhe faltava, porquanto o sistema que seu governo representava pecava pela base perante as novas condições requeridas, e tanto assim que apesar do governo constitucional eleito a 30 de agosto pela câmara, clero e nobreza (77), Luís do Rego assegurava para Goiânia, ao propor conciliação a 4 de setembro, que pretendia convocar as câmaras municipais da província em congresso, delegando cada uma dois enviados.

"Senhores - diziam os do Recife - lancemos no golfão do esquecimento todos os contratempos passados: reine a amizade constitucional, todos revivemos cidadãos; como é possível que queiramos converter em instrumento de guerra as prerrogativas da paz? Nós esperamos de Vossas Senhorias as provas da mais cordial união, e aguardamos os seus representantes para estreitarmos com eles os laços da amizade, esmerarmos todos pelos interesses desta província e da população". O tom do apelo denuncia debilidade, quase humildade. A junta de Goiânia reteve o portador do ofício, coronel Acioli, e respondeu com altivez, quase arrogância, que reconhecida pela imensa maioria das câmaras da província, não podia nem devia alterar o que se achava feito. As blandícias foram impotentes, como tinham sido as ameaças, para fazê-la mudar de atitude. O resto estava lançado: as armas decidiriam.

A junta rebelde não esperou ser atacada: promoveu ela própria a ofensiva, como o melhor meio de vencer. Entretanto a junta legalista - se é que alguma era legal - continuava a ensaiar apelos à moderação, à concórdia e até à fusão não deixando por cautela de fazer marchar tropas sobre Goiânia. O primeiro contato com essas forças saídas do Recife teve lugar em Iguarassú e aí se deu a defecção da guarda avançada dos legalistas, que era composta de parte do 1.º batalhão de caçadores de linha. Intimidado ficou o último emissário de Luís do Rego, Dr. Uchôa, por um manejo que Mena Calado relata, carregando talvez a mão no pitoresco, porque o terror do Dr. Uchôa ele o descreve mortal ao ouvir os toques de rebate e os morras da rapaziada, deixando-se trancar num armário até ser transportado para o Convento do Carmo.

Seja ou não exato o episódio, desses talvez a que se recorre para enjoliver l'histoire, o fato é que o emissário de Luís do Rego, após assinar acobardado uma ordem de contramarcha à expedição, se recolheu no Recife a meio de novas deserções, do resto dos batalhões de caçadores e do esquadrão de cavalaria, permitindo aos rebeldes reforçarem seus contingentes e iniciarem sua marcha a 15 de setembro.

A junta de Goiânia intitulava-se Governo Constitucional temporário e dizia agir de acordo com as Cortes Gerais da Nação Portuguesa, sem intuitos de separação. Na sua primeira reunião, aos 2 de setembro, depois de decidir o infalível aumento de pagamento às tropas, passando cada soldado a ter 200 réis diários e recebendo os desertores graduados um posto de acesso, deliberou-se pôr luminárias na vila e celebrar um Te Deum pela feliz chegada de Dom João VI a Portugal (78). Considerando-se a junta o governo "realmente reconhecido legitimo", aprovou nas suas sessões que se oficiasse ao secretário do governo do Recife para que remetesse para Goiânia todos os ofícios e documentos originais dirigidos pelas Cortes e pela regência à província de Pernambuco, e que se ordenasse à junta da Real Fazenda que não mais pagasse soldos e ordenados ao general Luís do Rego e pessoas às suas ordens, só podendo as despesas públicas. ser autorizadas pelo governo verdadeiramente legal.

Comandava a expedição de Goiânia o sargento-mor José Camilo (80) Pessoa de Melo. De acordo com a ata da sessão, marcharia a força da seguinte forma: na vanguarda o corpo de guerrilhas, o corpo de cavalaria e uma parte do regimento de caçadores; no centro o batalhão 14, na vanguarda do estado-maior, marchando na retaguarda deste o batalhão 16 com o corpo de artilharia adido; na retaguarda o batalhão 15, seguido da bagagem, dos presos de Estado que de Iguarassú seriam remetidos para a fortaleza de Itamaracá, onde havia maior segurança, do corpo de henriques e pardos, da outra parte dos caçadores e de outro corpo de cavalaria (81).

No Recife dispusera-se Luís do Rego a combater essas forças com os recursos à sua disposição, gradualmente diminuídos pelas sucessivas fraternizações de regulares. Mrs. Graham deixou-nos uma animada descrição da cidade assediada: cavalos selados e soldados armados, prontos a montá-los ao primeiro sinal; canhões com morrões acesos ao lado, em frente ao palácio do governo; as lojas fechadas, porque os negociantes, constituindo a milícia, estavam no serviço militar, com tanto maior zelo quanto muitos eram portugueses da Europa e se arreceavam do saque no caso de um assalto feliz; peças de campanha, com sentinelas vigilantes, nas extremidades das ruas e nos encontros das pontes; o mercado sem legumes, sem leite, e escasso de pão de trigo, de bolos de mandioca e de combustível; os escravos mandados recolher a cada alarma para que não ajudassem de dentro os atacantes; índios de arco e flechas cooperando na defesa a troco de um gole de cachaça e de um punhado de farinha.

Os dois pontos extremos do cerco eram Olinda e Afogados onde a investida se desenhou, verificando-se o encontro mais renhido a 21 de setembro, quando uma das colunas, a do sul, foi detida no caminho do Recife pelo canhoneio do forte das Cinco Pontas ao passo que a do norte atacava Olinda, ataque repetido na noite de 29. Luís do Rego recebera da Bahia um reforço de 300 homens de linha (350 diz Mrs. Graham, 340 a correspondência do príncipe Dom Pedro para seu pai) com petrechos de guerra e munições, pelo que se sentiu no primeiro momento mais animado. A junta de Goiânia, por seu lado cada vez mais esperançada, contava cerca de 2.000 homens em armas e instalou seu quartel-general em Beberibe.

Mrs. Graham que, por ter voltado para bordo, deixou de presenciar o ataque de Afogados pelos constitucionais de Goiânia na noite de 1.º de outubro, teve contudo ensejo de visitar o seu acampamento, incorporando-se na embaixada inglesa despachada para obter a livre passagem da roupa suja do navio, mandada lavar nas águas claras e frias do Beberibe e retida pelos patriotas. Por mais animosa que ela fosse, teria porventura hesitado em ir se já então soubesse que na oferta de paz por parte da junta provisória de Pernambuco, esta afirmava que o governo que se reputava legal contava como a assistência das fragatas inglesa e francesa estacionadas no Recife, oferecida sobre o fundamento de proteção à propriedade estrangeira, de súditos das duas nações, existente na cidade.

Escreve Mrs. Graham que positivamente nenhuma assistência fora oferecida pela fragata inglesa: fora é verdade solicitada, mas recusada de acordo com as instruções de estrita neutralidade do governo britânico, limitando-se o comandante a prometer proteção pessoal a quem quer que dela viesse a carecer, independentemente da nacionalidade. A proteção à propriedade britânica achava-se garantida com a presença do navio de guerra, que não se encontrava ali para outra coisa.

A pequena expedição da Dons levava passaportes e fora informada do santo e senha. Duas milhas separavam o último posto do governo do primeiro posto dos patriotas, cuja guarda de farroupilhas consistia de um negro de cara jovial, armado de uma espingarda de caça, um nacional empunhando um mosquete (blunderhuss) e dois ou três mestiços armados de paus, espadas e pistolas. Mais adiante, numa encruzilhada e rodeada de molecas toucadas de vermelho, com balaios à cabeça, vendendo fruta e água fresca, a casa de guarda, donde um jovem oficial de caçadores com um todo de cavalheiro - (gentlemanlike) escreve Mrs. Graham - acompanhou a party até o pouso da junta.

No caminho encontraram a deputação (segundo Mrs. Graham era a deputação da Paraíba) que ia entender-se com Luís do Rego - cavalgada de 40 pessoas, levantando bandeira branca, ostentando, umas, ricas fardas militares, indo outras à paisana, com o traje usual dos senhores de engenho. A tropa que ia aparecendo estava sofrivelmente equipada, mas curiosamente vestida. Não mais de 200 tinham uniforme e pertences de soldado: o que mais se via eram roupas e armas de toda espécie, sendo as roupas de couro, de pano e de linho, e variando os feitios das casaquinhas curtas (shortjackets) aos compridos chalés escoceses.

Mena Calado, na frase da autora a smart little man (um homenzinho esperto), falando francês que se entendia (tolerable French), convidou-a também a entrar na sede da junta e ouvir uma catilinária contra Luís do Rego e sua tirania, "que tinha muito do sabor dos discursos carbonários na Itália". O vestíbulo da casa tinha a um tempo aspecto de quartel e de hospital: ocupavam-no soldados, cavalos e feridos, cujos gemidos se misturavam com o berreiro alegre dos sãos. Pela escada, um tal tropel de gente que era custoso subir; numa sala grande e enxovalhada, com restos de talha dourada nos painéis do teto e uma mobília disparatada, cada cadeira do seu tamanho e feitio, funcionava a junta.

Mrs. Graham, que nessa ocasião foi muito interrogada pelos membros desse governo em armas sobre as probabilidades do reconhecimento da independência do Brasil pela Inglaterra e sobre a possibilidade de uma intervenção inglesa para ajudar tal solução, de antemão se defende contra qualquer acusação que lhe possa ser assacada de pretender na sua narrativa zombar das reuniões populares do Brasil. Ela era a primeira a reconhecer que semelhantes reuniões, de caráter político, tinham em vista os melhores objetivos: a independência nacional e a liberdade civil sob uma legislação reformada, admitindo aliás que Pernambuco tinha fartos motivos particulares de queixa. A comparação que lhe sugeriu a carbonária italiana é toda, escreve ela, em abono do Brasil, porque as revoluções brasileiras não tiveram o caráter sanguinário das agitações italianas e o país encontrou no seu soberano, em vez de um tirano, como tantos da Itália, um defensor e um protetor.

A junta de Goiânia celebrou sua primeira sessão em Beberibe a 5 de outubro (82), já para discutir propostas de conciliação. A partida estava perdida para o governador que a junta adversa declarara demitido do seu cargo, avocando o tratamento de autoridade legal por virtude do mesmo decreto de 18 de abril de que se socorria Luís do Rego para prolongar a agonia do seu poder. Rodeavam-no de resto traidores e espiões: o resultado do seu conselho militar de 2 de outubro, o qual findou à meia-noite, era juntamente com o plano da avançada combinada, conhecido em Beberibe uma hora depois, e às duas horas da madrugada recebia Luís do Rego um ofício irônico de Mena Calado, que burlara a marcha concertada (83).

O melhor era entrar em composição, tanto mais quanto recebera entrementes o capitão-general um oficio do príncipe regente do Brasil, de 21 de agosto, mandando estabelecer na província, de ordem das Cortes, uma junta provisória de governo, o que não era possível levar a efeito com uma luta aberta. Para serená-la foram despachados do Recife três emissários: o tenente-coronel Luís Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (depois visconde de Suassuna), o negociante Gervásio Pires Ferreira e o tenente-coronel João de Araújo da Cruz, este último enviado pelo governo da Paraíba (84). A tratar com eles apresentaram-se a própria junta de Goiânia e alguns representantes de câmaras da província, nomeadamente Goiana, Pau de Alho, Limoeiro, Iguarassu, Cabo, Serinhaem e Santo Antão.

Mena Calado, como preliminar, negou a legitimidade dos emissários do Recife, pelo fato de negar a legitimidade da autoridade de Luís do Rego. Não acontecia outrotanto com os enviados paraibanos, cujos diplomas foram julgados verdadeiros e legais, porque eram mediadores e não representantes do conselho governativo do Recife. De fato, o governo da Paraíba fora solicitado para intervir em favor de uma e outra parcialidade, mas preferira, concordando com o seu povo, abster-se de manifestar simpatias e assumir o papel de conciliador.

Os delegados de Luís do Rego foram contudo reconhecidos por maioria de votos, sem que isto implicasse o reconhecimento do capitão-general. 0O essencial parecia decidi-lo a embarcar para Portugal, diminuir o número de tropas em armas e não só "sossegar o espírito dos povos", como "aliviar a agricultura da suspensão dos trabalhos rurais, desembaraçando as milícias empregadas no restabelecimento da ordem". Do interior tinha vindo bastante gente armada e o governo de Goiânia desde esse dia tratou de licenciar as forças reunidas, despachando-as para suas localidades.

Não há dúvida que com o governo rebelde de Goiânia estava o espírito da nova legalidade, segundo a tinham construído a decisão das Cortes de Lisboa e o aviso do príncipe regente de 21 de agosto de 1821, devendo a junta constitucional provisória ser eleita pelos deputados das câmaras da província na sua capital. Chegara-se a um ponto em que o desejo de pacificação era grande de ambos os lados: apenas Mena Calado, intransigente sempre, protestava em cada ata de reunião, por honra e para honra de Pernambuco, contra todo instrumento em que figurassem Luís do Rego e seu conselho governativo, cuja jurisdição ele repelia.

O acordo, representado por um armistício e uma convenção ratificados a 9, fizera-se porém sobre a melhor base possível: a da subsistência da autoridade das duas entidades administrativas apenas pelo curto período que poderia mediar entre a convenção do Beberibe e a chegada da determinação das Cortes soberanas acerca da instalação da junta provincial a ser eleita. Ficavam entretanto, girando nas suas respectivas órbitas - o conselho governativo no Recife e Olinda e seus termos, e o governo de Goiânia nos distritos municipais que o tinham acompanhado. Ambas as entidades concordaram nas medidas para manutenção da ordem, franquia das comunicações e pagamento das tropas e dos funcionários públicos.

Todas as câmaras foram então convidadas a mandar, cada uma três representantes, à reunião fixada para 26 de outubro na Sé de Olinda, com o fim de ser eleito o governo provisório constitucional, o qual ficou composto de Gervásio Pires Ferreira, Felipe Neri Ferreira, cônego Dr. Manuel Inácio de Carvalho, Bento José da Costa (único membro português), Joaquim José de Miranda e tenente-coronel Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca, sendo o primeiro presidente, e secretário o padre Laurentino Antônio Moreira de Carvalho.

Já por esse tempo tinham chegado a Pernambuco o decreto especial das Cortes de l.º de setembro e a carta régia de 2, mandando criar uma junta provisória escolhida pelos eleitores de paróquia das comarcas de Olinda e do Recife, e também pelos da comarca do sertão que por estarem mais próximos pudessem reunir-se no prazo de dez dias, dentro do qual se devia impreterivelmente concluir a referida eleição. A jurisdição administrativa da junta compreendia, na forma das demais criadas, todos os ramos do serviço público, sem restrição alguma, sob o regime das leis e disposições existentes, e a autoridade militar ficava desde então separada e independente da autoridade civil, confiada a um governador das armas, agindo de harmonia e em correspondência com a junta, porém sujeito ao governo do reino e responsável a este e às Cortes.

Foi uma modificação profunda, posto que menos do que à primeira vista aparece, a que assim se introduziu na administração brasileira, cuja feição civil ficava sendo autônoma, representando entretanto a feição militar o elo que ainda prendia a antiga colônia à sua metrópole, a qual por meio desta autoridade reafirmava o seu poderio. O governador das armas verdade é que facilmente poderia converter-se num ditador, dispondo da força pública para coagir a junta de governo e suspender as liberdades constitucionais.

A concepção desta distinção nada imaginaria não se tem modificado com o correr do tempo, apesar de toda a civilização de que, pelo menos até a conflagração de 1914, se vangloriava o mundo contemporâneo. As garantias constitucionais só existem para tempo de paz: em tempo de guerra desaparecem como por encanto, ou são seqüestradas, sem que ninguém se queixe. É em suma o mesmo que recomendava o ministro Tomás Antônio ao conde de Vila Flor quando este foi mandado tomar conta do governo da Bahia, o que se não realizou pela retirada forçada do conde da Palma: "Havendo tumultos, ou motins, tenha V. E. o cuidado de que se façam aos réus processos judiciais, para não vir a embaraçar-se o ânimo dos juizes, na imposição das penas. Mas, quando for necessário preveni-los ou no flagrante, proceda militarmente na forma do regimento de governadores, pois a conservação do Estado é de Superior consideração" (85).

Esperava-se a decisão de Lisboa para regularizar a situação criada pela convenção do Beberibe, a qual estatuíra que os deputados da junta de Goiânia tomariam parte igual no conselho à da administração existente e o capitão-general permaneceria à testa do departamento militar, separação de poderes que veio a ser logo confirmada pela legislação adotada em Lisboa com relação ao reino americano, conquanto não mais em proveito de Luís do Rego. Este, ao mesmo tempo que o aviso das resoluções tomadas, recebia ordem de se não intrometer na eleição, à qual concorreram 134 eleitores de paróquia, e de entregar o governo à nova junta, retirando-se para Lisboa, o que fez na barca francesa Charles Adèle, no próprio dia da eleição. A junta eleita, que era toda composta de gente da terra menos um, tomou posse a 27, assumiu o governo no Recife a 28 e prestou juramento a 31 de outubro.

Com Luís do Rego deviam recolher-se as forças européias, o que as Cortes contramandaram, enviando até novos contingentes, quando perceberam o passo errado que assim iam dar. O capitão-general já estava porém longe e o batalhão dos Algarves já se achava restituído à pátria (janeiro de 1822), quando chegaram as novas ordens, que a junta deixou de cumprir, proibindo o desembarque das tropas de reforço, se bem que fornecendo abastecimento aos transportes, que foram expedidos para o Rio de Janeiro (fevereiro de 1822). Só o comandante militar, substituto efetivo de Luís do Rego, general José Correia de Melo, desceu para ocupar seu posto.

Das tropas da Bahia depressa se tinham visto livres os pernambucanos. Essas tropas tinham aliás manifestado tendência para se juntarem aos patriotas, mas seu comportamento foi péssimo. Diz Mrs. Graham que suas bebedeiras e arruaças, nos dez dias em que estiveram em Pernambuco, indignaram a população (quite disgusted the people).

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As juntas foram o alicerce do Brasil constitucional. Entre a Bahia e o Pará elas se foram sucedendo num espírito de passividade nacional, diferentes para com a política unionista das Cortes, refratárias à subordinação a um centro executivo brasileiro.

Sobre Sergipe, não querendo o governador jurar a Constituição, estendeu a junta portuguesa da Bahia sua autoridade, que só foi dissolvida por levantamento popular quando se aclamou a independência, em outubro de 1822. Alagoas teve porém junta própria desde 11 de junho de 1821, com o governador por presidente, sendo eleita a nova a 31 de janeiro de 1822, a qual continuou fiel às Cortes de Lisboa, desobedecendo aos decretos da regência do Rio de Janeiro, até que a 23 de julho de 1822 foi reconhecida a autoridade de Dom Pedro, assumindo a presidência da junta local o juiz de fora de Penedo e ouvidor interino da comarca, Caetano Maria Lopes Gama, que era pernambucano e morreu visconde de Maranguape. Na Paraíba o governador, coronel Fonseca Rosado, fez logo a 17 de abril ler o aviso do juramento da Constituição no Rio a 26 de fevereiro, e a pedido da oficialidade do batalhão de guarnição ele próprio a jurou a 29. A junta governativa só foi eleita a 3 de fevereiro de 1822, de acordo com o decreto das Cortes de 29 de setembro e presidida pelo tenente-coronel João de Araújo da Cruz, mediador em Beberibe. Do Rio Grande do Norte era ainda governador José Inácio Borges, que fora deposto pela revolução de 1817 e reposto pela contra-revolução e que agora fez proclamar a Constituição a 24 de maio, sendo a 12 de dezembro eleita a junta provisória, que continuou até a independência.

O capitão-general do Maranhão, marechal de campo Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca, pretendeu imitar Luís do Rego, fazendo jurar a Constituição a 5 de abril e permanecendo ele, por vontade da tropa, à testa do governo, com a assistência de um conselho consultivo presidido pelo bispo. Numa nova reunião, "fruto do suborno e do terror" na expressão de Porto Seguro, porque se efetuou após a prisão dos elementos oposicionistas, alcançou o governador novo triunfo, pelo que, confirmado no poder, prosseguiu discrecionariamente como dantes até que, pela disposição das Cortes, houve que eleger a junta governativa, o que, teve lugar a 16 de fevereiro de 1822, embarcando o governador a 28.

Esta junta, presidida pelo bispo, frei Joaquim de Nossa Senhora Nazareth, era composta de pessoal partidário das Cortes. As ordens da regência viam-se desacatadas e a atitude da província assemelhava-se à da Bahia e à de Pernambuco depois da retirada de Luís do Rego. O Norte formara na sua dispersão um bloco anti-unionista, acompanhando-o a mais importante das capitanias centrais, que era ao mesmo tempo a mais povoada das províncias do Brasil - Minas Gerais, e servindo-lhe de contraste a coesão ultramarina, com vistas a nacional, que no Sul se entrara a desenhar pela inteligência entre o Rio de Janeiro e São Paulo.

O Norte era então das duas seções, e englobando num só os dois Estados do Brasil e Pará-Maranhão, a que primava pela valia agrícola e comercial. Da Bahia "rica e ameníssima" dizia a carta de congratulação das Cortes a el-rei pelo juramento de 26 de fevereiro, que era "a chave desse vastíssimo continente". No seu porto entraram, em 1816, 519 embarcações e saíram 431. As suas importações subiram no mesmo ano a mais de 9.000 contos, entrando os escravos pelo valor de 2.500 contos e seguindo-se-lhes os vinhos e as chitas com quase 900 e 800 contos respectivamente. Sua exportação excedia 6.000 contos, o dobro de três anos antes. O Maranhão, que no fim do século XVIII não contava mais do que 75.000 habitantes e contaria nessa ocasião 100.000, era uma capitania economicamente organizada, tendo, em 1820, 18 fábricas de descascar e beneficiar o arroz, 4 prensas de algodão, 6 olarias, 20 fornos de cal, engenhos de açúcar, destilações e teares de algodão. O Pará exportava igualmente algodão e arroz, posto que em menos consideráveis quantidades, mas a variedade dos seus artigos de exportação era superior, abrangendo cacau, café, salsaparrilha, canela, peles, óleo de copaíba, açafrão, anil, goma e madeiras de construção.

Foi a mesma junta maranhense a que tentou resistir à proclamação da independência quando o elemento favorável à separação tentou declarar a adesão da província, a 19 de outubro de 1822. Invocou ela "que nenhumas relações tinham os maranhenses com o Sul do Brasil, ao passo que os seus parentes estavam em Portugal, que era o verdadeiro mercado dos seus produtos, e para onde as próprias comunicações eram mais fáceis que para o Rio de Janeiro, nem que a natureza, com as suas monções e ventos, tivesse querido mostrar-lhes a união que mais lhes interessava" (86).

Ensaiou o Maranhão formar uma liga portuguesa com o Piauí e o Pará. A primeira junta paraense durou até ser instalada a outra a 11 de março de 1822, chegando de Pernambuco em abril o comandante das armas, brigadeiro José Maria de Moura. Apesar de igualmente infensos à regência do príncipe, general e junta não se entendiam bem: só concordavam plenamente em subtrair o Pará à influência do governo do Rio de Janeiro, cujas instruções não eram cumpridas, não sendo, no entanto, unânime o sentimento de lealdade para com Portugal, a saber que o da independência ia penetrando na região amazônica, embora mais vagarosamente do que nos centros fluminense e paulista.

As condições em que se operou a transformação política em várias províncias do Brasil, sobretudo do Norte, foram a causa da agitação que ali perdurou passando de aguda a crônica, e que se espraiou sob a forma de rixas pessoais, de tropelias e violências, de assassinatos bárbaros em que se compraziam famílias inteiras, legando os ascendentes aos descendentes suas vinganças e montando uma máquina de represálias inexoráveis. Era o regime puro e simples da vendetta e foram precisos largos anos para se restabelecer a normalidade moral, ao mesmo tempo que a constitucional.

Não houve capitania que mais sofresse desse estado de coisas do que o Ceará, que em 1821-1822 passou pelas mudanças comuns a todas: a deposição do governador, que era um oficial de marinha - no dizer de João Brigido (87), avaro, devoto e poltrão -; a organização de uma junta constitucional sob a presidência do comandante da força de linha Francisco Xavier Torres e a sua substituição por outra junta, nomeada pelos eleitores dos deputados às Cortes de Lisboa. A independência foi proclamada em Icó a 16 de outubro de 1822, ao se reunirem ali os eleitores do sul da província para a escolha dos constituintes brasileiros. O governo temporário por eles organizado, pela aliança de Tristão de Alencar Araripe, um dos implicados na revolução de 1817, com o chefe realista Filgueiras, tomou conta do Ceará e decidiu socorrer o Piauí contra a truculência de José da Cunha Fidié, que não permitia à província juntar-se à causa da independência e rebatia pelas armas as forças dos patriotas. A expedição cearense compunha-se de vaqueiros mal-armados, mal-abastecidos e mal comandados, mais se assemelhando a um movimento de tribo nômada, mas tinha por si o número - 6.000 homens, e o cerco posto a Caxias, onde se acoutara Fidié, redundou na capitulação deste (1.º de agosto de 1823).

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Governava São Paulo em 1821 o capitão-general João Carlos Augusto de Oyenhausen, de ascendência austríaca e futuro marquês de Aracati. Nas capitanias de Mato Grosso e Ceará, que anteriormente administrara, deixara excelente reputação, sendo que trouxera do reino europeu para o Ceará a comissão especial de prender um potentado que assassinara um juiz ordinário, diligência que cumpriu "com audácia e tática" no dizer de João Brígido, sempre preenchendo suas funções a contento de todos.

A 23 de março de 1821 mandou ele publicar por bando na capital paulista o advento do regime constitucional e esperou que se manifestassem os habitantes, o que veio a suceder exatamente três meses depois, a 23 de junho. O estado de desassossego era idêntico ao das outras capitanias e o capitão-general sentia-se desmoralizado, na impossibilidade de agir como competia a uma autoridade da sua categoria, assaltado até por uma sublevação militar motivada pela demora na aplicação do aumento do soldo. O civismo de um capitão, por nome José Joaquim dos Santos, poupou à cidade as indignidades e os desatinos que tinham em mente os desordeiros e restabeleceu o sossego, generalizando-se a convicção de que somente a formação de um governo provisório local acalmaria o mal-estar e restituiria o prestígio ao poder público.

Foi mesmo para reprimir a anarquia latente que alguns patriotas levaram a cabo esse intento, fortalecidos na sua resolução pela convocação dos corpos de milícias. Os caçadores de linha prontamente apoiaram o movimento, anunciado pelo sino da câmara tocando a rebate. Congregados povo e tropa e convidados ouvidor e senado da câmara para assistirem à eleição, foi o Dr. José Bonifácio de Andrada e Silva instado para presidir o ato, o que é a melhor prova do respeito que inspirava sua pessoa.

José Bonifácio era com efeito um tipo de homem que não podia sugerir desconfiança a parcialidade alguma. Tinha 58 anos: brasileiro de nascimento, estudara em Coimbra; formara-se em leis e em filosofia; dedicara-se ao estudo da mineralogia e da metalurgia; viajara e praticara durante dez anos, de 1790 a 1800, em toda a Europa, às custas do governo; fora no seu regresso nomeado desembargador, intendente geral das minas e professor da universidade; desempenhara comissões oficiais de caráter científico e propósito prático, tais como o encanamento do rio Mondego e a arborização das suas margens; defendera o reino europeu à frente do batalhão acadêmico por ocasião das invasões francesas e, como sócio e secretário da Academia Real das Ciências, salientara-se pronunciando elogios históricos, entre eles o da rainha D. Maria I, repassado do sentimento monárquico que nele jamais se dissipou, mesmo quando associado a um sentimento democrático mais intenso, produzido pelo ardor patriótico ou pelos ressentimentos pessoais a que nenhum ser humano pode ser alheio.

Não podia por tudo isso deixar de querer a Portugal, pátria da sua inteligência, berço das suas amizades espirituais e ninho das suas saudades. Voltando porém para o Brasil em 1819, assistira ao ocaso do reinado americano de Dom João VI e sentira palpitar em redor de si as aspirações, posto que confusas e desunidas, da jovem nacionalidade que almejava bater suas asas ao sol da liberdade e adejar sem peias no espaço imenso. Esposando tais aspirações, ele não as minguara com preconceitos bairristas, antes as engrandecera com um golpe de vista que abarcava todo o país, sem todavia sacrificar a ordem particular dos interesses locais.

As viagens e o intercurso delas derivado tinham alargado os horizontes do sábio mineralogista e químico, que aprendera a harmonizar cosmopolitismo com patriotismo e distribuir os encargos e as responsabilidades de caráter público pelas esferas federal, nacional e provincial, como dão fé essas justamente afamadas instruções da junta de São Paulo aos deputados paulistas às Cortes de Lisboa, para as quais José Bonifácio não só pôs em contribuição sua própria experiência, a familiaridade do seu espírito enciclopédico com os negócios políticos, como as lembranças e sugestões oficialmente solicitadas das câmaras municipais da província. As instruções por ele redigidas tornaram-se nas suas mãos alguma coisa que recorda os cahiers de charges com que os representantes das províncias francesas se apresentaram em 1789 à assembléia dos Três Estados e que tanto serviram a Taine para a sua descrição da França do antigo regime no momento da revolução.

Por ocasião da formação da junta de São Paulo deu José Bonifácio, apesar da sua natureza trêfega e impetuosa, prova de espírito público moderado e conciliador. Foi ele quem propôs para presidente o mesmo capitão-general Oyenhausen, após uma fala de que resultava seu ardente desejo de concórdia. Aclamado ele próprio vice-presidente, propôs à aprovação popular os vogais representantes das várias classes - a eclesiástica, a militar, a comercial, a literária e pedagógica e a agrícola, com mais três secretários, do Interior e Fazenda, da Guerra e da Marinha (88).

Começava desde aí a revelar-se o espírito de organização que tanto distingue São Paulo na atual federação republicana e que já no regime monárquico o caracterizara, quando ainda lhe não cabia o primado da valia econômica. A solução do problema dos destinos brasileiros dar-se-ia quando se encontrassem e congregassem a decisão de Dom Pedro e a reflexão de José Bonifácio, a vontade e o pensamento.

A junta de São Paulo foi a primeira a reconhecer a autoridade do príncipe regente. "Os habitantes - escrevia Dom Pedro a Dom João VI (89) - organizaram uma junta provisória que depende de mim, exceto no que diz respeito a dinheiros públicos que se negam a fornecer para as necessidades do Rio de Janeiro (90). Reclamaram para a junta os mesmos poderes de que se achava investido o governador a quem coube a presidência. A vice-presidência foi confiada a José Bonifácio de Andrada a quem se deve a tranqüilidade atual da província de São Paulo. Enviaram dois deputados para me cumprimentar em nome da junta e chamar a minha atenção sobre a parcela de autoridade que lhe foi confiada. Recebi em audiência pública os deputados no palácio da cidade para mostrar que eu não ambiciono nada mais do que o bem geral, e que me uni a eles de moto próprio com sentimentos puramente constitucionais".

CAPÍTULO VI

A REPRESENTAÇÃO BRASILEIRA
NA ASSEMBLÉIA DE LISBOA E A TENTATIVA
DE RECOLONIZAÇÃO

A qualidade da representação brasileira nas Cortes de Lisboa prova que o Brasil se achava maduro para a vida independente, sendo de notar que a procura de lugares não foi grande, antes eram poucos os que se prestavam a aspirar a uma honraria que não era um cargo e que trazia no bojo incômodos certos e glórias problemáticas. Em todo caso completou-se o quadro com brasileiros residentes em Portugal, como o bispo de Coimbra, D. Francisco de Lemos, a quem o marquês de Pombal conferira a reitoria da Universidade quando a reformou e cuja idade avançada - era quase nonagenário - o impediu agora de aceitar o encargo eletivo; o célebre economista Azeredo Coutinho, bispo de Elvas e inquisidor-mor, que honrara a mitra de Pernambuco, mas faleceu logo depois de empossado como deputado fluminense, e seu suplente Vilela Barbosa (Paranaguá), poeta, lente de matemáticas na Academia de Marinha, espírito culto e colega de José Bonifácio na Academia Real das Ciências.

É também verdade que essa representação não se compôs exclusivamente de gente educada na antiga colônia. Os estudos superiores faziam-se em Coimbra e universitários eram vários dos deputados, como Araújo Lima (futuro marquês de Olinda), que, depois de formados, tinham regressado para o país natal a exercerem sua atividade.

A base para representação fora fixada em 30.000 cidadãos, dando o excedente de 1S.000 direito a um deputado mais. O cálculo pelo qual se orçou a população brasileira foi o do ano da chegada da corte ao Rio de Janeiro, computando a população livre em 2.323.386 habitantes, o que dava ao Brasil uns 70 deputados (uns 50 chegaram a exercer o mandato) para uns 130 de Portugal. O sistema eleitoral era complicado, abrangendo quatro graus. Os moradores de cada freguesia elegiam compromissários que por sua vez designavam um eleitor paroquial, na razão de 11 votantes e 200 fogos. Os eleitores paroquiais reunidos na cabeça da comarca escolhiam em escrutínio secreto os últimos eleitores, que na proporção de 3 para 1 (15 eleitores elegiam 5 representantes) e igualmente por sufrágio secreto procediam na capital da província à seleção final dos deputados.

Os deputados por Pernambuco - os da cidade e da mata, faltando os do sertão - foram os primeiros a chegar, não só pela maior proximidade geográfica como pelo empenho de Luís do Rego em dar arras do seu constitucionalismo, prevendo os ataques que ele sabia seguramente lhe seriam feitos em Cortes por esses homens que a província escolhera, eivados do morbo revolucionário. Faziam parte da deputação figuras de 1817 como o padre Muniz Tavares e Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira, secretário do Cabugá na sua infeliz missão aos Estados Unidos.

Mostrando-se pressuroso em obedecer às Cortes, Luís do Rego tratava de conservar nas mãos a alta direção efetiva do governo local, de acordo aliás com parte da opinião, mesmo da terra, que nele não via propriamente um tirano, mas um delegado da autoridade real. De fato, uma vez abafada a revolução e justiçados os cabeças, Luís do Rego manifestara-se abertamente em favor de medidas de demência, de fomento econômico e de proteção social (91).

Os deputados pernambucanos tomaram assento a 29 de agosto de 1821. A figura proeminente entre eles veio a ser Muniz Tavares, cuja participação nos debates foi contínua e vibrante. Araújo Lima, já nomeado ouvidor em Minas, mostrar-se-ia o que sempre havia de ser: um cultor da legalidade, preso pelos melindres jurídicos, respeitador por excelência da vontade popular, manifestada ou manipulada pelo voto eleitoral, mas sabendo combinar tal respeito com a diferença devida à coroa e ao papel constitucional que a esta competia. Assim foi sempre o marquês de Olinda nas Cortes de Lisboa, na constituinte do Rio de Janeiro, nos conselhos do primeiro imperador, nas lutas da regência, regente ele próprio, várias vezes presidente do conselho do segundo imperador.

Muniz Tavares, pelo contrário, era da família dos tribunos, estalando de paixão e sequioso de vingança debaixo da sua compostura eclesiástica, da qual se não despojara, apenas da unção generosa dos sacerdotes como João Ribeiro, Miguelinho e Tenório, corifeus da revolução tão cruelmente esmagada. Subsistia contudo nele o zelo pela instrução pública, revelado na proposta para fundação de uma universidade, a qual desdenhosamente comentou um deputado português, dizendo que para o Brasil bastavam algumas escolas de primeiras letras, e para a criação de tais escolas, na razão de uma por paróquia, nas quais fossem ministradas noções de direito constitucional, competindo ao clero não só o ensino do catecismo religioso, como o do catecismo cívico.

Entre os deputados fluminenses avantajou-se sem favor o futuro marquês de Paranaguá, o qual ainda hoje é um enigma, não pelo que diz respeito ao talento, mas pelo que diz respeito ao caráter, tanto o exaltando uns quanto outros o denigrem. Admiradores dos Andradas consideram-no um hipócrita refalsado e um intrigante desonesto, que se aproveitou do patriotismo brasileiro sem possuir o sentimento da nacionalidade. Antônio de Meneses Vasconcelos de Drummond acusa-o mesmo de haver-se oposto em Cortes à independência do Brasil e tratado os partidários da separação de "degenerados"; mas seus discursos não autorizam tal exprobração. Muito pelo contrário, são dos mais inteligentes e dos mais persuasivos em favor do reino americano (92).

Uma deputação que muito se recomendava era a da Bahia, incluindo Domingos Borges de Barros (futuro visconde da Pedra Branca), espírito delicado a quem já preocupavam a sorte dos negros e a incapacidade política das mulheres e que, lírico mavioso, foi também diplomata suave; Cipriano Barata, médico e, apesar de sexagenário, publicista inflamado, que Cairu apelida de "façanhoso perturbador público", descrevendo-o por ocasião do pronunciamento baiano de 10 de fevereiro "burlescamente armado à sertaneja com espadão de tiracolo, e cinto de pistolas" e de quem diz, não se podendo conformar com sua intransigência republicana, que "deixando o escalpelo da cirurgia pelo cutelo da democracia, já no fim do século passado tinha sido implicado na obscura facção de alguns idiotas que tentarão estabelecer República na Bahia (93); Lino Coutinho, insinuante, culto, eloqüente, espirituoso, magnético, tratando de todos os assuntos com proficiência, e o diácono Francisco Agostinho Gomes; de quem Gomes de Carvalho escreve que era "um santo e um sábio", rígido consigo mesmo, tolerante para com os outros, escrupuloso na moral, incansável no estudo, ardente na caridade.

A deputação de São Paulo era porém a que se compunha de individualidades mais conspícuas, algumas delas tendo depois desempenhado no império um papel saliente, como Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, Diogo A. Feijó, Fernandes Pinheiro (visconde de São Leopoldo) e Nicolau de Campos Vergueiro. Paula Sousa e seu substituto Silva Bueno e Costa Aguiar de Andrada completavam uma representação que não era certamente banal nem medíocre.

Antônio Carlos era dos três irmãos o que tinha o talento mais brilhante, porque tinha a palavra fácil, imaginosa e arrebatada. Sendo por natureza enérgico como José Bonifácio ou Martim Francisco, derivava o seu vigor moral um acréscimo de reputação da parte tomada pelo antigo ouvidor de Olinda na revolução pernambucana de 1817 e conseqüentes padecimentos nos cárceres imundos da Bahia. Já quase que qüinquagenário, o espírito bem sazonado, formado em Coimbra por duas faculdades - leis e filosofia -, tinha sofrido na vida bastantes vicissitudes e aprimorado sua educação intelectual na "universidade" da prisão por meio de leituras e da convivência com muitos engenhos sólidos, ao mesmo tempo que apurara a feição naturalmente combativa do seu temperamento.

Mercê de tudo isso, sentiu-se Antônio Carlos logo à vontade no meio parlamentar e chamou a si a direção dos "brasileiros". Foi o seu líder natural, líder em todo caso mais para assalto, para derribar, do que para reconstruir porque, apesar da facilidade da sua argumentação e da fecundidade dos seus alvitres, o dom da convicção era nele menor do que o dom da intimidação.

O padre Feijó já então era o ânimo firme e resoluto que mais tarde, como ministro da Justiça e regente do império, salvou a ordem pública ameaçada como nunca de subversão no Brasil. Fernandes Pinheiro, o autor dos Anais da província de São Pedro do Sul, não primava talvez nas lutas políticas pela decisão e força de vontade, mas possuía farta ilustração e amenidade (94). Campos Vergueiro, português que fora para São Paulo advogar e se tornara agricultor pelo casamento que o fez proprietário rural, aparece depois como um precursor dos poderosos interesses agrícolas e industriais da sua pátria adotiva, dedicando parte da sua atividade aos depósitos de ferro e fábrica de Ipanema e a colonização européia.

A deputação de São Paulo foi a única a levar instruções e instruções eram elas compreensivas e notáveis, cuja autoria cabe sem dúvida a José Bonifácio, porque nas mesmas, se encontram estampadas idéias que a muito poucos então preocupavam, como as da abolição da instituição servil e catequese dos indígenas (96).

Dividiam-se essas instruções, que trazem a data de 9 de outubro de 1821, em três capítulos, relativos aos negócios da União, a que o documento chama o Império lusitano, do reino do Brasil e da província de São Paulo. No primeiro capítulo recomendavam-se a integridade e indivisibilidade do Reino Unido e a igualdade dos direitos políticos e civis dos seus respectivos cidadãos. Deixava-se em aberto a designação do lugar que serviria de sede à Monarquia, se o Brasil, se alternativamente um e outro continente, regulando-se pelos reinados ou por períodos dentro do mesmo reinado. Haveria igualmente que fixar as leis orgânicas e determinar a distribuição proporcional das despesas da União pelos dois Estados associados, cujas obrigações seriam estipuladas com relação ao Império Luso-Brasileiro, fundando-se um tesouro comum, à parte dos tesouros dos dois reinos, para gastos de guerra, lista civil da família real e representação exterior. O número dos deputados dos dois reinos deveria ser sempre igual, independente da população, renovando-se a câmara à sorte pela metade cada dois anos. Além dos três poderes - legislativo, executivo e judiciário - haveria um quarto, que não era o moderador, e sim constituído por um corpo de censores que, eleitos do mesmo modo que os deputados e fazendo vezes de poder verificador destes representantes, agiriam como fiscais com relação à invasão de um dos poderes nas atribuições de outro, levando qualquer ato inconstitucional perante um "grão-jurado nacional", por eles próprios nomeado e formado em partes iguais de deputados, membros do tribunal supremo de justiça e conselheiros de Estado, estes escolhidos pelas juntas eleitorais das províncias, à razão de um pelo menos por província, para certo tempo. A esses censores pertenceria igualmente pronunciarem a suspensão dos ministros do executivo e dos magistrados, obrando a requerimento das Cortes.

Para o reino do Brasil deveria organizar-se um governo geral executivo, ao qual ficariam sujeitos os governos provinciais, determinando-se as respectivas esferas de ação, e ficaria assente que, nos tempos em que o Brasil não fosse sede da Monarquia e das Cortes, seria aquele governo presidido pelo herdeiro da coroa, entrando nas suas atribuições fixar os limites com a América Espanhola e colônia de Caiena, e demarcar as províncias entre si. Os códigos civil e criminal que viessem a ser redigidos pelas Cortes da nação deveriam ter em consideração as circunstâncias especiais brasileiras "de clima e de povoação, havendo classes de cores diversas e pessoas, umas livres e outras escravas" (96).

A questão do ensino não podia deixar de chamar a atenção do sábio redator das instruções. Considerava ele de absoluta necessidade uma universidade pelo menos, a ser criada desde logo em São Paulo pelas condições topográficas e climatéricas e barateza da vida, com quatro faculdades: a de filosofia, abrangendo as ciências naturais, as matemáticas, a filosofia especulativa e as boas artes; a de medicina; a de jurisprudência e a de economia, fazenda e governo. Não esquecia ele contudo as bases desse ensino universitário, a saber, o ensino primário e secundário, o primeiro ministrado em escolas de primeiras letras, não havendo freguesia que a não tivesse conforme os modelos alemão e inglês, e o segundo dispensado em ginásios, dos quais haveria um em cada província, "em que se ensinem as ciências úteis para que nunca faltem entre as classes mais abastadas homens, que não só sirvam os empregos, mas igualmente sejam capazes de espalhar pelo povo os conhecimentos que são indispensáveis para o aumento, riqueza e prosperidade da nação" (97). Convinha que a capital de cada província tivesse as cadeiras de medicina teórica e prática, cirurgia e arte obstetrícia, arte veterinária, matemática, física e química, botânica e horticultura experimental, zoologia e mineralogia.

As instruções referiam-se ainda à ereção de uma cidade central para capital, na latitude mais ou menos de 15º, como o melhor meio de povoamento do interior e de circulação do comércio interno do "vasto Império do Brasil"; ao estabelecimento de uma direção geral de economia pública, uma vez ligado o novo centro por meio de estradas às várias províncias e seus portos de mar; a um código de minas; a uma nova legislação sobre sesmarias, acabando-se em proveito da agricultura com os latifúndios baldios e dividindo-se estas terras devolutas para serem vendidas aos que pudessem comprar os lotes, com o produto de tais vendas favorecendo-se a colonização de europeus pobres e nacionais forros, sob a condição geral aos novos donos e sesmeiros de reservarem a sexta parte do terreno para matas e arvoredos e de não derrubarem e queimarem as florestas sem fazerem novas plantações.

As necessidades privativas de São Paulo seriam reguladas de acordo com as informações e petições das câmaras municipais.

* * *

Uma das primeiras providências de Dom João VI, ao ter notícia da revolução ocorrida no Porto e em Lisboa, fora desligar do exército de Portugal, de certo para evitar o contágio à distância, a chamada divisão dos voluntários reais ou corpo de tropas portuguesas da corte, enquanto durasse seu serviço no ultra-mar (98). O orgulho lusitano agastou-se porém com essa medida, que o governo do Rio de Janeiro foi prontamente obrigado a revogar99.

Restabelecida a continuidade militar e ganho em Cortes (a constituição dos governos provinciais foi promulgada a 1.º de outubro de 1821) o ponto importante do comando português- português pelo espírito quando o não fosse pelo nascimento - isto é, "despojadas as juntas da força militar" e conseguintemente da possibilidade de resistência sobretudo conjunta, passou a assembléia constituinte ao terreno judiciário, afim de privar o reino do Brasil dos tribunais superiores com que o dotara o governo de Dom João VI e que lhe davam todos os meios legais de prover à sua própria justiça. Esquecia Portugal - conforme relembra Armitage - que no manifesto dirigido às nações da Europa para justificar a revolução que reclamava o regresso de el-rei, uma das queixas formuladas era que "a justiça estava sendo administrada com muita lentidão e despesa, na distância de 6.000 milhas". Agora se pretendia, com sutil ironia por certo, que a remoção dos tribunais superiores para Lisboa multiplicaria as relações e estreitaria os vínculos da união entre os dois países.

Gomes de Carvalho nota que foi a própria comissão de constituição composta dos regeneradores de primeira grandeza - Fernandes Tomás, Borges Carneiro e Moura, o maior orador da constituinte - a que propôs o fechamento dessas cortes de justiça e das juntas superiores de administração às quais fizera jus a elevação da colônia a reino. O argumento velhaco de Fernandes Tomás para abolir esses títulos e recursos brasileiros era que Lisboa não ficava afinal de contas mais distante de muitas províncias do Brasil do que o Rio de Janeiro, sendo talvez mais fáceis as comunicações transatlânticas do que as que tinham lugar ao longo da costa. A oposição do deputado fluminense Martins Basto fez porém adiar o debate para quando estivesse presente toda a representação brasileira (19 de setembro de 1821)

Imediatamente se tratou do complemento necessário da lei de constituição provincial, que era a supressão da regência do príncipe real. Novamente e mais do que nunca dependentes as províncias brasileiras da sua antiga metrópole, para que um representante da autoridade real, ele próprio pessoa real, o sucessor mesmo da Coroa? Era demasiada honra para uma colônia que tinha tido seus vice-reis, mas nunca um herdeiro de rei... a não ser quando tinha tido o rei, forçado porém a voltar.

Os deputados brasileiros presentes, que tinham aceitado a reorganização administrativa do Brasil por meio das juntas governativas eleitas, não ousaram protestar. A proposta foi unanimemente aprovada e a verdade é que, como pondera Gomes de Carvalho, de harmonia com o espírito dominante no Brasil, onde as juntas revolucionárias tinham tido o maior cuidado, exceção feita de uma, de afirmarem sua independência com relação ao centro, pondo tanto afã em se proclamarem constitucionais como em desdenharem da autoridade da regência. A autonomia de que chegara a gozar o Brasil sob um soberano absoluto, sumia-se nessa efervescência de ciúmes que umas províncias nutriam de outras, receando que qualquer delas pudesse vir a ser superior às demais, sobretudo a que fora e continuava a servir de corte.

O Brasil, nem politicamente, nem socialmente era ainda homogêneo, como o tornou o império, fazendo valer a uniformidade da colonização que lhe emprestava uma semelhança de aspectos. Circunstâncias variadas de clima, de história e outras tinham distingido sobre o caráter local. Os próprios viajantes estrangeiros disto se apercebiam. Auguste de Saint-Hilaire menciona que os baianos eram geralmente reputados os mais inteligentes habitantes do Brasil, os pernambucanos os mais ardentes e independentes de caráter, os mineiros os mais pacíficos e industriosos, os paulistas os mais inflexíveis e perseverantes.

Não podia por um lado, para o ponto de vista português, dar-se melhor delegado do executivo nacional português do que o príncipe herdeiro, porque ninguém como ele podia tomar interesse pela integridade dos estados da monarquia sobre que deveria um dia estender-se o seu cetro: mas por outro lado, prendê-lo demasiado ao Brasil envolvia o risco de ver renovar-se no futuro o caso de Dom João VI, a saber, pelo desaparecimento deste, a escolha do Rio de Janeiro como sede permanente da realeza. E o que o Portugal constitucional mais que tudo temia e abominava era a idéia dessa subordinação. Convém não esquecer que a revolução de 1820 foi essencialmente a explosão do orgulho machucado. Os regeneradores vingavam agora o seu despeito impondo sorrateiramente ao Brasil a prévia disciplina e ofendendo na sua vaidade o príncipe Dom Pedro, notando-lhe publicamente a falta, aliás exata, de educação e ditando-lhe como a um pupilo a maneira por que devia completá-la, visitando e estudando os países do ocidente europeu, escolas de constitucionalismo embora limitado.

O sestro das juntas propagara-se até as férias parlamentares, e as Cortes pensaram em derivar da constituição espanhola mais uma sugestão, em última análise proveniente da convenção francesa: apenas o comité de que se tratou em novembro de 1821 não era de salvação pública, nem mais poderoso do que a assembléia. Era uma junta por assim dizer fiscal no regime constitucional e saída do seio da representação nacional, a qual lhe cabia convocar em casos de necessidade. Consoante o projeto e como era de justiça, seria ela composta de três representantes do reino europeu, três do ultramar e um presidente tirado à sorte entre dois membros das duas representações.

Tão perfeita igualdade, se era excelente em teoria e todos a aplaudiam como tal, na prática levantava zelos e antagonismos, mascarando-se com princípios e fórmulas. Puro federalismo essa repartição - exclamavam alguns; nas nações homogêneas e coesas, não há dessas distinções. Ora o federalismo é ou deve de ser um sistema de equilíbrio, não de sobreposição. A divisão eqüitativa estava mesmo em flagrante desacordo com o sentimento dos constitucionais portugueses que, para os comandos de armas, não se lembraram de um só brasileiro, o que ainda se compreende e se pode justificar; mas nem sequer deles se lembraram para os cargos de conselheiros de Estado interinos, na lista de 24 apresentada a el-rei para sua seleção.

A proposta da junta permanente passou por 69 votos contra 26, com a divisão: sua rejeição tornaria franca a política de predomínio e não chegara ainda o momento das afrontas irremediáveis. Note-se que a expressão ultramarinos era capciosa, porque abrangia tanto os asiáticos e africanos quanto os americanos, que se queria de resto nivelar com aqueles outros. Por isso era possível, em face do texto senão do espírito da constituição, preencher todos os lugares do conselho de Estado e da deputação permanente com exclusão propriamente dos brasileiros.

Se o lema geral era ainda a concórdia, alguns todavia já afiavam o gume às espadas e escorvavam os mosquetes. Cipriano Barata, por exemplo, viera da Bahia com o propósito feito de se não deixar embair pelos portugueses. No dia mesmo em que tomou assento (17 de dezembro de 1821), propôs que, de acordo com o artigo 21.º das bases constitucionais, se suspendesse a discussão do projeto de constituição até à chegada de toda a deputação brasileira, sendo até submetidos à apreciação e sufrágio desta, quando completa, os artigos da lei orgânica anteriormente aprovados.

O alvitre era até certo ponto lógico porque não valeria a pena eleger representantes se a estes não fosse dado emitir seus juízos e votos sobre assunto de tamanha transcendência Por outro lado não parecia razoável que a nação esperasse indefinidamente a chegada de parte do pessoal da sua assembléia representativa para iniciar a discussão do instrumento constitucional, para formular e obter o qual se fizera uma revolução. É mesmo corrente em casos tais deliberarem as assembléias com o quorum de ocasião, sobretudo quando corresponde à maioria cuja vontade tem de prevalecer, não havendo distinção entre os membros da casa, que encarnam os interesses coletivos.

Fosse qual fosse a razão que predominou no ânimo dos deputados brasileiros, o preopinante viu-se só ou quase e, perante a promessa de Fernandes Tomás, de serem reconsiderados os artigos constitucionais que sofressem impugnação, acedeu em retirar o seu requerimento, contra o qual a manifestação fora praticamente unânime. Não soara de fato a hora do rompimento e, num lado como noutro, reinavam esperanças de harmonia, alimentadas senão pela afeição, pelo menos pela conveniência. Nem convinha à maioria portuguesa reabrir o debate irritante sobre a remessa de tropas para o Brasil: melhor era reabordar o assunto com maior calma.

O projeto relativo à extinção dos tribunais superiores voltou porém à discussão nesse mesmo mês de dezembro porque assim se conviera, dando-se-lhe outra redação e maior amplitude ao debate. Este não ofereceu contudo nem a animação nem a vibração que deveria ter, porque o sentimento nacional ainda se não condensara no reino ultramarino, o qual na realidade se compunha de províncias sem tradições comuns, embora com aspirações que se encaminhavam para ser comuns.

Acresce que os tribunais superiores tinham sido apanágio da corte que voltara aos seus lares e marcara portanto uma superioridade que desaparecera, a bem da igualdade democrática dessas comunidades transatlânticas. Lino Coutinho achava mais que justo esse nivelamento e exultava com ele. Subsistiam as relações provinciais, para o julgamento de toda matéria contenciosa, e os recursos supremos, que cabiam à Casa da Suplicação do Rio de Janeiro, passaram para a de Lisboa, por não acederem os representantes brasileiros ao alvitre proposto por Borges Carneiro, para funcionar a relação fluminense como tribunal para revistas finais, aproveitando-se a circunstância de ser essa corte constituída por desembargadores do Paço.

Fagundes Varela, representante da província do Rio, teve uma compreensão tão peca do assunto que se mostrou jubiloso com a extinção dos tribunais superiores, nela não enxergando uma diminuição do prestígio da sua terra, antes a vantagem de se libertarem os litigantes de um bando de sanguessugas (sic) que eram a gente do foro. Na verdade eram os magistrados um dos terrores e das pragas da sociedade brasileira, mas o pobre deputado, que viera precedido de grande reputação, pagou com a maior impopularidade além-mar sua curteza de espírito e perdeu para o resto das sessões qualquer veleidade oratória.

Borges Carneiro que, apesar de ser de aquém-mar, percebia mais claramente o espírito ultramarino, quis de novo atenuar o golpe, que se traduzia materialmente por graves incômodos às partes no acompanharem seus processos de última instância em Lisboa. Apresentou uma emenda ao artigo constitucional n.º 158, o qual mandava executar a revista final das causas do Brasil pelas relações com maior número de ministros, dizendo que se tratava expressamente das relações brasileiras. Assim ficou, mas os baianos, no seu particularismo ainda não desbastado, queriam que a cada tribunal de relação coubessem essas funções (janeiro de 1822), o que nem numa federação se concebe e pratica.

Fernandes Tomás argumentava em favor do monopólio judiciário do reino europeu invocando a indispensável unidade da magistratura. Os brasileiros eram entretanto mais radicais no seu liberalismo do que os portugueses, mesmo democratas. A deputação americana, com exceção de Araújo Lima, que foi sempre um espírito conservador, votou no decorrer da discussão da lei orgânica pela eleição dos juizes, temporários e não vitalícios, no intuito de subtrai-los ao influxo do executivo, e entendia que o estado de sítio, isto é, a suspensão das garantias constitucionais não deveria ser aprovado senão por dois terços de maioria e de acordo com uma interpretação rigorosa da causa que o provocava.

Ao reformarem profundamente a organização judiciária nacional pela introdução do júri, mesmo no cível, as Cortes estabeleceram a responsabilidade dos juizes "por erros de direito e especialmente por infrações das regras processuais", competindo às relações o respectivo processo e sendo lícito a qualquer cidadão iniciar contra um magistrado uma ação "por suborno, conluio e prevaricação". Para remediar os inconvenientes óbvios de permanecer o querelado no desempenho das suas funções até a pronúncia, podendo praticar outros atos até piores, o projeto de constituição dava ao soberano a quem subisse a queixa a faculdade de suspender o juiz, após informações tiradas in loco e mediante parecer do conselho de Estado. O alvitre podia satisfazer Portugal mas não o Brasil, pela distância e delonga, incômodos e despesas que essa circunstância trazia à parte interessada, concedendo entretanto ao acusado amplo tempo para eventuais tropelias.

Cipriano Barata foi quem levantou a impugnação e o debate sobre ela foi instrutivo e acalorado. Borges Carneiro propôs que as próprias relações brasileiras decidissem sobre a queixa e a suspensão. Outros, dos maiores, insurgiram-se contra a pretensão determinada por uma insanável questão de geografia e acharam que esses tribunais ultramarinos ficariam demasiado sobrecarregados, com todas as atribuições que já tinham e as que lhes queriam emprestar, ao passo que ao magistrado ficava o recurso de um só juízo, o que aliás não era para temer porquanto o julgador não resultava único, antes diversos dentro da mesma corporação, cabendo a cada qual função diferente. Vilela Barbosa lembrou as juntas governativas que eram o superior poder executivo local, mas argumentou-se com a necessidade de garantir a independência do poder judiciário, no intuito de contrastar qualquer excesso de autoridade daquelas juntas.

Surgiu nesta altura do debate a questão das prerrogativas da Coroa, as quais deviam ser intangíveis. Estava-se em janeiro de 1822. Oradores negaram ao rei a prerrogativa da suspensão dos juizes por não figurar a mesma entre as enumeradas na constituição, sim entre as que não pertenciam ao monarca, salvo casos especiais, pertencendo portanto à soberania nacional em vez de caber nas funções próprias do trono que lhe não fosse lícito delegar, sendo o rei impecável. Araújo Lima distinguiu muito lucidamente entre impecabilidade e irresponsabilidade, predicado este último proveniente da natureza do pacto constitucional. "Os poderes do Estado, criados no interesse dos povos, têm a jurisdição que lhes quer dar a sociedade. Assim numa nação o rei delegará certos privilégios e não o fará em outra, porque o não exige a utilidade social".

Se a prerrogativa do indulto compete ao monarca e a distância priva os brasileiros do melhor da sua eficácia e benefício, quando mesmo transferível seu exercício, ficava com isto registrada, no dizer de Vilela Barbosa, mais uma desigualdade entre os povos das duas seções da Monarquia. E tais desigualdades eram as que fomentavam a desunião - fez ver Antônio Carlos, recém-empossado, no seu maiden-speech ( (100).

A desunião entre Portugal e Brasil entrara a tornar-se evidente ao tocar-se qualquer assunto. Lino Coutinho comparou as concessões feitas ao reino americano com a comida em frascos que na fábula a cegonha oferece à raposa. Vilela Barbosa fez sentir quão estreitamente se procurava fazer toda a administração brasileira sujeita à portuguesa, no espírito da máxima de Maquiavel - dividir para governar. Entretanto na época colonial aos delegados supremos da autoridade real era dispensada a atribuição de suspender no interesse público os juizes, a qual agora se abolia - ponderou o padre Marcos Antônio de Sousa, erudito deputado baiano (101).

Passava-se isto na sessão de 13 de fevereiro de 1822 e já então os dois reinos se tinham tão visivelmente apartado um do outro, que Vergueiro podia com desassombro dizer que se devia cuidar das condições da união porque, nas suas palavras, "o Brasil está pronto a ligar-se a Portugal, mas não segundo a marcha que leva o Congresso". A oposição dos interesses respectivos ainda se manifestaria porém ao tratar-se da organização do tribunal supremo de Portugal, quando voltou à tona a questão da sua composição por membros do reino e do ultramar. A proposta de Borges de Barros (4 de março de 1822), que foi prontamente repelida, não pecava por falta de clareza: estipulava que o número dos juizes do supremo tribunal, do qual dependia o conhecimento das infrações do direito cometidas pelos desembargadores e ministros executivos, fosse metade de portugueses e metade de brasileiros.

A intransigência das Cortes acabaria fatalmente por estimular a resistência brasileira e ia entretanto emprestando aos poucos ao príncipe constitucional, a quem na sessão de 9 de maio de 1821 propusera o deputado português Alves do Rio fosse dirigida uma carta de congratulação pela parte que ele tomara na direção dos acontecimentos do Rio de Janeiro - "estou informado por cartas particulares do muito que este Senhor tem contribuído" - ares de vítima patriótica, enquanto lhe não inspirava ímpetos de arcanjo vingador.

O processo a seguir pelas Cortes traçava-o Mareschal com diplomacia (102): era captá-lo com lisonjas para que se fosse sem barulho. Fazia-se da mesma forma a independência, escrevia ele; mas fazia-se com anarquia, que era o que lhes podia ser de vantagem. Com um centro de convergência que era ao mesmo tempo uma fonte de autoridade, em vez de anarquia reinaria ordem no processo de separação.

CAPÍTULO VII

A EVOLUÇÃO NACIONALISTA DA REGÊNCIA

Após o 5 de junho o governo da regência ficou numa situação pior do que a anterior: arranhada, senão desprestigiada como escreve Porto Seguro, a dignidade do príncipe real; vaga, senão nula a autoridade da junta criada para colocá-lo na penumbra; entorpecida a ação dos ministros a quem a força militar, agora unificada no papel debaixo do título de exército constitucional, tinha concedido novo prazo de poder.

De fato a tropa portuguesa, "que não relevava ao regente o ter mandado deslocar do seminário de São Joaquim o intruso aquartelamento dos batalhões de Portugal" (103), mandando restitui-lo ao fim de beneficência para que fora destinado, que era a educação de órfãos pobres, continuava a ser o fator capital da ordem da capital fluminense. A unificação votada em Lisboa a 28 de julho de 1821, tinha por fim oculto, na opinião de Cairu, permitir destacar os contingentes militares brasileiros para outras terras em outros continentes e substitui-los por batalhões lusitanos.

Opor à tropa portuguesa a brasileira seria abrir a guerra civil. O desembargador Álvares Diniz, o novo ministro de Estado, confessava que esse seria o único corretivo possível do desequilíbrio político e social em que mergulhara o Rio de Janeiro, não lhe cabendo, no entanto, na sua qualidade de português, sugerir tal alvitre (104). A 16 de junho correu o boato de que as forças dos dois estados, que seriam no dia imediato duas nacionalidades, estavam prestes a medir-se. Verificou-se porém não ter fundamento o rumor: Dom Pedro chamou contudo os oficiais à fala e recomendou-lhes concórdia, que é um conselho que geralmente se dá em circunstâncias semelhantes e geralmente também de nada serve.

Desse apelo resultou ficar o príncipe moralmente manietado pela oficialidade portuguesa, empenhada em agradá-lo. Já Dom Pedro pusera de lado seus primeiros arroubos de governante: almejara administrar com acerto e tinham-no acusado de querer legislar, quando a função legislativa pertencia às Cortes. Ele apenas pretendera, como escrevia ao pai, antecipar os benefícios da Constituição em proveito do povo e com efeito é opinião de Cairu que aqueles supostos atos legislativos não passavam de "meros regulamentos administrativos e provisórios".

Com suas crises de tenacidade, era Dom Pedro uma natureza volúvel. Não era difícil seduzi-lo, sobretudo em plena mocidade, aos 23 anos, quando a doença ainda não turvara o seu temperamento folgazão com acessos de hipocondria e uma precoce decomposição física, que o derrubou antes de atingir a maturidade. Datam daquela época as denominadas orgias em companhia de oficiais portugueses, muitos deles de casas nobres, e que não seriam mais do que patuscadas com muitos brindes e alguns excessos gastronômicos.

Data também dessa lua de mel política e em ordem mais elevada o suntuoso baile oferecido pela guarnição ao regente e à princesa Leopoldina no primeiro aniversário da revolução constitucional (24 de agosto de 1821). Pelas descrições que ficaram nunca houve no Rio de Janeiro função social mais pomposa do que essa, em que se despenderam 53 contos fortes. O local escolhido foi o teatro de São João e faziam as honras o general Jorge de Avilez e a condessa de Belmonte, servindo-se a ceia no palco em mesas de 100 talheres, sucessivamente postas com o maior gosto e esplendor no dizer das relações dos tempos.

O orgulho português pairava alto com as fáceis vitórias conquistadas em demonstrações políticas que se cifravam praticamente em passeatas militares. Dessa vã glória se alimentava a tropa desde 26 de fevereiro. Havia ainda em muitos nacionais o receio de falarem em independência, ou mais provavelmente não se chegara na totalidade do Brasil e na totalidade dos espíritos cultos à realidade iminente desse desfecho sumário, que nas repúblicas espanholas estava contudo custando havia anos atroz sangueira e não recebera até então a consagração de Ayacucho em 1825.

Entretanto tal solução ganhava alento e rompia caminho. No Norte, onde existiam tradições gloriosas de luta pelo solo pátrio contra invasores estrangeiros e até tradições republicanas de governo autônomo, não admira que Luís do Rego informasse as Cortes desde o começo que os que queriam uma junta provisória, eram os partidários da separação: mas no Sul mesmo falava-se tanto, desde outubro pelo menos, em conluios para extermínio da tropa portuguesa, revelados em brados de emancipação, que Dom Pedro, pretendendo tomar ao trágico um grito soltado num teatro, que fora afinal um viva à sua pessoa, e uma conspiração mal-alinhavada em cujos fios ele não quisera realmente tocar, julgava, após repetidas notícias para o pai em Lisboa, escrever muito romanticamente com seu sangue um juramento de fidelidade ao rei.

Sua carta de 4 de outubro reza num parágrafo célebre e que repetidamente serviu de tópico de acusação contra a sua lealdade: "A independência tem-se querido cobrir comigo e com a tropa, com nenhum conseguiu, nem conseguirá; porque a minha honra e a dela é maior que todo o Brasil; queriam-me, e dizem que me querem aclamar Imperador; protesto a V. M. que nunca serei perjuro, e que nunca lhe serei falso; e que eles farão essa loucura, mas será depois de eu e de todos os portugueses estarmos feitos em postas, é o que juro a V. M., escrevendo nesta com o meu sangue estas seguintes palavras: - Juro ser sempre fiel a V. M., à nação e a constituição portuguesa".

E como se isto não bastasse, lançava no mesmo dia aos fluminenses, em linguagem tão enfática que chega a parecer postiça tamanha indignação, uma proclamação em que dizia: "Que delírio é o vosso?...; estais iludidos, estais enganados, e em uma palavra, estais perdidos se intentardes uma outra ordem de coisas, se não seguirdes o caminho da honra e da glória em que já tendes parte, e do qual vos querem desviar cabeças esquentadas, que não tem um verdadeiro amor de El-Rei meu Pai...; que não têm religião e que se cobrem com peles de cordeiros, sendo entre a sociedade lobos devoradores e esfaimados...". Rematava declarando-se uma vez mais pronto a morrer por essas "três divinas coisas - a religião, o rei e a constituição".

Em Portugal não soariam suas palavras como absoluta novidade. Desde que as Cortes entraram a funcionar que se levantaram vozes, ou timoratas, ou prudentes, ou proféticas, premunindo a assembléia contra os perigos de disposições para com o Brasil que não fossem sinceras e conciliatórias, tendo tais vozes tanto mais merecimento em se fazerem ouvir quanto as discussões eram públicas, nas galerias se apinhava a ralé e a tentação demagógica é sempre forte. "Não é só a razão e a justiça que nos ditam a respeito do Brasil um procedimento franco e de verdadeira liberalidade - exclamava o deputado Sarmento -; tiremos vantagens do que tem sucedido a outras nações. A Inglaterra ainda hoje formaria uma só nação com as vastas regiões da América Setentrional, se um ministro cego e pertinaz não se opusesse aos americanos ingleses, disputando-lhes o direito, que a Constituição Inglesa estabelece, de nenhum cidadão inglês poder ser coletado senão por seus representantes".

Talvez não se acreditasse geralmente na gravidade do perigo ou não se quisesse acreditar nela. O deputado padre Castelo Branco, um dos oradores mais escutados das Cortes, deu a nota média e comum quando, depois de denegar projetos de conquista sobre o Brasil, conquista que se deveria realizar, não por força armada, mas por interesses recíprocos de ambas as partes integrantes da Monarquia, ajuntou em conclusão: "Diz-se, e diz-se muito vagamente, que há em todas as províncias do Brasil grande partido pela independência. Não devemos recear que esse partido seja tão grande como se nos inculca, e assim como se procura aterrar o Congresso com idéias fantásticas e quiméricas, talvez que os mesmos autores dessas pretendidas dissenções nos queiram aterrar também com a exagerada extensão e força do partido da independência" (sessão de 23 de agosto de 1821).

* * *

As cartas escritas pelo príncipe real a Dom João VI eram sem demora levadas ao conhecimento das Cortes (105), o que Dom Pedro aliás solicitava, escrevendo logo na segunda, de 17 de julho de 1821: "Espero que V. M. me faça a honra de mandar apresentar esta minha carta em Cortes para que elas, de comum acordo com V. M., dêem as providências tão necessárias a este reino de que eu fiquei regente, e hoje sou capitão-general, porque governo só a província". Ao lê-las, e à primeira vista, não parece no entanto que essas cartas, tão familiares na sua substância política, tivessem sido escritas com semelhante intenção, senão dando direito a que Dom Pedro, ao expirar em Queluz 13 anos mais tarde, pudesse exclamar, como Nero, que com sua morte perdia o mundo um artista consumado.

Há nas mesmas minúcias que não costumam ser, mesmo ficticiamente, destinadas a que as divulgue a publicidade, ao lado de confidências evidentemente tendenciosas como essa famosa advertência paterna e paternal, bastante para invalidar o juramento byroniano com sangue, de que, no caso muito provável do Brasil vir a separar-se, melhor era cingir o príncipe herdeiro a Coroa dessa grande nação do que abandoná-la às ambições de um qualquer aventureiro.

O visconde de Cairu diz que el-rei comunicava à assembléia as cartas do filho "por timidez, ou política". Era mais por política do que por timidez; e sobretudo tratando-se dele, política significava astúcia. Dom João VI, um tanto desnorteado ao desembarcar em Lisboa e ser saudado pelos delegados das Cortes com efusões constitucionais ainda desusadas para seus ouvidos e que disfarçavam o rugir do tigre democrático, cedo recobrara o exercício da sua faculté maîtresse que era a sagacidade, e tomara pé nas águas revoltas de Portugal. Sentia-se amparado pelo estrangeiro e a situação equilibrada, com a Santa Aliança prestes a acudir ao menor aceno seu e a Inglaterra em boa inteligência com as Cortes, uma vez que estas não quisessem forçar a nota e descambar em república.

Um incidente de ordem internacional provou-lhe à saciedade que o governo britânico não autorizava intervenções reacionárias, mas tampouco autorizava excessos revolucionários. O seu temor da Europa continental congregada num espírito misticamente conservador corria parelhas com o de uma união ibérica ultra-liberal. O incidente fora este. A Santa Aliança, reunida nos congressos de Laybach e Troppau (o último de novembro de 1820), manifestara sua inquietação pelas revoluções da Espanha, de Portugal e de Nápoles. "Os mesmos princípios - rezava sua circular, dirigida pelos soberanos às respectivas legações - que haviam unido as potências da primeira ordem do continente para libertar o mundo do despotismo militar de um homem abortado dessa revolução, deviam mostrar-se eficazes contra a nova potência da rebelião, que recentemente se formou. As potências têm sem dúvida o direito de tomar, de comum acordo, medidas de previdência contra os estados cujas mudanças políticas marcham hostilmente, até só pela força do exemplo, contra o governo legítimo; sobretudo quando o espírito de inquietação se comunica aos estados vizinhos por emissários encarregados de propagá-lo".

A Santa Aliança reafirmava nesse ponto seu direito de intervenção, tanto mais quanto não visava a conquistas nem pretendia atacar a independência dos outros estados ou impedir seus melhoramentos: apenas manter a tranqüilidade européia. O gabinete britânico declarou, (19 de janeiro de 1821) reconhecer tal direito de intervenção no caso de segurança imediata ou interesses essenciais dos estados, "mas como o governo de S. M. pensa que o uso do referido direito não pode ser justificado senão pela necessidade a mais absoluta, em conseqüência da qual deva ser regulado e limitado, o dito governo não pode admitir que este direito possa receber uma aplicação geral e sem distinção a todos os movimentos revolucionários, sem haver respeito a sua influência imediata sobre algum estado ou estados particulares. O governo de S. M. considera este direito como uma exceção da maior importância dos princípios gerais, exceção que só pode resultar das circunstâncias do caso especial; mas considera que exceções desta natureza não podem jamais, sem o maior perigo, ser erigidas em regra, de maneira que seja incorporada na diplomacia ordinária dos estados ou nos institutos da lei das nações".

Na sessão das Cortes de 14 de junho foi apresentado um ofício de Silvestre Pinheiro Ferreira, de 3 de abril, declarando que el-rei desmentia sua oposição às reformas constitucionais, sendo as Cortes no seu entender o legítimo órgão da vontade nacional, e repelia "como um ato da mais horrenda agressão contra a independência da Coroa portuguesa todo e qualquer procedimento, convenção ou ajuste de intervenção". Dom João VI estava no seu elemento quando marombava e Luís Filipe dele podia ter recebido lições para sua política do juste milieu. As cartas porém do príncipe real denunciam em muitos pontos sua preferência pelas atitudes definidas e transudam mesmo uma franqueza que pode ter sido entremeada de toques de dissimulação, mas que no geral costumava ser uma das qualidades ou dos defeitos de Dom Pedro.

A linguagem é bem dele, por vezes incorreta, quase sempre canhestra do ponto de vista literário mas viva, pitoresca e sugestiva, tal como não é vulgar ocorrer em papéis oficiais, como eram essas cartas desde que se lhes atribuía esse caráter. E a verdade, corroborada pelos fatos, acha-se retratada nas linhas da referida correspondência com uma fluência tão despida de atavios retóricos ou artifícios epistolares, que na sua feitura, posto que política, nada choca a expansão natural entre filho e pai. Submetendo às Cortes soberanas os repetidos protestos de fidelidade de Dom Pedro, Dom João VI, que neles sabia pôr o grão de sal da razão de Estado, ia ao encontro da calúnia, na qual colaboravam os adversários do Brasil-reino e os adversários da regência brasileira, isto é, os partidários do sistema europeu e os do sistema americano, reacionários e republicanos, de que o filho só fazia conspirar contra o pai, renovando-se, na frase de Cairu, o episódio do grande Constantino e de seu primogênito Crispo, inocente da aleivosia propalada.

Dom João VI tinha o pudor de ser enganado pelos filhos: já lhe bastava ser traído pela esposa. Se Dom Pedro parece ocasionalmente inconseqüente, é justamente porque não tinha em mente enganar, não preparava assim uma defecção, e por isso se não preocupava com uma invariabilidade de opiniões ou de sentimentos de que lhe não teria sido difícil dissimular a falta, mas que é pouco comum na vida, fértil sempre em vicissitudes. Dom Pedro mais permitia que os acontecimentos sobre ele exercessem sua ação do que pretendia orientá-los: a. natureza humana nele era ondoyante, como a definiu Montaigne.

A seu lado possuía o príncipe real uma companheira inteligente e excelente na pessoa da arquiduquesa Leopoldina, cuja participação nos sucessos da independência só não pode ser descrita com absoluta fidelidade e cópia de pormenores porque foi tão pouco espetaculosa quanto a sua vida, toda discreta. A impressão que ficou do tempo, ajudada por alguns testemunhos de confiança, é que Dona Leopoldina ajudou de coração a causa nacional, não pela ambição de ser imperatriz, pois tinha a certeza de vir a ser rainha de uma dilatada monarquia que era por si um Império, mas por finura e alcance de espírito, percebendo a marcha inevitável para o rompimento.

Muito mais instruída do que Dom Pedro, que apenas cultivara um pouco sua vocação musical, e tendo-se formado noutro meio, ela dispunha sobre o ânimo do marido de um poder de sedução que lhe não era infelizmente dado exercer sobre o seu temperamento. Dom Pedro tinha no entanto razões de sobra para não pecar por falta de sinceridade quando falava em querer partir para Lisboa, renunciando à empresa que lhe fora confiada. O mais que ele sentia em redor de si eram desconfianças e hostilidades. Cairu escreve que o seu lema podia ser o que Catarina da Rússia adotara ao marchar contra os turcos: estou só.

De fato durante algum tempo Dom Pedro foi muito mais espectador do que ator. Percebia que por si nada podia remediar e apenas tratava de apaziguar, sem procurar mudar.

Na segunda parte do ano de 1821 deixara ele de ser o ídolo dos constitucionais portugueses - se é que algum dia o foi integralmente - e ainda não era bem o ídolo dos constitucionais brasileiros, como por breve tempo o havia de ser. A obra de recolonização a que se tinham aventurado as Cortes não podia ter seu assentimento, nem espontâneo nem refletido, conhecedor como era das condições e dos sentimentos da terra à qual não podiam deixar de prendê-lo laços de afeição, porque para ela viera aos nove anos, aí passara sua adolescência "malcriada", como ele próprio a caracterizava, e desabrochara com a juventude sua natureza feita de impulsos, fossem políticos ou amorosos.

Na verdade Dom Pedro nunca se mostrou arraigadamente de uma ou de outra parcialidade e por isso mesmo seria durante sua curta vida sucessivamente acusado de favorecer esta ou aquela pátria. Sua vontade era mais vacilante do que levavam a crer seus ímpetos e sua valentia, a qual brilhava singularmente ao lado da ausência completa de coragem do pai. Carecia contudo de outra vontade mais esclarecida e mais forte que lhe iluminasse e guiasse a própria: foi o que sucedeu quando ocorreu o encontro com José Bonifácio, que chegou a fascinar por forma tal o príncipe que este, no exagero sentimental que o distinguia, o tratava em certas ocasiões de pai.

Antes disso já Antônio Carlos nele causara impressão bastante para que a transmitisse a Dom João VI (106), mencionando a audiência concedida ao deputado paulista, de viagem para Lisboa, e considerando "uma justa reciprocidade" a idéia de uma igual representação nacional para as duas seções da Monarquia, de que era Antônio Carlos estrênuo defensor. Nessa mesma carta, manifesta o regente o desejo de que "o soberano congresso não se deixasse levar pelas cartas que lhe são comunicadas, relativamente à América, e que antes de ocupar-se desta parte do reino tivesse o cuidado de consultar, como deve, os deputados americanos". Era como ele próprio estava agindo.

Até o Fico, que marca a culminância da transformação, o príncipe estivera simultaneamente em contato com os elementos em antagonismo, tanto com os constitucionais portugueses que procuravam facilitar o trabalho das Cortes, as quais, segundo a observação picante de Armitage, "em sua sabedoria sempre mandavam primeiro os decretos, e depois a força destinada a fazê-los executar, o que se pode chamar um processo negativo, como os patriotas brasileiros, cujos intuitos eram bem diversos. Armitage, bem informado destas coisas porquanto chegou ao Rio de Janeiro em 1828 e lhe foi familiar o meio do primeiro reinado, escreve que Dom Pedro foi "sondado", constando que prestara atenção favorável aos promotores do plano de independência, que devia começar pelo estabelecimento da integridade do reino americano, fundamento necessário e para o qual parecia indispensável sua intervenção.

Capacitara-se porém Dom Pedro dos riscos da tentativa, não formando ainda os brasileiros um partido bem organizado, persistindo até não poucos em confiar, por amor às idéias, no liberalismo das Cortes, ao passo que a divisão auxiliadora tinha a cidade à sua mercê, repetindo-se esta situação em cada uma das principais cidades marítimas de um país de comunicações difíceis e aleatórias, com suas divisões administrativas, correspondentes às províncias históricas, intrigadas, senão desavindas, ou pelo menos indiferentes umas as outras (107).

Daí uma tal ou qual recrudescência do lusitanismo de Dom Pedro, que não chegou todavia, por ocasião dos sucessos de outubro, para mandar perseguir os chefes da conspiração, que lhe eram conhecidos, contentando-se com prender agentes subalternos e fazendo do caso, que para alguns não passou de uma farsa da divisão auxiliadora (108), grande escarcéu para Lisboa (109). Foi nessa ocasião que, tendo-se Pedro Álvares Diniz recusado a referendar o decreto de exoneração do intendente geral de polícia Antônio Luís Pereira da Cunha "pela sua indolência, pouca atividade e pouco amor e interesse pela constituição portuguesa", foi verdadeiramente "enxotado do ministério". "Eu disse-lhe, escrevia o príncipe a Dom João VI, que gente covarde não deve servir empregos públicos e muito mais em tempo em que e necessário suma atividade; que, visto ele ser isto que eu dizia, lavrasse o decreto de demissão para ele e de nomeação para Francisco José Vieira...

Este Vieira era um homem de sorte, desembargador da relação de Goa, na Índia Portuguesa, que acabava de chegar ao Rio de Janeiro, em trânsito para Lisboa. Era também um homem de brio, porque a posição oferecida nada tinha de tentadora, nem mesmo de estável: até entre o comércio reinava a apreensão que, por ser pouco crível, não era menos sintomática, de que a confusão remataria em desordem, assinalada por uma pilhagem geral.

* * *

Uma das coisas que mais pareciam apavorar o príncipe era a grave situação financeira, com a qual havia que arcar. As dificuldades do governo neste terreno eram imediatamente devidas às circunstâncias em que se operou a retirada da corte, sem que servisse de compensação ao escoamento de dinheiro que então se verificara, o afluxo das quotas provinciais, dantes canalizadas para a capital brasileira e cuja remessa se achava agora suspensa, com exceção de Pernambuco em tempo de Luís do Rego, pela falta de união entre as províncias. Essas contribuições vinham em "numerário metálico"1 (10 e a penúria do erário com o estancar dessa fonte primordial de receita, traduzia-se naturalmente pelo atraso dos pagamentos a civis e a militares.

Outra causa da crise das finanças era a condição em que se encontrava, praticamente senão declaradamente falido, o Banco do Brasil, que era de fato um banco do Estado, mas que nascera torto. Esse estabelecimento fazia ao governo empréstimos em papel moeda que cada dia valia menos, porque nem se aumentava o capital do banco com reserva em ouro e prata que garantisse sua circulação fiduciária, nem se apuravam as responsabilidades das emissões de notas, sobre as quais os acionistas recolhiam lucros enormes.

Esses acionistas eram uns privilegiados e nem todos de verdade possuíam tal qualidade, porque alguns tinham tomado dinheiro fiado para subscrever em ações que ficavam de caução nos cofres do próprio banco. O interesse residia neste caso, em que o juro do empréstimo contraído com usurários excedia talvez o dividendo do banco, na comenda de Cristo com que Dom João VI galardoava os que concorriam com certa importância para a instituição de crédito por ele fundada (111).

Os diretores eram os primeiros a claudicar no meio sem escrúpulos em que se moviam: com os fundos do banco descontavam letras em proveito próprio. Nada se publicava, nada portanto se sabia, até que sobreveio o dia do balanço forçado, quando o transporte do numerário, das barras e dos diamantes, causado pelo novo êxodo da corte, deixou vazias arcas que já não andavam repletas e que agora só o ficaram do papel enxovalhado porque foi trocado seu metal. O decreto real mandando recolher aos cofres do banco os diamantes de que não houvesse mister, foi certamente uma demonstração oficial platônica, e as Cortes encarregaram-se de reduzir á expressão mais simples o mesmo decreto de 23 de março de 1821, pelo qual mandava elrei considerar dívida pública os desembolsos do Banco do Brasil, feitos sob forma de avanços ao real erário para suprir as urgências do Estado, sendo o mesmo banco credor a diferentes cofres públicos pelo desconto de letras firmadas pelos seus tesoureiros.

A dívida do governo excedia bastante o capital do banco. O decreto tornava responsáveis pelas transações realizadas todas as rendas públicas do reino do Brasil. A fim de aumentar os capitais que deviam servir a acelerar o pagamento do débito da real fazenda, ordenava outrossim el-rei que a diretoria geral dos diamantes removesse para o banco não só os brilhantes lapidados depositados no seu tesouro, como os brutos que não fossem necessários para se entreter o trabalho da fábrica de lapidação estabelecida na corte, e bem assim fizesse a administração da real casa entrar para o mesmo depósito os objetos de prata, ouro e pedras preciosas que fosse possível dispensar do uso e decoro da Coroa.

Vendo contudo que este processo de liquidação era demorado e não impedia entretanto o descrédito do banco, Dom João VI expediu para Portugal o conselheiro deputado do tribunal da Junta do Comércio Pereira de Almeida, para aí ou no estrangeiro negociar um empréstimo de 6 milhões de cruzados, quantia aliás insuficiente pois que, para satisfazer os compromissos existentes e "ocorrer as despesas do banco", o que quer dizer restabelecer sua situação folgada, seriam necessários 20 milhões de cruzados, quantia que se poderia obter com a hipoteca dos rendimentos da alfândega do Rio de Janeiro. Somente as dívidas contraídas no banco pelo tesouro subiam mais ou menos a 12 milhões de cruzados, devendo porém o governo muito mais do que isso, a particulares, a casas comerciais estrangeiras, a estabelecimentos nacionais, aos próprios voluntários reais, aos quais havia que pagar 26 meses de soldo atrasado (112).

Nas Cortes o protesto contra o empréstimo projetado tocou as raízes da indignação por parte dos regeneradores. Borges Carneiro qualificou a proposição de "monstruosa" pelo lado da constitucionalidade, não podendo o soberano dispor livremente da fazenda nacional como seria no caso da hipoteca, e não convindo o empréstimo a Portugal, cujos interesses diferiam dos do Brasil. Nem valeria a pena adiar a discussão. Não era questão de se achar ou não ainda o Brasil representado nas Cortes: "nunca, em tempo algum, ainda que estivesse todo o Brasil neste congresso, se aceitaria tal empréstimo proposto como se propõe". Foram estas as palavras de Fernandes Tomás.

Não deixava de ter razão Borges Carneiro ao dizer que o dinheiro que se pretendia tomar de empréstimo era "para cobrir os notórios e escandalosos roubos do Banco Nacional do Brasil". A este estabelecimento, corroído pela fraude, pelas prodigalidades e delapidações dos seus administradores, que os empregados menores tratavam de imitar e dos quais uns quebravam, outros se evadiam, atacados da megalomania e alcançados pelo desfalque, só restava esboroar-se, e foi o que aconteceu. A 28 de julho ocorria uma virtual suspensão de pagamentos, sendo as notas trocadas, 75% por notas menores, 15% por moeda de prata e 10% por moeda de cobre. Era o regime do curso forçado.

Escreve Armitage, que era empregado numa casa comercial, que o pânico financeiro não foi tão grande quanto se podia calcular, porque se fez acreditar que a insolvabilidade era motivada pelo desequilíbrio da balança do comércio e pela escassez do meio circulante determinada pela dragagem operada pela corte. O que restava entrara para o pé-de-meia, conforme acertadamente julgava o principe (113), a ponto do cobre já ter um prêmio de 3%. Aquilo que não diminuíra, enquanto Dom João VI permaneceu no Brasil, foi o número dos parasitas do tesouro, embora este tivesse deixado de ser alimentado. quer pelas rendas provinciais, quer por um banco que Dom Pedro tratava de "tísico".

"Esta província está quase a estourar, logo que o banco, que é o meu termômetro, estiver com o dinheiro exausto, que para isto não faltam quatro meses pelos passos gigantescos com que ele marcha para a cova aberta pelos seus delapidadores" - informava o príncipe (114), ralado por uma situação angustiosa que debalde procurava sanar, o que era um impossível desde que a receita da província do Rio de Janeiro não chegava a seis milhões e as despesas do Estado, que em 1820 tinham sido de vinte milhões de cruzados, ele a muito custo esperava reduzi-las a quatorze milhões.

A regência teve a felicidade de encontrar ministros das finanças honrados e escrupulosos como foram o conde da Louzã, Caetano Pinto e Martim Francisco, mas teve sobretudo a dita de achar-se à sua frente um príncipe disposto a restringir suas próprias despesas e as da sua corte até os limites do possível. Dom João VI era um misto, de resto freqüente, de sovina e de perdulário: gostava de entesourar e ao mesmo tempo fechava os olhos aos desperdícios. Também é verdade que não se furtava a exercer caridade, à vista da desventura, o que lhe poupa o epíteto de avaro.

Dom Pedro tinha porém uma proporção muito exata entre o que devia ser rendimento e o que devia constituir despesa, com tanto mais razão nessa ocasião quanto o período que lhe cabia era o das vacas magras. Com o regresso da corte para Lisboa tinham declinado as transações mercantis, parado as obras de melhoramento, paralisado por assim dizer a vida econômica, apreensivo cada qual do dia de amanhã e tratando de pôr a bom recato o que fosse apurando.

Inaugurando sua política de economias, em que o ajudava Louzã, Dom Pedro começou por sua casa os cortes. Na ucharia, de famigerada memória, de que vivia um horror de gente, a economia orçada foi de 400 contos. Só os animais das cavalariças foram reduzidos de 1.200 a 156. No paço da cidade instalaram-se os ministérios, tribunais e repartições públicas de maior monta, poupando-se os aluguéis das casas que ocupavam. "Todas estas mudanças - escrevia ele para Lisboa - custaram-me pouco porque nelas empreguei os pretos de Santa Cruz e de São Cristovão, todos os quais têm ofícios". E como não há economia que não mereça a pena, citava que "toda a minha roupa branca, a da capela e a de mesa são lavadas pelas minhas pretas" e que para os cavalos a despesa era só do milho, porquanto o capim provinha de São Cristovão.

Entre as providências tomadas, duas traduzem o pensamento político da união das províncias. A primeira é, no decreto de 13 de maio de 1821, a que, na intenção declarada de proteger a navegação de cabotagem, manda abolir o imposto de saída ou exportação de 2% sobre gêneros brasileiros transportados de um porto para outro do reino americano. A segunda, constante do mesmo decreto, ordena que quaisquer gêneros importados pela alfândega do Rio de Janeiro, após terem sido despachados em outra alfândega, ficassem isentos da diferença que pudesse haver de uma pauta para outra, o que redundava em uniformização dos direitos aduaneiros.

Com as diminuições feitas nas despesas, o embarque para Lisboa de umas centenas de pensionários do Estado, que de direito deviam pesar sobre o erário de Lisboa, e a ajuda trazida pela melhoria das condições do comércio de um país naturalmente progressivo, que por si se desenvolvia contra quaisquer obstáculos, a situação atenuou-se sensivelmente dentro da esfera das possibilidades. Ora, toda modificação favorável resultava proveitosa à causa que se ia tornando nacional.

Não tinha o príncipe uma natureza para ficar imune ao contágio da febre nacionalista. A resistência dos seus preconceitos unionistas era frouxa, e a febre ia-se alastrando como uma epidemia, passando dos clubes secretos, onde incubara, para as gazetas que iam pululando afogueadas de radicalismo, e não respeitando sequer o púlpito. Os religiosos das ordens monásticas, possuidoras algumas, como a dos beneditinos, de avultados bens, tinham perdido na licença dos costumes o fervor das tradições, e o clero secular, na frase de Armitage, "privado dos dízimos, não tinha nem propriedade, nem privilégios, nem abusos a defender: pelo contrário, animado de sentimentos iguais aos do povo, reputava os seus interesses ligados aos da comunidade brasileira". Assim é que se encontravam os mesmos hábitos de burel nas lojas misteriosas e nos claustros conventuais.

Estes adeptos, cujo contingente era numeroso e cuja ação foi considerável, recrutavam-se por si. As Cortes encarregaram-se de recrutar outros. O pessoal desempregado por virtude da extinção das cortes judiciais e juntas administrativas do reino americano, era matéria-prima necessária da classe dos patriotas exaltados: a fome age então como conselheira. "Aqueles mesmos, observa ainda Armitage, que haviam durante a maior parte da sua vida serpejado entre os mais baixos escravos do poder, ergueram-se como ativos e estrênuos defensores da independência". O Reverbero Constitucional Fluminense, fundado a 15 de setembro de 1821, ainda se continha"5, mas os próprios monarquistas de princípios, que os havia e não poucos, anteviam na retirada de Dom Pedro depois da de Dom João VI, o sinal certo do advento da república, sinônima para eles de desordem e ruína.

Os sucessos já entravam a dar-lhes razão. O Brasil estava convulso, quase anarquizado. Em Santos - é o próprio príncipe quem o relata na carta ao pai de 17 de julho - as tropas sublevaram-se; exigindo seus atrasados, e estando vazios os cofres do governo, decidiram pagar-se por suas próprias mãos, pilhando os ricos, ao que não foi possível opor uma resistência eficaz. Morreram algumas pessoas na escaramuça, levando a soldadesca a melhor e saqueando até dois navios ancorados no porto, na importância de 200.000 cruzados. Cenas parecidas ameaçavam repetir-se noutros pontos e Dom Pedro era forçosamente sincero quando dizia (116) ter sempre diante dos olhos "horrorosos painéis, uns já à vista, e outros, muito piores, para o futuro".

Ficar e lutar era uma atitude que carecia de ser incutida e pesada: não bastava ser lembrada. Os obstáculos que dentro do Brasil se erguiam não eram menores do que os que se levantavam em Portugal à evolução desafogada da sua antiga colônia. Quem, para começar, estava certo de lograr reunir num feixe compacto essas províncias dispersas, quase hostis, embriagando-se cada uma com o vinho espumante da liberdade?

Dom Pedro julgava abaixo de si, do seu nascimento, da sua dignidade, dispor de uma autoridade tão limitada como a que lhe andava atribuída, e por isso escrevia desde 17 de julho que o melhor seria instalar-se no Rio de Janeiro uma junta executiva, "para que V. M. se não degrade a si, tendo o seu herdeiro como governador de uma província só". A tanto parecia dever resignar-se o regente, vendo que ao plano gradualmente constituído das Cortes correspondia o sentimento egoísta das províncias brasileiras. Ele próprio afiançava por esse tempo que não levaria a mal que as mesmas se dirigissem ao Soberano Congresso, "limitando-me eu só a esta até V. M. mandar que eu parta..."

Ao chegarem a nove de dezembro, pelo brigue Infante D. Sebastião, os famosos decretos Nos 124 e 125, que mandavam eleger e empossar dentro de dois meses a junta fluminense e volver Dom Pedro a Lisboa, este ainda escrevia ao pai que ia dar imediato cumprimento às disposições transmitidas, porque desde o momento em que estivesse organizada a nova autoridade, "ele não queria influir mais nada no Brasil" (117)

Não era que se quisesse o regente esquivar a tarefas árduas. Já por efeito da sua índole ativa e impaciente, já porque os tempos andavam por tal forma revoltos que até os príncipes tinham que desmentir o constitucionalismo que lhes queria emprestar gestos hieráticos, Dom Pedro não desdenhava intrometer-se nos assuntos de administração e não recuaria sequer, se preciso fosse, ante o desempenhar funções subalternas de beleguim, caso faltassem no caso do padre José Narciso'18.

Dom Pedro lembra um rei medieval no sentido de ter sido um soberano em contato diário com o seu povo. Não administrava justiça, como São Luís, à sombra de um carvalho, nem bailava como Pedro o Cru pelas ruas, à luz dos archotes e ao som dos pandeiros e tamboris, mas em freqüentes ocasiões esteve pessoalmente metido na refrega das paixões. Não julgava atentatório da dignidade da sua investidura falar do terraço de um teatro a um magote de povo alborotado ou a tropas insubordinadas; soltar do camarote real vivas entusiásticos à "divinal Constituição" e entoar, acompanhado pelo público, da platéia às torrinhas, o hino de liberdade no qual colaborara como poeta e como músico; replicar alto e bom som, de uma arrancada, a qualquer observação proferida de dentro da multidão e que lhe ferisse os ouvidos; ir dias seguidos a casa do seu ministro José Bonifácio, prendendo o cavalo à argola do portão, a ponto de um gracejador qualquer observar que ele era o ajudante de campo do verdadeiro monarca; passar horas a fio na cela de frei Sampaio no convento de Santo Antônio a ouvir-lhe a retórica constitucional, porque nesse instante curioso da vida nacional os frades eram os revolucionários mais árdegos e a independência ia sair tanto dos conciliábulos dos pedreiros livres quanto das palestras dos mosteiros.

A 14 de dezembro de 1821 Dom Pedro comunicava a Dom João VI que a publicação dos decretos das Cortes fizera "um choque mui grande nos brasileiros e em muitos europeus aqui estabelecidos, a ponto de dizerem pelas ruas: se a constituição é fazerem-nos mal leve o diabo tal coisa; havemos fazer um termo para o príncipe não sair, sob pena de ficar responsável pela perda do Brasil para Portugal...". Porto Seguro pondera que os portugueses que rivalizavam com os brasileiros em reprovarem o proceder das Cortes, receavam vir a sofrer nos seus interesses como funcionários, comerciantes ou proprietários com a remoção da garantia viva da ordem.

O príncipe entretanto informava que "sem embargo de todas estas vozes" se ia aprontando "com toda a pressa e sossego, a fim de ver se posso, como devo, cumprir tão sagradas ordens, porque a minha obrigação é obedecer cegamente, e assim o pede a minha honra, ainda que perca a vida: mas nunca pela exposição ou pedimento dela fazer perder milhares". Na mesma carta pedia ao pai que fizesse saber ao Congresso que lhe seria "sensível sobremaneira" se fosse "obrigado pelo povo a não dar o exato cumprimento a tão soberanas ordens".

No dia imediato, 15 de dezembro, dando conta das representações que se preparavam pondo o dilema: "ou vai, nós nos declaramos independentes; ou fica, então continuamos a estar unidos, e seremos responsáveis pela falta de execução das ordens do Congresso - o príncipe continuava a afirmar que só à força cederia e rematava com a seguinte declaração: "Sou fiel e honrado". O pior porém era que, conforme reza sua última carta do ano de 1821, de 30 de dezembro, "a opinião que dantes não era geral, hoje é e está mui arraigada".

CAPÍTULO VIII

O "FICO". A PRESSÃO E A REAÇÃO

Toda a comédia tem um desenlace. O ano de 1822 abria-se com um grande ponto de interrogação: obedeceria afinal o príncipe regente à intimação vinda de Portugal, quando fosse reiterada, ou permaneceria de todo no Brasil? Condescenderia com os despeitos inábeis das Cortes ou satisfaria os anelos dos patriotas, que se supunham protegidos pelos ingleses e pelos americanos? (119) O Brasil - parte dele pelo menos - ressentira-se do agravo que o alcançara na pessoa do regente e queria um desforço: este desforço só podia ser a nacionalização de Dom Pedro, servindo de eixo à união das províncias americanas. Entretanto, para não romper de chofre, contemporizava-se ainda, apelando para o critério dos regeneradores do Congresso e tratando-se de melhor os esclarecer sobre a situação dos espíritos no reino ultramarino, para que avaliassem todo o perigo das suas resoluções autoritárias e impertinentes.

O visconde de Porto Seguro insiste muito na sua História da Independência sobre o efeito decisivo que as vistas de recolonização das Cortes e depois as injúrias assacadas contra o Brasil e seus representantes por deputados portugueses e populares da mesma nação exerceram sobre a opinião culta ultramarina, que até então aceitava o dualismo. Em abono do seu juízo cita não só as instruções da junta de São Paulo aos deputados da província, insistindo na autonomia sem insinuarem a separação, como o Reverbero que no seu segundo número, de 1.º de outubro, dirigindo-se à assembléia constituinte de Lisboa, se referia ao "eterno vínculo que nos ligará eternamente" e dizia confiar nela "porque uma parte da nação livre não há de querer escravizar a outra".

Antônio Carlos, num folheto publicado na Bahia logo depois de deixar o cárcere, nem o dualismo aceitava, achando, nas suas expressões, o cúmulo da inépcia e da velhacaria por parte do ministério do Rio, pretender a princípio "rachar em duas a mesma nação", destruir-lhe a unidade central por meio de parlamentos privativos, quando instituições diversas sob a mesma Coroa mascaravam nações inimigas acorrentadas pela conquista e distanciadas pelos costumes, língua, pensar e até religião. Era este o caso da Inglaterra e da Irlanda. Antônio Carlos pertencia ao número avultado dos que queriam antes de tudo ver estender-se ao Brasil o benefício da democratização portuguesa.

A partida do príncipe real implicava certamente a separação com a independência da seção americana da Monarquia: sua permanência ainda poderia determinar o prolongamento da união através do Atlântico, com a condição de consolidar-se a unidade brasileira que fraquejava no processo da fusão e ameaçava dissolver-se irremediavelmente, da fragmentação só podendo aproveitar-se o ideal republicano. "Não existe até agora unanimidade alguma, nenhuma tendência comum entre as principais províncias", escrevia, Mareschal a Metternich nas vésperas do Fico, a 7 de janeiro, e vimos que citava Minas Gerais tratando com o Rio de Janeiro como de potência a potência, a exemplo do Paraguai com Buenos Aires, e Pernambuco, onde lavrava um espírito de independência republicana". Ao diplomata austríaco acudira até a lembrança da transferência da sede do governo central do Brasil para Minas, a fim de não suscitar embaraços o ciúme contra o Rio de Janeiro, que era um traço geral na antiga colônia.

O príncipe até aí deixara-se ir um tanto ao sabor dos acontecimentos, sabedor de que nas lojas maçônicas, das quais eram membros ou acabaram por fazer parte todos os propagandistas da nossa nacionalidade, se trabalhava com afinco pela organização no reino ultramarino de um governo perpetuamente livre, que como tal não poderia deixar de ser independente. A idéia de aclamá-lo imperador no dia do seu vigésimo terceiro aniversário, a 12 de outubro de 1821, se de fato viu a luz e não foi um simulacro de nascimento, ali fora concebida.

Descontava-se de antemão a ambição de um príncipe trêfego e com aspirações, o qual no entanto não deu senão mais tarde mostras de perfilhar tais projetos, antes os repelira de começo pelo escrúpulo mais que tudo de não melindrar o pai, parecendo açodado no seguir-lhe o precavido parecer. Como julgaria el-rei o que se lhe afiguraria por certo sofreguidão, antes de esgotada a lista de provações a que o próprio monarca andava por seu lado sujeito?

O fardo aliás era pesado e quiçá inglória a missão, caso falhasse, para gáudio da guarnição portuguesa, cujo estado de alma Porto Seguro indica, ao notar que a proclamação de 4 de outubro, do príncipe aos fluminenses, obedecera "à insinuação da comissão que desde 5 de junho respondia pelo governo das armas".

Não era só por uma concordância de sentimentos com os da terra que o elemento português colaboraria na explosão de descontentamento com que foram acolhidos os decretos n.ºs 124 e 125, qualificados por Porto Seguro de iníquos, uma vez publicados no dia 11 de dezembro na Gazeta Extraordinária. Aqueles que Drummond denomina "chatins das ruas da Quitanda e do Rosário" manifestaram-se contra uma solução que os deixaria à mercê do elemento nacional. A intimidade do príncipe com os oficiais da divisão auxiliadora garantira-lhes o seu luzismo; mas por sua vez os brasileiros o tinham como o melhor penhor da sinceridade de uma política que viesse a consagrar a autonomia do seu país. Entrementes é positivo que as Cortes só estavam demonstrando empenho em humilhar o herdeiro da coroa, ao passo que no Brasil se desenhava por ele uma corrente de simpatia e mesmo de carinho. A cisão, com Ele ou sem Ele, só deveria contudo para a maior parte ser um recurso de última extremidade.

Mareschal, que vivia na privança da corte, achava que a irresolução proverbial dos Braganças não era alheia à natureza de Dom Pedro, em quem igualmente prevaleciam a compreensão natural e a vivacidade intelectual da família. Arrebatamentos como ele os tinha, podiam eqüivaler a bravura, mas não supõem forçosamente coragem moral, que se exibe pela capacidade de deliberação espontânea, sem carecer para agir ou se transformar em ação do estímulo de uma força maior, encarnada numa influência estranha. Assim acontecera em Vila Viçosa com o duque Dom João e João Pinto Ribeiro, por ocasião da conjuração de 1640, que elevou ao trono a dinastia dos Braganças: outro tanto ia verificar-se no Rio de Janeiro com Dom Pedro e José Bonifácio.

Já anteriormente ao patriarca da independência atuara em sentido idêntico, porventura sem a mesma autoridade, mas seguramente com maior delicadeza, a habilidade da esposa. As cartas ao major Schäfer, recrutador de colonos e mercenários em Hamburgo e comensal do príncipe, não deixam dúvida a semelhante respeito (120). Dona Leopoldina enxergava claramente o momento histórico e era decididamente pela permanência de Dom Pedro, portanto pela causa brasileira. "Ele está melhor disposto para os brasileiros do que eu esperava mas é necessário que algumas pessoas o influam mais, pois não está tão positivamente decidido quanto eu desejaria" (121).

Estas palavras a princesa as repetia textualmente numa carta de 8 de janeiro, véspera do Fico: "O príncipe está decidido, mas não tanto quanto eu desejaria". E acrescentava, referindo-se à resolução de formar-se o gabinete do regente com brasileiros e ao plano de agruparem-se as províncias numa livre união: "Muito me tem custado alcançar tudo isto - só aspiraria insuflar uma decisão mais firme" (122).

Não lhe faltavam outras sugestões para que desobedecesse às Cortes. Não pensavam deste modo os raros fidalgos portugueses que ainda tinham seus penates no Rio de Janeiro, mas assim pensava o íntegro e desinteressado Tomás Antônio, relíquia da administração paterna (123). A questão era que as Cortes queriam tornar verdadeira a ficção da soberania popular e concentrar em si todos os poderes políticos e administrativos, não admitindo o sistema constitucional misto. Nem lhes podia convir à frente de um Estado imenso como o Brasil o sucessor presuntivo da Coroa, dispondo de uma soma de poder e prestígio que facilmente eclipsaria a autoridade da representação nacional.

Um rompimento só podia contudo arrastar o príncipe para muito mais longe do que o ponto onde ele se achava, e Mareschal era o primeiro a reconhecer que o futuro do reino unido só se lograria sustentar como fora devaneado "ligando a sorte de Portugal à do Brasil". Eis precisamente o que as Cortes não queriam aceitar por principio algum, embebidos os olhares na sua passada preponderância de instituição política portuguesa.

* * *

Nos começos de janeiro estava Dom Pedro com o propósito feito de ficar. Podia ser ainda inabalável, mas já dava para se externar neste sentido. Assim o declarou ao seu guarda-roupa Gordilho de Barbuda (futuro marquês de Jacarepaguá) e assim dava a entender na sua carta a Dom João VI de 2 de janeiro, pondo-o ao fato das "firmes tenções dos paulistas" e ajuntando como comentário: "Farei todas as diligências por bem para haver sossego, e para ver se posso cumprir os decretos, o que me parece impossível, porque a opinião é toda contra por toda a parte".

Os anteriores protestos de fidelidade de Dom Pedro não tinham diminuído o ardor com que se entrou a procurar demovê-lo da sua intenção, sincera ou afetada, levantando a opinião no Rio e expedindo emissários para as províncias próximas para que estas colaborassem na empresa, o que era também uma forma indireta de congregá-las para um fito comum. É geralmente difícil em casos tais estabelecer prioridades de iniciativa, e José Clemente Pereira, juiz de fora e presidente do senado da câmara do Rio de Janeiro, português de Trás-os-Montes, formado em cânones e em direito em Coimbra e praça do batalhão acadêmico, que veio a ser uma figura notável na política brasileira, fez esta mesma observação num discurso pronunciado na câmara dos deputados, quando ministro da guerra, em 1841, acrescentando todavia que se prioridade houve, coube aos fluminenses, embora seja a glória igual para todas as províncias.

Foi ao Rio que chegaram as primeiras noticias dos decretos e aí foi por isso que se tratou de promover a resistência. É opinião de José Clemente, expressa naquela ocasião, que Dom Pedro simulava por política querer ir para Portugal, quando na realidade sempre teve vontade de ficar. Dar preferência a uma solução não é contudo adotá-la: circunstâncias adversas podem fazer mudar de rumo. Em todo caso é fato que o príncipe respondeu afirmativamente e declarou que receberia as deputações, ao expor-lhe Gordilho de Barbuda o que havia a respeito e perguntar-lhe se anuiria, "à vontade unânime dos povos do Rio de Janeiro, Minas e São Paulo".

Gordilho de Barbuda era nessa ocasião o portador dos desejos de vários patriotas que costumavam reunir-se em casa do capitão-mor José Joaquim da Rocha e entre os quais Melo Moraes menciona Luís Pereira da Nóbrega, Dr. José Mariano de Azeredo Coutinho, desembargador Francisco da França Mirandal24 e Antônio de Meneses Vasconcelos de Drummond. Assegurado o consentimento do príncipe, foi então encarregado o padre mestre frei Sampaio de redigir a representação fluminense - a qual ficou com a data de 29 de dezembro - com a assistência de alguns dos entusiastas da idéia que para este fim subiam ao convento de Santo Antônio, entre eles figurando o confessor do príncipe, frei Antônio da Arrabida, depois bispo de Anemuria. Outros ficaram encarregados de angariar as assinaturas pela cidade, iludindo a vigilância dos comandantes dos corpos portugueses, que mandavam rondar as imediações da casa do capitão-mor Rocha na rua da Ajuda por soldados à paisana, por sua vez fiscalizados pelas patrulhas de Cavalaria da policia do célebre comandante Vidigal (125).

A 20 e 22 de dezembro tinham partido respectivamente para Minas e São Paulo, Paulo Barbosa da Silva, então jovem oficial, mais tarde general, plenipotenciário em várias cortes européias e sobretudo conhecido como mordomo da casa imperial, e Pedro Dias Paes Leme, futuro marquês de Quixeramobim (126). As representações procedentes de Minas Gerais trazem algumas delas datas que mostram a boa vontade que ao emissário se deparou, antes pelo menos dele encontrar-se com a junta de governo: assim a representação de Barbacena é de 27 de dezembro e a de Mariana de 2 de janeiro. A capitania de Minas Gerais, afastada do príncipe, tampouco prestava às Cortes obediência incondicional. Desde que se organizou pelo modo que se dizia constitucional porque uma junta aclamada tomara o lugar de um governador nomeado, Minas julgou-se província autônoma, senão estado soberano, concedendo patentes militares, sujeitando os decretos de Lisboa ao beneplácito local, obedecendo ao critério dos seus interesses privativos, pensando em alterar a legislação e até em cunhar moeda (127).

Paes Leme, que de Sepetiba a Santos fez a viagem em canoa ao longo da costa, chegou a São Paulo a 23 de dezembro à noite. José Bonifácio estava doente de erisipela numa chácara fora da cidade: debaixo de chuva o procurou o emissário sem demora e pela madrugada veio ele, doente mesmo, para a cidade, convocou a junta e propôs que se suplicasse ao príncipe regente que não partisse antes de receber a deputação que São Paulo ia encarregar de apresentar-lhe os motivos de tal pedido (129). Constam estas razões da representação famosa de 24 de dezembro, contra os termos da qual protestou o presidente Oyenhausen, como já protestara contra o próprio alvitre, acabando porém por se confessar vencido e assinar o ofício em que José Bonifácio pôs toda a vibração do seu temperamento apaixonado no dar expansão à queixa contra as cortes de quererem desunir o Brasil pelo "deslumbrado e indecoroso decreto de 29 de setembro", e arrancar-lhe o seu pai, "depois de o terem esbulhado do benéfico fundador deste reino". O príncipe, se obedecesse aos "desorganizadores, perderia para o mundo a dignidade de homem e de príncipe e responderia, perante o céu, do rio de sangue que de certo vai correr pelo Brasil com a sua ausência".

Com esta linguagem mostravam-se os paulistas dispostos a tudo e o próprio Martim Francisco, que era o mais calmo dos três irmãos, escrevera concisa mas precisamente a José Joaquim da Rocha: "Nunca quis entrar em revolução, porque conhecia a pouca madureza dos meus patrícios; porém agora, como a necessidade insta, mostrarei para quanto pode em mim o amor da minha pátria" (130).

Por esse tempo já o príncipe, gradualmente abalado pela intensidade do movimento a que assistia, pusera completamente de lado seu justificado receio de uma intervenção violenta da divisão auxiliadora, a qual podia dar origem a uma desastrosa guerra civil, e as próprias obrigações morais a que se dizia jungido para com aqueles de quem emanava sua autoridade - o rei que nele delegara seus poderes majestáticos, as Cortes que personificavam no regime constitucional puro a soberania nacional. Sua correspondência indica bem a progressão na mudança da sua atitude, da recusa formal para a recusa relativa e por fim para a aquiescência.

Ao raiar de 1822 o acordo estava estabelecido entre ele e os portadores dos protestos gerais e a 9 se ia tornar de pedra e cal. José Clemente Pereira recordava em 1841 que, tendo conversado com o príncipe na véspera de natal na tribuna da capela imperial, já ele lhe respondera que ficaria. Publicada na Gazeta Extraordinária na noite de 8 a representação de São Paulo, que fora entretanto divulgada por meio de cópias manuscritas que circulavam, emprestando-lhe porém a atração do segredo, efetuou-se ao meio dia de 9 - hora fixada pelo regente ao solicitá-la o procurador da câmara - a entrega solene do requerimento do senado, fundado nas representações do povo fluminense e coberto com mais de 8.000 assinaturas.

Dom Pedro comunicava-se destarte diretamente com a nação. Nenhum ministro assistiu ao ato e os corpos de linha brasileiros bem como as milícias estavam de prontidão nos quartéis, na previsão de algum pronunciamento das tropas portuguesas. Ao ter noticia da manifestação que se preparava, o general Jorge de Avilez levara ao príncipe regente uma representação da divisão auxiliadora, a qual, conquanto esperasse a cada momento ser rendida por tropas de Lisboa e não quisesse por isso tomar uma atitude mais radical, exigia a prisão e deportação para Portugal dos "perturbadores da ordem pública". Respondeu-lhe muito bem Dom Pedro que o direito de petição já se achava garantido pelas bases da Constituição por ele próprio jurada a instâncias da tropa e que não lhe era mais possível privar os fluminenses do gozo desse direito.

As coisas passaram-se porém nesse dia todas festivamente. José Clemente Pereira dizia quase 20 anos depois: "Creio não ser possível nos nossos dias tornar, a haver um dia tão solene como este, em que se apresentaram sessenta e tantos cidadãos das primeiras classes do Rio de Janeiro, vestidos com o uniforme de capa e volta que então se usava". A câmara que saíra e a que entrara no começo do ano partiram em duas filas da sala consistorial da igreja do Rosário, que servia de sé, encaminhando-se pela rua do Ouvidor para o paço da cidade. Como convinha a um ato exclusivamente civil e popular, a divisão portuguesa não esteve a ele presente e absteve-se mesmo de aplaudi-lo ou de hostilizá-lo após a frustrada assunção por Jorge de Avilez, comandante em chefe da divisão e governador das armas, do papel de mentor, cujos ares por algumas horas se arrogou no intuito de forçar o regente a aceitar os decretos que o exautoravam.

O bisbilhoteiro Vasconcelos Drummond, mostrando neste traço sua vocação diplomática, refere que o príncipe cortejava a mulher do general Avilez, o que ajuda porventura a compreender o tom mal-humorado com que foi feita a intimação ao representante da régia autoridade. Mrs. Graham escreve que corria voz que tal intimação fora grosseira e indecorosa (ungentlemanlike and indecent).

A representação da junta de São Paulo insistia talvez mais no "sistema da anarquia e da escravidão" que as Cortes sonhavam impor ao Brasil, sem a participação da deputação americana, e vaticinava que "seus povos, quais tigres raivosos, acordarão de certo do sono amadornado, em que o velho despotismo os tinha sepultado, e em que a astúcia de um novo maquiavelismo constitucional os pretende agora conservar". A representação fluminense alongava-se de preferência sobre a retirada do príncipe e essa viagem forçada pelas cortes européias, "hoje decaídas daquele esplendor que elas apresentavam em outras épocas, nelas não encontrando mais do que intrigas diplomáticas, mistérios cabalísticos, pretensões ideais, projetos efêmeros, partidos ameaçadores, a moral pública por toda a parte corrompida...".

O príncipe devia de preferência viajar pelo interior do "vastíssimo continente desconhecido na Europa portuguesa" e que os estrangeiros melhor estudavam e descreviam, continente do qual Portugal, dominado por uma cega rotina, "não se dignou em tempo algum entrar no exame, nunca lançou os olhos sobre o seu termômetro político e moral, para conhecer a altura em que estava a opinião pública...". A presença do príncipe despertaria entre os povos brio e entusiasmo e ele, por sua vez, recolheria a vantagem de conhecer por si mesmo "a herança da sua soberania".

A fala do presidente do senado da câmara foi toda elaborada no sentido de que, para poupar grandes males, suspendesse o príncipe a partida até nova determinação das Cortes. Dom Pedro respondeu no mesmo tom. O auto dessa sessão única da vereação fluminense comportou porém uma declaração complementar, que se reflete nos dois editais sucessivos do senado da câmara ao povo do Rio de Janeiro. Segundo o auto e o primeiro edital, este do próprio dia 9, a resposta do príncipe regente foi a seguinte: "Convencido de que a presença da minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorei a minha saída até que as Cortes e meu Augusto Pai e Senhor deliberem a este respeito, com perfeito conhecimento das circunstâncias que têm ocorrido".

O auto diz todavia no post scriptum que as palavras de S. A. Real foram lançadas menos exatamente no termo, devendo ser substituídas pelas verdadeiras, que foram as seguintes:

"Como é para bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto; diga ao povo que fico."

E como o povo fora prorrompesse em aclamações, S. A. Real chegando às varandas do paço, disse-lhe: "Agora só tenho a recomendar-vos união e tranqüilidade". Esta segunda parte não consta do segundo edital, de 10, que reza ter o senado da câmara publicado na véspera, "com notável alteração de palavras", a resposta do príncipe regente, "esperando o mesmo senado que o respeitável público lhe desculpe aquela alteração, protestando que não foi voluntária, mas unicamente nascida do transporte de alegria que se apoderou de todos os que estavam no salão das audiências...".

A mudança significa que houve receio de que a expectativa geral, bastante excitada, estranhasse a resposta, achando-a morna e considerando-a um paliativo para o mal que se apregoava horrendo. O remendo é visível na linguagem do edital, achando "tão desculpável aquela falta de todas as pessoas que acompanharam o senado e não tiveram dúvida em declarar que a expressão do edital que se acaba de publicar fora a própria de S. A. Real, com alguma pequena diferença".

Não há dúvida que a versão que ficou histórica é mais lapidar e, além desta vantagem de uma maior concisão, soa alto e firme como um toque de clarim. A outra versão, mais prudente, é também mais conforme com a realidade. Dando conta mais de um mês depois às Cortes do ocorrido, o senado da câmara, em ofício de 16 de fevereiro, insistia pela permanência do príncipe e declarava que o Brasil "queria ser tratado como irmão, não filho; soberano com Portugal, e nunca súdito; independente como ele e nada menos". E em ofício do dia seguinte, aos deputados fluminenses, definia a união que desejava como "um pacto indissolúvel, de condições em tudo iguais".

Esta já é a linguagem de José Bonifácio ministro, adotada pelos outros fatores do momento. No intuito de diminuir o papel dos Andradas no movimento da independência, Porto Seguro, que lhes não é afeiçoado, opina que a vigorosa representação de São Paulo não contribuiu ela só para a final determinação do príncipe, tendo sido precedida no Rio por vários artigos de argumentação análoga, e mesmo que sua linguagem, a qual trata de descabelada para um documento dessa natureza, mais podia ser prejudicial do que benéfica.

É fato que os Andradas eram irascíveis; tinham o que vulgarmente se chama "gênio forte", e José Bonifácio em particular era desbocado: mas o valor do seu gesto do ponto de vista histórico consiste no afã de solidariedade que traduz e que se revela em todos seus atos públicos, até no terreno intelectual (131). Coube-lhe pois justificar antecipadamente e praticamente o que José Clemente Pereira apontou com discernimento - que é possível que a prioridade do movimento emancipador não tivesse cabido em suma a ninguém; no entusiasmo comum, sem combinação prévia, estariam todos dispostos para o mesmo fim e iriam tomando essa direção.

É mister repetir que o Brasil até certo tempo não queria na sua maioria desunir-se de Portugal: queria apenas que lhe assegurassem as franquias alcançadas. Para isto, ao mesmo tempo que se dirigia ao príncipe regente, a junta de São Paulo procurou sob a instigação de José Bonifácio uma aliança ofensiva e defensiva com a junta de Minas Gerais e, se possível, com as outras, contra a projetada recolonização do Brasil. Chamava-se a esta federação "sagrada" e esperava-se que abrangeria toda a monarquia, lançando em todo o caso, para a hipótese de malogro, "os alicerces de uma união indissolúvel, recíproca, justa e decorosa".

Fiado neste apelo anterior de José Bonifácio e já se sentindo apoiado na tríplice combinação, fluminense-paulista-mineira, foi que o príncipe regente na noite de 12 de janeiro escreveu de seu punho, requisitando dos governos de São Paulo e Minas forças que ajudassem a defesa no caso de ataque por parte da divisão portuguesa transferida para a Praia Grande, vindo um regimento de infantaria de São Paulo e, com alguma demora, um de cavalaria de Minas Gerais.

A combinação referida podia não se achar ainda cimentada, mas já era positiva a constituição de um bloco sulista. São Pedro do Sul participou da cerimônia do dia 9 de janeiro na pessoa do coronel Manuel Carneiro da Silva e Fontoura, autorizado para falar em nome da terra riograndense, o qual declarou em alta voz que os sentimentos dos seus comprovincianos, concordavam com os que ele ali via manifestados.

Outra qualquer impressão mais lata deixaria de ser rigorosamente exata. Os mineiros, com seu natural desconfiado pelas condições mesmas da sua colonização, na qual se rodeava de mistério a extração do ouro e dos diamantes a fim de lesar-se quanto possível o fisco, únicos a possuírem no sul do Brasil tradições republicanas, até de martírio, ficaram, ao que se diz, sus peitando de que no Rio se tramava uma coisa e se comunicava outra. Foi esta, segundo Melo Moraes, compilador atabalhoado de documentos de primeira ordem, a razão da tardança da deputação de Minas Gerais ao príncipe, precedida entretanto pela deputação destinada às Cortes de Lisboa, a qual, uma vez no Rio e tendo conferenciado com o regente a 22 de janeiro, desistiu de seguir viagem e decidiu, conjuntamente com o representante do Espírito Santo aguardar os acontecimentos.

A resolução de Dom Pedro fora efetivamente a salvação do Brasil unido - unido entre si quando deixasse de sê-lo a Portugal - mas fora um golpe terrível para o partido republicano, a que se referia José Clemente Pereira na sua fala de 9 de janeiro como semeado por todo o Brasil e protegido pelos Estados Unidos. A partida do príncipe real podia ter dado ganho de causa à democracia, mas também teria convertido o Brasil numa mera expressão geográfica, como foi a Itália até sua unidade.

A liberdade de imprensa, que o general Jorge de Avilez no seu manifesto de 14 de janeiro aos cidadãos do Rio apontava como uma das instituições dos povos livres decorrentes da atitude das tropas portuguesas que se levantaram a 26 de fevereiro e depois a 5 de junho contra o governo que, no seu dizer, "iludia astutamente os benefícios da constituição, concedendo como uma graça o que era devido por direito", provocou em redor deste episódio do Fico um torneio de opúsculos por publicistas de valor, no número dos quais sobressaem Pereira da Fonseca (Maricá), Bernardo José da Gama (depois visconde de Goiânia), o tenente-coronel Raimundo da Cunha Matos, todos no espírito do unionismo, quer no sentido brasileiro, quer no sentido português, quase todos, senão todos, abundando em argumentos persuasivos em favor de um pacto igual.

As tipografias começaram a abrir-se e as folhas a aparecer. Ao lado do Reverbero surgiram, em principio de outubro de 1821, portanto quase simultaneamente, o Espelho, hebdomadário e depois bi-hebdomadário, dirigido por Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, antigo redator da revista O Patriota e da Gazeta oficial, e desde dezembro a Malagueta de Luís Augusto May, folha de opiniões variáveis e publicação incerta, que durou irregularmente até 1829 e cuja redação não era destituída de talento. Em 1822 entrou a publicar-se o Correio do Rio de Janeiro, do português José Soares Lisboa, jornal de escândalo e investivas pessoais, que motivou o decreto de 18 de junho do mesmo ano contra os excessos da imprensa. Soares Lisboa, condenado depois da proclamação do império a 10 anos de prisão por uma culpa séria e provada, foi indultado por Dom Pedro, sob condição de deixar o Brasil. Desembarcou porém em Pernambuco, - onde fundou o Desengano Brasileiro e tomou parte na Confederação do Equador, morrendo em novembro de 1824 no combate do Couro da Anta (132).

CAPÍTULO IX

A RETIRADA DA DIVISÃO AUXILIADORA

Restava ainda ao príncipe, para consolidar sua decisão, emancipar-se da verdadeira tutela que sobre ele pesava, senão em contínua operação, pelo menos sempre latente e prestes a manifestar-se ao primeiro sinal de vontade própria. A 4 de outubro fora a comissão militar que desde 5 de junho exercia o governo das armas sob a forma de triunvirato, que reclamara e exigira do regente "uma declaração pública pela imprensa, em que, da maneira que mais for do seu agrado, faça conhecer a segurança de seus sentimentos à causa da nossa constituição política, e a bem fundada confiança que tem na tropa desta guarnição; protestando proceder sem a mais pequena condescendência contra todo aquele que for convencido de perturbador do sistema constitucional, cujas bases, solenemente juradas, há de manter inviolavelmente, enquanto por novas leis as Cortes Gerais e Extraordinárias do Reino não mandarem o contrário" (133). Foi desta intimação que procedeu a conhecida e empolada proclamação daquela data.

Agora outra tentativa para impor as ordens das Cortes: esta porém foi mal sucedida. Diante da desobediência de Dom Pedro, apregoada aos quatro ventos pela sua sucinta resposta ao senado da câmara, Jorge de Avilez fez constar entre os soldados da divisão auxiliadora que, com grande sentimento próprio, estava demitido do governo das armas desde o dia 10. Na tarde de 11 visitou ele os quartéis, sendo aclamado como "o general constitucional".

Melo Moraes pretende que não se tratara ainda de demissão e que Jorge de Avilez quis apenas especular com isso para acirrar sua gente. Porto Seguro supõe que ele deu demissão a 12 do governo das armas, continuando porém no comando da divisão. Cairu escreve que foi de 12 a abolição do triunvirato, com a conseqüente destituição de Avilez. A expressão do príncipe é pois verdadeira na sua carta ao pai de 23 de janeiro: a 11 o general "não estava demitido".

Havia no entanto alguma coisa de mudado e profundamente mudado. Era uma nova orientação política que se desenhava: a proclamação ulterior de 1.º de fevereiro a refletiria dizendo que, "recrescendo novas e imperiosas circunstâncias, era do dever da autoridade suprema mudar de resolução e tomar novas medidas". Afirmou-se essa orientação na escolha, nas noites de 9 e 10 de janeiro, de destacamentos nacionais para formarem a guarda de honra no teatro de São João, ponto de reunião obrigatório da corte, que ia ser crismado em São Pedro de Alcântara e que se transformara no cenário das expansões, primeiro constitucionais e depois independentes.

Não estando ainda no seu papel ostentar preferências, quis o príncipe por tal motivo dar uma espécie de satisfação aos regimentos portugueses e mandou buscar entre eles a guarda de honra para a noite de 11; mas, ao que parece, experimentou a desfeita de uma recusa geral. Mrs. Graham, espectadora e cronista destes sucessos, não dá o fato como autêntico, julgando-o contudo provável, em vista das circunstâncias. A sedição fervia e rompeu nessa mesma noite, quando grupos de 20 e 30 soldados portugueses, armados de cacetes, percorreram as ruas quebrando vidraças, insultando os transeuntes e praticando outros que tais desacatos contra as casas decoradas de luminárias pelo motivo do Fico, aos gritos de: "esta cabrada leva-se a pau (134).

A notícia chegou ao teatro, onde Dom Pedro logo notara a ausência de Jorge de Avilez do camarote de que era freqüentador o mais assíduo. Os espectadores em confusão dispuseram-se a recolher-se, detendo-os todavia a palavra tranqüilizadora de Dom Pedro que da tribuna real falou ao público, anunciando ter já tomado as providências necessárias para restabelecer a ordem, as quais tinham sido chamar o brigadeiro Carretti, imediato de Avilez, e mandá-lo reprimir os amotinadores. Estes foram induzidos a voltar para os quartéis, podendo portanto recomeçar o trânsito das ruas em segurança e parecendo, graças à presença de espírito do príncipe e à calma que a mesma insuflou em alguns oficiais, ter a cidade volvido à sua anterior normalidade.

Urdira-se porém coisa pior, proveniente diretamente de um incidente vulgar de embriaguez, ao qual igualmente se refere a citada carta do príncipe. No saguão do teatro o tenente-coronel José Maria da Costa, do regimento 11 da Divisão, altercou com o tenente-coronel José Joaquim de Lima e Silva, do 30 da corte, sobre a política do dia, e o oficial português, que estava "espiritualizado" na expressão da relação publicada por Melo Moraes, jurou ao outro que o Brasil continuaria escravo de Portugal e que o príncipe embarcaria, mesmo que para isto tivesse sua espada de servir-lhe de prancha. Na excitação da briga saíram os dois para o largo e Lima e Silva, voltando para o teatro, contou o ocorrido a vários camaradas dos quais um, o cirurgião ajudante Soares de Meireles, acompanhou o tenente-coronel José Maria até conhecer que havia um plano de insubordinação e ver mesmo, à sua voz, a Divisão começar a pegar em armas e formar no largo do Moura.

Deu-se então Meirelles pressa em vir informar o ministro da guerra, que por sua vez informou o príncipe, ambos ainda na função. Dom Pedro retirou-se para São Cristovão, dando porém ordens para que as forças de 1.ª e 2.ª linha da corte se preparassem para qualquer eventualidade. De fato o motim, longe de arrefecer, agravara-se: 700 soldados tinham marchado com quatro peças de artilharia para o morro do Castelo, donde ameaçavam varrer à metralha a população a seus pés para depois saquear-lhe as casas.

A guarnição portuguesa da Quinta da Boa Vista, composta de caçadores 3 - uns 500 homens no cálculo de Mrs. Graham - não tinha feito causa comum com os companheiros, declarando que lhes havia sido confiada a defesa do príncipe. Melo Moraes atribui sua atitude a um ardil: o projeto da Divisão era, segundo ele, embarcar o príncipe à força na fragata União e mais fácil se tornaria a empresa conservando a postos aquela guarda fiel. O que parece mais exato é que sua neutralidade foi efeito de anuência a um pedido pessoal do regente, que lhes falou nos seus deveres de lealdade e não se esqueceu provavelmente de distribuir algumas recompensas. Esses caçadores pediram depois para partilhar da sorte dos seus patrícios, mas dos seus oficiais se valeu antes Dom Pedro, como intermediários, para evitar um conflito cujas conseqüências se não podiam prever.

Não só o príncipe deu nessa crise mostras de capacidade executiva, como os nacionais não esmoreceram um instante na atividade que exibiram. Além dos soldados, artífices de caserna, obreiros do arsenal e policiais, afluíram simples paisanos a armar-se no quartel do campo de Sant'Anna, assumindo o seu comando, apesar de estar com dores reumáticas, trazendo as pernas envoltas em baetas, o ajudante general Oliveira Álvares, que era aliás madeirense e a quem muito ajudou nessas circunstâncias o coronel Luís Pereira da Nóbrega.

Ordem fora dada para que no campo se congregassem todos os cavalos e muares que fosse possível encontrar na capital. Na madrugada de 12 já nada menos de 4.000 homens ali se achavam reunidos, dispondo de animais e prontos para a ação. Nas palavras de Mrs. Graham, se eram deficientes em matéria de disciplina profissional, eram formidáveis pelo número e pela determinação de que se achavam possuídos. O velho general Joaquim Xavier Curado, o decano dos oficiais superiores brasileiros, veterano das campanhas do sul e no império conde de São João das Duas Barras, foi aclamado no acampamento governador das armas da cidade e província do Rio de Janeiro, que lhe dava como que a interinidade da pasta da guerra, a cujo expediente o titular dela se esquivara.

O príncipe tinha diante dos olhos a guarnição dividida em dois campos hostis, mas afetava não tomar partido entre portugueses e brasileiros. Mandou indagar de uns e outros porque se achavam assim armados e municiados e só alcançou a madrugada de 12 foi o general Jorge de Avilez a palácio propor ao regente o recolhimento recíproco das tropas em armas, recebendo porém como resposta do príncipe que, se as forças portuguesas lhe desobedecessem, "as poria a elas e a ele barra a fora (135).

Dom Pedro, falando com esta arrogância, ainda não podia calcular que as forças respectivas iam cada vez mais distanciar-se em número, crescendo, segundo Porto Seguro, a 2.000 homens no morro do Castelo e 10.000 no campo de Sant'Anna (136), com algumas peças de artilharia, ardilosamente transportadas por oficiais e praças de coragem. Nem estava pelo menos de si para si tão seguro dos resultados que não tivesse, feito nessa mesma madrugada de 12 partir para a fazenda de Santa Cruz, a doze léguas da capital, a esposa e as crianças, ficando ele indeciso entre ir juntar-se à familia ( (137) ou resistir a qualquer agressão.

Vira-se de um momento para outro desamparado de seus conselheiros: Mareschal escrevia para Viena que "abandonado do modo mais vergonhoso" pela nobreza e pelos políticos ocupando altos cargos, todos do partido europeu. Os fidalgos portugueses temiam um desforço das Cortes de Lisboa nos bens que possuíam em Portugal.

Segundo escreve Melo Moraes, antes do 9 de janeiro o regente propusera em conselho a questão da execução dos decretos de 29 de setembro, fazendo ver o perigo que representava para a monarquia no Brasil o cumprimento dos mesmos, dada a desconfiança que já entrara a lavrar intensamente. Os ministros votaram porém em sentido contrário ao juízo do regente, menos Farinha (futuro conde de Souzel). O desembargador Vieira, ministro do reino o dos negócios estrangeiros, assim votou oficialmente, declarando contudo a Dom Pedro, após a reunião, que seu parecer como particular era que o príncipe ficasse. Perguntando-lhe então este se ficaria nesse caso ele também, respondeu que não, porquanto o cargo de ministro que ocupava "o privava dessa honra e dessa conveniência" (138). Escusado é dizer que um homem tão respeitador da integridade faleceu pobríssimo. O ministro da Fazenda Louzã foi também instado para ficar por causa da sua probidade, mas também preferiu partir.

No risco de perder a partida em que se empenhara e antes da exuberância do movimento popular fazer pender a balança para o lado nacional, Dom Pedro achou também avisado preparar para si e os seus um asilo a bordo da fragata inglesa Dons. Conta Mrs. Graham, mulher do comandante, que pessoas ricas para lá mandaram por segurança seus objetos de valor e que ela aprontou seu beliche para receber a família real, no caso desta procurar refúgio, como fora formulada a hipótese. A autora refere que o recado veio sem que ela soubesse a fonte: "A message, I do not know on what authority, arrived to know if the Prince and Princess, and family, could be received and protected on board". O encarregado de negócios da Áustria confirma na sua correspondência oficial que o regente "a été jusqu'à faire d'une demarche hier (12 de janeiro) d'une manière indirecte au commandant de la frégate anglaise la Doris...; preuve combien il est encore peu décidé".

Era realmente preciso que a situação fosse cheia de incertezas para que Dom Pedro, que pelo menos nunca foi homem propenso a fugir ao perigo, e também Dona Leopoldina, que por sua vez sempre se mostrou tão animosa quanto interessada no destino soberano do país aonde a conduzira sua sorte, pensassem na retirada. O Sr. Alberto Rangel, paladino da marquesa de Santos, acha que foi até a carência de feminilidade da arquiduquesa, a qual era entretanto uma sentimental (139), o que mais concorreu para trazer Dom Pedro por tanto tempo enfeitiçado pelos encantos da sua Domitila.

Era aliás natural que naquela emergência o augusto casal não enxergasse a situação por um prisma menos verdadeiro do que a enxergava uma estrangeira recém-chegada ao país como Mrs. Graham, a qual inseria no seu diário a observação - "que quanto mais o príncipe e a princesa confiassem nos brasileiros, melhor para eles e para a causa da independência, porquanto esta agora se tornara tão inevitável (is now so inevitable) que a questão única era saber se seria alcançada com ou sem derramamento de sangue".

O príncipe parecia, e pela vida adiante o mostrou, ser impelido pela educação e também pelo temperamento para o despotismo, mas possuir firme crença política no regime constitucional. "O espírito público se purifica de dia em dia - escrevia ele ao pai (140) - e se desenvolve com maior energia e prudência. O povo inteiro é verdadeiramente constitucional, o que aprecio mais do que posso expressar, porque não quereria governar um povo que não amasse sinceramente a constituição. Creio que uma constituição faz a felicidade do povo; mas creio ainda mais que ela faz a fortuna do rei e do governo. Se o povo é infeliz onde não há constituição, o rei e o governo ainda são mais infelizes. Só velhacos acham seu proveito em governo sem constituição".

Mareschal pensava exatamente como Mrs. Graham e escrevia ao príncipe de Metternich "não haver dúvida de que depois desses fatos o príncipe se lance inteiramente nos braços dos brasileiros, pois estes o apoiam, ao passo que a pusilanimidade, o egoísmo e a covardia dos seus servidores portugueses não têm exemplo". O diplomata era neste ponto demasiado severo para os portugueses, que estavam no seu papel esquivando-se a uma nacionalização forçada: isto não atenua nem muito menos desculpa o fato apontado por Mareschal (141) de não ter havido nem um camarista, nem uma dama para acompanhar a Santa Cruz sua ama, em adiantado estado de gravidez, e os filhinhos, ocasionando a jornada, segundo consta, a doença de que veio a falecer a 14 de fevereiro (142) o primogênito Dom João Carlos, enquanto Dom Pedro ficava a resolver as conseqüências da crise que afinal se encaminhara mais prontamente do que deixava esperar para um feliz desenlace.

* * *

A 13 de janeiro, já com razão muito mais confiado num bom desfecho do grave incidente - José Clemente Pereira no seu discurso de 1841 ainda se referia à iminência da luta evitada experimentou Dom Pedro chamar à ordem os discolos. Convidou-os a confabularem uns com outros, isto é, portugueses e brasileiros, à razão de dois oficiais de cada corpo, depois de, na véspera, mandar perguntar a cada um dos generais comandantes o motivo da sua atitude. Respondeu Curado que os brasileiros se tinham congregado para resistir à ameaça contra o príncipe e a cidade; por seu lado invocou Jorge de Avilez a necessidade da sua defesa e da sua gente. Em vista das respostas mandou o regente que as duas parcialidades chegassem a acordo que redundasse em restituir-se à cidade a sua tranqüilidade (143).

Segundo a versão de Porto Seguro, foi o general Avilez quem se ofereceu para entrar em negociações, admitindo o príncipe a proposta da trasladação da Divisão Auxiliadora para o outro lado da Bahia, guardando os soldados suas armas e recebendo seus soldos até embarcarem para Portugal. Para tal fim entrou o ministro da Marinha Farinha em correspondência com Carretti, porque os três outros ministros já estavam de demissão aceita, bem como do outro lado o general Avilez, cujo pedido de demissão fora aceito a 12.

Da carta do príncipe de 23 de janeiro antes resulta que a iniciativa da conclusão do alvitre pacificador lhe pertence: "e assim estiveram até as 24 horas, que mandando eu dois oficiais, um aos de cá, e outro à divisão, com diferentes propostas, assentiram os da divisão passarem para a outra banda do rio". Os portugueses não tinham contado com tanta presteza e decisão da parte dos brasileiros e, compreendendo bem a má vontade que contra eles reinava na cidade e que tão espontaneamente se manifestara, cederam assim prontamente, mesmo porque não tinham carregado para o morro do Castelo provisões de boca, calculando que outro rumo tomariam os acontecimentos.

Nem era o adversário de desprezar-se. Mrs. Graham achou os homens, conquanto geralmente franzinos (slight), sadios, ativos e cheios de vida (spirit), parecendo-lhe gente resoluta nos seus desígnios e determinada a defender seus lares e seus direitos. A cavalhada era a melhor que ela até aí vira na terra. O espetáculo do acampamento era variado e pitoresco, dele nos deixando a escritora inglesa uma descrição que tem o relevo de uma água forte:

"Dentro da cerca onde a artilharia fora postada, tudo parecia grave e sério: os soldados estavam alerta e os oficiais, em grupos, discorriam sobre os acontecimentos da noite anterior e as circunstâncias do dia; aqui e além, dentro e fora do círculo, um orador estacionava com os Ouvintes em redor, prestando atenção aos seus arrazoados políticos e suas arengas patrióticas. Na parte aberta do campo viam-se soldados afastados dos seus regimentos e companhias inteiras que tinham fugido à aglomeração de dentro da cerca, que mais intenso tornava o calor. Cavalos, mulas e burros espojavam-se no chão, arfando. Em todas as direções viam-se negros transportando capim e milho para os animais ou levando à cabeça tabuleiros, de doces e refrescos para os homens. Aqui uma porção de soldados, exaustos da viagem e da vigília dormiam estirados sobre o solo; ali jogava um grupo de moleques; cada qual matava o tempo a seu modo, esperando pelo grande evento, uns silenciosamente e pacientemente, receosos do que poderia vir depois, outros ansiosos por agir, tratando apenas de preencher o intervalo da forma mais divertida."

Segundo Mareschal (144), aos milicianos tinham-se agregado populares, roceiros, padres e frades, uns montados, outros a pé, armados de pistola, de faca e até simplesmente de um varapau.

Ao regressar para bordo da Dons no dia 13, Mrs. Graham assistiu por acaso à rendição da última guarda portuguesa do paço da cidade pela primeira guarda brasileira. Os vivas do povo assinalaram a importância do ato que se estava passando. A insuspeita testemunha comentava: "Os habitantes em geral e especialmente os negociantes estrangeiros estão muito satisfeitos com a retirada das tropas de Lisboa, porquanto sua tirania de há longo tempo se vinha exercendo de uma maneira brutal com relação aos forasteiros, aos negros e não raro aos brasileiros: de algumas semanas para cá então, sua arrogância revoltava tanto o príncipe como o povo".

Não é de admirar que nestas condições a ordem de transferência causasse sérias apreensões. A cidade apresentava um aspecto merencório: fechadas as lojas, patrulhas pelas ruas, toda a gente sobressaltada. O pessoal do comércio, incorporado na milícia, andava de serviço, armado e municiado, posto que não fardado, apenas com bandas e cintos de couro cru sobre seus trajes paisanos. O Fico, se exprimia a vontade do partido brasileiro, também podia ser vantajosamente interpretado pelo partido português, desde o momento em que uma das razões - a principal aliás - para sustar-se obediência à deliberação das Cortes, era o receio, melhor dito, a convicção da separação imediata que dali adviria. A desconfiança, que se tornara extrema, entre as duas facções é que levava à tensão entre elas, quiçá à luta por uma solução que em suma aproveitava a ambas, garantindo a presença do príncipe o prolongamento da união ou que a separação se operaria sem gerar confusão e desordem.

No discurso pronunciado a 26 de janeiro perante Dom Pedro, na qualidade de orador da deputação de São Paulo, José Bonifácio disse que desobedecer a tais ordens como as expedidas pelas Cortes era um verdadeiro ato de obediência filial, pois que para os paulistas era indubitável que o rei as assinara sob coação. Por sua vez, antes de fazer o conhecimento pessoal do seu ministro, já Dom Pedro estava convencido, e o expressava com uma noção política muito exata e muito prátical (145), que "com força armada é impossível unir o Brasil a Portugal; com o comércio, e muita reciprocidade, a união é certa: porque o interesse pelo comércio, e o brio pela reciprocidade, são as duas molas reais sobre que deve trabalhar a Monarquia Luso-Brasílica".

No dia 13 efetuou-se o transporte da divisão para a Praia Grande sem que houvesse a menor alteração de ordem: somente subsistiam temores do que poderia ainda acontecer, mormente quando chegassem as tropas em viagem de Lisboa. A 14 reabria o comércio e não faltaram oficiais e sobretudo soldados da Auxiliadora para, desejosos de ficar na terra, pedirem baixa, obtendo-a sem a menor dificuldade: o que os portugueses do partido adverso verberavam como sendo fomentar a deserção entre as forças reais. A medida ajudava porém incontestavelmente o regresso à boa ordem, restabelecida sem tiroteio, a não ser o de publicações, nas quais a época foi fertilíssima, parecendo que da forçada anterior reserva se queriam todos desforrar por uma verdadeira incontinência de argumentação política.

Jorge de Avilez lançou uma proclamação tersa e emproada, a que deu o título de manifesto; portugueses do partido nacional replicaram com uma contra-proclamação muito recheada de reminiscências clássicas, ao passo que um "brasileiro constitucional" publicou uma resposta declamatória e com visos a patética. Uma idéia audaciosa assaltou porém os chefes da Divisão Auxiliadora quando viram interrompidas as comunicações da Armação, onde foram aquartelados, com o Rio de Janeiro - chegando o cerco a ser tão severo que, por edital do intendente geral de policia João Inácio da Cunha (futuro visconde de Alcântara), os moradores daquele lado foram mandados retirar seis léguas para o interior, com seus gados e víveres, e por outro edital foi vedada a comunicação em barcos ou canoas com a capital. Foi essa idéia a de seguirem por terra para a Bahia, a juntarem-se às forças do general Madeira, que ali estavam constituindo um forte núcleo de resistência portuguesa.

Desistiram porém da empresa os que a conceberam, à vista das dificuldades que se antolhavam insuperáveis, apesar de ser lembrado que as depredações pelo caminho podiam fornecer carros e cavalos para a condução. Foi tal projeto originalmente atribuído a um egresso por nome Vicente Pazos, um dos muitos hispano-americanos refugiados no Rio de Janeiro por motivo das convulsões políticas das suas terras, o qual figurara na emancipação da Audiência de Charcas, tomara parte nos sucessos revolucionários de Buenos Aires até o advento de Rodriguez e Rivadávia em 1820, e em Montevidéu se ligou de viva amizade com Jorge de Avilez, a quem acompanhou ao Rio de Janeiro. Melo Moraes, que evoca essa personagem, refere até que José Bonifácio, erroneamente informado da paternidade da idéia da marcha sobre a Bahia, quando de fato o boliviano o que achava razoável era o embarque para Portugal, pensou em apoderar-se dele por uma cilada, do que o preveniu a tempo Duarte da Ponte Ribeiro, depois conselheiro e ministro plenipotenciário do Brasil.

O que parece positivo é que, ao chegar a Divisão Auxiliadora à Praia Grande, pretendeu um destacamento ir reforçar a guarnição da fortaleza de Santa Cruz, composta, afora os artilheiros, de soldados portugueses de infantaria 11, tomando assim conta de uma posição que lhe permitiria dominar a entrada do porto. Um regimento de milícias de São Gonçalo, que ia para a cidade, prevenido da intenção do destacamento, precedeu-o, forçando sua própria marcha, e entrou na fortaleza, donde expulsou os soldados portugueses, erguendo depois disso a ponte levadiça.

Grande é a lista das acusações levantadas contra Jorge de Avilez pelo sentimento hostil do momento, mas, como escrevia a Gazeta do Rio de Janeiro a propósito e todavia sem lhe aplicar o conto, é difícil apurar a verdade acerca de estrondosos fatos contemporâneos, quanto mais sobre sucessos passados de há muito. Acusam-no de ter querido promover uma "bernarda" para evitar o 9 de janeiro; de ter pensado em desfeitear o príncipe apresentando-se no teatro em trajes caseiros no espetáculo de gala do mesmo dia 9 (146), de ter pretendido cortar o abastecimento de água da capital; de ter projetado obrigar o senado fluminense à voltar atrás com o Fico, organizando-se um governo provisório; de ter imaginado uma lista de proscrição como as de Sula, abrangendo 50 e tantos ricaços, entre eles o visconde do Rio Seco (depois marquês de Jundiaí), cujos bens seriam confiscados como de rebeldes às Cortes: isto fora o que já sabemos.

As recordações romanas eram de rigor e Sila vinha a tempo e hora. O artigo da Gazeta compara a política das Cortes com a da velha Roma: "Acaso uma província ou muitas províncias reunidas terão menos jus para reclamarem em termos legais e decentes os seus direitos, que julgam menosprezados ou desatendidos, do que tem cada indivíduo de per si? Não é uma verdade conhecida na história que a grandeza colossal que adquiriu o império romano, foi fundada na astuciosa medida com que se dividiram e separaram as partes componentes de diferentes Estados? Eles tiraram (diz Montesquieu) as ligações políticas e civis que havia entre as quatro partes da Macedônia, do mesmo modo com que antigamente romperam a União das pequenas vilas dos latinos. A República de Achaia era formada por uma associação de cidades livres; o senado decretou que cada cidade se governasse dali por diante por suas próprias leis, sem dependência de uma autoridade comum... À vista disto quem autorizou a Jorge de Avilez para criminar os povos que, meditando sobre estes fatos e não achando uma razão em que fundem o novo método de se governarem as províncias do Brasil isoladamente, não o atribuam a pretensões de se diminuir a sua ligação íntima, para lhes ficar Portugal preponderante em força moral e física, já que o não pode ser em extensão e riqueza?".

Foi a política das Cortes que mais do que qualquer outra causa criou no Brasil o sentimento nacional. As províncias uniram-se na defesa dos seus interesses, quando destes penetraram a indefectível comunidade. A não ser isso, as rivalidades ter-se-iam manifestado porventura insanáveis. A Bahia ainda não perdoara ao Rio de Janeiro a mudança da sede do vice-reinado para a Baía de Guanabara, quando ela continuava a ser a mais importante das capitanias brasileiras. Relata Mrs. Graham que as províncias do norte preferiam uma capital mais setentrional e que no sul havia bastante gente que a queria ver removida para São Paulo, pela maior segurança de uma cidade interior, alcandorada sobre uma serra, e pela maior proximidade das minas, onde se teimava em acreditar estar a principal riqueza do país, apesar da acentuada baixa da sua produção.

Uma capital, um centro, era contudo essencial e afinal havia de vingar aquela mesma onde se achasse instalada a autoridade para a qual tinham de convergir num dado momento todos os esforços espalhados. Foi o que a perspicácia brasileira não tardou muito mais em compreender para opor à intriga das Cortes. Na representação de São Paulo aponta-se para o fato de querer a Assembléia Constituinte privar o reino americano de um centro de união e de força, e mesmo em Lisboa o deputado Pereira do Carmo desde a sessão de 6 de agosto de 1821 taxara o plano de dividir-se o Brasil em miseráveis fragmentos, de "horrendo perjúrio político". Como poderia com efeito prover à sua defesa contra inimigos externos e desordens internas um país privado de um executivo local, cuja ação lograsse estender-se sobre toda sua vastidão?

A deputação paulista incumbida de reforçar o pedido de não ser dada aplicação aos decretos das Cortes que refletiam aquela política insidiosa, só chegou ao Rio de Janeiro a 17, tendo as guardas e patrulhas pela estrada sido dobradas para prevenir qualquer surpresa dos constitucionais portugueses, considerados adversários desde os incidentes do dia 12. Nada entretanto ocorreu do que se pressagiava, e a prontidão e oportunidade das providências adotadas por Dom Pedro antes de entrar em colaboração com José Bonifácio, bastam para desmanchar a lenda, que alguns têm querido forjar, de que o mérito dos atos acertados e da orientação atilada do governo da regência cabe todo e exclusivamente ao ministro paulista.

Este estava ausente no episódio do Fico e na transferência da Divisão Auxiliadora, nem sequer espiritualmente se achava presente como no Ipiranga, quando a natural impetuosidade do príncipe concordou num repente feliz com a decisão suprema e necessária que fora demorada e avisadamente preparada. A verdade é que os dois se completavam e foram os agentes nas suas espiritualidades diversas de uma só e harmônica idéia nacional. O cientista maduro fora amigo de Alfieri: somente o jovem romântico mostrava por vezes mais impaciência, como que sob o pressentimento de que havia de viver menos do que o velho.

A facilidade com que no campo de Santana se congregou tão avultado número de milicianos no curto espaço de uma noite, faz crer que o golpe contrário estava previsto e a reação preparada, não sendo desarrazoado pensar que a Divisão Auxiliadora esteve com efeito ameaçada de ser desarmada quando existissem para tanto os elementos precisos - do que entretanto Jorge de Avilez não faz claramente menção antes dos sucessos de 9, 11 e 12 de janeiro no seu relatório às Cortes.

O embarque da guarnição portuguesa teve lugar sob pressão. Não podia convir ao governo que a Divisão Auxiliadora estivesse acampada tão perto quando chegassem as tropas destinadas a rendê-la. A situação ficaria por completo alterada. Cercaram-na por isso por terra, com regimentos de milícia de infantaria e cavalaria e algumas peças, e por mar, com uma parte da pequena esquadra que se estava formando, divisão naval composta da fragata União (nome mudado para Piranga), da corveta Liberal, de uma barca a vapor, única da sua espécie no Brasil, e de três canhoneiras (147).

Aprestados os transportes para a travessia transatlântica, foi disposto o embarque para os primeiros dias de fevereiro e marcada mesmo a data de 5, mas os homens reclamaram tardança com sua habitual impertinência, já tendo aclamado para seu general Jorge de Avilez, incompatível com a regência, pelo que a proclamação do príncipe, de 1.º de fevereiro, os tratava de "insensatos" e os concitava a lançarem do seu seio "os homens desacreditados na opinião pública, e rebeldes às minhas reais ordens".

A resposta de Dom Pedro foi um breve - "Estou cansado de desaforos", e depois de condescender em que houvesse maior número de transportes e em que levassem os da Divisão não só seus atrasados como três meses mais de soldos adiantados, fixou-lhes o embarque para 7 e a partida para 12. Não tendo porém a ordem sido obedecida até o dia 9, mandou o regente fundear em frente aos alojamentos da Ponta da Armação a pequena esquadra comandada pelo chefe de divisão Rodrigo de Lamare, disposta a bombardear os recalcitrantes se até as oito horas da manhã de 10 não embarcassem. Na retaguarda formou um corpo de soldados brasileiros.

Dom Pedro passou a noite na galeota, indo de navio em navio verificar os aprestos. Sua atitude mostrou aos rebeldes que a situação era séria e levou-os a partirem sem mais ensaio algum de resistência. Assim aprendeu a vencer esse condottiere das liberdades constitucionais. Nas cartas a Dom João VI dá ele conta dos incidentes desse embarque forçado, desde a ameaça à Divisão de ficar sem pão e sem água mercê do sítio, até a declaração aos comandantes que vieram procurá-lo, de que faria fogo sobre eles, uma vez esgotado o prazo. A 15 de fevereiro singrou a frota composta dos navios Constituição, São José, Americano, Três Corações, Despique, Duarte Pacheco, Indústria e Verdadeiros Amigos (este último sardo), que foi acompanhada até além do cabo de Santo Agostinho pelas corvetas Maria da Gloria e Liberal.

Na altura dos Abrolhos cruzou-se essa frota de transportes com a esquadra de Francisco Maximiliano de Sousa, a qual parara no Recife e trazia a seu bordo um batalhão de infantaria, um regimento provisório, uma brigada de artilharia e uma companhia de condutores, um total de 1.200 homens ao mando do coronel Antônio Joaquim Rosado. Comunicaram frota e esquadra indo a bordo da nau capitânea o brigadeiro Carretti. Alguns dos transportes, mais ronceiros e provavelmente mal aparelhados, arribaram a Pernambuco, entre eles o Três Corações, que conduzia Jorge de Avilez e sua esposa. Esta ia doente, mas a junta do Recife proibiu-lhe o desembarque, como proibiu o de todos os oficiais e soldados. Enquanto os navios estiveram no Lamarão foi um médico de terra várias vezes atendê-la, não sem dificuldade e até com risco pelas condições do ancoradouro.

Mareschal julgava por esse tempo que o príncipe, procedendo como estava, se adiantara demais para poder recuar. O dado estava lançado, restando saber se a facção brasileira não se serviria dele apenas como instrumento, enquanto o não pudesse dispensar. E com seu horror por quanto se parecesse com manifestações populares, sobretudo de caráter desordeiro, ajuntava o diplomata austríaco que era mister haver visto, como lhe acontecera no dia 12, aquela mistura de gente de condições, estados e cores diversas, vociferando e pregando a matança e a pilhagem, para se fazer uma idéia do que podia ainda vir a suceder (148).

Não se enganava entretanto Mareschal na desconfiança que nutria quanto à lealdade dinástica de alguns dos corifeus do movimento, aos quais a solução monárquica afigurava-se incompleta e ilusória, e que do príncipe só queriam fazer o seu agente de operação. A independência já se tornara grito de combate, mas as forças tinham que combater unidas. Por curto espaço de tempo, conforme escrevia Dom Pedro (149), "desde que a divisão auxiliadora saiu tudo ficou tranqüilo, seguro, e perfeitamente aderente a Portugal; mas sempre conservando em si um grande rancor a essas Cortes, que tanto tem, segundo. parece, buscado aterrar o Brasil, arrasar Portugal, e entregar a nação à providência...". Pelo seguro tratava de explicar que "a raiva é só a essas facciosas Cortes, e não ao sistema de Cortes deliberativas, que esse sistema nasce com o homem que não tem alma de servil, e que aborrece o despotismo".

CAPÍTULO X

JOSÉ BONIFÁCIO NO MINISTÉRIO. O CONSELHO DOS PROCURADORES

O epílogo do episódio da retirada da Divisão Auxiliadora passou-se nas Cortes de Lisboa, às quais foram apresentadas as respectivas comunicações em contradita: a alegação de Jorge de Avilez e oficiais comandantes da Divisão e o ofício do ministro da guerra do reino do Brasil Joaquim de Oliveira Álvares ao ministro da Guerra do reino de Portugal Cândido José Xavier da Silva.

Os adversários do partido europeu facilmente descobriram na linguagem do general português traços de insolência, consubstanciados com o domínio lusitano na opinião dos que o queriam abolir. Historiando os acontecimentos do Rio, dizia Jorge de Avilez que "o nome de constituição ou a idéia de um governo representativo fora no Brasil ouvido com terror por uns, com alegria por outros e com admiração pela multidão de castas, cuja civilização está na infância"; que foi o exército português representado pela Divisão Auxiliadora que promoveu a deposição do poder arbitrário além-mar, prestando glorioso serviço à civilização; que em vez de procurarem melhorar suas instituições civis e políticas para adquirirem "aquela liberdade racional que é o fruto da moral da virilidade e instrução geral dos povos", os brasileiros pelo "estado deficiente da educação e defeitos do governo interior", se mostraram indiferentes aos bens de um governo representativo, erigindo em dogma pregado por demagogos e aventureiros a emancipação do Brasil, isto apesar da separação das províncias, dos zelos da prosperidade alheia e da degradação que trouxe a trasladação da corte para sua antiga sede.

Simulando honrar e amar o príncipe real posto que apontando para gestos seus "de humilhação e envilecimento" para a Divisão, provenientes da sua inexperiência, Jorge de Avilez lança na sua justificação sobre os conselheiros do regente os baldões de enganadores e corruptores, considerando precária a posição de um governante "fiado em seus maiores inimigos" e sacudindo sobre estes os "atos de ódio e de desprezo" de que fora vítima a mesma divisão. A parte histórica ou narrativa dos sucessos, aliás muito sumária, oferece fidelidade, conquanto mencionando que os preparativos de luta foram todos da outra parcialidade, fruto do pânico e da hipocrisia e praticados de um modo "escandaloso e ignóbil", o que ainda assim não levou a Divisão Auxiliadora a represálias.

Oliveira Álvares conta o ocorrido naturalmente à sua feição, responsabilizando a Divisão Auxiliadora pela desordem que tinha querido implantar no fazer prevalecer seus propósitos hostis ao que não fosse o espírito de obediência às Cortes, mas no entanto atribuindo-lhe a iniciativa da transferência para a Praia Grande, após "infrutíferas e baldadas" medidas adotadas pelo príncipe regente. A proposta foi mesmo formulada para "poupar efusão de sangue", persistindo todavia o comando da Divisão Auxiliadora em não manter uma atitude passiva, antes protestando contra baixas que no seu entender só em Portugal poderiam ser concedidas e contra a entrega ao regimento de artilharia da corte dos tiros de bestas da artilharia montada portuguesa, e iludindo mesmo as ordens recebidas.

A correspondência diplomática de Mareschal reduz a história completa do Fico - a minha ficada, como lhe chamava Dom Pedro numa das suas cartas - às suas proporções humanas. Esse episódio não fornece tema para um poema épico: apenas para uma crônica de sucessos políticos triviais, posto que podendo ter e tendo tido momentosas conseqüências. A verdade é que portugueses e brasileiros já se arreceavam uns dos outros e que se tornara preciso que uns cedessem o lugar, sob pena de se converterem em dependentes dos outros. Não era tanto a questão do nascimento que devia servir de regra para a divisão nas categorias opostas: portugueses natos podiam vir a ser brasileiros de coração, como o foram Vergueiro, José Clemente Pereira, almirante Barroso e outros; mas no geral o critério da seleção havia que ser esse.

Como continuariam as tropas do reino europeu de guarda pacífica a uma fidelidade que se ia evaporando, sendo elas as primeiras a doer-se das investidas dirigidas às Cortes em desafronta dos seus atos e a ameaçar os nacionais com represálias armadas, se estes continuassem tais ataques? Se essas tropas cederam no caso da Divisão Auxiliadora e solicitaram seu transporte para o outro lado da baía, foi porque se capacitaram da sua inferioridade e, como escrevia Mareschal, se intimidaram diante da resistência que se alçava, fomentada pelo espírito brasileiro, já infenso ao espírito lusitano ao ponto de serem inevitáveis os combates pelas ruas, se as duas parcialidades continuassem com suas forças ombro a ombro.

Mareschal fala de uma "força maior", que ele considerava indispensável como impulso para a ação de um Bragança, o qual sem essa mola poderosa deixaria até de valer-se de um ensejo favorável aos seus planos. A "força maior" foi nesse caso para Dom Pedro o sentimento geral da população fluminense, e como lhe não faltava propriamente coragem física, antes era e continuaria a ser muito dele não recuar ante os perigos e até os afrontar, sua atitude produziu o resultado feliz de um desenlace inesperadamente ordeiro. O príncipe depõe muito na sua correspondência para Lisboa contra o moral da Divisão Auxiliadora (150), mas o fato é que foi o temor da exaltação do elemento nacional que aconselhou a retirada ao elemento militar mais disciplinado, cujos chefes, Avilez e Carretti, obedeciam antes na sua maneira de proceder, pelo que se diz, ao desejo de obterem das Cortes, em recompensa, a promoção aos postos mais elevados de hierarquia, do que ao amor pelos princípios que as Cortes encarnavam.

O melhor recurso que a Dom Pedro se antolhava na emergência a que fora levado e o mais adequado para habilitá-lo a encarar o seguimento dessa crise, era seguramente voltar-se para o partido brasileiro, e José Bonifácio chegou muito a propósito de São Paulo para ser o conselheiro abalizado e experimentado que o regente até aí em vão buscara. Dos ministros com quem estava governando, só conservou Farinha, o único a prestar-se a referendar a ordem de transporte da tropa portuguesa para a Praia Grande, negando-se os outros a assumir semelhante responsabilidade.

Caula foi substituído na guerra pelo ajudante-general Oliveira Álvares, que nos serviços que lhe ficara devendo a causa nacional encontrara sua carta de naturalização; Caetano Pinto de Miranda Montenegro (futuro marquês da Praia Grande), que se fizera brasileiro pela estadia e cargos exercidos, e que era tido por todos como homem de bem, apenas de índole timorata, entrou para a fazenda, e para José Bonifácio foi reservada a pasta mais importante, do reino e dos negócios estrangeiros.

Do ponto de vista da nacionalidade, era o que se pode chamar um ministério de transição. Quanto à personalidade da sua principal figura, Porto Seguro, desafeto dos Andradas, é o primeiro a reconhecer que as qualidades e até os defeitos de José Bonifácio o indicavam nesse momento para o posto, ninguém o excedendo em saber, intrepidez e entusiasmo. Dom Pedro tanta confiança nele aprendera a depositar que o escolheu para o cargo antes de se avistar com ele. Quando José Bonifácio chegou como membro da deputação incumbida de saudar o regente e de oferecer-lhe as razões do proceder político da junta e do povo de São Paulo, já estava nomeado ministro, e foi a princesa Leopoldina quem em Santa Cruz deu a primeira notícia ao interessado, persuadindo-o mesmo de aceitar o que parece ele se achava disposto a recusar.

Segundo refere Melo Moraes, que diz tê-lo ouvido do conselheiro Drummond, entre a princesa Leopoldina e José Bonifácio estabeleceu-se no primeiro encontro uma profunda simpatia. Conversaram em alemão, o que devia ser grato à filha da casa da Áustria, e a princesa, que gostava muito de ciências naturais, ficou encantada com os vastos conhecimentos do homem de estudo tanto quanto com a lúcida compreensão do homem de Estado.

A fama de José Bonifácio como estadista tem contribuído para eclipsar sua fama como sábio, isto é, seu nome é hoje muito mais conhecido e reverenciado no Brasil pela sua íntima associação com o movimento da independência do que pelos seus cometimentos de investigador da natureza. Não se deve contudo esquecer que foi ele um homem de ciência de reputação européia, e como tal vive nas páginas de rara beleza de estilo em que Latino Coelho traçou o perfil do seu predecessor como secretário perpétuo da Real Academia das Ciências de Lisboa. Ali o vemos nos anfiteatros de Paris e de Freiberg ouvindo os mais célebres professores do tempo; companheiro de Alexandre de Humboldt e sagrado mestre pelo biógrafo alemão do grande cosmógrafo; visitando minas e fazendo descobertas mineralógicas de que Le Play disse que mereciam estátuas; recebido no seio das mais respeitáveis associações e dos mais afamados institutos; consultado, disputado no estrangeiro, galardoado pelo governo português com uma sucessão de mercês e de cargos.

Conta-se que nas horas passadas em Santa Cruz a princesa real trouxe-lhe seus dois filhinhos, dizendo a José Bonifácio: "Estes dois brasileiros são vossos patrícios e peço que tenham por eles um amor paternal". Seria recordando-se desta frase tocante que José Bonifácio dizia mais tarde ao encarregado de negócios de França, conde de Gestas, que não podia ver sem emoção os pequenos rebentos da Casa de Bragança.

Foi a 26 de janeiro, ocupando o ministério havia já alguns dias, que José Bonifácio foi recebido em audiência solene pelo regente, juntamente com seus companheiros de deputação, o coronel Antônio Leite Pereira da Gama Lobo e o marechal José Arouche de Toledo Rendon, além do vigário Alexandre Gomes de Azevedo, pelo bispo, cabido e clero.

A data fora intencionalmente escolhida, dir-se-ia que com fina ironia. Era o primeiro aniversário da instalação das Cortes Constituintes de Lisboa, que dotaram toda a nação portuguesa dos seus direitos civis e políticos. A representação paulista, que aos portugueses tanto irritara, não seria possível se tais direitos não estivessem exarados nas bases constitucionais, se a cada cidadão não assistisse, na frase de Dom Pedro (151), o "direito de representar, que lhe provém do direito natural, ajudado pelo direito público constitucional".

A deputação foi acompanhada da travessa de São Francisco de Paula, onde se aposentara José Bonifácio, até o paço da cidade pelos paulistas residentes na capital, senado fluminense e magistrados, formando todos um cortejo a pé, precedido por um piquete de cavalaria, caminhando entre os magotes de povo apinhado de encontro às casas cujas janelas ostentavam cortinas de seda e colchas de damasco. No paço a cerimônia foi de grande gala. José Bonifácio aproveitou o ensejo para expurgar-se da acusação de ferrabrás. Num estilo apaixonado, que outro não seria seu, compendiou todas as razões históricas e políticas que assistiam a causa do Brasil e tinham levado São Paulo a formular aquela representação contra o que a câmara de São Paulo chamava "plano de escravidão, preferindo os paulistas a morte à escravidão".

A oração de José Bonifácio pronunciada nessa ocasião, é o protesto de um patriota mais ainda do que o atestado de um estadista, e como patriota foi que o instinto popular o consagrou patriarca antes que a investigação histórica lhe concedesse tal dignidade. As mais difíceis combinações químicas são pelo bom senso popular reduzidas aos seus elementos essenciais.

Ao assumir José Bonifácio suas funções, a situação permanecia bastante obscura. A família do príncipe regente tinha voltado de Santa Cruz desde 19 de janeiro. Durante a semana que ela ali passou, é provável que Dom Pedro, cuja rapidez de movimentos era extraordinária e que executou viagens a cavalo que ficaram célebres, como a do regresso de Minas nesse mesmo ano - 80 léguas portuguesas ou 400 quilômetros em quatro dias e meio, chegando a São Cristovão às sete da noite e indo assistir ao espetáculo - sabendo Dona Leopoldina desamparada em Santa Cruz, sem uma dama nem um camarista a seu lado, tivesse ido visitá-la, quiçá buscar conselho, deliberar em todo caso longe do bulício da cidade, onde a tonalidade era sombria. Daí talvez, em terra e época de rumores, o boato da sua deserção, depois malevolamente antecipado para a primeira manhã.

Outros boatos tinham corrido, como o de querer a Divisão Auxiliadora transpor de novo a Bahia para uma arremetida, aliás prevista e vigiada por postos de observação dos contrários. Contribuiria essa ameaça para que a narração oficial do episódio do Fico aparecesse a 15 de janeiro numa versão emoliente, que não condiz com a resposta ríspida mandada dar pelo príncipe à súplica dos comandantes sobre a questão das baixas (152). Da publicação dos documentos sobre o Fico o que se deduz é que o pedido do senado da câmara foi formulado para obviar à separação imediata que, dada a efervescência dos ânimos, resultaria da partida, e que a permanência ilegal, como que em desafio, do regente, se prolongaria somente até que, melhor esclarecidas dos fatos e condições, as Cortes adotassem uma resolução diversa.

Quer no interesse dinástico, quer no interesse popular, o rompimento não devia ser abrupto, nem convinha mesmo que fosse brusco. A presença de Dom Pedro era o único obstáculo à proclamação de mais uma República americana, solução que não era a patrocinada por José Bonifácio. De resto, mal subiu ele ao poder, entraram a desenhar-se, a começo ligeiramente, logo depois sensivelmente, as duas correntes que a breve trecho se separariam, não porém sem que uma delas procurasse atrair a outra e arrastá-la na sua esteira.

José Bonifácio, mercê das suas idéias, no geral politicamente conservadoras posto que socialmente adiantadas, da sua residência de trinta e nove anos no Velho Mundo e das suas afinidades intelectuais com a Europa e especialmente com Portugal, da cortesia de algumas das suas produções acadêmicas, mercê mesmo da tendência voluntariosa, por vezes até arbitrária do seu temperamento, era tido como um reacionário - um corcunda - pelos que desejavam afastá-lo da administração. Gonçalves Ledo, Pereira Nóbrega, o padre Januário, Domingos Alves Branco, o grupo que depressa se desligaria dele e que ele próprio perseguiria, formavam uma facção ultra-liberal, quase republicana, abertamente republicana se possível fosse evitar o império para conseguir a independência.

Dom Pedro não se iludia quanto ao número dos adeptos de uma pura democracia: na sua carta de 23 de janeiro diz até ser essa "a opinião que reina nos corações americanos, desde o norte até ao sul da América". A independência, desta ou daquela forma, representava em todo caso a mesma aspiração, franca quanto a maior parte, dissimulada quanto ao menor número, para todos os brasileiros, arrastando os que até então duvidavam da sua eficácia, isto é, da sua realização. O Reverbero mudara de linguagem, despindo as roupagens cautelosas (153), clamando que o Brasil entrara na idade viril, não mais precisando de tutela, e que "a emancipação das colônias seguia uma marcha natural e irresistível que jamais forças humanas podiam fazer retrogradar".

Respondendo que ficava, Dom Pedro como que requereu sua carta de naturalização. Ainda não estava contudo disposto a desavir-se de vez com Portugal, por atenção a seu pai em primeiro lugar, depois pelo receio de uma manifestação adversa e muito provável da Santa Aliança, sobretudo pela preocupação dinástica de não abrir mão da sua coroa tradicional para assegurar outra de novo cunho e de novo estilo. Por isso nos papéis oficiais empregavam-se as reticências e os circunlóquios, nas proclamações as exportações e as frases de efeito: a contemporização era a regra, mas os atos já traduziam despeito, mais do que isto, animosidade. Os apelos tornavam-se de enfáticos rancorosos, quando se traduziam em gestos.

No dia do aniversário de Dona Leopoldina, a 22 de janeiro, Dom Pedro recusou admissão à presença de sua esposa à comissão de oficiais portugueses que viera ao beija-mão, o que não impediu que as forças postas em observação na Praia Grande dessem as salvas regulamentares. Em correspondência com essa desatenção do príncipe, ao espetáculo de gala, aliás pouco concorrido, nenhuma senhora portuguesa compareceu. Nem trepidou o regente em recorrer a uma infração das boas normas internacionais, equivalente a uma intervenção estrangeira nos negócios domésticos de uma seção da monarquia, transgredindo a política geral da mesma. Foi o caso, referido pelo encarregado de negócios da Áustria (154) que Dom Pedro pretendeu que a fragata de guerra inglesa Aurora cooperasse na expulsão da Divisão Auxiliadora, aproximando-se da posição por esta ocupada na Armação, de modo a intimidá-la.

As autoridades britânicas, tanto o cônsul como o comandante do navio, recusaram porém cometer tal quebra de neutralidade em dissenções civis, limitando-se a oferecer refúgio à família real a bordo no caso de perigo pessoal. José Bonifácio aparece figurando na negociação, no exercício do seu cargo: as circunstâncias tinham mesmo feito dele uma espécie de primeiro ministro. Era o conselheiro por excelência do regente. O diplomata austríaco não antevia contudo acordo duradouro entre as duas personagens, dadas a vivacidade e a imaginação que distinguiam José Bonifácio e que cedo poderiam entrar em conflito com predicados idênticos de Dom Pedro.

Para um homem de Estado serão tais qualidades em circunstâncias ordinárias mais negativas do que positivas, constituindo o sangue frio e a circunspecção dotes muito mais preciosos. Num momento decisivo porém qual o que o Brasil atravessava, não era porventura desarrazoado ter ao leme um timoneiro com certa ousadia e permitir à política ter tratos com a fantasia. Mareschal ponderava mesmo que "numa terra onde o langor e o torpor são gerais, uma superabundância de vivacidade é talvez necessária". José Bonifácio era, na sua frase, o "homem do dia", o que dava o impulso e o que emprestava uniformidade às vistas do governo, que de individuais chegavam a dispersivas, quando não a antagônicas, e mais visavam, dir-se-ia, diluir-se do que se concentrar, transigir do que agir, anulando-se qualquer aparência de iniciativa pelas intrigas secretas que se teciam entre os membros da administração.

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A história brasileira tem mostrado a legítima curiosidade de discriminar entre o esforço de Dom Pedro e o de José Bonifácio no feito da independência e verificar qual foi mais direto, qual mais sincero e qual mais eficiente. Um momento houve, felizmente o psicológico, em que foram síncronos - o do ministro obedecendo porém a largas aspirações, o do príncipe regente a interesses que mudaram e entusiasm9s que perduraram.

Mareschal fala a Metternich num oficio (155) da extrema volubilidade com que José Bonifácio lhe expôs seus juízos sobre os sucessos da sua pátria, mal podendo o austríaco transformar o monólogo em diálogo e colocar um aparte naquele jorro de palavras do qual - se exato é o que Porto Seguro menciona como recordação de meninice - os perdigotos saltariam a cada instante, acompanhando a voz roufenha. Essa volubilidade não era contudo mera tagarelice: era antes a manifestação de quem pouco tinha com quem externar seus pensamentos amadurecidos ao calor da reflexão.

O resumo que deles faz a relação do diplomata estrangeiro dá a medida da clara visão do homem público. Seu senso político era em demasia arguto para não distinguir entre a Europa afeita a tradições seculares e a América pejada de novos ideais, donde não seria exeqüível excluir a liberdade. Mareschal de resto acreditava nos sentimentos elevados de José Bonifácio como governante: apenas lhe notava uma grande vaidade que era de índole, de família mesmo pode dizer-se, mas que repousava sobre a consciência do próprio e indiscutível valor.

O encarregado do negócios da Áustria não estava longe do pensar que, se fosse militar em vez de ser naturalista, José Bonifácio aspiraria ao papel de um Bolívar, de um San Martin ou de um O'Higgins: assim contentava-se com exercer sobre o seu soberano uma influência que, embora não tamanha que ofuscasse a personalidade régia, permitisse à independência consumar-se numa forma regular o assumir um caráter modelar. O conde dos Arcos sonhara, ao que se diz, ser o Pombal de um outro Dom José: José Bonifácio queria ser o que foi depois Cavour para Victor Manuel.

É possível que José Bonifácio, como aconteceu a Antônio Carlos, tivesse tido o que depois se chamou o sarampo republicano, isto é, que o seu espírito tivesse atravessado no verdor dos anos uma crise democrática facilitada pelo estado revolucionário da Europa. Antônio Carlos sofreu um tratamento drástico: em José Bonifácio a desenvolução da moléstia teria tido uma cura normal. Ambos limparam-se da erupção. O que José Bonifácio viu fora de Portugal, de 1790 a 1800, bastava para determinar uma metamorfose. O seu fervor liberal cristalizou-se num composto de sapiência e de firmeza de ânimo.

Dom Pedro não podia alimentar sobre o regime representativo a mesma opinião assentada e meditada que tinha o seu ministro: o seu mérito reside em ter cedido com inteligência à pressão dos tempos, compreendendo que lhe não era lícito proceder diversamente, e também embriagado pela glória que daí lhe havia de resultar. Sua alma tinha laivos líricos, como a sua natureza possuía uma forte dose de sensualidade. Era um apaixonado da fama, tanto quanto doido por mulheres.

Sua resposta ao encarregado de negócios da Áustria, que o prevenia contra a reunião de Cortes no Brasil, foi cheia do bom senso que nunca lhe faltava apesar de não raro ser destemperado: "Que quer V.? Sonham todos com assembléias legislativas e força será passar por aí: de resto o antigo governo era tão ruim que eu mesmo o não quereria restabelecer... Se os brasileiros quisessem porém república, teriam pensado num presidente e não num monarca" (156).

Mareschal escandalizou-se um pouco com a declaração subseqüente do príncipe - que é um erro acreditar na preeminência e maior aptidão de uma classe de homens com relação a outra. Era uma opinião desabusada, que chocava suas idéias sobre o papel histórico e político da nobreza que, segundo ele, Dom João VI fizera mal em não criar no Brasil, pois que muito menos haveria então a temer de um partido republicano. O diplomata teve contudo de reconhecer na sua correspondência que o príncipe seguia uma marcha calculada e obedecia a um plano preconcebido e concordado que o inibia, no conceito de Mareschal, de atirar-se cegamente nas malhas em que o queria envolver a facção avançada, antes o levaria por instinto a procurar firmar-se no equilíbrio das opiniões.

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A retirada da Divisão Auxiliadora podia ainda atenuar-se aos olhos de Portugal com o nome de repressão de um pronunciamento; mas a proibição de desembarque da expedição de Francisco Maximiliano de Sousa, chegado ao Rio a 9 de março para transportar o príncipe real para Lisboa (157) com uma esquadra que era quase a mesma que levara o rei, pois se compunha da nau Dom João VI, fragata Real Carolina, charruas Conde de Peniche, Orestes e Princesa Real, e transportes Fenix e Sete de Março, já era um ato de plena e ostensiva rebeldia às Cortes e ao monarca que em nome delas falava, embora por elas coato.

A defesa do Rio tinha ainda aumentado com a chegada de 740 milicianos de São Paulo e 500 de Minas, prometendo mais a junta daquela província; e como estas coisas à distância costumam avolumar-se sempre mais, nas Cortes Borges Carneiro comparava indignado a morosidade do governo português com a prontidão do governo brasileiro. "Ali, dizia ele a assembléia, um só homem, José Bonifácio de Andrada e Silva, com a energia do seu caráter improvisa forças de mar e terra, acha recursos em abundância, e nos põe pela porta fora com a maior sem cerimônia possível. Nós aqui gastamos o tempo em falar e não fazemos senão registrar as desfeitas que vamos recebendo do Brasil".

As instruções que traziam as autoridades, naval e militar, da esquadra eram de desembarcarem tropa em Pernambuco, cuja situação se sabia confusa, ou seguirem logo para o Rio, conforme fosse mais preciso e urgente. Gervásio Pires Ferreira não queria mais tropa portuguesa em terra e, fazendo o governador das armas da província, José Correia de Melo, saltar desacompanhado e verificar as condições reinantes, conseguiu persuadi-lo da robustez do sentimento constitucional português de Pernambuco, embora tivesse aquele militar recebido a bordo mesmo informações desfavoráveis quanto ao sossego público. Melo Moraes, que dá disto conhecimento, ajunta que Correia de Melo era por natureza pacífico e conciliador, diferente do que estivera ocupando temporariamente o lugar, José Maria de Moura, o qual provocara reação e acabara por fugir para bordo da corveta Activa, não mais se encontrando no posto.

Drummond, que se achava então no Recife como emissário do centro - onde as notícias chegadas eram péssimas -, diz na sua autobiografia (158) que alcançou por seu lado convencer Francisco Maximiliano de Sousa de singrar para o sul com todas as forças que transportava, "sem que seja preciso revelar como logrou tal resultado". Melo Moraes refere que o processo de que Drummond se serviu para evitar que, com o reforço trazido da Europa, Pernambuco se convertesse numa outra Bahia, foi persuadir o chefe da esquadra da urgência para ele de atingir o Rio de Janeiro antes da partida da Divisão Auxiliadora, podendo assim prestar um incomparável serviço às Cortes e salvando até o príncipe e seu gabinete, que a guarnição brasileira mantinha em estado de coação.

O tom voluntariamente misterioso das palavras de Drummond faz supor que o móvel que apressou Francisco Maximiliano de Sousa não foi precisamente o indicado por Melo Moraes, antes alguma transação esboçada pelo mesmo Drummond e confirmada pelo príncipe após ler a carta do missus dominici para José Bonifácio, da qual era portador o chefe de divisão. O espírito de cordialidade que prevaleceu desde o começo faz crer nesta segunda hipótese. Não foi logo franqueada à esquadra a entrada da barra e mandaram-na fundear fora, escreve Dom Pedro ao pai (159) que "por o povo estar mui desconfiado de tropa, que não seja brasileira, e tem razão"; mas o próprio Melo Moraes relata que os dois comandantes, naval e militar, da expedição foram tratados com o maior agasalho logo que subscreveram o termo de isenção e obediência às ordens do governo da regência que lhes foi apresentado, sob pena de não terem víveres nem refrescos para a volta.

Privados do apoio já distante da Divisão Auxiliadora, dispondo de escassas simpatias na terra a não ser da parte dos seus compatriotas, estes mesmos divididos consoante seus interesses, os recém-chegados, campeões das Cortes e despachados como executores dos seus mandados, anuíram a tudo, pela razão aliás excelente de que lhes não era possível irem contra as condições impostas. A fórmula por eles assinada destoa porém pelo seu incondicionalismo absoluto (160) das petições irrequietas na sua dignidade dos comandantes da Divisão Auxiliadora.

O príncipe ainda requisitou a fragata Real Carolina, que crismou em Paraguassu, e ofereceu às tropas transferência para a guarnição do Rio como voluntários engajados por três anos, do que se aproveitaram (161) 894 oficiais inferiores e soldados (162). Dom Pedro escreve "que não quis que oficial algum passasse (afora os inferiores) a fim de não corromperem os soldados". E explicava ao pai: "Achei que estas passagens eram úteis por dois princípios, o primeiro porque fazia um bem ao Brasil recrutando soldados feitos, que depois acabam lavradores; e o segundo, porque mostrava que o ódio não é aos portugueses mas a todos e quaisquer corpos arregimentados, que não sejam brasileiros, a fim de nos colonizarem. Com este expediente se conseguiu reforçar os laços que nos uniam à nossa mãe-pátria, a quem dizemos que tem direito de nos admoestar, mas nunca de nos maltratar, sob pena de passar de repente de mãe a quem amamos, a maior e mais infernal inimiga".

A esquadra regressou a 23 de março, mais leve do que viera pois que mais de dois terços da expedição transportada ficavam nos quartéis do inimigo eventual. E Francisco Maximiliano de Sousa ainda achava e prevenia as Cortes de que pior poderia ter sido, não lhe sendo dado senão render à discrição toda a esquadra e tropa, sem possibilidade de resistência, se assim lhe tivesse sido exigido como tendo a expedição "sido enviada com hostilidade manifesta contra as incessantes reclamações dos deputados brasileiros" no Congresso (163). Cairu ajunta como explicação que "realmente declara a guerra, não o governo que publica o diploma de resolução de hostilidade, mas o que efetua o armamento hostil".

Foi uma viagem inglória essa do ponto de vista bélico, mas talvez proveitosa do ponto de vista político. Dom Pedro assim pensava e suas palavras (164) dão a perceber, melhor que qualquer documento oficial ou artigo de jornal, como se ia desprendendo o espírito brasileiro e como se ia ajeitando sua posição: "Se desembarcasse a tropa, imediatamente o Brasil se desunia de Portugal, e a independência se faria aparecer, bem contra minha vontade, por ver a separação; mas, sem embargo disso, contente por salvar aquela parte da nação a mim confiada, e que está com todas as mais forças trabalhando em utilidade da nação, honra e glória de quem a libertou pela elevação do Brasil a reino, donde nunca descerá. A obediência dos comandantes fez com que os laços que uniam o Brasil a Portugal, que eram de fio de retrós podre, se reforçassem com amor cordial à mãe-pátria, que tão ingrata tem sido a um filho de quem ela tem tirado as riquezas que possui".

Não liam as Cortes pela mesma cartilha. O chefe da expedição foi sujeito a processo e condenado pelo conselho de guerra a deixar o serviço: atendendo porém às circunstâncias atenuantes, foi sem discrepância recomendado à demência real.

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Tem sido assaz discutida ou pelo menos diversamente atribuída a prioridade na iniciativa da convocação na capital brasileira, no ano de 1822, de um conselho de procuradores das províncias, servindo de núcleo à representação nacional numa ocasião em que parecia quiçá prematura a reunião de uma Constituinte, por não terem as Cortes de Lisboa cumprido ainda integralmente sua missão, a saber, elaborado a Constituição do Reino Unido que devia dotar a "rica e vasta" seção americana da monarquia, "exposta aos males da anarquia e da guerra civil", de um centro de união e de força.

Já era porém mais que tempo para um corpo como esse, cujas atribuições comportariam aconselhar o príncipe regente, a mandado deste, nos negócios mais importantes e difíceis; examinar os grandes projetos de reforma submetidos à sua apreciação geral; propor ao governo as medidas e planos que considerasse mais urgentes e vantajosos ao bem da Monarquia e à prosperidade do Brasil; zelar cada um dos seus membros pelas utilidades da sua província respectiva. Era um verdadeiro conselho de Estado, destinado a futuro instrumento de preparação e interpretação de leis dentro do sistema constitucional.

Sua organização obedecia ao seguinte critério: as províncias que tinham quatro deputados nas Cortes escolhiam por meio dos eleitores de paróquia reunidos nas cabeças de comarca um procurador; as que tinham entre quatro e oito deputados, dois procuradores, e as que tinham mais de oito, três procuradores. A apuração cabia à câmara municipal da capital da província, regulando-se pela maioria de votos e sorteio em caso de empate; podendo contudo os referidos procuradores gerais ser destituídos, por falta de cumprimento das suas obrigações, mediante petição de dois terços das câmaras municipais em vereação geral e extraordinária e procedendo-se em tal caso à nomeação de outros.

Sua convocação em sessão tinha lugar por ordem do príncipe regente, ou por deliberação do próprio conselho quando lhe parecesse que assim o exigia a urgência dos negócios públicos. O príncipe presidia o conselho, havia um vice-presidente eleito mensalmente dentre os seus membros e os ministros tinham nele assento e voto. Os conselheiros gozavam do tratamento de Excelências, enquanto exercessem seu mandato, e o conselho tinha precedência nas funções publicas sobre todas as outras corporações do Estado, sendo seus privilégios e honras iguais aos dos conselheiros de Estado de Portugal.

A representação em favor da fundação deste conselho partiu do senado da câmara fluminense, apoiado pela junta de Minas, e o barão do Rio Branco, numa das suas notas à História da Independência de Porto Seguro, atribui mais circunstanciadamente a iniciativa ao grupo avançado de Ledo, Januário, Nóbrega e José Clemente Pereira, os quais resolveram no clube de que faziam parte que o senado fluminense propusesse tal criação ao regente. O alvitre foi aceito pela câmara em sessão publica de 8 de fevereiro e aprovados os termos da representação a subir à augusta presença do príncipe juntamente com a de Minas Gerais, para onde aqueles patriotas tinham escrito solicitando apoio.

Não se falou em escrever igualmente para São Paulo pela razão muito simples que dai fora donde realmente procedera a idéia, conforme aponta Melo Moraes ainda que sem dar suas razões. Na fala de José Bonifácio de 26 de janeiro, como orador da deputação da sua província, fala de largo fôlego que já viera de certo redigida de São Paulo, trata-se porém desta matéria em termos inequívocos.

Dirigindo-se ao "Anjo tutelar" do Brasil para que o fosse de "ambos os mundos", José Bonifácio, ministro havia nove dias, dedica ao assunto sua peroração: "digne-se pois V. A. Real declarar francamente à face do Universo...; que para reunir todas as províncias deste reino em um centro comum de união e de interesses recíprocos, convocará uma junta de procuradores gerais, ou representantes, legalmente nomeados... para que nesta corte, e perante V A. Real aconselhem e advoguem a causa das suas respectivas províncias;... Deste modo, além dos representantes nas Cortes Gerais, que advoguem e defendam os direitos da nação em geral, haverá no Rio de Janeiro uma deputação Brasílica, que aconselhe e faça tomar aquelas medidas urgentes e necessárias, a bem do Brasil, e de cada uma de suas províncias, que não podem esperar por decisões longínquas e demoradas".

O decreto respectivo é de 16 de fevereiro e foi referendado pelo próprio José Bonifácio. Não parece portanto exato o que diz Porto Seguro, a saber, que a idéia não agradou muito ao ministério por não ser de sua iniciativa. José Bonifácio não desprezava, sobretudo nessa ocasião, coisa alguma que fosse de natureza a favorecer laços que convinha apertar e que andavam reconhecidamente frouxos; por isso precisamente nas províncias em geral não despertou entusiasmo, antes provocou oposição a idéia.

Na capital gazetas houve também que a atacaram se bem que menos sensivelmente, prestando-se ela com efeito a críticas. Para os conservadores instituição semelhante era uma excrescência inútil, senão perturbadora da simplicidade do maquinismo governamental. Os liberais de preferência a consideravam anódina no seu papel consultivo, parecendo à primeira vista tratar-se até da reprodução de um projeto dos ministros de Dom João VI, o que bastaria aliás para tornar difícil conciliá-la com os projetos da gente de opiniões avançadas que a preconizava.

Foi na verdade o Reverbero que, perfilhando-a, pôs a idéia na circulação jornalística, antes mesmo da partida da Divisão Auxiliadora, com ardor tal que mais se diria tratar-se de um produto do próprio seio, não querendo visivelmente Ledo e Januário deixar exclusivamente nas mãos do príncipe e do seu absorvente ministro a organização do país, mesmo sobre a base autonômica que precederia a independente. O que para São Paulo e seus espíritos dirigentes constituía um processo de coesão, representava para eles um meio de predomínio, e tanto assim era que tendo sido adiadas as eleições dos procuradores, marcadas para 18 de abril, por motivo da oposição levantada na capital contra o ministério "paulista", o qual respondeu com vigor à provocação, o senado fluminense foi além na sua pretensão de organização constitucional e no seu afã por um regime representativo nacional.

José Bonifácio tampouco dispensava o regime representativo para dentro dele colocar as províncias dispersas e encaminhá-las juntas para uma existência distinta da portuguesa, para o que era no seu conceito primordial estabelecer sobre elas uma autoridade única e respeitada. Foi este fortalecimento do poder executivo central brasileiro o que José Bonifácio principalmente enxergou no conselho de Estado que Mareschal tinha todavia razão em qualificar de criação amorfa porque, para ser um cenáculo de luzes imparcialmente congregado com o fim de ilustrar e esclarecer o príncipe regente, trazia ele no bojo os defeitos inerentes ao seu modo de recrutamento por meio do voto popular com a renovação do mandato. Sua origem eleitoral dava-lhe assim, pelo apelo que se tornava preciso exercer sobre o sufrágio, acompanhado necessariamente de subterfúgios políticos, um cunho considerado pouco compatível com a sua estabilidade e conseguintemente com a gravidade, a proficiência e o prestígio que caracterizavam o conselho de Estado do Império.

Essa origem eleitoral equivalia a um pecado original para o diplomata austríaco, aos olhos de quem o conselho dos procuradores não passava no fundo de uma armadilha montada pelo governo para inspirar confiança e alcançar popularidade, graças a tal arremedo de participação da nação na responsabilidade dos seus destinos. Nestes tinham que colaborar o trono, que figurava de sol em torno do qual giravam os planetas, e os próprios planetas. O Brasil já nascia para a vida independente como uma federação que a coroa salvava da dissolução. Repetia-se na América do Sul o que pouco antes se dera na do Norte com os Estados Unidos: a nação que se organizava tinha uma dupla e mesmo tripla ordem de interesses, como o esboçara José Bonifácio nas instruções expedidas aos deputados paulistas às Cortes. Harmonizar esses interesses variados, que num dado momento podiam entrar em conflito com resultados fatais, era a tarefa construtora que se apresentava aos fundadores da nova nacionalidade.

Para o príncipe pessoalmente fora o Fico um desafogo contra influências que tendiam a peá-lo e ao mesmo tempo uma lição prática de governo, de que as Cortes queriam que ele fosse aprender, viajando, a teoria. Sua energia sobrepôs-se espontaneamente aos obstáculos erguidos contra a sua ação, mostrando que esta tinha que ser direta e resoluta para ser eficaz e fecunda.

CAPÍTULO XI

O REFLEXO DO "FICO" EM LISBOA E A TENTATIVA DE SUPREMACIA COMERCIAL

O primeiro efeito sobre as Cortes da agitação provocada no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais pelo conhecimento do teor dos decretos 124 e 125, foi de conciliação. O deputado português Pereira do Carmo propôs e foi adotada a criação de uma comissão permanente, composta de 6 portugueses e 6 brasileiros, à qual fosse confiado o estudo das questões relativas ao reino americano e dos meios de resolvê-las. Era simplesmente e avisadamente o meio de remover a matéria política candente da atmosfera carregada da sala das sessões para a atmosfera mais serena de uma sala de comissão.

Pareciam muitos compreender a gravidade da situação: Borges Carneiro não trepidou em exclamar que a corda não se deve apertar até que estale, e que entretanto outro não havia sido o processo seguido até então pelas Cortes. A comissão ficou organizada em março com os portugueses Pereira do Carmo, Trigoso, Guerreiro, Borges Carneiro, Moura e Annes de Carvalho e os brasileiros Antônio Carlos (São Paulo), Ledo (Rio de Janeiro), Pinto da França (Bahia), Almeida e Castro (Pernambuco), Belford (Maranhão) e Grangeiro (Alagoas). As disposições dos três primeiros membros portugueses, pelo menos, eram notoriamente simpáticas ao Brasil.

Do amplo inquérito e cotejo a que se entregou a comissão, resultou uma série de transações da natureza das que no Congresso Americano se denominam compromises, foram continuas para impedir que a questão servil originasse uma guerra de separação e dão freqüentemente boa saída às dificuldades supervenientes das questões embrulhadas. Obtiveram os brasileiros a subordinação dos comandos de armas e mesas de fazenda às juntas provinciais; o estabelecimento no reino americano de uma ou duas delegações executivas exercendo a regência em nome do rei e exercendo também as prerrogativas da coroa, permanecendo contudo Dom Pedro no seu posto até se organizar definitivamente a Monarquia e ficando - este era o ponto ganho pelos portugueses - as tropas lá estacionadas dependentes do alvedrio do governo de Lisboa. Outro ganho importante dos brasileiros era a regulação da condição precária do Banco do Brasil, sendo considerados divida pública os adiantamentos feitos ao tesouro por esse estabelecimento e providenciando-se para seu pagamento e liquidação.

Ainda o relatório da comissão não fora porém apresentado, quando chegou ao conhecimento das Cortes a representação da província de São Paulo aconselhando em termos acrimoniosos a repulsa de uma política que a sua junta antevia fatal ao Império. A linguagem empregada é que era julgada ofensiva e não foi aliás defendida pelos deputados brasileiros, embora contrários à idéia de serem processados os signatários do documento, a saber, o governo provisório de São Paulo. O fundo, a substância do ofício não oferecia em si agravo.

A fragmentação administrativa do Brasil "cortado em retalhos" no intuito de assegurar a autoridade suprema e exclusiva do governo de Lisboa; a abolição dos tribunais superiores; a adoção de legislação americana sem a participação nos debates da respectiva representação, para este fim eleita e tendo para o mesmo fim empreendido uma longa travessia que seria dispensável se bastasse o juramento prévio no Brasil, quando em contraste com este havia o artigo 21.º das Bases; a privação de um centro de ação executiva no reino ultramarino - eram outros tantos tópicos em torno dos quais tinha girado a discussão nas Cortes.

Podia condensar-se o antagonismo nos termos seguintes: Se as províncias brasileiras eram de fato e de direito províncias de Portugal, aos deputados portugueses era lícito assumirem sua função geral e legislarem por maioria para a seção que previamente se conformara com o resultado dos trabalhos legislativos. Se os brasileiros se colocavam porém no terreno da celebração de um pacto constitucional entre duas seções de um Estado e entravam no ajuste como elementos autônomos e não dependentes, cabia-lhes necessariamente voz ativa nas negociações e não lhes assentava receberem submissos o que lhes fosse arbitrado como favores políticos e civis.

Em Portugal ressoou o manifesto paulista como o primeiro toque de rebate dando aviso da catástrofe que se aproximava. Quiseram alguns duvidar de que fosse ele a expressão genuína do sentir público; outros, mais sagazes na interpretação e mais imprudentes no tratamento, falavam em sedição: a maioria compreendia que a ocasião era mais de acomodação do que de punição e reputava de mais vantagem para o bem público fechar então os olhos à insolência para só os reabrir quando ela pudesse ser rebatida, uma vez consolidada a união.

Não foi este o alvitre dos intitulados corifeus da regeneração. Apelaram para a desafronta da dignidade nacional ultrajada, para todas as expressões que sempre ferem e exaltam a imaginação popular. Os "treze infames de São Paulo", exclamou o orador Moura, como se se tratasse de criminosos da pior espécie. Manuel Fernandes Tomás, o responsável pela perturbação como diz Gomes de Carvalho, foi também o que maior perspicácia mostrou na emergência, pretendendo transferir o conflito para o campo econômico, a ver se encontrava nele meio menos irritante ainda que mais substancial de firmar o interesse da antiga metrópole, sem protesto da ex-colônia.

A supremacia política poderia em rigor ser imolada à comercial, mesmo porque era esta em suma a que se perseguia através dos princípios e das fórmulas. Essa supremacia adviria naturalmente a Portugal com o ter o mercado brasileiro como prolongamento ultramarino do português, enxotando-se a indústria estrangeira por meio da aplicação de um protecionismo que só aproveitava no entanto a Portugal, porque no Brasil seu efeito único era encarecer a vida e restringir a escolha dos artigos de consumo.

Se o Brasil aceitasse o sacrifício, Portugal estava salvo porque lhe voltaria automaticamente a prosperidade financeira; se rejeitasse, era preferível recorrer-se logo ao desquite, porquanto a vida em comum nunca mais seria agradável nem proveitosa. O mal está contudo em que se não chegou a semelhante resultado sem afrontar o volume dos sentimentos opostos e suportar o ardor dos despeitos insofridos. Tantos economistas, agricultores e comerciantes reunidos, gente de teoria e gente de prática, esqueceram o que ao príncipe acudia nas simples e sensatas palavras da sua carta de 19 de junho - "que os Estados independentes, a saber, os que de nada carecem, como o Brasil, nunca são os que se unem aos necessitados e dependentes; Portugal é hoje em dia um Estado de quarta ordem, e necessitado, por conseqüência dependente; o Brasil é de primeira e independente", pelo que a Portugal competia procurar a união e cimentá-la.

Como ousava a democracia constitucional arriscar o sofrer uma mutilação territorial, política e econômica dessa magnitude, que a monarquia absoluta tudo prevenira para que não ocorresse? Os deputados brasileiros entretanto cobravam coragem e os menos atrevidos deles articulavam recriminações. O prudente Araújo Lima aconselhava as Cortes a que não pensassem em castigos para a junta paulista porque se sairiam mal da aventura, não conseguindo dominar qualquer explosão revolucionária que se desse por esse motivo.

As sessões de 22 e 23 de março de 1822 assinalaram um torneio apaixonado e no entanto ainda circunspecto, o que não é tanto de surpreender porque a atmosfera política só entrou a ser borrascosa com as notícias chegadas do Rio sobre os episódios do Fico e da retirada da Divisão Auxiliadora. O mês de abril foi o dos combates azedos, já quase odientos, quando por um lado Fernandes Tomás começou a querer levar por diante o seu plano de reabsorção econômica do Brasil e por outro lado os deputados brasileiros entraram a ser alvo dos doestos dos seus colegas e dos apupos das galerias, a que dava francas ensanchas a indulgência da mesa, melhor respeitadora das más maneiras demagógicas que do justo ressentimento dos coloniais, que não mais o queriam ser.

O desabrimento chegou ao ponto de serem tratados de "depravados e ladrões" os partidários de Dom Pedro, entre os quais se incluíam o patriarca e seus colegas de gabinete. Pronunciou tais palavras Borges Carneiro, que se deixava por vezes arrastar a tais excessos pela febre oratória, esquecido de que poucos dias antes sugerira para com o Brasil um proceder mais generoso, sem o qual se desenvolveria "naqueles povos um espírito de reação, e chegaremos aos termos em que está a Espanha a respeito da sua América".

Antônio Carlos levantou o insulto, castigando a calúnia e desafiando que pudesse esta concretizar-se e comprovar o menor deslize da reconhecida probidade daqueles cidadãos conspícuos. O Andrada manifestou-se resolvido a renunciar o mandato à vista dos apodos populares e sobretudo da impassibilidade dos seus colegas europeus, a qual constituía um apoio indireta e aleivosamente prestado à insubordinação das tribunas. Outros representantes brasileiros deixaram até de freqüentar o Congresso, solicitando para isto autorização, por não sentirem suficientemente protegida sua liberdade de palavra. Queixavam-se também alguns de serem moralmente forçados a intervir nos debates, que se iam convertendo em retaliações, carregando desse modo achas para a fogueira.

Os remoques como que esvoaçavam em redor dos oradores de além-mar, saídos dos lábios dos seus irmãos portugueses e dos seus entusiastas. A permissão de não comparecimento às sessões, solicitada por vários, e a renúncia de Antônio Carlos foram ambas negadas, protestando Feijó, que pela primeira vez falava (165) porque desde sua chegada avaliara perfeitamente a situação como um beco sem saída, contra a acusação de medo que lhes era vibrada, advertindo com a autoridade de um moralista impregnado de estoicismo e a rudez de um patriota ignorante dos requebros palacianos que "o valor e a coragem consistem em vencer o temor quando convém encarar o perigo".

O futuro regente e consolidador do Brasil desunido pelas tendências federalistas apresentou por essa ocasião um projeto de lei de sabor original para o gosto de uma assembléia que só tratava muito empiricamente de soldar e desoldar duas metades. Consistia tal projeto em serem reconhecidas independentes, como de fato o eram mercê dos movimentos revolucionários a que tinham obedecido suas respectivas organizações provisórias, as capitanias brasileiras, ligando-se entre si por força do pacto constitucional, uma vez elaborado, apenas aquelas que neste sentido se pronunciassem por maioria de votos. Era o princípio da self-determination que fizera um século antes sua aparição.

* * *

A leitura do Diário das Cortes Gerais da Nação Portuguesa nos anos de 1821 e 1822 fornece a história mais documentada, mais interessante e mais lógica da independência brasileira. A evolução é rápida, mas está perfeitamente desenhada, que vai do espírito de união voluntária e consciente ao espírito de exclusão radical e refletida. Deputados mesmo que chegavam cheios de disposições benévolas, inclinados à boa harmonia entre os dois reinos, achavam-se após alguns meses a presa de amargo pessimismo, não enxergando outra solução senão a dos campos rivais. Ninguém, por exemplo, poderia haver preconizado mais sinceramente o dualismo do que Vilela Barbosa, a ponto de o incriminarem seus inimigos como um português renitente: entretanto a 18 de abril de 1822 era a sua uma das vozes mais enérgicas no capítulo das recriminações contra os atropelos de que estavam sendo vítimas os deputados brasileiros.

A participação da representação americana nesses debates memoráveis não só honra sobremaneira a cultura colonial seu espírito clássico e sua educação jurídica, como o seu tino político, sua aptidão organizadora e sua capacidade construtora. Ao mesmo tempo que em Portugal se ia comprometendo a solidez do edifício nacional e o próprio futuro da monarquia, melhor dito da nação, com a cizânia introduzida entre os elementos chamados a pactuar e unir-se, no Brasil vingava a concepção constitucional entre os que se dispunham a modelar a nova nacionalidade.

O sentimento nacional brasileiro era um sentimento em via de formação, que se estava manifestando no Brasil do mesmo modo que nas colônias espanholas. Se viesse a subsistir o antigo vínculo entre metrópole e colônias, que na América Portuguesa já fora substituído pelo laço ligando duas seções iguais pelos direitos e regalias, conquanto separadas pela imensidade do oceano, seria com a condição de coexistir com a soberania popular, regendo cada colônia ou reino seus próprios destinos e constituindo a liberdade civil a base de uma constituição nacional.

Vimos que Martinez de Rosas, desde que em 1811 se abrira a assembléia representativa chilena, estabelecera a distinção entre a pátria européia, representada pelo Rei, e a pátria americana, representada pelo congresso. Egaña fora mesmo mais longe e já cogitava de uma confederação dos países hispano-americanos, para a qual redigira um projeto em 254 artigos, dando bases sociais à construção política e combinando os princípios revolucionários antigos e modernos com as práticas e mesmo as utopias democráticas (166).

Era a aplicação já internacional do federalismo, que no Brasil constituiu também ideal dos mais avançados entre os partidários da independência, e que na sua forma negativa e dissolvente foi evitado pela concentração monárquica. O federalismo era avesso à simples autonomia do bloco ou dos fragmentos deste bloco com relação à mãe-pátria, porquanto representava uma união de soberanias próprias e distintas.

Em fevereiro de 1822 o Sul do Brasil já quase formava um bloco político, havendo verdadeiro entusiasmo pela pessoa do príncipe no Rio de Janeiro e em São Paulo, anuência tácita em Santa Catarina e São Pedro do Sul e concordância pode dizer-se ativa em Minas Gerais, pois que, não obstante certa discrepância doméstica, se revelava até pela remessa de forças para a capital brasileira. Minas constituía o fiel da balança e sua viva oposição à política interesseira das Cortes a faria, mesmo sem querer, pender para o lado nacional. A própria Cisplatina aderira a causa brasileira, continuando a guarnição de Montevidéu, com seus elevados soldos, a velar contra as tentativas de incorporação da Banda Oriental nas Províncias Unidas do Prata.

Pelas singularidades de opinião e pelas distâncias enormes, com tardias e mui escassas comunicações entre os núcleos de povoamento e de cultura, bem como pelo desconhecimento em que estes centros uns dos outros se conservavam, a perspectiva não podia deixar de ser de uma associação de esforços federativos. Desde o primeiro contato de vistas entre Dom Pedro e José Bonifácio se pensou aliás em conceder às administrações provinciais uma ampla esfera de ação, confinando as lutas partidárias locais ao seu terreno peculiar e mais acanhado cenário e facultando a operação das largas correntes de opinião.

Antes mesmo do Fico, portanto antes de se terem avistado príncipe e ministro, numa das cartas da princesa Leopoldina ao major Schäffer (167) escrita na véspera daquele episódio, se diz que os ministros da regência iam ser substituídos por filhos do país que fossem capazes, e que o governo seria administrado de um modo análogo ao dos Estados Unidos da América do Norte. Frei Staaten (Estados Livres) reza a carta, assim significando que se pensava numa confederação de Estados autônomos: nem podia o otimismo oficial ir então além desta concepção adiantadíssima, a que o Brasil só chegou em 1889 ainda sem o necessário preparo.

Mareschal confirmava pouco depois (168) estas palavras, ao dizer que a tendência se tornava cada dia mais americana. Não só se falava abertamente em Cortes no Brasil; "Monsieur d'Andrada vai mesmo mais longe - escrevia o austríaco - e ouvi-o ontem na corte, perante vinte pessoas, todas estrangeiras, dizer que era mister a grande aliança ou federação americana, com plena liberdade de comércio; que se a Europa se recusasse a admitir isso, fechar-se-iam os portos e adotar-se-ia o sistema da China, e que se quisesse atacá-los, as matas e montanhas lhes serviriam de fortalezas, perdendo os outros mais do que eles, numa guerra marítima. O tempo e o espaço eram as melhores armas do governo, como eram as da natureza".

Blaine não poderia imaginar um pan-americanismo mais completo. Ajuntava Mareschal que o programa de José Bonifácio comportava melhoramentos materiais, a saber, a construção de estradas e canais, uma administração imparcial da justiça, a abolição do tráfico negreiro, boas escolas e o melhoramento da raça por meio da ginástica e dos jogos atléticos para formação física da mocidade. É o que se pode chamar o programa de um homem viajado, que ele saberia expor com os dons ditos e as risadas com que, segundo Drummond, costumava animar sua conversação, sendo que as risadas tinham, no seu dizer, por fim sacudirem o diafragma.

A orientação de um governo assim em processo de organização mal poderia ser definida com precisão: o pendor era porém para favorecer as idéias que os absolutistas tratavam de subversivas, autorizando para isto uma franca liberdade de imprensa com que muito padecia o crédito da Santa Aliança, porque eram reeditadas nas gazetas do Rio as mais virulentas catilinárias contra ela dirigidas pelas folhas portuguesas e espanholas, e contra a qual já protestava o senado fluminense, reclamando o juízo de jurados para seus excessos e delitos.

A meio disso a corte tinha-se ido despindo de rigores aristocráticos, assumindo os guarda-roupas as funções dos camaristas que se tinham ido ausentando para Lisboa, porque é evidente que a velha nobreza da metrópole estava no seu papel, cultivando e honrando o antigo regime e tomando partido contra quanto favorecesse a separação. Neste ponto concordavam a burguesia e a fidalguia do reino europeu.

* * *

Um dos corolários da proposta do padre Feijó em Lisboa era a proibição às Cortes de despacharem tropas para o reino americano sem requerimento das juntas locais, competindo a estas o direito de removerem as forças portuguesas cuja presença se lhes afigurasse prejudicial e carecendo da sua sanção, para vigorarem dentro dos limites das suas jurisdições, as resoluções do governo de Lisboa. Era praticamente a independência, uma independência muito embora de partes desligadas, a que assim se aventava, mas estava de acordo com a vontade das Cortes, que tinham reconhecido as províncias à medida que estas se iam emancipando do antigo regime e adotando o constitucionalismo e que as tinham animado a assim viverem separadamente.

Entendia Feijó que desse modo, sem a ameaça de um Brasil unido que roubava o sono ao Congresso, a marcha dos negócios públicos poderia prosseguir sem os atritos que estava levantando. A situação de além-mar apavorava tanto o Congresso, onde nesse mês de abril de 1822 aumentou a representação americana com a chegada dos deputados de mais três províncias (169), que foi mandado vedar pelo governo de Lisboa ao cônsul português em Londres o visar manifestos de cargas de armas e munições para o Brasil, ao que Vergueiro chamava com espírito um começo de bloqueio. Frustrou-se aliás essa ordem, dada a 7 de março, com a segurança que, segundo nos informa Cairu, o secretário de Estado dos negócios estrangeiros no Rio de Janeiro deu oficialmente a 14 de junho ao cônsul britânico, encarregado de negócios, "de que as embarcações inglesas que chegassem aos portos do Brasil seriam admitidas nas alfândegas independente de despacho do consulado português em Londres e não seriam apreendidos os petrechos militares e navais que nelas se transportassem pela simples falta de licença do cônsul do governo de Portugal".

Efeito porventura de semelhante receio, as Cortes acabaram por aprovar por uma grande maioria, de 92 votos contra 22, a moção apresentada pela comissão luso-brasileira para ser adiado o parecer concernente às relações entre os dois reinos para quando se recebessem notícias mais circunstanciadas do Brasil e melhor se conhecesse o estado de alma da população em geral. A palavra moderada de Pereira do Carmo prevaleceu sobre as objurgatórias frementes de Moura, sobre o que Cairu qualifica de supra summum da malignidade dos espíritos infernais, de Pessanha, confiando nos pretos como "os instrumentos da vingança da fé ultrajada", e sobre o despeito explosivo de Fernandes Tomás vaticinando que o Brasil se separaria, restando apenas saber quando, e exclamando entre chamados à ordem: "A minha opinião é que o Brasil desde já se desligue e que fiquemos sós; venho a dizer que, se o Brasil se quiser separar, que o faça; ninguém o pode embaraçar, pois que é um direito, que tem todo o povo de escolher a forma de governo que melhor lhe convier; mas que se os seus povos se querem ligar a Portugal, se sujeitem às deliberações que o Congresso determinar; e se não quiserem estar por isso, que se desliguem e tirem daí o sentido".

Os atritos que surgiam, mesmo inopinadamente, eram de toda ordem: quando não políticos, econômicos. A discussão sobre as relações comerciais entre os dois reinos acabou por provar uma vez mais e à farta que não havia terreno verdadeiramente sólido para um acordo estável, menos ainda do que qualquer outro o mercantil. A industria portuguesa não tinha elementos para afastar a concorrência da inglesa, francesa ou americana a que já se habituara, o gosto ultramarino, nem a sua marinha mercante contava unidades bastantes para suprir o tráfico entre os dois continentes. Entretanto o projeto das Cortes de 15 de março pretendia, pelo fato de serem portuguesas as províncias do Brasil, considerar de cabotagem esse tráfico transatlântico, a fim de dar aos navios do reino europeu o exclusivo do transporte. Uma navegação de monopólio oferece sempre lucros fabulosos mas à custa de fretes onerosos que pesam sobre agricultores e consumidores, pelo menos dificultando a vida pelos preços caros, quando não estiolando a produção sob os encargos.

O que bem mostra a sinceridade que até certo tempo reinou nos desejos de união entre as duas seções da Monarquia, os quais naturalmente assim prosseguiam em Lisboa já quando além-mar iam mudando inteiramente de aspecto e de intenção, é que a deputação brasileira se fora conformando com a regulação das relações mercantis pela orientação lusitana e achava mesmo razoável que Portugal promovesse seus interesses e proventos; e se o não achava, resignava-se em todo o caso à inferioridade do seu fado, que tais prejuízos lhe acarretava.

Havia também que levar em conta a diferença entre o tamanho e a população dos dois reinos: assim, ao passo que Portugal apenas consumia 8% do açúcar brasileiro (16.000 caixas em 200.000), o Brasil absorvia metade da exportação dos vinhos portugueses (170).

O regime visado pela maioria portuguesa das Cortes era de absoluto monopólio, não se permitindo à concorrência estrangeira romper a proteção aduaneira nem mesmo para suprir as deficiências da produção nacional. Ora os direitos cobrados nas alfândegas brasileiras forneciam o melhor da receita do reino americano, acrescendo que os impostos indiretos são sempre os que melhor se recebem e menos protestos levantam. Neste caso seria preciso esperar pela expiração do leonino tratado de 1810 com a Grã-Bretanha para que os artigos portugueses pudessem entrar num regime de favor que ao mesmo tempo não desfalcasse as rendas aduaneiras. Era justo que a produção portuguesa pagasse taxas menores de entrada no Brasil, mas não o era que tal tratamento do mais favorecido se estendesse a outros países ou que Portugal se locupletasse com os ganhos da pauta aduaneira.

No intuito de restituir à marinha nacional o seu antigo papel de distribuidora dos gêneros coloniais, a comissão das Cortes impôs um direito proporcional de 1% para a exportação ultramarina feita em navios portugueses e de 6% para a que se utilizasse dos navios estrangeiros, exceção feita do algodão, cujo imposto era de 10%. Não contente com isso, por uma disposição que já era efeito de pura ganância em detrimento da economia brasileira, aquelas taxas de 6% e de 10% ficariam reduzidas a 2% se as embarcações estrangeiras fossem carregar nos portos portugueses o que as embarcações nacionais - nacionais européias - tivessem transportado de além-mar.

Desertaria portanto a navegação estrangeira os portos brasileiros que a sábia resolução de Dom João VI de 28 de janeiro de 1808 abrira ao comércio universal. O fito era palpável: fazer reviver as frotas de comercio portuguesas, pelo menos entre as duas seções da monarquia, posto que com sacrifício de uma das seções. Gomes de Carvalho observa inteligentemente que os portos da seção americana se fechariam por si, pois que os navios que deixassem de lá ir prover-se, deixariam ipso facto de lá ir abastecê-los, fazendo a mais longa viagem, entre o Brasil e Portugal, em lastro.

A grita foi geral entre a deputação brasileira, tão bem disposta a princípio mesmo a admitir a iniqüidade do tratamento: o conselho de Borges Carneiro não foi seguido e a corda esticou-se em demasia. Ao pernambucano Zeferino dos Santos, que se ocupou de todas estas questões econômicas com afã e proficiência juntou-se o verbo irritado de Antônio Carlos para bradar que os seus patrícios não eram selvagens e compreendiam onde queriam chegar seus irmãos de aquém-mar, Era o restabelecimento inequívoco do antigo empório - a colônia explorada pela metrópole - e valia incomparavelmente mais essa corretagem do que qualquer atividade fabril a que se entregasse o reino europeu.

A emenda leal e conciliadora de Zeferino dos Santos era para que a taxa de navegação fosse igual para os gêneros expedidos do Brasil ou reexpedidos de Portugal para o estrangeiro. A questão ficou suspensa já no mês de julho, aliás para nunca receber uma solução.

CAPÍTULO XII

A QUESTÃO DA CISPLATINA

Empenhadas as Cortes em minguar em tudo e por tudo o prestígio do estado ultramarino como reino autônomo, não se contentaram com as medidas já adotadas nem com os planos, uns maquinados, outros a caminho de execução, para a recolonização dessa seção da Monarquia. Entenderam privar o Brasil da conquista de Dom João VI, que tanto se desvanecia de haver dotado o imenso domínio com sua fronteira natural ao sul. Chegaram a pensar em trocar a Banda Oriental, torrão fertilíssimo, favorecido pelo clima e por todas as circunstâncias naturais, pela cidade de Olivença, com que ficara a Espanha na curta campanha de 1801.

Dom Pedro declarou um dia em conversa a Mareschal171 que quando mesmo lhe mandassem ordem de evacuar a Banda Oriental, o não faria; "teria sido talvez melhor não a ter tomado, mas abandoná-la depois do que custou, seria rematada loucura. Nem havia a quem entregá-la, pois que os espanhóis se não achavam em condições de reocupar essa sua antiga colônia".

Pensaram por fim as Cortes em aproveitar contra o próprio Brasil o escol do exército lusitano, veteranos das campanhas peninsulares, com que os generais de Dom João VI se tinham assenhoreado desse território que os portugueses nunca se tinham resignado a sacrificar em proveito de outrem, embora com violação da partilha geográfica estipulada. Eram 5.000 os voluntários reais de que se compunha a expedição: com as baixas estavam reduzidos a 3.500, que tantos eram os que ocupavam Montevidéu.

Além das dificuldades domésticas com que lutava, ao Brasil da regência fora pois também legada uma questão externa. E sinal certo de soberania o ter destas questões, e o Brasil jactava-se de soberano depois que nas festas da elevação da sua categoria política, por ocasião da aclamação de Dom João VI, o índio simbólico da peça principal dos fogos de artifício se cingira do manto real e da coroa sobre o saiote e o cocar de penas.

É curioso que a incorporação legal da província cisplatina, para anexar a qual o monarca português emigrado para o solo americano se valera da anarquia em que se debatiam os platinos, tivesse sido levada a efeito em plena crise da nacionalidade brasileira, quando a desunião prevalecia ainda entre a maior parte das províncias ultramarinas e a regência estava longe de contar com uma adesão unânime.

A 20 de março de 1821 a oficialidade da Divisão dos Voluntários de El-Rei, abstração feita do seu comandante tenente-general Lecor (depois barão e visconde da Laguna), fizera um manifesto aderindo à Constituição Portuguesa, protestando contra o decreto que a desligara do exército de Portugal, do qual se considerava um destacamento, reputando qualquer deliberação em contrário uma falta às reais promessas, solicitando sua rendição e reclamando a organização de um conselho militar de oficiais com o general Lecor como presidente.

A decisão do congresso extraordinário, ratificando a 18 de julho de 1821 o voto várias vezes expresso pelo cabildo de Montevidéu e preferindo federar-se com o Brasil a formar um estado independente, foi uma contribuição poderosa trazida à causa nacional, mas também foi um dos muitos atentados contra o direito público e contra o princípio das raças que a história registra, cometido pelo suborno do general Lecor e sob a intimidação dos seus voluntários reais.

A ocupação da Banda Oriental fora um ato de pura e franca conquista estrangeira, pondo remate a uma luta civil que reduzira a população de Montevidéu a um terço e assolara uma região feracíssima (172). O governo português escudara-se com a argumentação capciosa de que se não apoderava de província alguma alheia: apenas protegia seus interesses num território que já se declarara independente e sobre o qual lhe dava direitos sua vitória de Tacuarembó. A administração aplicada a esse território desde 1817, no intuito de assegurar a continuidade da sua posse, foi porém de caráter militar.

A oposição armada de Artigas e da grande maioria da população à sujeição ao domínio português constituía uma manifestação bastante da vontade popular; mas para que esta se convertesse em vontade nacional, seria mister subtrair os representantes congregados às influências de ordem diversa que sobre eles agiram, levando-os a declararem que a Banda Oriental não oferecia condições para ser por si uma nação, faltando-lhe recursos e meios para garantir sua independência. De fato a resistência durante quatro anos dos montoneros uruguaios, estendendo suas depredações desde o Rio Grande até Buenos Aires, Entre Rios e Paraguai, arruinara e esgotara esse fragmento do vice-reinado platino.

Tão prolongado estado de guerra dissolvia, no conceito de um dos oradores do congresso extraordinário, todo convênio, todo pacto, toda liga anterior. Não o entendiam contudo assim as Províncias Unidas do Prata, invocando um passado prévio muito mais dilatado e muito mais honroso. O governo de Buenos Aires fez formalmente conhecer seu desígnio de reaver o território perdido. Por sua vez reclamava a Espanha aquilo que fazia parte integrante dos seus domínios: somente a Espanha constitucional tinha a pesarem sobre sua organização problemas mais urgentes de resolver. Além disso sua política exterior assentava sobre a confraternidade com Portugal, igualmente constitucional muito por obra e graça dela.

A atitude das Cortes com relação à Província Cisplatina do Brasil estava pois de antemão traçada, desde que por um lado essa província seguia o destino do Brasil unido, sua adesão reforçando o reino americano sem proveito para Portugal, e por outro lado havia que corresponder aquele sentimento de cordialidade internacional, precioso para a garantia das instituições democráticas dos dois países ibéricos, surdamente minadas pelas forças da reação. Nessas condições fácil era, mesmo porque era lógico, proclamar que a conquista efetuada pela monarquia absoluta de Dom João VI ofendia as bases da justiça que a regeneração viera firmar.

Pensou-se então primeiro na troca por Olivença, praça de 5.000 habitantes, cuja transferência de soberania fora sancionada pelo tratado de Badajoz, de 1801, não ocorrendo a retrocessão nem mesmo por virtude da recomendação obtida pelos plenipotenciários portugueses ao congresso de Viena, o qual obrigara a corte do Rio de Janeiro a restituir sem compensação a Guiana Francesa. Esse tratado de Badajoz era precisamente aduzido no Brasil como anulando o de 1777, o qual reconhecera o domínio espanhol nas duas margens do Prata, mas não chegara a ser posto em prática por falta da respectiva demarcação.

A incorporação efetuada após o regresso de Dom João VI para Lisboa e em virtude das últimas determinações por ele deixadas a respeito, efetuara-se com todas as aparências de liberdade e de legalidade. No regime de autonomia que devia ser o do dualismo, ao Brasil interessava principalmente o caso: se na ocupação de Montevidéu se achavam empregadas tropas portuguesas, eram tropas brasileiras as que guarneciam a fronteira do Rio Grande, cuja salvaguarda fora o pretexto da expedição do general Lecor.

Da guarnição de Montevidéu fazia também parte o batalhão de Pernambuco, embarcado para o sul depois de debelado o movimento de 1817. O estado do tesouro brasileiro, exangue na expressão de Cairu, determinou atraso grande no pagamento dos soldos, e esse batalhão e o regimento de infantaria ensaiaram a 30 de dezembro de 1821 um pronunciamento que o general Lecor prudentemente evitou se consumasse. Outras tropas, porém, acantonadas fora da praça seguiram-lhes o mau exemplo com "urgência mais peremptória" (173) e o general-comandante teve de recorrer aos meios de guerra, exigindo dos habitantes, de acordo com a junta de naturais do país, a quantia de 300.000 pesos com que fazer frente à dificuldade.

A Província Cisplatina chegou a eleger um deputado às Cortes de Lisboa, o Dr. Lucas José Obes, o qual veio porém consignado ao príncipe regente para que dele fizesse o que lhe aprouvesse. Escrevia Dom Pedro ao pai (174) que "este D. Lucas" partira com as instruções seguintes: "Vá representar nas Cortes a província de Montevidéu, e saiba o que querem lá dispor dela, mas em primeiro lugar vá ao Rio, e faça tudo que o Príncipe Regente do Reino do Brasil, de quem esta província é parte componente, lhe mandar, se o mandar ficar fique, se continuar, execute". Dom Pedro ajuntava que o mandara ficar no conselho de procuradores, que se ia eleger, "por ele me dizer que antes queria os remédios do Rio, do que de duas mil léguas, e era a razão de se terem separado da Espanha".

D. Lucas José Obes não fazia sacrifício, nem mesmo político, deixando de continuar sua rota. Os interesses do seu Estado achavam-se ligados aos do Brasil. A Cisplatina nunca poderia ficar unida a Portugal se uma vez o Brasil se separasse deste e, a darmos crédito ao representante uruguaio, era pelo contrário suscetível o Brasil de dilatar seu poderio na América Meridional. "Deu-me a entender - escrevia o príncipe (175) - que Entre Rios também se queria unir, e Buenos Aires confederar, por conhecer que nós somos os aliados que lhes fomos dados pela Providência, assim como eles para nós".

Era plausível que alguns assim entrevissem o futuro, desde que a anarquia se implantara no Rio da Prata por forma tal que se tornara lícito descrer de que ali pudesse jamais voltar a ordem, a não ser pela união e sob a influência de um fator que representasse legalidade e cultura. Da Cisplatina pelo menos, nem o governo da regência, nem depois o do império quis absolutamente abrir mão, referindo-se Melo Moraes ao ofício secreto de 2 de março de 1822 em que José Bonifácio "instrui o barão da Laguna sobre o modo de se conduzir com as autoridades (locais) em proveito da união".

Se tivesse alcançado Lisboa, teria D. Lucas José Obes ensejo de participar com autoridade única no debate que em abril se travou nas Cortes sobre a evacuação de Montevidéu e em que se fizeram ouvir do lado brasileiro Fernandes Pinheiro, Antônio Carlos, Borges de Barros, padre Marcos Antônio de Sousa (depois bispo do Maranhão) e Muniz Tavares. Infligindo solene reprovação ao ato internacional que se seguira à organização do Reino-Unido, a comissão de negócios diplomáticos do Congresso apresentara uma moção para a retirada das tropas portuguesas da Banda Oriental, em nome dos princípios políticos superiores que tinham dirigido a revolução de 1820 e animavam a nação lusitana, ''já que por ser zelosa defensora da própria independência se achava moralmente obrigada a respeitar a alheia, e já que desaparecida a anarquia, tinham desaparecido os motivos do proceder de 1816". O exército de ocupação ficaria à disposição do poder executivo português "para lhe dar o ulterior destino que julgasse conveniente".

O melhor, no entender de muitos em Portugal, seria reforçar na Bahia o baluarte levantado pelo general Madeira e donde se contava que partiria a reconquista colonial que estava falhando pelos meios parlamentares e administrativos. No Brasil, por causa seguramente dessa possibilidade, foi o parecer da comissão das Cortes mal recebido: independente mesmo disso, o sentimento público no Rio de Janeiro, principalmente entre os realistas, repelia qualquer intento de imolar a Cisplatina a quaisquer outras combinações mais favoráveis a Portugal (176).

A Colônia do Sacramento fora um ninho de contrabandistas, donde se fazia com Buenos Aires um escambo altamente frutuoso. Agora Montevidéu representava a chave do intercurso mercantil com o Uruguai e o Paraná e as relações de interesse assim criadas com o Rio da Prata de certo influíram naquela opinião hostil à renúncia, pelo receio de ver cerrar-se ao intercâmbio estrangeiro posição tão importante do ponto de vista econômico, o que não deixaria de acontecer no caso de restituição à soberania espanhola.

A conservação da Banda Oriental representava para o Brasil uma vantagem mercantil, política e estratégica de que ele seguramente se não quereria despojar. Se entre as províncias do norte a impressão era menos marcada e mais frouxo o apego à conquista de Dom João VI era porque a distância e o alheamento em que viviam as províncias não permitiam que se concebesse tal interesse como sendo de ordem vital para o conjunto. Com a independência é que viriam uma maior uniformidade de juízos e uma maior conformidade de sentimentos.

A moção de retirada caiu nas Cortes, na sessão de 2 de maio de 1822, por 84 votos contra 28, influindo seguramente para tal resultado o empenho que todo povo mostra em conservar aquilo de que uma vez se apossou. Bastantes membros do Congresso estimavam sinceramente o rei e não queriam contrariá-lo desmanchando um cometimento que fora tanto do seu peito. A popularidade de Dom João VI é indiscutível apesar da sua fraqueza, antes física que moral: o encarregado de negócios de França no Rio de Janeiro observava na sua correspondência oficial que nas verrinas saídas dos prelos libertados do Rio de Janeiro o monarca era sempre pessoalmente respeitado.

Entre a representação brasileira, mesmo a que se não deixava levar pela consideração de que abandonar a Cisplatina ao seu destino era alienar os benefícios de um tráfico altamente prometedor, havia o temor, que para os portugueses constituía pelo contrário um incentivo, de que a continuação da ocupação pudesse servir para futuras transações com espanhóis ou com outro povo. Terras do Brasil não eram o mesmo que as terras patrimoniais de Portugal: eram terras de índios, sem tradições e sem história, que tanto fazia atribuir a este ou aquele. Barbacena escrevia de Londres a José Bonifácio (177): "Não é possível que V. Exa. saiba até aonde chega o ódio, e sinistras intenções das Cortes de Lisboa sobre o Brasil. Quiseram primeiramente ceder aos franceses a margem esquerda do Amazonas a troco de Tropas que fossem subjugar o Brasil, mas o Governo Francês repeliu toda e qualquer negociação. Quiseram depois renovar o tratado de comércio com a Inglaterra, garantindo esta o atual sistema do Governo de Portugal, e todas as alterações que ele fizesse no Brasil, mas esta proposição ainda foi repelida com mais desprezo do que fizera o Governo Francês. Projetam agora abandonar Montevidéu, ocupar Santa Catarina, revolucionar as Províncias do Norte, e chegam mesmo a execração de lembrar o levantamento dos negros".

CAPÍTULO XIII

OS GRAVES PROBLEMAS POLÍTICOS DE MINAS GERAIS, BAHIA E PERNAMBUCO

No mesmo dia da partida da Divisão Auxiliadora para Portugal (15 de fevereiro) recebia o príncipe regente no Paço da Cidade a deputação de Minas Gerais que vinha, tendo à sua frente o vice-presidente da junta mineira, desembargador José Teixeira de Vasconcelos, manifestar ainda que com alguma tardança os sentimentos da província com relação aos famosos decretos de 29 de setembro de 1821. A aludida demora fora o efeito de rumores de agitação contrária ao movimento nacionalista local, os quais vieram aliás a confirmar-se.

A deputação não ocultava sua animada versão à atitude das Cortes para com o reino americano e fazia votos pela reunião no Brasil de outra assembléia representativa que elaborasse sua legislação particular e adequada às condições do Brasil, tendo em vista o que representara o povo fluminense quando com grande acerto lembrara ao príncipe que "há uma distância mui considerável entre o meio-dia da Europa e o meio-dia da América: a natureza humana aqui experimenta uma mudança sensível, um novo céu, e por isso mesmo uma nova influência sobre o caráter de seus indivíduos; é impossível que povos classificados em oposição física se possam reunir debaixo do mesmo sistema de governo; a indústria, a agricultura, as artes em geral exigem no Brasil uma legislação particular, e as bases deste novo código devem ser esboçadas sobre os locais onde depois hão de ir ter sua execução".

Também a deputação mineira entendia que em cada província se organizassem todos os tribunais indispensáveis às necessidades da sua população. Não havia necessidade de serem de acordo com os modelos obsoletos cuja abolição as Cortes justificavam pela sua disparidade com o meio constitucional. A comissão especial dos negócios do Brasil assim se referia ao assunto, como que respondendo às críticas formuladas: "É pasmoso sobremaneira que se queira a conservação de Tribunais que tanto peso fazem à nação e que estão em perfeita contradição com o sistema representativo por ela admitido. Uma representação formada da flor da nação, não é mister escorar-se nas fórmulas decrépitas de corporações permanentes, para quem o dia de hoje é como o de ontem. Semelhantes estabelecimentos são o luxo da ordem social, que a política reforma, todas as vezes que na organização de um país se olha para a utilidade e não para o aparato".

A junta mineira resolvera que os deputados eleitos da província, em número de treze, não seguissem para Lisboa "sem Minas saber a decisão de tudo" - escrevia o príncipe a seu pai (178) - e declarava mais "que seja qual for a decisão sobre a minha retirada, ela sempre se oporá a que eu regresse a Portugal, custe-lhe o que custar. Estimarei que V. M. faça constar isto tudo ao soberano Congresso para que ele assim como ia por uma precipitada deliberação acabando a Monarquia, tome em consideração as representações justíssimas feitas, e agradeça a salvação da nação aos briosos paulistas, fluminenses e mineiros".

No seu discurso o desembargador Teixeira de Vasconcelos, falando pela junta, recordou quanto Portugal era devedor à capitania de Minas Gerais, antes de juntar os rogos desta província para que Dom Pedro ficasse e aguardasse a resposta das Cortes. Nos cento e dezenove anos que decorrem de 1700 a 1819, o quinto do ouro subira a 553 1/2 milhões de cruzados, calculando em 1.200 réis a oitava e não falando na quantidade de ouro que não era manifestado nas casas de fundição e que por essa forma se subtraia à cobrança da porcentagem real. Todo esse metal precioso ia para Portugal.

O desembargador Teixeira de Vasconcelos era o porta-voz da maioria apenas da junta, cuja minoria não aprovava, nem a homenagem ao príncipe que equivalia ao mais formal reconhecimento da sua autoridade de regente, nem a suspensão da viagem dos representantes às Cortes. Com efeito, enquanto a deputação vinda de Vila Rica assim fazia ato de adesão ao governo central brasileiro e a cidade do Rio de Janeiro punha luminárias por esse motivo e pelo da partida de Jorge de Avilez e da sua tropa, estalava na capital de Minas um pronunciamento às ordens do tenente-coronel português da cavalaria de linha Pinto Peixoto, revolucionariamente aclamado brigadeiro. Esse movimento, favorecido pela atitude dissidente e a breve trecho rebelde, de dois membros da junta, obedecia a inspiração do juiz de fora Cassiano Espiridião de Melo Matos e tendia a colocar de novo a província dentro da órbita da influência portuguesa, não se pode dizer na sua dependência, porquanto o novo governo avocava atribuições ilimitadas e tomava providências sobre todas as matérias, quando o governador legal, que era D. Manuel de Portugal e Castro, não queria mais do que retirar-se deixando em funções uma junta provisória prestando obediência às Cortes. Ele repelia a idéia de ver suceder-lhe a luta armada que a resolução do príncipe regente frustou.

Chegada a informação ao Rio de Janeiro, não se limitou Dom Pedro a esperar o desenrolar dos acontecimentos para assumir uma atitude. Decidiu ir em pessoa providenciar sobre o seguimento dos sucessos políticos e, sem anunciar previamente sua viagem, partiu a 25 de março, apenas acompanhado do desembargador Estevão Ribeiro de Rezende (futuro marquês de Valença) e de dois criados, deixando José Bonifácio praticamente na qualidade de regente, pois que lhe confiava a presidência do conselho de ministros para o despacho do expediente das secretarias do Estado e repartições públicas.

O governo anárquico de Minas não tinha elementos para firmar-se, apesar de ter chamado a si o direito das nomeações: com a presença de Dom Pedro logo ruiu do seu frágil pedestal. Recebido com entusiasmo em Barbacena, São João d'EI Rei, São José e Queluz, o príncipe parou a três léguas de Vila Rica, no capão de Lana, e mandou Estevão Ribeiro de Resende, nomeado interinamente secretário de Estado, cominar o governo provisório, perguntando-lhe se o reconhecia ou não como regente do Brasil, pois não queria empregar a força armada, nem expor o povo e a tropa de Vila Rica a serem imolados por esses facciosos de cuja existência lhe chegara a notícia, tanto assim que ordenava ao tenente-coronel, comandante da cavalaria de linha de Minas Gerais, José da Silva Brandão e ao coronel de milícias Sousa Guerra Godinho, que prendessem Pinto Peixoto e o conduzissem ao Capão de Lana, onde pernoitava e para onde convocava toda a guarnição de Vila Rica a fim de fazer sua entrada na capital mineira, "acompanhado de grande guarda, como convinha ao decoro de sua real pessoa". Igual ordem de prisão de Pinto Peixoto era dirigida ao governo provisório, do qual dois membros, desembargador Manuel Inácio de Melo e Sousa e coronel José Ferreira Pacheco, tinham ido ao seu encontro a fazenda de Cataguases, respondendo-lhes Dom Pedro que "já era tarde", embora lhes permitisse acompanharem a comitiva.

Constam estes pormenores do ofício-relatório que dos incidentes da sua viagem mandou o príncipe dirigir por Estevão Ribeiro de Resende ao ministério no Rio, dele constando também o que as outras narrativas do episódio no geral referem - que em Vila Rica, em oposição ao sentimento dominante, estava preparada a resistência contra a entrada do príncipe como regente, desobedecendo a junta às suas ordens e simulando até a princípio ignorar sua entrada na província. Entretanto essa entrada fora mais do que ruidosa, fora triunfal.

Dom Pedro teve a felicidade, que foi uma habilidade, de se não deixar intimidar nessa emergência pelas conseqüências do seu ato, e pelas vilas por onde ia passando e onde lhe chegavam os ofícios de adesão e reconhecimento das câmaras das Vilas pelas quais não passava, tinha ido mandando os comandantes da pouca tropa de linha fazerem marchar seus esquadrões, os da milícia fazerem mover seus batalhões e os capitães-mores congregarem suas ordenanças, formando-se para a eventualidade da resistência manter-se outros corpos, de voluntários, sendo o prazo dado no Capão de Lana.

Relata porém uma versão que Pinto Peixoto por si se dirigiu até o local onde parara o príncipe, a fim de beijar-lhe a mão e dar garantias da segurança e sossego da cidade. Segundo outra versão, que é a verdadeira pois que se acha, ainda que não terminantemente, assaz claramente corroborada pelo ofício - relatório de Estevão Ribeiro de Resende (179), a ordem de prisão foi cumprida e o oficial revoltoso assim trazido à presença de Dom Pedro, que "depois de o ouvir, conhecendo a sem razão com que fora denunciado, generosamente lhe mandou entregar a espada". Melo Moraes de conta própria refere, e sua narrativa pode afinal casar-se com a de Estevão Ribeiro de Resende, posto que esta mais diplomática por ser oficial, que Pinto Peixoto caiu aos pés do príncipe, o qual o rebaixou do posto de brigadeiro, ilicitamente grangeado, e o responsabilizou pela manutenção da ordem por ocasião da sua joyeuse entrée, mas no dia imediato o promoveu efetivamente por mercê sua e em virtude dos poderes que lhe andavam delegados.

Ainsi se vengent les rois... se é que o futuro imperador, a quem não faltava o senso das realidades e que temperava o seu quixotismo com o sal do bom senso, não procedeu desse modo para evitar de se indispor com a tropa, entre a qual era Pinto Peixoto popular, e ter talvez que voltar atrás sob coação. O comandante do novo corpo de caçadores criado pela junta provisória e que, juntamente com Pinto Peixoto e o juiz de fora presidente da câmara, eram os espíritos dirigentes do motim abortado, foi despachado para o Rio, para onde resolveu o príncipe que fosse também o batalhão de caçadores a render o esquadrão de cavalaria mineira mandado como reforço.

Para o Rio de Janeiro levou o príncipe consigo Pinto Peixoto, apresentando-se com ele no teatro em delírio. Antes disso, escrevia Estevão Ribeiro de Resende que em Vila Rica mesmo o príncipe o incorporara no seu séquito como comandante das armas interino, uma vez que ele veio render-lhe preito logo depois da junta, à qual fora intimado o comparecimento e o conseqüente reconhecimento do caráter político do príncipe regente. Aliás em rigor esse reconhecimento era exigido antes para impressionar a população e desprestigiar de todo o governo rebelde, já pelo príncipe declarado cassado, antes de partir, pelo decreto de 23 de março, no qual faz sobressair que a junta agora dissolvida e que fora aprovada por efeito "da sua bondade paternal, apesar de uma parte dos membros dela ter sido eleita por subornos e conluios, havia reunido em si não só o poder executivo e econômico, mas até o legislativo e judiciário, com manifesta rebeldia às Cortes, a El-Rei e ao seu delegado".

Com o ofício-relatório de Resende concordam todas as descrições da efusão do acolhimento dispensado por Vila Rica, excedendo toda a expectativa e encantando os que assistiram a semelhante espetáculo, que foi no entanto igualado pela recepção brilhante de Mariana, onde entre outros dísticos festivos se lia o seguinte:

Consigo não traz Pedro Marte irado;
Traz a filha de Themis ao lado.

Nessas vilas, como nas outras, foram tocantes as demonstrações em honra do príncipe. Eram Te Deums solenes, cortejos de caráter a um tempo religioso, civil e militar imponentes, arcos ornamentais, festões de seda e colchas de damasco nas frontarias das casas, crianças simbolicamente vestidas, chuva de flores, girândolas de fogo, bombas e roqueiras, músicas, nuvens odoríferas de bálsamos e aromas que se queimavam. Tem-se a impressão de que foi uma manifestação espontânea, a que não presidiria talvez um gosto discreto mas da qual trasbordava genuína simpatia, com muito gasto de galão de ouro, muita lhama de prata, muita figura emblemática e muita alegria.

Não pode haver dúvida da sinceridade do júbilo que reinava na grande província, nem da dita que ao príncipe se deparou e que lhe permitiu dessa vez abafar a discórdia das facções e sobrepor-lhes, depois de eliminado o governo anárquico sem derramamento de sangue, a fórmula amável da concórdia juntamente com o rígido princípio da autoridade. Não descurou Dom Pedro o organizar a reação e o seu paço provisório de Capão de Lana esteve por um triz a converter-se num acampamento para debelar "os malvados", mas o seu coração estimou que se lhe oferecesse ensejo de aplicar as nobres e humanitárias palavras dirigidas pelo regente aos fluminenses depois da partida da Divisão Auxiliadora: "Eu teria visto com viva mágoa frustrados todos os meus votos a favor da humanidade, acesa a guerra civil, e vítima de seus horrores povos inocentes, que anelam viver livres e tranqüilos debaixo do império das leis. Não é só com as armas tintas de sangue e em campos juncados de cadáveres que se alcança honrada fama; com a vossa judiciosa moderação, e segura confiança em meus paternais cuidados, e ordens do governo, foi mais belo e honroso o vosso triunfo do que se o conseguisses em combates, ainda com assinalada derrota dos inimigos".

O regresso foi feliz como o fora a ida e nele pôs Dom Pedro toda a alacridade, então juvenil, do seu temperamento. Anos depois seria ele, como imperador, recebido nos mesmos sítios com dobres a finados, pelo assassinato em São Paulo do jornalista Badaró. Então fora tudo como que um sonho que se concretizasse, por um lado na consolidação da sua autoridade executiva sobre uma fração importantíssima do território brasileiro; por outro lado na sua definitiva incorporação na pátria nova que se formava. Essa viagem foi denominada sua verdadeira nacionalização e o visconde de Porto Seguro pensa que deve ter sido um poderoso incentivo para ela o efeito da natureza mineira, selvática e majestosa. É fato que Dom Pedro nada conhecia do Brasil além de Santa Cruz e, por mais bela que seja a Baía de Guanabara, o espetáculo das montanhas e dos rios donde tinha sido canalizado para Portugal o jorro de ouro e de diamantes do século XVIII, era certamente próprio a exaltar uma imaginação como a sua que, se se não deixava porventura seduzir pelas paisagens pitorescas, sempre se mostrou disposta a deixar-se empolgar pelas perspectivas de grandeza moral e política.

Começou logo em Minas a frase de apaziguamento. As forças com ordem de avançar foram mandadas sustar, soltos os presos políticos, suspenso o juiz de fora Melo Matos, abrindo-se sumário de culpa sobre sua tentativa de rebelião e violências por ocasião da entrada do príncipe, disperso o núcleo de discolos e dadas as ordens para se proceder à eleição de uma nova junta provisória e dos procuradores ao conselho de Estado. A proclamação de retirada dizia na linguagem empolada, própria do gênero: "Se entre vós alguns quiserem (o que eu não espero) empreender novas coisas que sejam contra o sistema da união brasílica, reputai-os imediatamente terríveis inimigos, amaldiçoai-os e acusai-os perante a justiça que será pronta a descarregar tremendo golpe sobre monstros, que horrorizam aos mesmos monstros... Vós amais a liberdade, eu adoro-a... Uni-vos comigo, e desta união vireis a conhecer os bens que resultam ao Brasil, e ouvireis a Europa dizer: o Brasil é que é grande e rico; e os brasileiros é que souberam conhecer os seus verdadeiros direitos e interesses. Quem assim vos fala deseja a vossa fortuna, e os que isto contradisserem amam só o vil interesse pessoal, sacrificando-lhe o bem geral. Se me acreditardes seremos felizes, quando não grandes males nos ameaçam. Sirva-nos de exemplo a Bahia".

Partiu Dom Pedro de Vila Rica a 20 de abril e a 25 recebia, ao declarar da tribuna real no teatro que deixara Minas em paz, uma das ovações mais estrondosas da sua vida, na qual alternaram as aclamações e as pateadas. Porto Seguro qualifica o seu ato de "um lampejo de gênio" e relembra a este propósito o artigo, ora ditirâmbico, ora pindárico de Januário e Ledo no Reverbero, em que se dizia: "O Deus dos Cristãos, a constituição brasílica e Pedro, eis os nossos votos, eis os votos de todos os brasileiros. Príncipe, não desprezes a glória de ser o fundador de um novo Império. O Brasil de joelhos te mostra o peito, e nele, gravado em letras de diamante, o teu nome... Príncipe, as nações todas têm um momento único, que não torna quando escapa, para estabelecerem os seus governos. O Rubicon passou-se; atrás fica o inferno; adiante está o templo da imortalidade".

Pelo que toca ao príncipe, é penhor dos sentimentos que trazia na alma a carta que cinco dias depois de chegado, a 30 de abril, escrevia para Lisboa a Antônio Carlos, tratando-o de "meu amigo e do meu amigo Brasil" e do "mais digno deputado americano", pedindo-lhe para tornar públicas todas as cartas por ele escritas a Dom João VI, orgulhando-se de ser o "maior brasileiro e que pelo Brasil dará a última gota de sangue" e dizendo-lhe que, "se lá não o apoiarem, em lugar de se cansar com debates, volte, que os brasileiros o desejam cá para as suas cortes municipais".

O processo da sua nacionalização estava de fato terminado.

* * *

Minas estava conquistada pelo afeto, mas havia outros lances a ganhar, pelas armas ou pela astúcia. Para o lado do Norte os horizontes permaneciam carregados, quando não tempestuosos. A 22 de junho escrevia o príncipe a El-Rei: "O Madeira na Bahia tem feito tiranias, mas eu vou já pô-lo fora, ou por bem, ou a força de miséria, fome, e mortes feitas de todo o modo possível, para salvar a inocente Bahia". O que se passara para justificar semelhante linguagem?

A vida da primitiva junta não fora de rosas, andando o sentimento brasileiro sobressaltado com a pressão portuguesa, e o pronunciamento dos tenentes-coronéis José Egídio Gordilho de Barbuda (futuro marquês de Jacarepaguá) e Felisberto Gomes Caldeira, com uma porção mais de oficiais, quase lhe cortou a existência a 3 de novembro de 1821. Na sua proclamação aos habitantes da Bahia essa junta, presidida por Moura Cabral, conta que, "aqueles perdidos na opinião pública, e todos inimigos parciais do governo, por lhes não haver fartado a insaciável sede de torpes lucros e tresloucados despachos, se arrojaram a perpetrar o horrível crime de atentar tumultuariamente contra a existência deste mesmo governo, que, com tanto risco e tamanho denodo, foi levantado por vós sobre as ruínas do antigo despotismo, e percorrendo as ruas com alaridos, apresentaram-se nos paços do conselho, acompanhados de alguma gente da plebe, raros oficiais de linha e pouquíssimos paisanos, sem representação civil, arrombaram com suas espadas a caixa em que se guardava o estandarte, arrancaram-no daquele depósito, forçaram alguns dos membros do corpo do nobilíssimo senado, que então ali se achavam, a atravessar a praça e, violando o respeito devido ao palácio do governo, invadiram-no armados com punhais e pistolas, que bem se viam escondidos por entre seus vestidos, e quiseram obrigar a junta provisional a demitir-se e (o que mais é) a autorizá-los para a seu sabor estabelecerem um novo governo, que fartando-lhes sua venenosa ambição, vos lançaria sem dúvida no pélago da anarquia" (180).

A tentativa falhou porque, enquanto confabulavam e discutiam rebeldes e autoridades, as tropas fiéis formaram no largo e ocuparam o palácio e imediações e a junta teve espírito para dominar a situação. O desfecho foi a prisão de uns tantos oficiais e a deportação de outros para Lisboa, onde foram soltos em abril de 1822. A tranqüilidade nem por isso porém se restabeleceu.

À junta aclamada sucedeu ajunta eleita em 1.º e empossada a 2 de fevereiro de 1822, tendo por presidente o velho Dr. Francisco Vicente Viana que, segundo relata Drummond, tinha o sestro de responder às dificuldades com um suspiro e uma história do tempo do marquês de Pombal, e por secretário o desembargador Francisco Carneiro de Campos. Todos os membros (181) eram brasileiros, menos um, e esta circunstância era de natureza a emprestar um aspecto favorável à causa da regência que já então se tornara a causa nacional. De fato, ao participar sua instalação, o novo pessoal governativo, se fez seu protesto solene de adesão ao rei e à constituição, reservou suas palavras mais carinhosas para o príncipe real.

Uma questão de precedência entre oficiais superiores, redundando num conflito de jurisdição militar, gerou porém uma condição tal de antagonismo entre os interesses em presença que a Bahia se converteu no principal centro armado, no bastião da resistência portuguesa à supressão do seu predomínio.

Dos fatores da primeira hora constitucional um conservara íntegra sua popularidade, que era o brigadeiro, por aclamação popular, Manuel Pedro de Freitas Guimarães, brasileiro, mas "pedreiro livre" como escreve Cairu, como tal ligado à "cabala maçônica" formada pelos clubes jacobinicos e partidário intransigente do regime liberal, ocupando o governo das armas como o oficial de maior patente da guarnição. A promoção regular a brigadeiro do coronel Inácio Luís Madeira de Melo, comandante do regimento 12 de infantaria, justificava no entanto sua preferência para aquele governo, pela escolha feita em Lisboa a 9 de dezembro de 1821 (dia em que foram nomeados os vários comandantes de armas, de acordo com a nova organização ultramarina), tanto mais quanto sua antigüidade era mandada contar desde 18 de dezembro de 1820.

O sucedido indicava contudo claramente que nunca uma nomeação análoga recairia num brasileiro. Nenhum se podia encontrar mais fiel adepto da regeneração do que o tenente-coronel Manuel Pedro, declarado benemérito e honrado pelas Cortes de Lisboa: a mercê recairia sempre naquele que dispusesse, como era o caso com Madeira, das simpatias da legião constitucional lusitana e fosse de têmpera a sustentar a preservação da união sui generis, que Portugal concebera. Madeira no entanto fora um revolucionário à força. Conta-se182 que no pronunciamento de 10 de fevereiro de 1821 ele não tomou parte; seu regimento foi porém seduzido pelo tenente-coronel e Madeira compareceu na refrega, humilhado por lhe ver escapar pela primeira vez o comando da sua gente. Seus soldados, ao vê-lo, aclamaram-no e fizeram-no assim participar do movimento.

Chegou a carta régia de nomeação, mas faltavam-lhe certas e importantes formalidades: não estava registrada na contadoria da corte, nem fora referendada pelo ministro competente, nem sequer era comunicada à junta de governo local. Nem esta nem a câmara quis determinar o registro para a posse, embora a junta admitisse a validade da carta régia tal como se encontrava. A atitude de ambas as corporações permitia entretanto que fosse a mesma discutida e até recusada para fazer valer um direito. Formaram-se a respeito discrepâncias de opinião; uma representação com mais de 400 assinaturas subiu à câmara municipal para que se aguardasse a decisão das Cortes; cada parcialidade seguiu desde 15 de fevereiro argumentando a seu modo e jeito.

De tudo isso resultou a congregação extraordinária de um grande conselho composto do senado da câmara, das corporações de justiça, fazenda e marinha e dos notáveis da cidade - pessoas condecoradas, como as qualifica Cairu - o qual adotou (19 de fevereiro) o recurso esdrúxulo de ser o governo das armas exercido até nova ordem por uma junta militar de 7 membros, entre eles os dois brigadeiros, Madeira em todo caso como presidente. Anuiu este se o consentisse a oficialidade portuguesa entre a qual, desde começo, lavravam protestos que determinaram uma tensão difícil de remediar e que o prolongamento da sessão até o nascer do sol não conseguiu dissipar.

A declaração aliás do brigadeiro português de que avocaria a autoridade plena se corresse risco a Constituição, causou sensação e preludiou o rompimento do mesmo dia 19. Madeira, cada vez mais metido em brios, assumiu de fato o comando e pôs em armas não só seus soldados como os marujos dos navios surtos no porto. A antinomia degenerou assim fatalmente em conflito sangrento entre as forças portuguesas e brasileiras, o qual durou até a tarde de 20, mais de 100 mortos caindo varados pelas balas e praticando-se de ambos os lados deploráveis atentados, figurando no número como o pior o bárbaro assassinato por mãos portuguesas da abadessa do convento da Lapa, acompanhado do espancamento do velho capelão da casa.

Madeira dá nos seus informes circunstanciada relação das peripécias dessa luta a que os brasileiros se afoitaram sem chefes, recolhendo-se afinal no forte de São Pedro. Cairu assim resume a situação: "Tudo anunciava grande catástrofe, por não cederem os sitiados do forte, e parecerem resolutos à defesa, não obstante as intimações de Madeira para se renderem. Mas as tropas ali encurraladas, e sem preparativos, nem recursos, por fim reconhecendo a impossibilidade de resistência à decisiva força superior, e perdendo toda a confiança no seu chefe, evacuaram em 21 do mês de noite o forte da parte do baluarte marítimo. Daí resultou entrar nele Madeira com sua tropa, achando-o vazio de defensores, apenas, existindo aí solitário, com alguns oficiais e cadetes, o seu rival, a quem logo prendeu".

Prendeu-o e deportou-o para Lisboa, após cassar-lhe as patentes de promoção a coronel e brigadeiro por acesso revolucionário, que ainda não tinha tido a confirmação real. As circunstâncias converteram em ditador militar o transmontano espadaúdo e guapo, cuja voz sonora se ouvia de um extremo a outro do regimento (183). Por seu lado Manuel Pedro, no primeiro aniversário do pronunciamento de 10 de fevereiro de 1821, concedera de sua alta mercê um posto de acesso a todos os oficiais do seu regimento de artilharia de linha, que tinha sido pars magna do acontecimento, e mandara decorar-lhe a bandeira com um dístico em letras de ouro.

Como é natural, Madeira conta nos seus ofícios as coisas muito pormenorizadas, à sua feição, querendo provar "que não fez mais do que o que foi absolutamente necessário para se defenderem as tropas do seu comando". Nem desmerece o valor do adversário, antes o encarece, para mostrar que, se não fosse socorrido, a situação podia tornar-se crítica. Para justificação do ataque, que vem sempre não se sabe como, seus soldados propalaram - o que em ocasiões idênticas é corrente - que do interior do convento da Lapa tinham atirado contra eles. Abriu-se uma devassa, de ordem da junta ao juiz do crime da cidade, a qual resultou contrária a Madeira e seus batalhões, pronunciados por autoria de guerra civil. O ofício da junta baiana para Lisboa estigmatiza o proceder da legião lusitana, "cujos louros ali se manchariam do sangue dos seus irmãos" (184).

Nesse ofício declara a junta não ter até então cumprido as ordens do príncipe regente, mas que "não podia dissimular que, afora uma fração, só numerosa na classe mercantil desta cidade, a maioria da província sem dúvida deseja reunir-se aquele augusto centro da família brasileira". ninguém porém compreendeu e descreveu melhor a situação dos partidos do que o brigadeiro Madeira; não pode haver sido um tarimbeiro bronco, como o descrevem os inimigos, quem assim se expressava (185): "Três são os partidos que existem nesta cidade: dos naturais de Portugal o partido quase geral é puramente constitucional e a este alguns há dos naturais do país que se unem; dois são os partidos que estes seguem, a saber: os mais poderosos, já em posses e já em empregos de representação, ligados aos togados do Rio de Janeiro, querem uma constituição, em que como lords figurem independente do governo de Portugal, e por isso trabalham para a separação; é este o motivo por que o poder legislativo de V. M. é ali atacado nos papéis públicos com o maior vilipêndio. Os que pelas suas posses ou empregos não ombreiam com aqueles, querem uma independência republicana em que só figurem os naturais do país; têm-se chocado ambos estes partidos até aqui, tendo sido o resultado favorável ao primeiro constitucional; porém agora, julgando-se ofendidos ambos os corpos por ser notado o geral americano por fraco e rebelde, trabalham a reunir-se, e se o conseguem, como é de esperar, é necessário grande força para o rebater, e por isso quanta maior brevidade houver em prestar novas providências e virem mais forças, maior será o resultado ao bem da nação e dos do partido constitucional, que aliás será sacrificado".

Sobre a cabeça de Madeira, como sobre a de Luís do Rego, têm sido atirados inúmeros apodos. São eles os dois grandes verdugos da história brasileira a soldo da tirania portuguesa. Um e outro eram militares briosos, com os defeitos inerentes à educação de quartel - a prepotência e a arrogância dos que estão habituados a mandar para serem obedecidos - mas aditos às suas obrigações disciplinares e patrióticas, não merecendo condenação por sabê-las executar com observância e até com severidade. Madeira achava-se ali representando o governo vigente em Portugal, que era o das Cortes, que o próprio rei declarava acatar: não lhe seria honroso, nem digno, deixar-se suplantar na sua autoridade. Entre a junta abertamente simpática à regência brasileira e o general leal e incorruptível que desprezou todas as tentativas de suborno, cavou-se um fosso impossível mais de ser transposto.

Drummond veio de Pernambuco a Bahia no mês de julho, numa barca à vela, das que transportavam farinha de trigo dos Estados Unidos, com o fim de ajudar o trabalho dos patriotas e aproveitou-se das suas antigas relações em Santa Catarina com o general Madeira, que ali servira, para levar a José Bonifácio todas as informações que pôde colher numa inteligente espiagem pela qual se preparava para ulteriores funções no exterior. Saiu para o Rio quando fez escândalo com um artigo publicado no Constitucional - único jornal que defendia a causa nacional num meio terrificado pelos contrários e que, já então forçado a renunciar à pena hábil e veemente de Francisco Gê Acaiaba de Montezuma (depois visconde de Jequitinhonha), saído para o Recôncavo, seria pouco depois empastelado por oficiais portugueses - convidando a junta a dissolver-se pela passividade a que se achava reduzida sob a coação da autoridade militar.

Nas anotações à sua biografia, onde relata estes fatos, conta Drummond que por mais de uma vez foram feitas a Madeira propostas de transação extremamente vantajosas para ele, pois que lhe permitiriam permanecer no Brasil elevado a tenente-general e com meios de fortuna, as quais invariavelmente repeliu, não com atitudes de teatro, mas com a convicção serena de que devia cumprir o seu dever, embora a causa estivesse perdida. Madeira não se iludia quanto ao desenlace dessa contenda "entre pai e filho, que se não queriam" como ele dizia, e na qual lhe caberia infalivelmente o papel de vítima expiatória. Sua honra de militar vedava-lhe porém proceder diverso desse, em que a Drummond se depara mais curteza de inteligência do que nobreza. O soldado desconhecia o ponto do discernimento, que existia para o diplomata, onde cessa a honradez e se desobriga o juramento.

Do Rio de Janeiro animavam evidentemente as disposições da junta da Bahia por meio de Cartas, ofícios, intimações de retirada a Madeira e proclamações aos baianos, tudo em linguagem muito patética e muito recheada de tropos; porém a resistência seguia sempre, apoiada na guarnição, na sua grande maioria portuguesa. A situação de complicada passou a ser insustentável para um governo de eleição popular, que desde a nascença tinha os seus movimentos tolhidos e que pela falta de exercício, conquanto constituído de bons brasileiros, apresentava no dizer de Drummond o defeito da fraqueza. Sobre ela pesava um César constitucional, garantido no seu comando até por uma esquadra, pois que os portugueses tinham, na frase de Drummond, "o mar livre, uma esquadra sua, muitos navios mercantes, uma cidade abastada e um comércio rico em seu favor".

Seus recursos militares não eram todavia de tamanha superioridade que permitissem a Madeira prover-se francamente do Recôncavo, para onde desde março se dirigia a emigração de São Salvador e donde lhe foi interceptado o abastecimento, do que ele fazia responsável a junta. Menos ainda lhe permitiriam ir desalojar o governo revolucionário brasileiro que, "com as pessoas mais gradas da província", se formou pelo esforço bem acolhido do ouvidor de Santo Amaro Araújo Gondim, de Rebouças e outros.

A vila de São Francisco da Barra foi a primeira a pronunciar-se contra a ditadura militar (186) e as vilas do Recôncavo foram-se-lhe seguindo uma após outra com fulminante rapidez, cabendo a palma à da Cachoeira por ter tido que lutar e tê-lo feito com êxito num combate de três horas com uma canhoneira mandada postar por Madeira para bloquear esse centro importante de tráfico do interior com a capital e paralisar seu comércio. Passava-se isto a 25 de junho. Na Cachoeira se constituiu uma junta interina de "conciliação e defesa" e em setembro tornou-se ela a sede da junta de procuradores que assumiu o governo local da Bahia (187). Desde começos de julho que se achava insurgido o interior contra a capital, faltando por sua vez aos revoltosos da Cachoeira, cuja câmara se proclamava composta de "súditos devotados do príncipe regente", os meios de expulsar a guarnição portuguesa de São Salvador, e desde maio que Borges Carneiro pedia nas Cortes de Lisboa, na sessão de 23, que fossem despachados para a Bahia 2.600 homens para, juntos com os 1.400 que lá havia, perfazerem uma força de 4.000 homens, que ele reputava capaz de arcar com a situação.

Nesse debate e a esse propósito dizia Muniz Tavares que as tropas portuguesas tinham sido a causa de todos os conflitos ocorridos no Brasil e que, se se exasperassem os brasileiros com outras remessas, corria-se o risco deles "declararem, por uma vez a sua independência". Do centro o príncipe regente estimulava os da sua grei. Data de 15 de junho a platônica ordem de retirada a Madeira, da qual Dom Pedro assumia a responsabilidade para com el-rei, "não podendo restabelecer-se a paz, o bem e alegria dos habitantes dessa província, nem a minha própria alegria, enquanto não se praticar na Bahia o mesmo que felizmente se executou nesta corte e em Pernambuco, sendo até necessário, para tranqüilidade de todas as províncias e para se apertarem de novo os relaxados vínculos de amizade entre os dois reinos, que o Brasil fique só entregue ao amor e fidelidade dos seus naturais defensores".

Na mesma data uma carta régia à junta da Bahia recomendava-lhe quanto fosse necessário "para o cômodo regresso da tropa", fazendo constar em toda a província o "muito que o tinham magoado as suas desgraças, bem como os ardentíssimos desejos que tinha de remediá-las e de cooperar com todas as suas forças para que este tão rico tão grande e abençoado reino do Brasil (conhecido só nas Cartas geográficas por alguns que sobre ele legislaram!) venha a ser em breve tempo um dos reinos constitucionais mais felizes do mundo". A 17 era redigida a proclamação aos baianos: "Vós vedes a marcha gloriosa das províncias coligadas; vós querereis tomar parte nela, mas estais aterrados pelos invasores: recobrai ânimo. Sabei que as tropas comandadas pelo infame Madeira são susceptíveis de igual terror: haja coragem e haja valor. Os honrados brasileiros preferem a morte à escravidão; vós não sois menos; também o deveis fazer para conosco, entoardes vivas - à independência moderada do Brasil - ao nosso bom e amável monarca el-rei o Sr. Dom João VI e à nossa assembléia geral constituinte e legislativa do reino do Brasil".

Todos estes documentos e outros da mesma época traem a autoria direta de Dom Pedro: são inquestionavelmente da sua lavra, pela impetuosidade e desassombro, pelo torneio da frase, pelas incorreções gramaticais, pela peculiaridade de certas locuções, não raro familiares, de que fazem repetido uso. Só do Rio podiam porém vir, além das frases de alentar, os reforços terrestres e marítimos que podiam facultar à causa nacional a vitória, com tanto mais certeza quanto não só a sublevação se generalizara fora do foco de oposição lusitana, como o comando português havia cometido o erro inicial de não conservar a posição de Itaparica, a qual não pôde depois recobrar (188).

A própria junta de São Salvador manifestava-se ostensiva e clandestinamente, oficial e particularmente, em favor do príncipe regente, sustentando esta política o Constitucional, impávido na brecha, mesmo depois de Montezuma no Recôncavo, até o atentado de que foi alvo a sua tipografia. Quanto ao senado da câmara, mandou registrar o decreto relativo às eleições para o conselho de procuradores e desde 12 de junho que quisera pronunciar-se pela conservação de Dom Pedro como centro da unidade brasileira, pelo que o governador das armas mandou rondar o paço do conselho e evitar com ameaças de prisão que a vereação se efetuasse, do que esta se queixava para Lisboa a 26 do mesmo mês.

Socorros mesmo não faltaram a nenhuma das duas parcialidades, com a diferença que os de Portugal foram mais prontos, mais abundantes e aparentemente mais eficazes. Para os que sustentavam a união das províncias como preliminar da dos reinos, os auxílios de gente e de dinheiro não foram intencionalmente mesquinhos: vieram para a Bahia os auxílios possíveis e continuaram vindo, de maneira que chegou o momento em que as forças independentes sobrepujaram as da antiga metrópole e levaram a melhor, não só em terra como no mar. O que o governo do Rio menos tinha para dar era dinheiro e ainda assim contraiu para ajudar a libertação da Bahia um empréstimo de 400 contos. Nem foi de desprezar-se, muito longe disso, o esforço local, se bem que o governo provisório lutasse com dificuldades crescentes à medida que aumentavam as forças, só tardiamente podendo satisfazer as requisições. As comissões ou caixas militares adrede estabelecidas desenvolveram grande atividade para fornecer pré e etapa, recebendo para isto donativos particulares, nos pontos ocupados (189).

Em meados de julho saiu do Rio de Janeiro uma esquadrilha comandada por de Lamare e composta de uma fragata, duas corvetas e um brigue, transportando o general Labatut, nomeado comandante das forças de ataque, 34 oficiais para serviço, 260 praças, 6 canhões de campanha e bastante armamento e munições. A escolha de Labatut parece ter sido de José Bonifácio. Era um oficial francês que servira na guerra peninsular e estivera depois um ano (1812 a 1813) ao serviço dos libertadores da Colômbia, não se entendendo porém com Bolívar e sendo, ao que se diz pelas suas arbitrariedades, expulso do país. Assim foi que das Antilhas passou à Guiana Francesa e daí ao Rio de Janeiro, onde foi admitido no exército como brigadeiro (190).

Labatut parece por tudo ter sido um homem difícil de lidar-se com ele. Facilmente brigava: é verdade que pelo fato de ser estrangeiro e em posição de destaque, tinha também que lutar contra os inevitáveis preconceitos nativistas dos oficiais a quem comandava. Já antes de deixar o Rio a expedição, - refere Accioli - urdira-se contra ele uma conspiração para privá-lo do comando, pelo que mandou prender vários dos seus subalternos.

A pequena expedição não pôde desembarcar em ponto algum da costa da Bahia por causa da esquadra de cruzeiros, para a qual foi nomeado em Lisboa comandante, a 31 de agosto, João Félix Pereira de Campos. A de Lamare tinha sido recomendado que evitasse combate por causa da muita carga que levava. Labatut foi desembarcar em Maceió a 21 de agosto, dali seguindo, a solicitar reforços, para Pernambuco, onde chegou a 27 e obteve as forças comandadas pelo major José de Barros Falcão de Lacerda. De regresso a Alagoas, continuou por terra até a Bahia com toda sua gente, passando por Penedo a 28 de setembro. Sua passagem por Alagoas e Sergipe, caracterizada muito embora por tal presteza de movimentos, foi útil à causa nacional. Na primeira província os portugueses fiéis ao reino europeu tinham-se acantonado em Vila Nova para organizar resistência, e em Sergipe dominava Pedro Vieira, partidário de Madeira. Animado pela presença da tropa, o povo resolveu essas situações.

A divisão naval com que Madeira começou a patrulha da costa era formada por 4 corvetas, 2 brigues e 1 sumaca, mas logo se viu aumentada de mais 2 corvetas e 1 navio armado, vindos de Lisboa com tropas (192). O navio São José Americano, da frota que transportava a Divisão Auxiliadora, arribado a Bahia a 18 de março por escassez de provisões, como consta das suas declarações, forneceu a Madeira 206 homens mais, mas as tropas chegadas de Lisboa em princípios de agosto somavam 1.200 homens e pouco tempo depois, a 30 de outubro, vieram com uma forte esquadra de 10 vasos, da qual fazia parte a nau Dom João VI dois batalhões de infantaria, um corpo de artilharia e soldados avulsos para preencherem vagas. Robusteceram-se assim consideravelmente os contingentes naval e militar, aumentando também por isso e pelas medidas tomadas por Labatut do ponto de vista estratégico, a falta e portanto a carestia de víveres na capital. Nazareth foi o último ponto donde veio farinha para seu suprimento.

A 1.º de abril de 1823 uma nova expedição viria ancorar no porto de São Salvador, elevando todas as forças de que para o combate supremo podia dispor Portugal, graças ao esforço admirável que realizara para não ceder sem honra. Com o seu espírito de detalhe refere o barão do Rio Branco que o poder naval português ficou dispondo de embarcações montando 438 canhões: só a nau Dom João VI era armada com 74 canhões e as fragatas Constituição e Pérola, uma com 54 e outra com 46, devendo agregar-se aos 15 navios maiores, as charruas e transportes e a flotilha do Recôncavo.

Em novembro de 1822, por ocasião do ataque às posições de Pirajá, Madeira tinha às suas ordens - ainda segundo os cálculos de Rio Branco - 8.621 homens. Suas forças, incluídas as milícias, subiam em abril de 1823 a um efetivo de 9 a 10.000 homens, mais de metade de soldados aguerridos nas campanhas peninsulares, a opor ao total de 13.405 homens das tropas brasileiras no mesmo mês e ano - 11.000 combatentes, descontado o pessoal de comissariado e dos hospitais.

Pernambuco uniu-se ao centro pelo tempo em que se declarava aguda a crise baiana, extremando-se os dois campos e abrindo-se a guerra civil. Sua atitude chegou porém a preocupar seriamente o governo da regência ao ponto que Dom Pedro, depois de receber no Paço da Cidade a deputação que lhe foi tributar homenagem, não se conteve que não assomasse radiante à janela e bradasse para o povo aglomerado em baixo e assim participando diretamente da vida política: "Pernambuco é nosso!". Não o era até então, apesar das mensagens dos pernambucanos residentes no Rio e redigidas por Manuel Caetano de Almeida e Albuquerque, em que se diz que "o rasgo do Fico colocou o príncipe acima de todos os outros do universo, deu ao Brasil o impulso capaz de elevá-lo a um grau superior na escala das primeiras potências do mundo, forneceu à casa de Bragança um assento indestrutível e ensinara aos reis a consultarem o coração humano e a pesquisarem a origem e a necessidade do pacto social".

Não custara pouco obter o resultado que justamente alegrava Dom Pedro. Tivera-se antes como certo, desde que se instalara a junta eleita de Pernambuco, que ela não acompanharia as Cortes. Era demasiado fresca e demasiado viva a recordação de 1817 para qualquer aproximação íntima de Portugal, mesmo no terreno constitucional, e o que maior temor inspirava era seu possível republicanismo, com a sugestão da confederação esboçada pelos precursores e que não tardaria a ser a do Equador. Manuel de Carvalho, intendente da marinha em 1822, já exercia bastante influência nas coisas públicas e estava a caminho de ser o ídolo da classe popular.

Gervásio Pires Ferreira, o presidente da junta, era uma esfinge, cujas boas graças era forçoso ao governo da regência alcançar, embora violentando o fado. Pernambuco optando pela causa comum, era a Bahia colocada entre dois fogos e o espírito reputado belicoso da população pernambucana alistado em prol do ideal de independência ligado ao de união nacional.

A junta nunca foi incondicional na sua sujeição voluntária às Cortes. Sua repugnância a assumir compromissos definitivos, quer com o Soberano Congresso de Lisboa, quer com a regência do Rio, provinha em grande parte de um mais pronunciado sentimento democrático, que era já uma tradição política filha dos acontecimentos e que emprestava fortaleza ao particularismo, em obediência ao qual o governo do Recife procurava suas vantagens. Aquela repugnância provinha também da idiossincrasia de Gervásio Pires Ferreira, que desde sua prisão na Bahia, onde se conta que simulou durante anos perfeita nudez para escapar aos interrogatórios, ficara sendo um enfermo da vontade. O visconde de Cairu escreve menos caridosamente que era "um caráter anfíbio".

Sua afonia pode mesmo ter sido um fenômeno nervoso. Nesse estado doentio, depois que, recuperada a voz, já não carecia de valer-se do papel ou da pedra para escrever as respostas, valia-se de subterfúgios para não agir e só cedia sob pressão, parecendo então que nada lhe era custoso sacrificar. Até lá sua indecisão se comprazia em suscitar problemas de casuística constitucional: estava na alçada de el-rei delegar sua autoridade executiva no seu filho como regente, quando já reconhecera a soberania das Cortes? e outros que tais, que para alguns dissimulavam um profundo cálculo político.

Dizia-se que o rico negociante pretendia aproveitar-se do prestígio moral que o circundava e com que subira ao poder, para conduzir entre escolhos mil o barco do Estado ao porto feliz da independência com a República, onde a província não conseguira fundear em 1817. Porto Seguro, que não acredita na genial velhacaria com que se quis dotar Gervásio Pires, aponta sem as explicar diversas incongruências nos seus atos: ter feito embarcar sem promover reação o batalhão dos Algarves em janeiro de 1822 e entretanto consentir em perseguições contra os portugueses domiciliados em Pernambuco; aplaudir o Fico e vangloriar-se junto às Cortes de continuar afastado da regência; alcançar com refinada tática, como confessa o autor da História Geral, que das tropas transportadas de Portugal pela esquadra de Francisco Maximiliano de Sousa nenhuma ficasse no Recife e resistir aos emissários do príncipe para esposar-lhe o partido, furtando-se até a mandar pôr em execução o decreto de eleição dos procuradores ao conselho a reunir-se no Rio de Janeiro.

Explicava-se sua hostilidade a esse conselho de Estado por entender que semelhante criação invadia as atribuições das Cortes e do soberano e poderia converter-se num instrumento do governo central do Rio de Janeiro para dilatar e ao mesmo tempo robustecer sua autoridade sobre todo o Brasil, ao que Gervásio Pires era infenso como representante da autonomia pernambucana. José Bonifácio respondeu a tais objeções dizendo tratar-se de um conselho consultivo, para julgar da aplicação ao Brasil das leis votadas em Portugal e nem sempre adaptadas ao reino americano, assim cuidando do levantamento nacional, ouvindo os ministros sobre seus projetos e com eles discutindo a oportunidade dos mesmos (193).

No Rio tinham corrido notícias de que a tropa portuguesa chegada em dezembro a Pernambuco aí encontrara boa acolhida e boa camaradagem, e com isto não só se impressionaram os dirigentes como os agentes do movimento de emancipação. Foi por estes decidida a ida ao Recife de um dos 9 iniciadores do clube da resistência, que se transformou depois no clube da independência, compreendendo entre outros José Mariano de Azeredo Coutinho, Nóbrega, José Joaquim da Rocha, os dois Drummonds (194). A escolha recaiu precisamente em Antônio de Meneses de Vasconcelos Drummond, que de fevereiro a junho fez o seu trabalho de sapa.

A 1.º de junho, reunidos no paço municipal de Recife o senado da câmara com o juiz de fora como presidente, o procurador do povo Basílio Quaresma Torreão, representantes militares de cada um dos batalhões de linha - um de artilharia, dois de caçadores - e do esquadrão de cavalaria e representante do clero, declararam ser vontade unânime do povo e das sobreditas corporações que fosse reconhecido regente do Brasil, com o poder executivo inerente ao cargo, o príncipe Dom Pedro, independente do executivo de Portugal, se bem que sujeito às Cortes e ao rei e em união com os irmãos de Portugal e dos Algarves, "em tudo o que se não encontrar com os nossos direitos".

A junta relutou bastante em aceder a essa intimação, negando-se o membro que estava presidindo interinamente a sessão, cônego Manuel Inácio de Carvalho, a dar andamento ao reconhecimento e juramento reclamados. Foi quando, depois de trocadas várias explicações e não poucas falas, o presidente Gervásio Pires interveio com a sua casuística: "Ou isto é representação, ou consulta, ou resolução já tomada; se é representação o governo tomará o seu acordo e a deferirá; se é consulta será preciso convocar as autoridades para se discutir. Se porém, acudiu o Mayer e o Meneses, é resolução que o povo já decidiu? Ao que disse o presidente: Para que estão os senhores abusando da inocente credulidade deste povo? Repetindo porém os mesmos perturbadores: Sim, senhor, é o povo que assim o quer. Então respondeu o presidente: Se é resolução, sou um paisano fraco e desarmado; assino de cruz; venha o livro da ata da câmara, que eu e o governo assinaremos dez vezes, se é preciso" (195).

A esta sessão compareceram pessoas estranhas às corporações e até à província: o bacharel Mayer, "que tinha sido nomeado pela câmara para ir ao Rio de Janeiro beijar a mão a S. A. Real por ter tido a bondade de ficar no Brasil"; Drummond, apelidado na ata Meneses, chamado ao fazer-se mais embrulhado o transe e, após algumas negaças mais da junta, um terceiro "partidista da assinatura, um sr. João Estanislau de Figueiredo Lobo, desconhecido por todos, chegado a esta terra oito dias antes, talvez como emissário de algum partido desorganizador, o qual disse: O povo tem assumido os seus direitos, o povo quer; é preciso obedecer. Então saiu o Mayer da sala; demorou-se um pouco fora, e quando entrou corriam alguns homens, dizendo: O povo está em comoção, porque lhe foram dizer que o governo não quer reconhecer o príncipe, e o corpo de artilharia correu para os quartéis, e muita gente com eles, para virem atacar o governo".

O elemento decisivo foi com efeito o militar, como soe em casos tais. O elemento decisivo foi então encarnado pelo tenente de artilharia Wenceslau Miguel Soares, que representava seu batalhão. Saiu dizendo que ia apaziguá-lo, já que o motim roncava fora e voltou para avisar que a artilharia não se moveria se a junta assinasse. Entretanto Drummond e o desconhecido discutiam insistindo no argumento de que o príncipe real "já tinha descido da qualidade de delegado de S. M. uma vez que el-rei tinha assinado o decreto da sua retirada para Lisboa, e que por conseqüência o poder executivo que hoje exercia era o que as províncias do sul lhe tinham conferido". O príncipe regente representava portanto uma autoridade revolucionária. O cônego Manuel Inácio, que era forte discutidor, pediu vênia para responder, ponderando que "para podermos admitir essa proposição, era preciso que argüíssemos a S. A. Real do crime de déspota e de usurpador de jurisdição, pois que ele tem continuado a exercer o poder executivo sobre esta província sem que nós lhe tenhamos conferido, nem nos julguemos autorizados para lhe conferir".

O fato mais positivo é que a junta estava coata, segundo observou Filipe Neri Ferreira; o que os três de fora negavam fazendo notar que o povo apenas queria o príncipe com o poder executivo sem restrição, como ele o exercia no Rio de Janeiro e el-rei em Portugal. Acudiu o cônego que o poder do príncipe constituía uma mera delegação para o Brasil, parte do reino unido; mas concordava em que se ajuntasse - "do modo que o mesmo real senhor se reconhece delegado". Aí já os outros queriam que se acrescentasse hoje, querendo referir-se à investidura do Sul.

A discussão era puramente técnico-constitucional, das que agradavam a Gervásio Pires, mas não podia eternizar-se, embora faltasse, na opinião da junta, para se poder aquiescer com o que se estava chamando vontade popular, que esta se manifestasse pelos seus órgãos legítimos, que eram as câmaras municipais. Gervásio Pires acabou por ir "refrigerar-se" como reza a ata, isto é, tomou um copo d'água e diante de outro apelo, de um moço do Ceará Grande, para que não corresse o sangue, pediu o livro e assinou. Assinaram todos, conforme testemunha o secretário que redigiu a ata, padre Laurentino, Gervásio Pires no entanto protestando não ser perjuro e continuar obedecendo às Cortes e a el-rei. O trio interventor não achava dúvida em que se obedecesse às Cortes, "mas há de ser no que não se opuser aos decretos do príncipe".

As tergiversações da junta não cessaram depois de nomeada a deputação que devia ir ao Rio participar tão grata notícia ao chefe do poder executivo do Brasil autônomo, e da qual era o membro mais conspícuo Filipe Néri Ferreira, personagem igualmente da revolução de 1817 e parente de Gervásio. Ora era um dos três deputados que não estava pronto, ora era a escuna, e Manoel de Carvalho, à frente do arsenal, entrava no jogo ao que diz Drummond, para agravar a demora. Por fim como os dias passavam e nada acontecia de contrário à resolução forçadamente tomada pela junta ou de fagueiro aos instintos republicanos de alguns, lá se foi a embarcação a 2 de julho, chegando no Rio a 19, alegrar o coração dos que na capital suspiravam pela adesão de algumas unidades, mais do Brasil desunido.

Foi na verdade um dia de festa e tanta era a excitação, que observa Drummond que ninguém reparou quanto o discurso de Filipe Néri Ferreira era pálido e baldo de entusiasmo. A crítica de Drummond carece neste como em outros pontos de eqüidade. O discurso podia não ser sincero, mas salvava esplendidamente as aparências; tratando o príncipe ora de "anjo tutelar que Dom João VI por sua bondade, suma perspicácia e previsão do futuro, se dignou deixar como penhor da sua ternura e amor", ora de "jovem herói que, qual outro Tito, vai já fazendo as delícias deste vastíssimo reino". Desculpava-se até o orador de não ter ido antes a deputação por causa das vicissitudes provenientes do estado do reino unido e da "natureza das grandes mudanças, que não tinha dado tempo a que se pudessem gozar frutos sazonados".

Drummond era pois por demais exigente na eloqüência que reclamava de Filipe Néri Ferreira, o qual no entanto, pela dubiedade do seu proceder, dava razão às tramas que por esse tempo estava tecendo no Recife Bernardo José da Gama, para acabar com a própria junta e substituí-la por outra de caráter mais francamente unionista que ele dirigisse ou inspirasse. Esse desembargador e futuro visconde de Goiânia fora a Pernambuco, despachado do Rio pelo elemento mais poderoso da maçonaria, que era a facção avançada, com os mesmos intuitos que Drummond, com uma missão todavia mais radical pela gente que a instigava, visando a derrubar quando a ditada por José Bonifácio se contentava com atrair. Já encontrou porém consumada a adesão e prestes a partir a deputação.

Gama era adversário de José Bonifácio e não atendeu ao pedido de Drummond de não promover a dissolução da junta: verdade é que Gervásio Pires continuava irremediavelmente a tergiversar, valendo-se da câmara de Olinda e pretextando agora ter que consultar as câmaras municipais e proceder primeiro ao recenseamento da população, antes de fazer eleger os deputados à Constituinte brasileira, no que foi novamente contrariado e compelido a agir diferentemente pelo povo e tropa (3 de agosto). Diz Rio Branco (197) que auxiliava grandemente Gervásio Pires nessa política que até o fim seguiu, o padre Venâncio Henriques de Resende, republicano separatista que fez parte da Assembléia Constituinte de 1823.

Logo que Bernardo José da Gama pôde fazê-lo, realizou seu intento: ajudado pelo capitão Pedroso da revolução de 1817, de regresso do calabouço de Lisboa com o indulto das Cortes, levou a cabo a 16 de setembro um pronunciamento que lhe não aproveitou diretamente, porquanto não figurou nem no governo temporário formado a 17, nem na junta nomeada a 23 pelos eleitores do Recife e Olinda (198).

Num tópico sobretudo agiu Filipe Néri Ferreira no Rio de Janeiro com hipocrisia e foi na questão do tratamento dos oficiais, que ele aliás apodava de facciosos no ofício de 28 de junho ao príncipe regente, em que historiava o reconhecimento do executivo brasileiro. Esses oficiais eram os da promoção da junta de Goiânia. Havia contudo outros, promovidos por Luís do Rêgo e que eram os que se lhe tinham conservado fiéis, cuja lista fora para ser confirmada em Lisboa. Os primeiros recebiam entretanto desde a deposição do capitão-general o soldo dos seus novos postos e todos usavam as respectivas insígnias. Naturalmente os da promoção nacionalista eram pela causa do príncipe, porque esta encarnava a independência na qual, segundo de lá mandava dizer Drummond para o Rio desde sua chegada, se consubstanciava o sentimento da terra, "precisando os pernambucanos mais de quem os contivesse do que de quem os animasse a marchar", sendo natural que assim fosse num meio como o que produziu o movimento de 1817.

Por sugestão de Filipe Néri Ferreira ao ministro da guerra, que desde 27 de julho era Nóbregai (99), ficou a sorte das duas promoções entregue ao arbítrio da junta pernambucana, a qual não deixaria de vingar-se daqueles que a tinham forçado a submeter-se se Drummond não fizesse revogar a ordem ou melhor... se a junta não tivesse deixado de existir.

A mudança de política em Pernambuco foi proveitosa à própria província porque sua condição estava deslizando rapidamente para a anarquia sob pretexto de conquistar a liberdade. As notícias trazidas de Pernambuco pelo cônsul geral inglês Chamberlam, quando por lá passou em maio de 1822, eram que os portugueses se viam perseguidos, correndo o risco de sê-lo não só os Outros europeus como toda a população branca (200). Poucos dias depois (201) escrevia o encarregado de negócios da Áustria que a junta de Pernambuco, "justamente alarmada depois da expulsão das tropas portuguesas e atemorizada pelo espírito da população negra, rogara a S. A. Real que lhe enviasse tropas brasileiras".

A mudança foi também eficaz na esfera de influência pernambucana que se exercia então de Alagoas (202) ao Ceará, podendo dizer-se que, afora a Bahia, só restava o Pará-Maranhão para ligar sua sorte à do Brasil unido. Este trabalho estava reservado ao sea-power criado pela jovem nacionalidade e cuja direção foi confiada a lord Cochrane, que se sabia andar pouco satisfeito com os que o tinham convidado a prestar seus serviços à causa da emancipação das colônias espanholas do pacífico. Escreveu-lhe naquele sentido, a mandado de José Bonifácio (setembro de 1822), o cônsul brasileiro em Buenos Aires, Manuel Correia da Câmara; sua carta foi de 4 de novembro e o almirante respondia a 29, aceitando. Segundo Cairu, o próprio Dom Pedro escreveu diretamente e do seu punho.

Cochrane era um valente marinheiro, mas um espírito sórdido. Nessa época em que lutar e morrer pela liberdade dos outros povos não era coisa rara, ele saíra da Inglaterra, mas não impelido pelo romantismo de Byron e muito mais lhe assentaria do que a este bardo expirar nos lugares em que os aronautas foram arrebatar o velocino de ouro. A sua preocupação como almirante dos países exóticos sul-americanos cifrou-se nas presas. O lado moral da luta em que andava envolto escapava-lhe inteiramente. Sua reputação de aventureiro corria aliás mundo. Mareschal, escrevendo a Metternich (203), dele dizia que era "um bandido audaz, capaz de tudo, só conhecendo um fito e um desejo, o ouro; pronto igualmente a praticar um grande atentado e uma miséria por um escudo, contando-se a esse respeito os atos mais extraordinários".

CAPÍTULO XIV

O TRABALHO DAS LOJAS MAÇÔNICAS
O PRÍNCIPE DEFENSOR PERPÉTUO E A CONVOCAÇÃO DA CONSTITUINTE

O autor da Exposição histórica da maçonaria no Brasil (204) escreve que as lojas maçônicas no Brasil datam dos últimos tempos do regime colonial e precederam mesmo a trasladação da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Umas tinham-se instalado sob os auspícios do Grande Oriente Lusitano, outras do de França e algumas como independentes, todas do rito adonhiramita, fundado pelo barão de Tschudi e compreendendo 13 graus, correspondendo o último ao 21 do rito escocês. Antes pois da famosa loja Comércio e Artes, que data de 24 de junho de 1815, teriam existido outras no Rio, Bahia e Pernambuco, que continuaram sob o governo de Dom João VI a desenvolver sua atividade silenciosa, fundando-se mesmo uma composta em parte de empregados do paço com conhecimento do então príncipe regente, cujo fervor religioso nunca foi grande e menos ainda de caráter ultramontano.

Drummond contesta normalmente que Dom João VI tivesse ciência dessa loja, mas o fato dela denominar-se, como ele próprio escreve, S. João de Bragança, depõe contra a sua negativa. A perseguição às lojas maçônicas só ocorreu em todo o caso quando a revolução pernambucana de 1817 patenteou seu caráter político anti-monárquico. O alvará de penas foi até mandado transitar pela chancelaria do reino, o que escreve Drummond que já caíra em desuso. Houve por algum tempo o pânico da maçonaria, alimentado por espias e delatores, e não só as lojas foram mandadas Jissolver, como se criou um juízo da inconfidência que cometeu arbitrariedades.

A loja Comércio e Artes adiara sua incorporação ao Grande Oriente Lusitano, ao qual se tinham unido as que anteriormente funcionavam no Rio de Janeiro, porque já aspiravam os seus membros à instalação de um supremo poder maçônico brasileiro - manifestação entre tantas da formação de um sentimento particularista, destinado em breve trecho a ser nacional. As lojas que se tinham ido espalhando - em Pernambuco havia mesmo um capítulo - sofreram tanto na sua prosperidade com a reação oficial que quase todas tiveram que se dispersar. A revolução portuguesa de 1820, seguida do movimento constitucional no reino-unido do Brasil, foi que determinou sua reaparição, reinstalando-se a loja Comércio e Artes a 2 de junho de 1821 na casa ocupada pelo capitão de fragata Moncorvo, na rua de São Joaquim, esquina da do Fogo.

Entre os fins da organização maçônica contam-se a prática da filantropia, o aperfeiçoamento da moral, a cultura científica e artística e o estímulo do comércio livre e da produção agrícola, isto é, o aproveitamento das fontes de riqueza das nações sob o funcionamento de um regime liberal. Este regime liberal podia na Europa contentar-se com ser a consagração dos direitos do homem, isto é, da igualdade dos direitos civis e políticos para todos os membros da comunidade. Na América porém tinha o mesmo regime que possuir um duplo aspecto, juntando à igualdade dos cidadãos a independência da nação.

O número dos iniciados, que eram portanto outros tantos aderentes da causa do Brasil, cresceu tanto que a 28 de maio de 1822 a loja Comércio e Artes teve que se dividir em três e fundar-se o Grande Oriente do Brasil, continuando a loja mãe com o seu nome primitivo, que significava a "idade de ouro", e sendo dados às outras duas em que se desdobrou os títulos de União e Tranqüilidade, palavras atribuídas ao príncipe para sossegar o povo no dia 9 de janeiro, e Esperança de Niterói, designação simbólica da projetada emancipação do reino americano.

A participação maçônica no Fico já fora notável, mas onde ela aparece verdadeiramente conspícua é a 13 de maio de 1822 quando, por ocasião de celebrar-se o aniversário natalício de elrei, Dom Pedro recebeu a honrosíssima investidura de defensor perpétuo do Brasil, título lembrado pelo brigadeiro Domingos Alves Branco Muniz Barreto para que à dignidade de regente, outorgada pelo monarca, correspondesse outra dignidade emanação democrática, outorgada pelo povo. Com o aumento de atribuições que acarretava a investidura, o príncipe regente poderia, no dizer de Armitage, com as aparências da legalidade conceder ao Brasil sua legislatura, que era a meta dos esforços do momento.

O Grande Oriente Brasileiro teve por primeiro grão-mestre José Bonifácio de Andrada e Silva, então no apogeu do seu prestígio, secundando-o como adjunto o marechal Joaquim de Oliveira Álvares. Participada sua criação, que teve lugar verdadeiramente a 24 de junho, quando se procedeu com a maior regularidade ao sorteio dos operários e eleição dos oficiais das lojas metropolitanas, foi a nova organização imediatamente reconhecida pelos Grandes Orientes da França, Inglaterra e Estados Unidos (205).

Dessas lojas metropolitanas faziam também parte os antagonistas da primeira hora de José Bonifácio, logo depois seus acérrimos inimigos políticos, os quais, para grangearem seu objetivo de afastar o ministro paulista do poder, tinham que começar por chamar a si as boas graças do príncipe, trilhando para isto o caminho da lisonja, que é o que quase infalivelmente conduz ao favor dos poderosos.

Melo Moraes inclui nessa conspiração contínua da adulação o pedido feito por José Clemente Pereira, à frente do senado fluminense, para que Dom Pedro aceitasse o título, não só de defensor perpétuo como de protetor perpétuo do Brasil. Esta reencarnação de Cromwel sorriu porém pouco ao regente, que com espírito e bom gosto retorquiu, segundo ele próprio conta ao pai (206): "Honro-me e me orgulho do título que me confere este povo leal e generoso; mas não o posso aceitar tal como se me oferece. O Brasil não precisa da proteção de ninguém; protege-se a si mesmo. Aceito porém o título de Defensor Perpétuo e juro mostrar-me digno dele enquanto uma gota de sangue correr nas minhas veias". Foi logo assinada ata de aceitação e outra ata do reconhecimento do título pela municipalidade, corporações, cidadãos recomendáveis presentes e comandantes e oficiais da 1.ª e 2.ª linha da tropa.

José Bonifácio nada teria mesmo que opor a qualquer demonstração posto que mais lata do sentimento nacional, pois que tanto o esposara que como grão-mestre aceitara - segundo consta das atas originais que Melo Moraes diz ter tido em seu poder - os planos de independência que desde algum tempo andava elaborando a loja Comércio e Artes (207). Acompanhou-o nesta aceitação seu irmão Martim Francisco e, como é natural, aumentou com isto o número das adesões e iniciações.

Não fiava contudo José Bonifácio somente da atividade das lojas a realização das suas vistas e talvez mesmo não concedesse à instituição maçônica todo o crédito que esta pretendia, preferindo-lhe o Apostolado, que era inequivocamente monárquico-constitucional, quando a outra pendia para a pura democracia. Seguramente não concedeu José Bonifácio à maçonaria atenção idêntica à dispensada pelos seus desafetos: o banquete de instalação do Grande Oriente do Brasil foi presidido por Ledo, na ausência do grão-mestre e do seu adjunto. José Bonifácio sentia-se pelo contrário onipotente, na expressão de Rio Branco, na outra sociedade secreta organizada quase simultaneamente. Do livro de atas da "Nobre Ordem dos Cavalheiros de Santa Cruz, denominada Apostolado" (208) se colige que as suas sessões começaram a 2 de junho de 1822 e se estenderam até 15 de maio de 1823, figurando entre os associados Ledo, Nóbrega e outros dos adversários de José Bonifácio. Dom Pedro era o arconte-rei e a sociedade dividia-se em palestras e decúrias. Seus membros apelidavam-se colunas do trono.

As figuras salientes da maçonaria eram justamente as que não estavam de coração com o ministro da regência e lhe preparavam a queda, minando o seu valimento. O encarregado de negócios da Áustria já no seu ofício de 11 de abril previa distúrbios por ocasião das eleições para o conselho dos procuradores. O príncipe achara-se em Minas numa viagem de êxito problemático e a sorte do seu conselho de Estado estava por assim dizer ligada com a sua. Os inimigos de José Bonifácio aproveitaram o momento para demonstrar seu descontentamento contra o ministro discricionário e bairrista - tais eram as acusações que contra ele se formulavam - espalhando-se mesmo o rumor de que havia o projeto de forçá-lo a resignar e aclamar-se uma junta, à moda constitucional.

Segundo Mareschal (209), os autores do projeto pertenciam à facção portuguesa e faltavam-lhes os elementos para levarem a melhor o seu intento. O domínio militar lusitano perdera suas possibilidades agressivas: seria lícito ao general Madeira, com os recursos de que dispunha, defender-se e defender a Bahia, mas não lhe era dado conceber ataque algum vitorioso para o lado do sul. Mesmo que se lhe juntassem as tropas de Lecor e que se fizesse assim possível alguma surpresa, esta teria que se desmanchar e dar lugar a uma reação feliz. É possível que dos brasileiros exaltados alguns prestassem seu concurso à socapa contra José Bonifácio. Entre eles e os portugueses existia vivo o elo de José Clemente Pereira. Os partidos extremos costumam sempre aproximar-se quando fazem oposição à ordem de coisas estabelecida e os portugueses do Brasil não podiam ser adversos ao regime constitucional, pois que esse regime servia de instrumento à recolonização.

Não podia portanto haver no Brasil verdadeiros "corcundas" ou reacionários, visto que do seu lado os nacionais o menos que queriam era autonomia, donde provinha um desacordo mais acentuado com os regeneradores pela maneira diversa por que uns e outros compreendiam a aplicação da liberdade. A circular da Santa Aliança expedida no Congresso de Verona em 14 de dezembro de 1822 - o congresso em que Chateaubriand obteve a intervenção na Espanha - dizia que "ricas colônias justificam a sua separação exatamente pelas mesmas máximas com que a mãe-pátria fundou seu direito público e que ela quer, mas em vão, condenar no outro hemisfério".

José Bonifácio nunca pecou por ter a mão leve nesses casos. Tendo sido descobertos os cartazes hostis, adiou sine die as eleições dos procuradores por um edital do ouvidor da comarca, sem apontar motivo determinado; prendeu e deportou com aparato uns tantos implicados, todos portugueses, e espalhou patrulhas e destacamentos montados pela cidade, ao ponto de Mareschal (210) achar exagerado o alarme, porquanto o único apoio para um motim dessa natureza se encontraria nos soldados portugueses da esquadra, aos quais tinha sido dada baixa e que estavam distribuídos pelos diferentes corpos da guarnição. "As deportações sem justificação, escrevia o diplomata austríaco, desagradam geralmente; este país nunca foi afeito às medidas rigorosas: o governo do rei era absoluto, mas pecava pelo excesso oposto", Mareschal referia-se ao ramerrão quotidiano, esquecendo ou calando a repressão cruel do movimento pernambucano.

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As primeiras notícias chegadas a 3 de maio, pela ilha da Madeira, do resultado dos trabalhos da comissão do Brasil nas Cortes de Lisboa agradaram a opinião pública e o príncipe, que a 5 regressou de Minas, até se mostrou altamente satisfeito com a atitude mais cordata que as Cortes pareciam querer adotar para com sua lealdade e franqueza (211). O poder da imprensa foi-se porém depressa revelando na desfiguração política a que procedeu, mostrando nas suas críticas que as anunciadas concessões não eram afinal consistentes, nem muito menos completas; e que o projeto das relações comerciais envolvia a ameaça de um logro formidável. Persistia evidente a intenção de privar o Brasil de um único centro executivo nacional, assim como de tribunais e institutos superiores (212), e a reciprocidade mercantil em perspectiva não passava de uma miragem enganadora desde que os gêneros coloniais do Brasil não sofriam concorrência em Portugal, tendo os gêneros similares das possessões inglesas e francesas mercado obrigado nas suas respectivas metrópoles, ao passo que o Brasil teria que se contentar com os artigos manufaturados portugueses com a exclusão desvantajosa dos produtos análogos das outras indústrias estrangeiras, mais aperfeiçoadas e à cata de consumidores.

O remédio estava naturalmente indicado: era a convocação de uma constituinte brasileira. O movimento para a sua reunião partiu das lojas maçônicas, verdadeiros clubes políticos que não possuíam ainda a válvula de uma assembléia que eles dominassem e inspirassem. Deixar o Brasil sem representação nacional quando no Congresso de Lisboa as vozes da sua deputação eram abafadas pelas da maioria portuguesa, maioria que somava o duplo, era deixar sua administração sem fiscalização e sem freio, permitir que se prolongasse a condição colonial pela virtual irresponsabilidade do seu executivo, não escolhido pelo país, mas composto de delegados da autoridade metropolitana. O status do Brasil não diferiria assim do de qualquer possessão portuguesa da África ou da Ásia se o príncipe regente, mandando submeter os decretos das Cortes à sua sanção após parecer do conselho dos procuradores, não houvesse colocado de algum modo a autoridade do executivo brasileiro acima da soberania nacional representada pelas Cortes.

Com a volta do príncipe à capital recomeçou a propaganda de cartazes para sua ligação com o Brasil por meio de um laço indissolúvel, que só podia ser em boa lógica a sua aclamação como soberano, independente de Portugal. A maçonaria achou para começar o meio termo do defensor perpétuo, mais que regente e menos que rei. Começou desde aí José Bonifácio a ser sobrepujado pelo grupo avançado que, uma vez ganho aquele ponto, pensou em disputar outro.

O Conselho de Estado, com suas Excelências, não agradara geralmente quando proposto por cerimonioso, antiquado e sobretudo pouco definido; um verdadeiro Congresso, uma câmara de deputados, parecia coisa mais adequada e mais viável. José Bonifácio não era absolutamente infenso ao sistema parlamentar, mas entendia que a obra do conselho dos procuradores precedesse a da Assembléia Constituinte, que por assim dizer a preparasse, antes de introduzir-se um sistema eleitoral baseado sobre a propriedade e organizar-se uma ou mesmo duas câmaras moderadas. Queria também ver que espécie de gente saía das urnas eleitorais depois de mais de um ano de agitação constitucional: o resultado em São Paulo e Minas veio a ser considerado satisfatório, mas no Rio o lema eleitoral seria - nada de desembargadores, isto é, nada de conservadores. Era uma tendência radical que se anunciava, artificialmente estimulada pela j9vern imprensa, sem contudo chegar a afetar a calma geral, muito pela pouca inclinação que o elemento rural dos fazendeiros eleitores mostrava ainda pela efervescência partidária.

Ledo e Januário redigiram a representação que José Clemente Pereira se encarregou de fazer perfilhar pelo senado da câmara e que apresentou ao príncipe regente no dia 23 de maio, levando consigo, como por ocasião do Fico, emissários de outras províncias. Desta vez acompanharam-no dois de São Pedro do Sul e um do Ceará, que foi Pedro José da Costa Barros. O intuito oculto dessa manifestação era, ao que parece, obviar a outorga de uma Carta, processo político que estaria mais de harmonia com as idéias de Dom Pedro e até com o teor do seu decreto de convocação do conselho de procuradores quando se referia ao sistema constitucional que, dizia, "Eu jurei dar-lhe" (ao Brasil) o que de resto não era historicamente de uma rigorosa exatidão, pois que ele apenas jurara em nome de el-rei aceitar a constituição, que as Cortes de Lisboa elaborassem, como lei orgânica também do reino americano.

Ao apresentar a representação José Clemente Pereira fez um dos seus discursos já habituais, dando como razão para a Assembléia Constituinte a mesma que já dera para o Fico; a lei suprema de salvação pública consoante a máxima romana - Salus populi suprema lex. Tal assembléia era necessária para emprestar direção, confiança e garantia à união das províncias e para regular o estado de união com Portugal, no qual imperava - declarava-o sem ambages - a traição portuguesa. Na opinião de Cairu, a fala do presidente do senado da câmara pecava por quase cominatória, pois "instava para deferimento peremptório", julgando ocioso "produzir motivos para persuadir, aonde o árbitro na escolha falta".

José Clemente Pereira enumera as vantagens de uma legislatura: o impulso que daria à ação executiva, peada pela falta do "poder de fazer leis", sem lograr soltar as velas à sua energia e patriotismo; o atraso dos negócios públicos se perdurasse semelhante situação; a liberalização e proteção a serem dispensadas a todas as "alavancas poderosas da grandeza nacional", desde a agricultura e comércio até as ciências e artes; os meios que facultaria para o aumento da marinha e o preparo do exército; o aproveitamento condigno dos recursos do país, abolindo-se os erros do antigo sistema; a consolidação finalmente da união.

Na peroração exclamou o orador "estar escrito no livro das Leis Eternas que o Brasil devia passar naquele dia à lista das nações livres: era decreto do Árbitro do Universo, havia de cumprir-se quisessem ou não quisessem os mortais, que impedir a sua marcha a nenhum era dado. Obedecei, Senhor, a esta lei eterna...". Na representação da lavra de Ledo e Januário o imperativo ainda era interrogativo, mas Cairu escreve que foi "objeto de pública censura a frase compulsória e ditatorial do final do requerimento, o qual rezava assim: "Tu já conheces os bens e os males que Te esperam e a Tua Posteridade... Queres? ou não queres? Resolve, Senhor!".

A representação é um libelo antilusitano. Trata Portugal de potência "inimiga da glória e zelosa da grandeza do Brasil, pois que queria firmar sua ressurreição política sobre a morte do nascente império luso-brasileiro". Chama ao passado colonial do Brasil "a cadeia tenebrosa dos seus males". Portugal não lhe deu mais do que escravidão, e só escravidão; retribuiu o seu ouro e os seus diamantes com "opressão e vilipêndio"; queimou-lhe os teares, negou-lhe a luz das ciências, acanhou-lhe a indústria, para que do Universo conhecesse apenas o pequeno terreno ocupado pela mãe-pátria, donde vinham "os tiranos indomáveis que o laceravam". "Agora é tempo de reimpossar-me da minha liberdade; basta de oferecer-me em sacrifício às tuas interessadas vistas: assaz te conheci, demasiado te servi"

A obra das Cortes é flagelada com linguagem incisiva como tendo faltado aos princípios universais que proclamara, perjurando as bases que estabelecera, traindo os direitos da natureza e das gentes, lançando no Brasil "os ferros que o Soberano Congresso pendurava no altar da liberdade" - tudo isto em negação da "maior, da única idéia verdadeiramente sublime que um europeu tem concebido das colônias da sua pátria", que foi a elevação do Brasil a reino por Dom João VI.

Agira Portugal contra todos os seus interesses, esquecido de que a grandeza do Brasil era a sua âncora de salvação. Seu proceder foi inábil tanto quanto odioso: Ledo e Januário dizem-no, por vezes com um vigor e amplidão de frase que os põem ao nível dos publicistas políticos que deixaram nome nessa época de romantismo das idéias. Outras vezes, contudo, descaem numa ênfase e num exagero a que dificilmente pode escapar um documento político dessa natureza. Luís do Rego e Avilez são por exemplo "os monstros que dilaceravam as províncias"; as tropas lusitanas remetidas para ultramar são "cortes pretorianas"; o decreto que sancionou a divisão "da túnica inconsútil do Brasil prometeu o título de beneméritos aos que melhor assanhassem as serpes na cabeça da fúria".

O Soberano Congresso faltou para com o Brasil aos princípios da moral, e da igualdade, e da natureza, e da política e da razão, "deixando o esqueleto do Brasil reduzido à deplorável sorte da Ásia Menor". A preferência íntima dos dois redatores da representação por uma forma mais adiantada de governo acha-se cuidadosamente dissimulada, dizendo-se até que o Brasil mostrou "a presciência política dos seus verdadeiros interesses, porque abraçou desde já o sistema que há de um dia dominar em toda a América; por ora, em muitos lugares encantada com os prestígios da democracia".

A situação exigia uma solução e esta não podia ser outra senão reempossar-se o reino americano, reconhecido por todas as potências e com todas as formalidades que fazem o direito público da Europa, da porção de soberania que lhe competia. Talvez o Congresso "no devaneio da sua fúria" considerasse isso rebelião, quando na verdade era um "passo heróico". Para tal inconseqüência seria mister primeiro declarar rebelde a razão, que prescreve aos homens não se deixarem esmagar uns por outros; rebelde a natureza, que ensinou aos filhos a separarem-se dos pais quando atingem a virilidade; rebelde a justiça, que não autoriza usurpações nem perfídias; rebelde Portugal, que encetou a marcha; rebelde o Congresso mesmo, porque seu proceder acelerou a época da futura desunião prometida pela força irresistível das coisas, mas fatal para a parte que visava engrandecer-se.

A conclusão positiva e prática era que o Brasil, composto de elementos muito diversos dos de Portugal, "carecia de uma administração própria, de uma legislação bebida na natureza de suas necessidades e circunstâncias, e não de uma legislação versátil, sem base e sem interesse, como são todas aquelas que se operam de longe, e debaixo da inspiração poderosa de legisladores parciais, sem adesão ao lugar para que legislam, e sem medo do raio vingador da pública opinião, que daqui não pode feri-los senão frio e sem vigor".

A primeira faina da Assembléia Constituinte Brasileira seria examinar, rever, emendar e alterar a Constituição Portuguesa, adaptando-a à seção americana da Monarquia. A união ainda era respeitada nessa representação, contanto que não envolvesse sacrifício de independência. "A independência, senhor, no sentir dos mais abalizados políticos, é inata nas colônias, como a separação das famílias o é na humanidade; e a independência assim modificada é de honra ao Brasil, é de utilidade a Portugal, e é de eterno vínculo para a Monarquia em geral. A natureza não formou satélites maiores que os seus planetas. A América deve pertencer à América, a Europa à Europa; porque não debalde o Grande Arquiteto do Universo meteu entre elas o espaço imenso que as separa. O momento para estabelecer-se um perdurável sistema, e ligar todas as partes do nosso grande todo é este, desprezá-lo é insultar a divindade, em cujos decretos ele foi marcado, e por cuja lei ele apareceu na cadeia do presente. O Brasil no meio de nações independentes e que lhe falam com o exemplo da felicidade, exemplo irresistível porque tem por si o brado da natureza, não pode conservar-se colonialmente sujeito a uma nação remota e pequena, sem forças para defendê-lo, e ainda menos para conquistá-lo. As nações do Universo têm sobre nós, e sobre ti os olhos: ou cumpre aparecer entre elas como rebeldes, ou como homens livres e dignos de o ser".

Diz Porto Seguro que pelo exercício desse direito constitucional de petição que as bases tinham consagrado, o governo se isentava da responsabilidade de certas medidas de maior alcance no que tocava à sua iniciativa; mas caso foi este em que o pedido foi além do que José Bonifácio, pelo menos, desejaria conceder. Afora os inconvenientes mencionados, achava ele prematura a convocação de uma constituinte nacional antes de assegurada a união para a qual, se todos tendiam - o que não era certo em absoluto -, não era com igual afã, havendo obstáculos a superar e resistências a vencer. Insinuou portanto o ministro ao regente uma resposta evasiva: que ia apelar para o Conselho de Estado, prestes a reunir-se, e cujo parecer carecia de ouvir, bem como o das outras câmaras municipais, antes de dar um passo tão importante.

Para o não retardar contudo, fixava o príncipe - estava-se a 23 de maio - a eleição dos dois procuradores fluminenses para 1" de junho e a abertura do conselho para o dia imediato, com os procuradores presentes, não mais se esperando pelos de três províncias. Foram eleitos o velho José Mariano de Azeredo Coutinho e Joaquim Gonçalves Ledo: com estes e o procurador do Estado Cisplatino, Lucas Obes, se fez a instalação, dizendo porém Porto Seguro, que chegaram a ser dez os procuradores que trabalharam em conselho (213).

Na proclamação que lançou no dia 2 de junho o príncipe precavia os brasileiros contra os perigos que os rodeavam e os "terríveis monstros que por todas as vossas províncias estão semeados" e que atraiçoavam o Brasil, porque "quem diz brasileiro diz português, mas provera a Deus que quem dissesse português dissera brasileiro". O conselho dos três julgou que os monstros, se combatiam com uma legislatura e no próprio dia da sua instalação assinaram a representação redigida por Ledo, em que se dizia que "a salvação pública, a integridade da nação, o decoro do Brasil e a glória de S. A. Real instavam, urgiam e imperiosamente comandavam a convocação com a maior brevidade possível de uma assembléia geral de representantes das províncias do Brasil".

Das mesmas premissas postas dias antes e auridas em Jean Jacques Rousseau, a saber, no desejo de ser feliz, "que é o princípio de toda sociabilidade, bebido na natureza e na razão imutáveis", deduziu logicamente o inesgotável panfletário que Ledo era sempre, mesmo nas suas súplicas ou nos seus manifestos, uma conclusão idêntica à da representação popular, posto que porventura em termos mais confiantes. Se não fosse a personalidade do príncipe "que o país adora e serve ainda mais por amor e lealdade, do que por dever e obediência, o Brasil romperia os vínculos morais de rito, sangue e costumes, e, quebraria de uma vez a integridade da nação".

Nem deixava Ledo, como homem público que almeja responsabilidades, de enunciar a fórmula política do momento: "O Brasil não quer atentar contra os direitos de Portugal, mas desadora que Portugal atente contra os seus: o Brasil quer ter o mesmo Rei, mas não quer senhores nos deputados do Congresso de Lisboa: o Brasil quer a sua independência, mas firmada sobre a união bem entendida com Portugal, quer enfim apresentar duas grandes famílias regidas pelas suas leis, presas pelos seus interesses, obedientes ao mesmo chefe". Era para ambos os países o regime do dualismo levado até sua última expressão, até o ponto mesmo da separação, a qual a pessoa de um soberano comum unicamente inibia e prevenia, pois que do Congresso coisa alguma poderia esperar Portugal: "O arrependimento não entra em corações que o crime devora", escrevia Ledo. Era para cada um sua independência limitada ao mesmo tempo que fortalecida pelo vínculo pessoal e exclusivo do monarca.

José Bonifácio tomara o conselho, incluído na representação dos procuradores, de que "pequenas considerações só devem estorvar pequenas almas" e conformara-se - é a expressão oficial exarada no documento - com a solução da crise proposta na representação aludida, a saber, "a convocação de uma assembléia luso-brasiliense, que, investida daquela porção de soberania que essencialmente reside no povo deste grande e riquíssimo continente, constitua as bases sobre que se devam erigir a sua independência, que a natureza marcara e de que já estava de posse, e a sua união com todas as outras partes integrantes da Grande Família Portuguesa, que cordialmente deseja" (texto do decreto).

Dias antes já José Bonifácio dissera a Mareschal (214) que era impossível resistir à corrente: o país achava-se em estado febril. O que o preocupava mais, e ele reputava impossível, era encontrar 100 homens aptos para as funções de legisladores. Não era infelizmente possível alistá-los fora como soldados: estes podia a regência engajar na Áustria ou na Suíça por intermédio de Schäffer (215).

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O decreto de convocação da constituinte brasileira é de 3 de junho e, posto que referendado por José Bonifácio, foi da lavra de Ledo, o que quer dizer que o acordo entre os dois elementos volvera a fazer-se, pelo menos para a emergência. Era cedo para romper, antes de obtido o resultado essencial. "Nosso inimigo só será aquele que ousar atacar a nossa independência", dizia-se na representação do senado da câmara solicitando a capacidade legislativa para a nação ultramarina: fosse ela embora a expressão da "independência moderada pela união nacional" de que falava a proclamação de Dom Pedro de 2 de junho, o que tanto valia dizer que o inimigo só podia ser um Portugal com sanha de recolonizador.

As instruções para as eleições são da data de 19 de junho e traduzem o mesmo egrégio bom senso que produziu as instruções aos deputados paulistas às Cortes de Lisboa. Segundo elas a constituinte seria organizada por sufrágio indireto, sendo os eleitores de paróquia escolhidos diretamente pelo povo das freguesias, presidindo o ato o presidente da câmara ou um dos vereadores e assistindo a ele o pároco, espécie de fiador da identidade dos eleitores, que devia além disso, no cumprimento das suas obrigações religiosas, celebrar antes uma missa do Espírito Santo e pregar um sermão adequado à ocasião. Cada 100 fogos ou fração acima de 50 dava direito a 1 eleitor de paróquia, e eleitor deste era todo cidadão casado e todo solteiro de 20 anos para cima, com um ano de residência na freguesia, excluídos os religiosos regulares, os estrangeiros não naturalizados, os criminosos e os assalariados com exceção dos guarda-livros e primeiros caixeiros, dos criados da casa real que não fossem de galão branco e dos administradores das fazendas rurais e fábricas.

Os secretários e escrutinadores, cujo número variava segundo os fogos da freguesia e que faziam parte da mesa ou junta paroquial, deviam ser sujeitos pelo presidente à aprovação ou rejeição por aclamação do povo. A mesa decidiria sobre as denúncias de suborno e conluio, com perda para o incurso no delito, ou para o seu caluniador, do direito ativo e passivo de voto.

O sufrágio teria lugar por listas assinadas pelo votante de freguesia, com sua firma ou de cruz, sendo este analfabeto e escrevendo sua lista o secretário da mesa. Para se ser eleitor de paróquia era mister ter 25 anos, ter domicílio certo na província desde quatro anos antes, "ser homem probo e honrado, de bom entendimento, sem nenhuma sombra de suspeita e inimizade à causa do Brasil e de decente subsistência por emprego, ou indústria, ou bens" (§ VI do capítulo II). "Nenhum cidadão poderia escusar-se da nomeação, nem entrar com armas nos lugares das eleições".

A província que mais deputados dava era Minas (20) e as que davam menos Mato Grosso, Santa Catarina, Rio Grande do Norte, Piaui e Rio de Janeiro (1 cada uma): São Paulo dava 9, Bahia 13 e Pernambuco também 13. Os deputados deviam ser naturais do Brasil ou doutra qualquer parte da monarquia, mas neste caso com 12 anos de residência no Brasil e, sendo estrangeiro, com 12 anos de estabelecimento com família, além do tempo da naturalização, reunindo "a maior instrução reconhecidas virtudes, verdadeiro patriotismo e decidido zelo pela causa do Brasil" (§ II do capítulo IV). Receberiam 6.000 cruzados pagos em mesadas pelo tesouro público da sua província, sendo rigorosamente vedadas as acumulações remuneradas, mesmo tratando-se de vencimentos de pensões. Ao mandato ninguém podia escusar-se. A escolha do presidente do colégio eleitoral de cada distrito, seria feita dentre os eleitores em escrutínio secreto e por pluralidade de votos; a eleição dos deputados pelos eleitores de paróquia teria entretanto lugar por meio de cédulas individuais assinadas pelos votantes e tantas quantos fossem os deputados da província.

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O príncipe não esperara por José Bonifácio para dar razão aos que reclamavam Cortes no Brasil e não dissimulara seu sentir nas cartas que costumava escrever a seu pai. Já a 28 de abril manifestava ele o desejo que as Cortes Gerais soubessem que "a opinião brasileira, e a de todo o homem sensato, que deseja a segurança e integridade da Monarquia" era essa, que o Brasil tivesse a sua assembléia legislativa particular, que elaborasse as suas leis municipais. Estava portanto disposto a fazer aos brasileiros esta "vontade razoável e útil", com anuência ou não do Congresso de Lisboa, pois assim é que entendia o ser "defensor dos direitos natos de povos tão livres como os outros, que os querem escravizar".

A expressão defensor parece ter sido intencionalmente empregada e mostrar que o príncipe não era estranho ou pelo menos não desconhecia o que se passava com relação à investidura tramada sob o olhar complacente do Supremo Arquiteto do Universo. "Não é justo que uns sejam reputados como filhos e outros como enteados, sendo todos nós irmáos" (216) - nisto estava a justificação do seu proceder, com o qual se esquivara um pouco à orientação do seu ministro, que aconselhava mais do que lisonjeava e nesta matéria não tinha sofreguidões. Cedo aliás recuperou o ministro sua influência, pondo-se ao diapasão do regente e dando assim prova de que também era sábio na política. O imperador preferiria dentro em breve ministros mais dóceis ainda e menos prestigiosos, mas seria mister uma mulher - a marquesa de Santos - para fazer desvanecer um magnetismo que voltou quando ela própria viu dissipar-se o seu encanto.

A 21 de maio, dando notícia a el-rei do que se preparava a favor da convocação de Cortes Brasileiras, reiterava o príncipe sua asserção de que "sem cortes o Brasil não pode ser feliz. As leis feitas tão longe de nós por homens que não são brasileiros e que não conhecem as necessidades do Brasil não poderão ser boas. O Brasil é um adolescente que diariamente adquire forças. O que hoje é bom amanhã não serve ou se torna inútil, e uma nova necessidade se faz sentir; isto prova que o Brasil deve ter em si tudo quanto lhe é necessário, e que é absurdo retê-lo debaixo da dependência do velho hemisfério". Já quase um século antes D. Luís da Cunha, citado por Southey, escrevera, advogando a trasladação da corte para o Brasil, que "o Rei não pode manter Portugal sem o Brasil, entretanto, que, para manter o Brasil, não necessita de Portugal".

A aspiração do Brasil fundava-se aliás para o príncipe no direito das gentes e constituía um meio de união, porque "sem igualdade de direitos, em tudo e por tudo, não há união. Ninguém se associa para ver piorar a sua condição, e aquele que é o mais forte melhor deve saber sustentar os seus direitos. Eis porque o Brasil jamais perderá os seus que defenderei com o meu sangue, sangue puro brasileiro, que não corre senão pela honra, pela nação e por V. M."

Atente-se bem nesta expressão: sangue puro brasileiro. No discurso de abertura do conselho dos procuradores, repetiu Dom Pedro a referência "ao Grande Brasil de quem sou filho". Há nessas palavras como que o repúdio da sua filiação portuguesa e a afirmação orgulhosa de uma nova e poderosa nacionalidade que se estava moldando nas suas mãos e que ele ia libertar politicamente. Aquele título mesmo de defensor perpétuo "que me ofereceu o Brasil agradecido" poucos dias havia, tinha o sabor acre e excitante de uma aclamação popular. Lembrava a sagração nacional do Mestre d'Aviz diante da invasão castelhana. 'Ora, uma vez postas em movimento as suas faculdades, Dom Pedro, como escrevia Mareschal; "n'agit jamais mieux que dans un moment de crise".

A todas estas comunicações fogosas, desdenhoso de atitudes épicas, o rei respondia na sua placidez, sem desmanchar sua bonacheirice esperta: "Guia-te pelas circunstâncias com prudência e cautela" - o que é o A B C do oportunismo.

Em todas as suas cartas a el-rei, o príncipe abstrai sempre da Santa Aliança: é como se não existisse essa sociedade protetora da legitimidade dos tronos. Nunca faz menção dela; nunca mostra temer-lhe o desagrado e prossegue na sua marcha em suma revolucionária e duplamente revolucionária, contra o pai, soberano legitimo, e contra a mãe-pátria. De certo contava Dom Pedro com a simpatia do sogro, o imperador da Áustria, com quem a princesa Leopoldina estava em correspondência constante e que era um homem de grande ternura de coração. Um deputado brasileiro às Cortes de Lisboa houve até, Cipriano Barata, que para meter medo aos colegas portugueses, que repetidamente taxavam o príncipe de desobediente, imaginou a hipótese de acudirem em sua desafronta os regimentos austríacos, suscitando com esta lembrança uma assuada tremenda do povo das galerias.

A facilidade com que foi reconhecido o título imperial de Dom Pedro, contrasta com a dificuldade que experimentou Pedro, o Grande, da Rússia, recorda Cairu, estribando-se em Vattel. Na benevolência com que a Santa Aliança distinguiu o Brasil não entrou somente a circunstância da colônia continuar monarquia em vez de tornar-se república. O princípio da legitimidade nem por isso deixava de padecer. Também não basta a preocupação comercial, que para a Áustria e a Rússia era nesse caso de somenos valores. A ação da princesa Leopoldina não passava de pessoal, mas como dizia há pouco no seu discurso de recepção na Academia Francesa um conhecido diplomata, o sr. Jules Cambon, graças a Deus a ação dos indivíduos não desapareceu da história: o jogo político ficaria reduzido a uma árida troca de notas e perderia seu caráter humano, se dele fosse excluído o elemento das paixões.

Mareschal, testemunha presencial, relata (217) que, ao chegar ao paço para o beija-mão de 13 de maio, findo o qual o senado da câmara apresentou sua súplica, viu desfilar a tropa, de uniformes novos, uns 4.000 homens com muito bom aspecto (ayant une très bonne tenue), e que teve a surpresa da guarda de honra, que se formara de voluntários oficiais de milícias e que à sua Custa se fardara, escolhendo para modelo o traje da guarda boêmia do imperador da Áustria. Ao saber-se do fato em Lisboa, a escolha do figurino escandalizou enormemente as Cortes, que já viam o reino americano indulgentemente aberto aos janízaros da Santa Aliança. Constituindo uma homenagem à arquiduquesa Leopoldina, a lembrança é também prova da sua popularidade, portanto de ser conhecida sua simpatia pela causa brasileira. Drummond, escrevendo 40 anos depois destes sucessos, em 1861, dizia: "Fui testemunha ocular e posso asseverar aos contemporâneos que a princesa Leopoldina cooperou vivamente dentro e fora do país para a independência do Brasil. Debaixo deste ponto de vista o Brasil deve à sua memória gratidão eterna".

Na carta de 19 de junho, do príncipe a el-rei, é que surgem seus primeiros virulentos protestos contra as Cortes, que ele apelida de "facciosas, horrorosas e pestíferas", antecipando-se à fraseologia de Rosas e restaurando a do Terror francês. Seus membros são "constitucionais in nomine", de fato "infames déspotas lusos-espanhóis, a quem o Brasil abomina e detesta e não obedecerá mais porque de todo não querem senão as leis da sua assembléia". O príncipe considerava precisamente a situação como uma "quase separação", da qual dizia chegado o momento, tendo ele "marchado adiante do Brasil" consoante a recomendação paterna de antes do embarque no Rio de Janeiro.

A fórmula do momento era Dom João VI imperador do Reino Unido e Dom Pedro rei do Brasil. "Se isto acontecer, comentava o príncipe, receberei as aclamações, porque me não hei de opor à vontade do povo a ponto de retrogradar; mas sempre se me deixarem, hei de pedir licença a V. M. para aceitar, porque eu sou bom filho, e fiel súdito".

CAPÍTULO XV

IRRITAÇÃO CRESCENTE DAS CORTES
A IMPOSSIBILIDADE DE UM ACORDO

O drama da independência, que mais rigorosamente foi o que se chama na linguagem teatral francesa uma alta comédia, porque do drama teve as paixões, mas quase não teve felizmente as violências, não poderia entrar no rol das peças clássicas. Falta-lhe, para a lei das três unidades, a unidade de lugar. A ação passa-se simultaneamente nos dois hemisférios e as fases da sua evolução só logram ser bem compreendidas e formar cadeia quando se lhes acompanha o desenrolar das peripécias nos dois cenários - o português e o brasileiro.

Tinham as Cortes razão em descobrir crescente hostilidade nos atos do governo da regência brasileira para com sua política: desde que José Bonifácio entrara para o ministério, essa hostilidade acentuara-se e externara-se mesmo. A 17 de fevereiro foi expedida pela secretaria da guerra do Rio de Janeiro uma portaria ao governo provisório de Pernambuco, mandando que no caso de ali aportar por qualquer motivo tropa de Portugal destinada a conter as províncias brasileiras, essa junta lhe intimasse ordem de regresso, fornecendo-lhe contudo amplamente os mantimentos e refrescos de que carecesse. Isto porque o povo fluminense não mais consentiria no desembarque de forças lusitanas, capazes de renovar os passados atentados contra a segurança pública e individual; também porque os gastos tinham sido muito consideráveis com a repatriação recente da Divisão Auxiliadora, e finalmente porque a presença de semelhante elemento era perigosa "a conservação da União e integridade do Reino Unido".

Uma e outra coisa descansavam sobre uma frágil base desde que na composição desta e1~travam tantas opiniões diferentes. A argumentação oferecida desde o princípio pelos partidários de um dualismo eqüitativo era que o povo brasileiro usava dos seus novos direitos, "quando fazia ver ao Soberano Congresso os inconvenientes que podiam resultar de qualquer providência por ele expedida, a qual encontrasse no local da sua execução obstáculos ao fito de prosperidade pública que o mesmo Congresso anunciara como seu e que justificava a adesão ultramarina aos princípios constitucionais".

E como o caso podia repetir-se e os protestos serem mal-acolhidos ou mal-interpretados, o decreto de 21 de fevereiro (218), referendado por José Bonifácio, mandava prevenir o chanceler-mor do reino, desembargador do paço, que todas as leis vindas de Portugal deviam ser primeiro submetidas ao conhecimento do príncipe regente, o qual, achando-as análogas às circunstâncias do Brasil, ordenaria então sua devida execução. O cumpra-se, isto é, o beneplácito do executivo central brasileiro tornava-se assim indispensável à validade das leis, ordens e resoluções do governo de Portugal.

De certo tempo em diante cada navio só trazia do Brasil notícias desagradáveis para os regeneradores no poder. Era a criação de um conselho de procuradores para estender a autoridade da regência sobre todo o Brasil. Eram as Forças Caudinas por que tinha passado a Divisão Auxiliadora. Era o "desgraçado comportamento" da expedição de Francisco Maximiliano de Sousa, o qual, dizia nas Cortes o deputado Girão, "não sei se obrou por malícia, se por ignorância, mas que se devera ter lançado no oceano para sepultar consigo seu desar e sua vergonha". Eram as novas fardas dos soldados da guarda de honra que, exclamava o mesmo Girão, já não são portugueses; mas sim austríacos". Era o caso do general Madeira, que até provocou entre dois deputados baianos, Cipriano Barata e Pinto da França, uma rixa pessoal, sacudindo o primeiro ao segundo de escada a baixo no Convento das Necessidades, onde funcionavam as Cortes, porque opinava que se Madeira não era idôneo para o comando das armas, Manuel Pedro não o era mais e faltara à disciplina militar não querendo entregar o governo.

Madeira aparecia aos olhos dos constitucionais portugueses como um herói salvador, um Messias. A sua resistência apaixonava os espíritos, imortalizava-o entre os seus, que lhe teciam coroas de louro. Era indispensável socorrê-lo, custasse o que custasse. E assim se fez, mau grado a oposição da representação brasileira quase toda, exceção feita do Maranhão e Pará, o que provava ainda a falta além-mar de um espírito de nacionalidade completamente formado, porém com o acréscimo (maio de 1822) da deputação do Ceará, notoriamente liberal e na qual figuravam os padres Moreira e Alencar, e Castro e Silva, gente toda impregnada dos princípios de 1817.

A argumentação da representação brasileira foi a mais simples. O Brasil já tinha dado mostras inequívocas de não querer no seu solo tropas do reino europeu: as Cortes entretanto iam mandar mais para a Bahia a fim de sustentar o oficial português num conflito de competência em que a ambos tinha faltado a prudência. Não se tratava de um contenda política que afetasse a essência da união, o que justificaria que se despachassem reforços. Assim faltaram Cipriano Barata e Araújo Lima, respondendo os portugueses mais com insultos do que com razões.

Moura, por exemplo, disse que era preciso haver no Brasil, perto das forças da anarquia, um viveiro militar donde extrair a força alienígena destinada a chamar à ordem uma população de cores variadas em que "a heterogeneidade das castas põe paixões diversas em efervescência, que a força indígena não é capaz de conter. É sim antes capaz de promover porque se compõe dos mesmos elementos". Raro é o povo no mundo que não seja mestiço e, no entanto, todos se ofendem de que os tratem por tais. Justamente o tom de superioridade que os portugueses assumiam no tocante à questão de raça tinha o condão de exacerbar mais que tudo os brasileiros, que não queriam ser tratados como gente inferior.

O contato de tropas portuguesas e brasileiras trazia mais esta desvantagem, além do inconveniente político do momento: estimulava uma rivalidade latente das mais azedas. Fernandes Tomás chegou a dizer no correr dos debates que não havia oficial português que se submetesse às juntas provinciais brasileiras, assim pouco inteligentemente fomentando a arrogância desses militares e justificando a reação nativista. Borges Carneiro, constantemente a cortejar como político o favor dos seus correligionários e ao mesmo tempo espírito inclinado a deixar-se empolgar pelas considerações da justiça, da qual era cultor esclarecido, queria que simultaneamente se mandassem para além-mar tropas bastantes para manter a paz e reformas, para que os brasileiros vissem que a energia portuguesa corria parelhas com o seu liberalismo.

Foi neste discurso que o eminente constitucional fez sua célebre referência ao cão de fila ou leão que Portugal soltaria para obrigar a facção nacional brasileira à obediência às Cortes e às autoridades que no ultramar as representassem. Lino Coutinho com seu fino espírito faltou logo em atirar onças e tigres contra esses cães; Vilela Barbosa advertiu que no Brasil também se sabia açaimar cães e que o sangue português que girava nas veias dos brasileiros os impedia de receberem leis debaixo da pressão do arcabuz; Antônio Carlos tratou de fátuas as ameaças e que para os cães de fila havia por lá em abundância "pau, ferro e bala, não podendo assustar aos brasileiros os referidos cães de fila, aos quais fizeram fugir dentadas de simples cães gozos". Estes, explica Gomes de Carvalho, que reedita este incidente, eram os milicianos mal-armados que fizeram recuar a Divisão Auxiliadora.

Justamente pelo mesmo tempo - na sessão de 23 de maio, intercalada entre aquelas em que se discutiu o caso do general Madeira - chegava às Cortes a comunicação que, com suas congratulações, lhes mandava o general Jorge de Avilez, de regresso do Brasil. Queriam não poucos da maioria que a participação fosse declarada na ata ter sido recebida "com agrado", ao que se opuseram outros alegando que, perante as informações do príncipe regente, não se achava ainda comprovada a inocência ou o regular procedimento do comandante da Divisão Auxiliadora.

Os mais exaltados dentre os regeneradores, Moura, Girão, Caldeira, sustentavam a dignidade e o saber daquele "português o mais honrado e brioso", que era Jorge de Avilez; Miranda taxou até de rebelde o ministério do Rio de Janeiro; Freire achava que se Avilez merecia alguma imputação, era a de ter sido tão condescendente. Vilela Barbosa argüiu do outro lado com não se ter concedido a distinção agora solicitada ao general Luís do Rego, embora declarado benemérito. Venceu esta opinião, ainda neste ponto votando o Pará e o Maranhão contra o resto do Brasil, acompanhando os que hoje seriam chamados chauvinistas ou jingoes portugueses e que Gomes de Carvalho trata um pouco severamente de energúmenos.

O Pará-Maranhão constituía com efeito um Estado à parte, onde prevalecia decisivamente a influência do reino europeu, mesmo porque suas relações eram mais com Portugal do que com as outras províncias do Brasil. Em compensação, alguns deputados portugueses, sete ao que parece, acompanharam os brasileiros. Suprimiu-se na ocasião o "agrado" e mandou-se publicar pela Imprensa Régia a Exposição de Jorge de Avilez ou conta dos sucessos, como documento justificativo da sua conduta. A 23 de julho conseguiu contudo Girão fazer aprovar o recebimento "com agrado" das felicitações do general, cuja votação fora adiada "para se esperarem notícias do Rio para esclarecimento da sua conduta". Dizia a moção que "elas têm chegado tantas, e de tal natureza, que sobejam".

Madeira não tivera que esperar pelo favor do Congresso. Deram-lhe também, é claro, o privilégio da impressão; Pessanha intitulou-o o redentor da Bahia, e foi confirmado no posto como merecendo toda a confiança, não obstante a lei novíssima do Congresso que anulava toda ordem e carta régia não referendada pelo ministro respectivo: "o que, por si só, escreve Cairu, bastava para ser o governador das armas destituído e sentenciado em conselho de guerra".

Iam-se assim extremando os campos dentro das próprias Cortes, visto que a moção apresentada por Antônio Carlos a 15 de junho e assinada por 17 deputados do Brasil, era para que o governo "fizesse efetiva a responsabilidade do ministro da Guerra e do seu subordinado" comandante das armas da Bahia, o qual, segundo os mesmos deputados, aí praticara desacatos e tropelias que dizia o cordato Pereira do Carmo não constarem até então oficialmente, devendo-se aguardar a devassa mandada tirar desses sucessos. No entender de Moura, dos ofícios da junta provisória nem se podia concluir qual dos dois brigadeiros rompera o fogo. Manuel Pedro, que se achava preso em Lisboa, foi mandado soltar por essa ocasião e livremente regressar para a Bahia.

No Brasil os campos não só já se achavam divididos, como soara o grito de alerta, precursor do de pegar em armas, o qual encontraria, pelo que parecia, pronta correspondência do outro lado do oceano, uma vez a postos os partidos. "Já se não deve hoje tratar de raciocínios, nem de exortações, nem de planos conciliatórios, para manter a legislação da América, exclamava Moura; e só sim dar ao Grande Partido da União, que existe naquele país, um auxilio tutelar e protetor, que o vigore, e que o habilite a combater e aniquilar a Facção..." E o abade de Medrões ajuntava afogueado: "Se faltar capelão, eu já me ofereço".

Parecia tornar-se certo o que afirmava o povo fluminense na representação em que pedira a permanência do príncipe, a saber, que "os políticos da Europa disseram que o navio que trouxe ao Brasil el-rei Dom João VI alcançaria entre os antigos gregos maiores honras do que esse que levou Jasão e os Argonautas a Colchos, mas que o navio que reconduzisse Dom Pedro já apareceria no Tejo com o pavilhão independente do Brasil".

A situação, segundo alguns faziam valer, estava-se fazendo pior, do ponto de vista das regalias ultramarinas, do que a colonial, quando nas próprias capitanias se davam promoções militares até o posto de major, havia certa latitude para o preenchimento dos cargos civis e os bispos proviam as paróquias e vigararias das suas dioceses (219).

* * *

A proposta dos deputados baianos para que a expedição contra a Bahia se não realizasse sem que a representação brasileira fosse ouvida, teve 80 votos contra e 44 a favor. A obra de intenção apaziguadora da comissão luso-brasileira estava pois previamente prejudicada num dos seus artigos essenciais, que era o que vedava as remessas de tropas européias sem haver pedido a respeito das juntas governativas de além-mar. Como em tais condições e num meio de crescente irritação, que as notícias chegadas do Rio faziam cada dia piorar, lograria funcionar com tranqüilidade e com êxito outra comissão como a que o Congresso nomeou para redigir os artigos da Constituição privativos do reino americano?

A própria comissão dos negócios brasileiros, anteriormente organizada, já não sabia como dar andamento as questões pendentes e aconchegava-se num silêncio que era prudente, porque não havia boa disposição da parte dos regeneradores portugueses e a desconfiança lavrava fundo, entre os constitucionais brasileiros. Chegara-se aos começos de junho sem que o parecer-transação de 18 de março entrasse em discussão e nada mais se agitara que pudesse conduzir a medidas práticas e construtoras, nem tampouco se externava juízo definitivo sobre a harmonia ou desarmonia do sentimento do povo brasileiro com a expressão que lhe tinha dado o governo provisório paulista.

As injúrias, fossem da junta de São Paulo, tossem daquele a quem Borges Carneiro tratava desrespeitosamente de rapaz, eram todavia espinhos cravados na carne portuguesa e estavam formando abcessos. Havia que castigar os desaforados, que tinham tratado os constituintes de "profundamente ignorantes e singularmente atrevidos", antes do que receber-lhes e porventura atender as suas petições contra atos do poder legislativo que encarnava a soberania da nação.

Antônio Carlos concordou para salvar as aparências em fazer seus e de colegas seus, numa forma diferente para com a majestade das Cortes, os votos contidos na representação paulista, na mesma ocasião em que requeria que fosse chamado à responsabilidade o ministro da Guerra que deixara de legalizar a carta régia nomeando o brigadeiro Madeira comandante das armas, e responsabilizando também este que, sem escrúpulo e com desprezo das formalidades legais, avocara o cargo e tornara efetiva sua autoridade. A comissão que tinha de dar parecer sobre este requerimento negou-o, contudo, por falta de documentos que comprovassem a culpa.

Quando foram apresentados os pareceres da comissão especial dos negócios do reino americano e da comissão de constituição para o ultramar - o primeiro, de 10 de junho, especial sobre o incidente paulista - houve proposta para que fosse dado previamente para a ordem do dia o que versava sobre a responsabilidade criminal da junta de São Paulo, no intuito não só de punir os culpados, como de firmar a doutrina de que o povo brasileiro devia obediência às Cortes em vez de a dever ao regente.

A proposta caiu porém, porque pareceu mais acertado a maioria cuidar de afastar as razões de descontentamento antes do que castigar as manifestações desse descontentamento, numa modalidade que não passava afinal da aplicação do direito de petição em linguagem demasiado apaixonada. Agir diversamente seria, na frase de Gomes de Carvalho, mostrar que as Cortes eram mais solícitas em atender ao seu amor próprio do que em promover a tranqüilidade da nação.

O pior entretanto é que assim se pensou e agiu judiciosamente num dia para se desmanchar no dia imediato (27 de junho), quando Moura e Fernandes Tomás, dois dos maiores leaders da regeneração, exigiram a precedência do debate irritante. A maioria portuguesa do Congresso, que ditava a lei, isto é, a orientação, era, como o fora a da Convenção francesa, escrava da opinião facciosa de fora, a saber, dos seus clubes e das paixões irresponsáveis da populaça das ruas. Daí provêm a vacilação e a incoerência que se notam em muitos dos seus atos.

É um ponto ainda a discutir se as Cortes de Lisboa, antes de desafiadas e contrastadas na sua autoridade e valia, teriam movido a mesma intransigente oposição à separação do Brasil que moveram aquilo que chamavam a continuação da supremacia brasileira e que pretendiam obstar pelos meios constitucionais e administrativos à sua disposição, recorrendo em último caso à força. A mentalidade política da regeneração portuguesa de 1820 era despida de refolhos e ostentava o culto da vontade popular. Fernandes Tomás disse várias vezes que se a vontade do Brasil era desligar-se, que o fizesse: ele votava contra qualquer medida compulsória que fosse de encontro a esse ideal nacional (sessão de 22 de março de 1822). Continuando porém unidos os dois reinos, cumpria ao reino americano obedecer ao europeu.

A mesma razão de vontade do povo era a invocada pelos deputados brasileiros que desejavam abandonar as Cortes pelo fato de considerarem ingrata e inútil sua tarefa; mas nesse caso, além de contestar a existência de uma vontade geral no Brasil pelo fato das províncias andarem desunidas, a regeneração argumentava em última instância com o poder das maiorias, que foi o argumento com que nos Estados Unidos, 40 anos depois, o Norte se opôs à secessão do Sul e obrigou este pela guerra a ficar dentro da União.

Depois de proclamada a independência e da assembléia legislativa ordinária tomar em Lisboa o lugar do Congresso Constituinte, certo número de deputados portugueses cogitavam do despacho de "um general de confiança", com carta branca, para subjugar o reino rebelde; a maior parte porém favorecia a abstenção de luta, isto é, a conformidade com os fatos consumados, havendo mesmo quem considerasse o melhor partido a seguir entrar logo em negociações com o império, reconhecendo sua independência, para a conclusão de um tratado honroso para ambas as partes e sobretudo vantajoso para o seu comércio recíproco.

Um acordo teria sido porventura fácil entre as representações dos dois reinos se não fossem as influências extra-parlamentares, mormente da plebe portuguesa. O programa ideológico da regeneração era simpático a todos os espíritos liberais, como no geral os de além-mar se mostravam, e conforme já houve ensejo de verificar-se, foram as Cortes invariavelmente dementes em matéria de denúncias e sobretudo prontas ao indulto. Os movimentos revolucionários do Brasil, mesmo os posteriores à implantação do constitucionalismo, nelas encontraram indulgência e até a meio destes incidentes, foram perdoados e mandados regressar para o Brasil os dois tipos antipáticos do movimento pernambucano de 1817, que tinham podido escapar ao patíbulo: o capitão Pedroso e o tenente José Mariano, assassino este último do seu benfeitor, o brigadeiro português Barbosa, soldado o primeiro de índole grosseira e sanguinária. A pena de ambos fora a de degredo perpétuo na ilha de Mormugão, na Índia Portuguesa, para onde iam ser transportados em junho de 1822.

Os acontecimentos velhos e novos baralhavam-se todos e as Cortes oscilavam, consoante seus interesses ou por outra os interesses públicos, entre uma política de amenidade e uma política de repressão, entre a separação em nome dos princípios e a união em nome das conveniências.

* * *

A questão da modificação das providências relativas ao Brasil, isto é, da alteração dos decretos de 29 de setembro, que tinham causado tanta celeuma no Rio, em São Paulo e por fim em Minas, fundira-se de forma tal com a da representação paulista que não havia mais meio de reduzi-las a sua primitiva diferenciação. A demora não fizera mais do que solidificar a fusão, e tivesse, a junta de São Paulo sido intérprete do seu próprio despeito, ou do despeito popular, era ela quem carregava a culpa, se culpa havia, da intitulada rebeldia.

A 10 de junho fora pois afinal apresentado às Cortes o relatório da comissão especial, dos negócios do Brasil, na qual Vergueiro substituíra Antônio Carlos, que se dera por suspeito e, de fora, ficava mais livre para a apresentação, poucos dias depois, das suas duas propostas de oposição. O relatório dava à junta paulista a prioridade e a direção do movimento nacionalista - partindo desta premissa para tirar conclusões em inteira contradição com as que anteriormente formulara.

A versão agora era que nada havia que alterar no ultramar porque as próprias províncias brasileiras tinham feito suas revoluções locais, organizado suas juntas provisórias, proclamado o regime constitucional, aderido às Cortes e repudiado o regente. A assembléia de Lisboa homologara, como lhe cumpria o como lhe convinha, todas essas resoluções. O movimento iniciado pela junta de São Paulo era um movimento portanto subversivo contra as novas instituições; restando saber e fixar quando um movimento deixa de ser negativo para tornar-se positivo, uma aspiração passa à realidade e um regime cessa de ser anárquico para vigorar, ou mais tarde decai de florescente em caduco. Se é a vontade popular que regula essas variações faltava às Cortes senão competência, pelo menos imparcialidade para estabelecer-lhes a gradação e reconhecer-lhes a influência exata.

Na data de 1.º de julho de 1822 o Soberano Congresso adotou três providências. Mandou responder a processo os paulistas signatários da representação de 24 de dezembro de 1821, que eram os membros da junta, e a deputação civil e eclesiástica que veio ao Rio felicitar o príncipe e em nome da qual falou José Bonifácio a 26 de janeiro, "não sendo exeqüível sentença alguma condenatória sobre o referido objeto, sem prévia decisão das Cortes". Declarou "nulo, irrito, e de nenhum efeito" o decreto de convocação do conselho de procuradores, por exceder as faculdades da regência e alterar o sistema constitucional, chamando à responsabilidade o ministério do Rio de Janeiro não só por esse ato como "por quaisquer outros atos da sua administração em que a responsabilidade possa ter lugar". Determinou a permanência no Rio de Janeiro do príncipe real até a publicação iminente da constituição política da Monarquia Portuguesa, governando com sujeição a el-rei e às Cortes as províncias que lhe obedeciam e tendo secretários de Estado nomeados por el-rei (220) e assinando o ministro competente não só as decisões tomadas em conselho, mas também a correspondência oficial, quer a dirigida a el-rei, quer a dirigida às Cortes. Em toda a província em que não houvesse ainda junta provisional de governo, deveria esta ser logo eleita e instalada.

Precedeu animado debate, que começou a 27 de junho, a votação, a qual foi de 59 votos contra 58, vencendo portanto por um só voto de maioria, o que abona o modo de ver daqueles que não enxergam na política anti-brasileira das Cortes um repto de nacionalidades inimigas, mas tão somente uma tentativa malograda de sobreposição de interesses contrariados e de preocupações estreitas ao reconhecimento largo e generoso dos direitos, embora rivais, de um povo adulto que se tornara consciente do seu vigor e para o qual deixaram desde esse momento de ter valor as recriminações do outro povo, que se sentia lesado nas suas conveniências.

A mesma política egoísta, de inobservância dos privilégios doados e garantidos, que foi a da Inglaterra com relação às colônias da América do Norte, foi a de Portugal com relação ao seu grande domínio da América do Sul: faltou a ambas o toque de espiritualidade e de justiça que teria prolongado a união conforme pretenderam, num caso o Canadá e no outro o Pará-Maranhão.

Os discursos mais notáveis pronunciados no referido debate foram os de Vergueiro, do lado dos brasileiros, e de Guerreiro, do lado dos portugueses. Vergueiro na sessão de 1.º de julho argumentou sobretudo com o fato das representações paulistas não atacarem o princípio essencial da integridade da monarquia portuguesa, apenas zelarem os direitos e interesses do reino autônomo do Brasil, cujos destinos não deviam ser regulados à revelia da sua representação parlamentar. A admissão pelas Cortes de terem feito política errada e a satisfação assim dada às justas aspirações do ultramar - não se importando com a forma apaixonada e mesmo petulante que tais aspirações assumiram da parte dos paulistas - evitariam a separação e cimentariam a união. Por isso era política da melhor pôr fora da pista o partido da independência absoluta, que era o extremo oposto e por isto mesmo o correlativo ao partido da recolonização.

Se os brasileiros se mostravam impacientes, os portugueses, mesmo muitos que viviam na terra irmã porquanto outros acompanhavam os brasileiros, mostravam-se mesquinhos no seu ciúme. Ferir os responsáveis pelas expressões afrontosas dos documentos era fazer redobrar as simpatias populares que os cercavam: constituía portanto um proceder contraproducente. O programa de Vergueiro, até a constituição entrar em vigor, consistia em continuar o príncipe herdeiro como regente sem coação e continuarem as juntas locais responsáveis para com as Cortes, mas tendo sob sua dependência as autoridades militares e de fazenda, não recebendo tropas de Portugal senão a requerimento próprio e ficando os decretos das Cortes sujeitos ao beneplácito das autoridades ultramarinas.

Na sua qualidade de português, Vergueiro ainda acreditava na possibilidade de "com generosidade e prudência" prolongar-se um regime que a outros já deixara de inspirar confiança. Esta era indispensável para ser ele praticado com resultado, porque na sua essência constituía uma transação. Num bom redigido manifesto dirigido por esse tempo pelas Cortes ao povo do Brasil e no qual se justifica sua ação, encontra-se o seguinte período: "Brasileiros, o ato de adotar, ou de rejeitar um sistema de governo é um compromisso; pesamos inconvenientes; damos, e tomamos; entregamos uns direitos para melhor podermos gozar outros; e assim como sacrificamos a liberdade natural, para gozarmos na associação civil com mais segurança as suas vantagens, assim devemos sacrificar uma parte das vantagens civis à superior utilidade da união de um grande império... não é tão circunscrita a esfera dos inventos humanos, para que a sabedoria das instituições não possa reunir o que a natureza separou... As Cortes não pretendem sustentar a união de Portugal com o Brasil pelo meio das armas; a força é fraco instrumento para conter uma conexão subordinada, e proveitosa a um povo ativo, numeroso, crescente e amigo da sua liberdade. A nossa união, brasileiros, depende só das afeições e do interesse que produzem vantagens recíprocas, nomes comuns, parentes, amigos, leis iguais, igual proteção".

Infelizmente os atos não correspondiam às palavras. É verdade que Moura explicou sua mudança de opinião, de março para julho. Então as juntas pareciam obedecer todas às Cortes: não via mal em que lhes ficassem sujeitas as autoridades militares. Depois disso foi que se desenvolveu o espírito de rebelião e discórdia entre as juntas, aconselhando uma mudança de atitude.

O discurso de Moura distanciou-se do tópico principal em debate e tratou mais que tudo da aceitação necessária da constituição pelos deputados brasileiros, uma vez que o povo brasileiro aprovara as bases que eram o sumário das disposições da lei orgânica. Mesmo sendo assim, como pondera Comes de Carvalho, a legislação ordinária não estava isenta de divergência e de discussão e, no caso em questão, faltava às Cortes capacidade judicial para se ocupar dele e do seu caráter criminal. Não lhes competia, na frase de Vergueiro, "qualificar delitos e designar culpados".

Tornara-se bem patente a má fé de oradores que faziam por assim dizer irresponsável e inviolável o herdeiro presuntivo da Coroa, o qual não usufruía semelhantes regalias e era na espécie o mais culpado de desobediência e de levante, para descarregarem toda a responsabilidade sobre autoridades que exerciam o seu mero direito de petição. Segundo Guerreiro, o mais condescendente dos regeneradores portugueses para com o Brasil, a junta paulista não se limitara a fazer uso desse direito, ou antes dele usara com espírito de rebeldia; mas então, no dizer de Antônio Carlos, a deputação mineira e a junta pernambucana deveriam ser igualmente denunciadas, pois que tinham reproduzido os argumentos da junta paulista.

Guerreiro frisou o ponto de que a comissão não julgava o caso, apenas o indicava à justiça, sem indagar nem da qualificação do delito, nem do castigo correlativo, atribuição esta do poder judiciário, ao qual pertence também a pronúncia dos acusados, assunto em que as Cortes pretendiam intervir para discriminar. Sujeitando ainda por cima ao seu beneplácito ou autorização a aplicação da pena e mesmo sua qualidade, as Cortes funcionavam virtualmente como uma suprema corte de justiça com faculdade de revisão.

Sobre o príncipe, que não fora maltratado no decorrer da discussão, ficava pesando a ameaça de ser excluído da sucessão no caso de reincidência ou mesmo no caso de não tragar as humilhações que lhe eram infligidas. Tudo se punha destarte a conspirar para que Dom Pedro separasse seus interesses dos da monarquia tradicional e criasse de fato o novo império de que tanto se falava. Segundo a carta a el-rei de 26 de julho, já a disposição do príncipe regente era de não fazer cumprir "mais nenhum" dos decretos das Cortes, só os da Assembléia brasileira, e de só manter com seu pai relações "familiares porque assim é o espírito público do Brasil, sendo um impossível físico e moral Portugal governar o Brasil ou o Brasil ser governado de Portugal".

Dir-se-ia que neste debate a paixão esteve muito mais do lado português que do brasileiro; justificando o ditado que mais se irrita o que não tem razão. Antônio Carlos mesmo, combativo como era, afastou toda preocupação pessoal e apenas defendeu José Bonifácio em termos despidos de cólera e repassados de elevação moral. Tomou assim para si o conselho que dava a Portugal: de não aplicar cautério e sim bálsamo às chagas vivas. A convicção ganhara porém terreno entre os brasileiros, pelo menos os mais conspícuos, da representação nas Cortes, que qualquer acordo duradouro se tornara impraticável. O dilema pusera-se nos termos seguintes: separação definitiva ou subordinação efetiva.

CAPÍTULO XVI

A BERNARDA PAULISTA E OUTROS ALVOROÇOS.
DOM PEDRO MAÇÃO E GRÃO-MESTRE

A chamada bernarda paulista de 23 de maio de 1822, que foi um pronunciamento a um tempo civil e militar, deve ser considerado o primeiro ataque sério vibrado contra a autoridade e influência de José Bonifácio; mas não passou de fato de uma ocorrência de caráter local, se bem que, pela situação nacional dos Andradas e pelos antagonismos já suscitados pelo mais velho nesta esfera mais larga, pudesse ter tido conseqüências mais relevantes, desmoralizando-os na sua própria província e tornando assim real e manifesta a diminuição, senão perda do seu prestígio geral. O príncipe porém, tomando resolutamente o partido do seu ministro, manteve-lhe o crédito e sustentou-lhe a posição no país.

O pronunciamento foi direta e nomeadamente contra Martim Francisco, acusado nas atas das vereações extraordinárias da câmara de São Paulo de "querer ser absoluto na cidade e província". As representações contra ele, aliás firmadas por gente da melhor, a começar pelo bispo, são visivelmente exageradas e a injustiça ressumbra dos seus dizeres, pois que se referem não só às paixões do indiciado como "aos seus amigos, que desgraçadamente eram o refugo da sociedade, e aos seus parentes que sempre foram em todos os tempos maus cidadãos e péssimos súditos".

Relativamente a Martim Francisco em pessoa, denunciam os signatários da maior dessas representações (221) "o seu orgulho, o seu despotismo e as suas arbitrariedades", no que teriam até certo ponto razão. É verdade que Martim Francisco, homem honradíssimo, de uma probidade draconiana que não admitia desmandos nem Concedia favores, de unia natureza geralmente taciturna, era um temperamento explosivo, sem certa maleabilidade que distinguia José Bonifácio, de quem escreve Melo Moraes que era "ao mesmo tempo irascível e flexível".

José Bonifácio tinha obstinação nas idéias, mas era capaz de tolerância para com os desvios humanos: Martim Francisco, severo antes de tudo e exercendo por isso ação sobre o irmão e sogro, ia até cometer prepotências para fazer vingar e respeitar a lei. A representação aludida fala em autoridades invadidas nas suas jurisdições, em causas cíveis decididas no governo embora já prevenidas no foro contencioso, em execuções de sentenças suspensas, em presos soltos ainda que com culpa formada, em cidadãos presos discricionariamente, em clérigos criminosos restituídos à liberdade.

Tudo isto soa muito como aumentado e desvirtuado pela paixão política, sendo a desavença proveniente de ciúmes de poderio. Foi o instrumento principal da discórdia o presidente do governo local Oyenhausen, mas agente capital o comandante das milícias Francisco Inácio de Sonsa Queiroz, membro da junta, e inspirador dela, ao que parece, o ouvidor José da Costa Carvalho (futuro marquês de Montalegre). As discrepâncias tinham sido já muitas, por querer o Andrada fazer prevalecer suas idéias e projetos contra a opinião dos demais membros da junta, da qual era vice-presidente desde a ida do irmão para o Rio, quando se deu o motivo imediato da bernarda, que foi a ordem dada por José Bonifácio, em nome do príncipe regente, a 10 de maio de recolherem-se á corte presidente e ouvidor.

Ficava deste modo à frente da junta Martim Francisco, que nela só contava com o apoio decidido do brigadeiro Manuel Rodrigues Jordão, tesoureiro da fazenda pública. Os outros membros insurgiam-se contra a tutela que francamente os ameaçava, sendo Martim Francisco, no dizer de Porto Seguro, mais imprudente do que os irmãos. Queixas tinham mesmo sido dirigidas para o governo do Rio, mas José Bonifácio procedera parcial e iniquamente deixando sem resposta os ofícios da junta, ao ponto desta solicitar diretamente a atenção do príncipe regente para o fato, deplorando ser assim tratada, declarando-se pronta a ceder o lugar a outra junta que fosse eleita e convidando em todo caso Dom Pedro a ir ele próprio a São Paulo como já fora a Minas, inteirar-se do ocorrido, antes disso miudamente exposto numa representação do prelado e de moradores notáveis de São Paulo, militares, civis e eclesiásticos.

Porto Seguro insinua que José Bonifácio sonegava às vistas do príncipe os documentos comprometedores, como era esse: não dá contudo as razões precisas em que se funda para tal increpação. Do que se pode culpá-lo é de ter tomado absoluto partido pelo irmão sem mandar antes abrir uma devassa geral dos sucessos, apenas ordenando um inquérito especial sobre o motim de 23 de maio, e de só haver respondido às comunicações da junta depois da chegada de Martim Francisco ao Rio de Janeiro (18 de junho), repreendendo-a então (25 de junho) bem como o governador interino das armas marechal Toledo Rendon, tratando de "miseráveis e facciosos" os promotores do motim e lembrando a obediência de todos "às ordens do poder competente e superior", ao mesmo tempo que propalando a simpatia da mesma junta pelas Cortes de Lisboa e levando o príncipe a pronunciar uma sentença solene em favor do membro dissidente e expulso, que foi por ele chamado ao ministério.

A secretaria da justiça foi desligada da do reino, como já se fizera em Portugal; Caetano Pinto passou a titular do novo ministério e Martim Francisco assumiu a gestão do da fazenda (3 de julho). Para não descontentar muito a maçonaria foi que, segundo Porto Seguro, se procurou um pretexto para arredar Oliveira Alvares, sacrificado a Nóbrega, o qual foi chamado para a pasta da Guerra. Porto Seguro assim identifica a maçonaria com o partido nacionalista avançado de Ledo, Januário e José Clemente.

A forma adotada em São Paulo pelos amotinadores para dar vazão ao seu descontentamento foi a clássica: a exigência pelo pronunciamento da saída dos dois membros da junta, ao passo que eram conservadas pela vontade do povo e tropa as duas autoridades chamadas à corte. O juiz de fora de São Paulo, Leite Penteado, amigo dos Andradas, diz que ao chegar à casa da câmara, encontrou "a tropa formada e uma porção de povo amotinado, angariado e influído por alguns indivíduos, dominados do espírito da intriga e inimigos do sossego público". Estes díscolos tinham escolhido o levante no lugar do meio legal da representação, comentava o juiz de fora.

A representação do povo e tropa como que respondia de antemão a este tópico no dizer que "representar era o mais próprio de portugueses; porém a mais pequena reflexão foi suficientíssima para todos verem que baldado seria este meio, porque acharia invencíveis estorvos preparados pela intriga, em ótimas circunstâncias de se aproveitar, e que nunca chegariam nossas queixas e suspiros à presença de V. A. Real".

Culpavam igualmente Martim Francisco de ter tentado por meio de emissários sublevar o povo paulista e de várias câmaras municipais, como a de Itú, vieram representações contrárias ao levante, cuja responsabilidade o encarregado de negócios da Áustria não hesita em atribuir a Oyenhausen - o conselheiro João Carlos como o chamam os papéis do tempo - embora culpando em primeiro lugar ou mais remotamente do rompimento o que o diplomata qualifica de indiscrição e nepotismo do então poderoso ministro.

A segunda expressão deve evidentemente ser tomada cum grano salis. Indiscrição valia nesse caso sua acepção comum, significando falta de reserva ou melhor excesso de comunicabilidade, traduzindo-se por loquacidade. Sob este ponto de vista Dom Pedro era superior: "Le prince ne manque point de discretion quand il en sent le besoin" (222), faltando-lhe embora experiência. Nepotismo significava porém, não proteção indébita a interesses ilícitos, privados ou públicos, de família ou do Estado, mas simplesmente uma união muito grande entre os irmãos e um sentimento marcado de preferência na confiança depositada nos seus parentes próximos. Nos Andradas era tão acentuada a susceptibilidade quanto a probidade.

Foram o comandante das milícias Francisco Inácio e o ouvidor Costa Carvalho os que invadiram a casa do governo, aconselhando resistência às ordens do Rio na questão dos chamados e reclamando em nome da tropa e povo as demissões, como "perniciosos à província", de Martim Francisco e Jordão, dos empregos e funções que exerciam. À vista do pronunciamento foram essas demissões dadas voluntariamente no intuito de apaziguar a desordem: Martim Francisco era inspetor das minas e matas.

A junta respondera aos da bernarda que excedia das suas atribuições deferir a pretensão dos que reclamavam tais exclusões e destituições, mas não se recusou a anuir ao que era dela reclamado e poucos dias depois (29 de maio) até expulsava Martim Francisco, da cidade em 24 horas e da província em 8 dias, a bem da ordem pública. Por sua vez a câmara reconhecia que não procedia legalmente deferindo os desejos expressos por outra via que não a da representação: "mas era a única que o momento permitia e que a felicidade da pátria fazia indispensável". Além disso a câmara atentou, conforme declara na sua representação ao príncipe de 4 de junho, no número e qualidade dos cidadãos reunidos, na boa ordem e unanimidade com que representaram, nos motivos verdadeiros que invocaram, "notando mais que se não atentava contra o governo estabelecido e aprovado por V. A. Real isto é, que se não destruía a pessoa moral em quem residia uma porção do poder executivo, mas que unicamente se tirava desse todo uma parte infeccionada, que não constituía a sua essência, pois que se não acha determinado o número de homens que devem compor esta parte executiva; e, tirados eles, ainda restava neste governo maior número de votos do que prudente e sabiamente tem determinado o soberano congresso para os governos provinciais".

As coisas chegaram a tomar em São Paulo um aspecto sério, que se não modificou sensivelmente com a bernarda, tornada aliás conservadora e apoiada por uma força de tropa de Santos, respondendo porém os partidários dos Andradas com alvoroços que se estenderam de Porto Feliz (24 de julho) a Itú e outros pontos, visando o estabelecimento de um novo governo paulista. O capitão-mor Rocha, a quem Mareschal concede muito talento e muita atividade (223), foi despachado a ver se compunha a desavença, mas voltou para trás, não achando o meio propício à execução da sua missão, mas conseguindo em todo caso amedrontar os amotinadores com os 200 soldados que fez marchar, depois de esgotados os meios suasórios. Para restabelecer a calma seria mister, como em Minas, a presença do príncipe no auge da sua popularidade.

Com a expulsão de Martim Francisco ganhou ele um cérebro para o seu tesouro, embora anêmico. Os predicados, mesmo elevados a defeitos, do Andrada, serviram-no admiravelmente como ministro da Fazenda da regência e depois da independência, restaurando-se o crédito do governo pelo mero exercício da sua honradez individual, pois que era honestidade o que havia faltado em muitas transações do antigo regime. A confiança renasceu tanto que o empréstimo de 400 contos, contraído em agosto de 1822 para ajudar a defesa dos direitos brasileiros, foi negociado a juro de 5%. A receita cresceu pelo escrúpulo na arrecadação das rendas, sendo obrigados ao pagamento dos impostos os mais ricos e poderosos, que são de ordinário os mais remissos e negligentes, conseguindo-se fazer frente apenas com essa reforma a despesas avultadas, para as quais parecia aquela insuficiente.

* * *

A agitação nos espíritos era grande e deu-se como que um andaço de insubordinações, para o qual muito concorreu a linguagem de alguns jornais, que depressa aprenderam a licença na prática da liberdade. O governo do Rio viu-se na necessidade de adotar uma lei contra tais abusos (18 de junho de 1822), sujeitando ao julgamento por júri as acusações feitas pelo procurador da Coroa. O acusado podia recusar até 16 dos 24 homens bons escolhidos pelo corregedor do crime ou ouvidor da comarca e dos quais oito constituíam o júri, sendo a sentença sem apelação.

Na opinião de Cairu, que era um genuíno liberal, a medida deu ensejo a "intolerâncias e perseguições" por diferença de opiniões políticas, mas o governo justificava-a com a necessidade de uma defesa contra as doutrinas "incendiárias e subversivas", que não deixariam de pôr em perigo a ordem pública e até a integridade nacional por ocasião da reunião da Assembléia Constituinte, com o fim de destruir-se o sistema constitucional.

No mesmo dia desse decreto tomavam-se, segundo se lê em Pereira da Si1va (224), outras medidas de rigor, como a de prisões em Minas, entre eles a do novo juiz de fora, provocadas muito provavelmente pela resolução da reunião da constituinte brasileira. Foi este pelo menos o motivo da retirada no Rio Grande do Sul do comandante das armas, brigadeiro João Carlos de Saldanha de Oliveira e Daun, que foi mais tarde o famoso duque de Saldanha e que estava exercendo por eleição a presidência da junta local. Tendo aplaudido o Fico e aderido à regência brasileira, não lhe sofreu a paciência ou antes a volubilidade que fosse o reino americano até querer legislatura própria, ao que ele chamou "mudar de sistema" no oficio com que se demitiu, com grande agravo de Cairu que lhe atira os epítetos de "transfuga e desertor".

Outra fonte de efervescência dos espíritos e cujo jato se confundia às vezes com a imprensa, era a maçonaria, desde que começou a não ser simplesmente mais a oficina onde se trabalhava pela emancipação política do país e se converteu num centro de intrigas das facções à busca de predomínio, intrigas tanto mais fáceis de tecer quanto se urdiam nas trevas e que sobretudo se emaranharam após a iniciação de Dom Pedro como Guatimozim a 13 de julho2 (25), data em que foi igualmente iniciado e até defendido pelo príncipe no tocante ao seu proceder em Minas o brigadeiro Pinto Peixoto.

Por sua vez a maçonaria julgava, mas já se sabe em segredo, os atentados contra a pureza das doutrinas que deviam ser defendidas pelos seus adeptos. Assim foi o padre mestre frei Sampaio chamado à responsabilidade pelo "povo maçônico", a 20 de agosto de 1822, por ter professado no Regulador, "impresso sob a proteção" da instituição, opiniões reputadas aristocráticas, que se não compadeciam com a liberdade constitucional por que o Brasil anelava e única que podia fazer sua felicidade política", liberdade que o príncipe já jurara e sustentava em contradição com "certas insinuações pérfidas das Cortes de que os áulicos do Rio de Janeiro pretendiam restabelecer o despotismo" (226).

A autoridade do publicista, que além de reputado orador sacro era orador de uma das lojas, podia fazer reviver desconfianças mal-extintas e fazer algumas das províncias hesitarem na sua marcha voluntária para a centralização. A 23 de agosto compareceu o frade perante o tribunal dos seus companheiros e retratou-se, assegurando que os arugos em questão eram estranhos à redação, mas tinham-lhe sido transmitidos por pessoas de consideração, às quais não pudera negar a publicidade. O presidente, que era quase sempre Ledo, o grão-mestre José Bonifácio raramente comparecendo, admoestou frei Sampaio por assim sair "fora dos traços da esquadria e do compasso", divulgando conceitos alheios e atentatórios dos interesses da nação, e repeliu a desculpa como justificação, recebendo-a apenas como satisfação e promessa de mudança de procedimento. A cena terminou pelo perdão do delinqüente, selado pelo ósculo fraternal dos presentes, isto é, pela reconciliação, ainda que com as reservas mentais do costume em casos tais.

Ao príncipe tentava como o fruto proibido essa sua intima associação com os carbonários, conforme os denominavam os do partido do ministério e, segundo Drummond, andava exultante com ser mação. Aliás seus companheiros fizeram-no mestre na sessão imediata (16 de julho) e grão-mestre durante sua ausência em São Paulo, na ausência também de José Bonifácio do seu lugar, ocupado por Ledo. Este presidiu igualmente a sessão memorável de 20 de agosto em que, no dizer da ata, demonstrou a urgente e imperiosa exigência de firmar a independência do Brasil e a "realeza constitucional e hereditária do príncipe defensor perpétuo", fazendo ver que o sentimento geral das províncias, ao que informavam os irmãos por elas espalhados, era esse. Convergiam para a união no seu próprio interesse, certas de que não poderiam resistir, isoladas, à pressão portuguesa.

A proposta, pelo que reza a ata, foi "posta a votos e unanimemente aprovada pela assembléia com geral aplauso e entusiasmo", ficando marcada a cerimônia para 12 de outubro, natalício de Dom Pedro. Escreve Drummond que quando o príncipe partiu para São Paulo a 14 de agosto, já se achava porém decidida a investidura imperial e que foi este um ponto no qual José Bonifácio insistiu e no qual a facção avançada, a gente especialmente da maçonaria, assentiu sem levantar oposição, porque bastava a circunstância de rei implicar de preferência uma tradição dinástica e imperador traduzir antes uma aclamação individual, embora viesse a primeira escolha a originar também uma família soberana. A emanação era todavia popular, enquanto que se entende que o fundador de uma casa real se impôs por si só, pelo seu valor. Le premier roi fut un soldat heureux... Igualmente o foi o primeiro imperador, mas a sua autoridade partiu de baixo para cima.

Em José Bonifácio influiu ainda a consideração, que ele até expressou nos seus versos e especialmente na Ode aos Baianos, da grandeza territorial, da vastidão de recursos, da uberdade e da riqueza do Brasil, ao mesmo tempo que da independência que lhe devia assistir, de fato como de direito, e da qual devia ser a primeira manifestação a livre seleção da sua forma de governo. José Bonifácio era faceto por índole e por hábito: não perdeu a ocasião de chalacear com o caso. Apresentou com uma gargalhada o argumento de que o povo brasileiro, naturalmente orgulhoso, gostava muito de títulos retumbantes, quanto mais pomposo melhor, e que já estava acostumado com imperadores por causa do "imperador do Espírito Santo". Daí quiseram alguns tirar a dedução de que o Andrada era um sans-culotte, quando era apenas um gracejador com essa instintiva falta de respeito de todo o brasileiro pelas fórmulas do poder e pelos que o ocupam. Nada prova melhor seu nacionalismo.

É claro que a votação do Grande Oriente era o resultado de um porfiado esforço coletivo, que requeria prudência ao mesmo tempo que boa direção. Precisamente por terem sido reconhecidos culpados de propalar para Portugal e províncias do Brasil o que em sessões anteriores se passara a respeito do magno assunto, no intuito de fomentar enredos e suscitar embaraços, foram na reunião de 20 de agosto eliminados seis "operários", cujos nomes a ata não menciona, ficando eles porém "notados sob a vigilância do povo maçônico e enquanto durasse a luta com Portugal" (227).

Na sessão imediata, que foi a de 23 de agosto, pelo fato mesmo de terem na anterior manifestado vários oradores o desejo de que fosse simultânea no país a aclamação real, a fim de não parecer precipitada uma medida de caráter nacional, tratou-se de despachar para as províncias delegados no intuito de facilitarem a execução do ideal da proclamação da independência e obstarem a que qualquer "corporação civil ou sociedade particular" precedesse a maçonaria na glória da empresa, na qual tinha ela sido a primeira "em dar o necessário impulso à opinião pública".

Ofereceram todos contribuições, consoante suas posses, para as despesas do movimento, e também seus serviços pessoais. Assim foram entre outros destacados para Minas o padre Januário da Cunha Barbosa, para Pernambuco João Mendes Viana, para a Bahia Gordilho de Barbuda e para Montevidéu o Dr. Lucas Obes. Tal receio de perder a precedência não era de resto infundado, pois que por sua parte outros estavam trabalhando de fora para idêntico fim.

Conta Drummond que, quando o padre Januário chegou a Minas, já encontrou por todas as vilas; desde Barbacena, lavradas as atas dos senados das câmaras, por efeito de cartas de Rocha, Drummond, e outros. De Pernambuco Filipe Neri Ferreira, que no Rio se filiara na loja Comércio e Artes, prometera muito, mas como parecia nada cumprir e o tempo urgia, um mação que era dono e capitão de um navio, encarregou-se de levar o emissário ao Recife. Logo depois chegaram comunicações tranqüilizadoras do novo governo provisório e do próprio Filipe Neri Ferreira e voltou arribado o navio que transportava João Mendes Viana, a quem José Bonifácio fez de novo seguir num espírito de cilada, com intuitos reservados de perseguição (228).

José Bonifácio não podia deixar de encarar com maus olhos uma sociedade que o tratara com tamanha falta de contemplação. Refere o autor da Exposição histórica da maçonaria no Brasil que a resolução rebaixando-o a adjunto e elevando Dom Pedro a grão-mestre, foi absolutamente irregular. Em vez de ser tomada em assembléia geral foi "disposta em sessão particular da grande loja", sem ser sequer prevenido o grão-mestre, o qual de certo se não oporia à homenagem, antes formularia ele próprio a proposta. Isto era justamente porém o que Ledo queria evitar, para que ficasse o príncipe a dever-lhe a gentileza.

Dom Pedro prestou logo juramento e recebeu o grão-malhete, pronunciando Domingos Alves Branco um discurso no qual já se enxerga verdadeira animosidade e se verifica quão afastados já estavam os Andradas dos seus inimigos políticos. "Precavei-vos, respeitável grão-mestre, de embusteiros, disse o orador da loja Comércio e Artes. Não vos abandoneis, a enredos, a vãos caprichos. Atendei que na criação de um império deveis ter em muita consideração qual é o gênio que o pode conservar ou que o pode destruir. Deus tem visivelmente mostrado que auxilia a nossa justa causa; não trabalhemos para que ele retire a sua onipotente mão, para nos deixar cair nas desgraças e na confusão, apartando-nos dos vínculos que nos unem e das condições do nosso pacto social, tendo por ele o imperador a prerrogativa de fazer todo o bem sem ser responsável pelo mal. Se mãos ímpias pela intriga pretendem apagar a sagrada tocha que nos alumia, sejam estes sacrílegos lançados para fora do nosso grêmio, e sejam detestados e os seus nomes apagados da tabela que nos honra... Apartai-vos, digno grão-mestre, de homens coléricos e furiosos; por mais cientes que eles sejam nunca acham a razão e só propendem para o crime. Vós tendes sabedoria, prudência, comedimento e moderação; portanto não vos deveis abandonar a malvados. Atalhai todo o ulterior progresso da intriga, confiando dos vossos leais mações...

No que concordavam todos era em que a dignidade do soberano fosse a imperial. O próprio Alves Branco, após seu violento discurso, deu os vivas nesse sentido. A cerimônia da aclamação devia ter lugar no palacete do campo de Sant'Anna edificado para as festas da realeza, e o imperador seguiria depois a pé, debaixo do pálio, até a capela imperial. Os mações eram convidados a comparecer todos, fardados os que fossem oficiais da 1.ª e 2.ª linha, "com armas ocultas" os paisanos, rodeando quanto possível a pessoa de Dom Pedro para resguardá-lo dos golpes de algum possível traidor (229).

O momento era de exaltação e Dom Pedro chegou a perder a compostura o que aliás não lhe era difícil quando irado - na última carta que escreveu ao pai, a 22 de setembro, respondendo às recomendações de el-rei sobre a observância e obediência devidas às ordens das Cortes, as quais tinham feito inserir na carta paterna uma leve admoestação. Esta carta tão descabelada é, que se poderia antes ter por apócrifa, não figurando de resto entre as traduzidas por Eugène de Monglave, se a não publicasse Cairu na sua Crônica autêntica da regência do Brasil. "Firme nestes inabaláveis princípios, digo (tomando a Deus por testemunha e ao mundo inteiro), a essa cáfila sanguinária, que eu, como príncipe regente do reino do Brasil e seu defensor perpétuo, hei por bem declarar todos os decretos pretéritos dessas facciosas, horrorosas, maquiavélicas, desorganizadoras, hediondas e pestíferas Cortes, que ainda não mandei executar, e todos os mais que fizerem para o Brasil, nulos, irritos, inexeqüíveis, e como tais com um veto absoluto, que é sustentado pelos brasileiros todos, que, unidos a mim, me ajudam a dizer: De Portugal nada, nada; não queremos nada.

Se esta declaração tão franca irritar mais os ânimos desses lusos-espanhóis, que mandem tropa aguerrida e ensaiada na guerra civil, que lhe faremos ver qual é o valor brasileiro. Se por descoco se atreverem a contrariar nossa santa causa, em breve verão o mar coalhado de corsários, e a miséria, a fome e tudo quanto lhes podermos dar em troco de tantos benefícios, será praticado contra esses corifeus; mas que, quando os desgraçados portugueses os conhecerem bem, eles lhes darão o justo prêmio.

Jazemos por muito tempo nas trevas; hoje já vemos a luz. Se V. M. cá estivesse, seria respeitado e amado; e então veria que o povo brasileiro, sabendo prezar sua liberdade e independência, se empenha em respeitar a autoridade real, pois não é um bando de vis carbonários e assassinos, como os que têm a V. M. no mais ignominioso cativeiro".

CAPÍTULO XVII

OS ÚLTIMOS DEBATES EM LISBOA.
O VOTO DA CONSTITUIÇÃO E A DEBANDADA
DA REPRESENTAÇÃO BRASILEIRA

A representação portuguesa nas Cortes tinha benevolamente concedido à brasileira duas agências de previdência constitucional, que eram a comissão luso-brasileira, cujo parecer de 18 de março, posto pelo avesso pelo parecer posterior relativo à representação paulista, só depois de 1.º de julho, isto é, depois de votadas as medidas de repressão contra os díscolos de além-mar, entraria em debate, e a comissão especial brasileira incumbida de formular os aditamentos e modificações que a experiência das coisas da sua terra sugerisse a esses deputados, para fazerem parte da lei orgânica do Reino Unido, a fim de que esta pudesse operar sem atritos e muito menos desavenças como as que estavam assinalando sua discussão.

Era aparentemente, e para alguns sinceramente, uma tentativa final de composição, da qual a maioria portuguesa do Congresso conservava contudo nas mãos a regulação: era também o meio de encerrar a discussão do instrumento constitucional, a qual já se estava prolongando demasiado para um país que não via sem desconfiança esse ensaio de regeneração que punha fim a tanta idéia tradicional e a tanto costume querido.

A comissão constitucional brasileira foi formada de luminares da representação - Antônio Carlos, Vilela Barbosa, Fernandes Pinheiro, Lino Coutinho e Araújo Lima - e o resultado dos seus trabalhos foi apresentado a 17 de junho. O parecer correspondia ao mérito dos que o elaboraram, obedecendo à inspiração geral das instruções dadas aos deputados paulistas por José Bonifácio.

O regime do dualismo foi respeitado pela comissão, cabendo a cada reino sua legislatura e havendo um parlamento como hoje se diria imperial, para lidar com os interesses comuns - políticos, mercantis, militares, comerciais -, composto de 50 representantes, 25 de cada seção da monarquia, nomeados pelas respectivas legislaturas. Era um sistema muito parecido com o que depois conheceu a Áustria-Hungria quando se estabeleceu em 1867 o Ausgleich, com sua sessão anual das respectivas delegações parlamentares. Gozaria esse parlamento imperial do poder supremo de sancionar, ou de suspender por nociva aos interesses gerais da monarquia ou aos interesses privativos de cada reino nas suas relações um com o outro, a legislação emanada dos dois Congressos, nos quais tomariam assento os representantes das possessões asiáticas e africanas, conforme a própria escolha - a autodeterminação - destas colônias.

O executivo americano caberia ao herdeiro da Coroa, ou na sua impossibilidade a um membro varão da família real, ou em último caso a uma junta de regência, sendo representado em cada província por um delegado, equivalente a um prefeito de departamento no império francês ou, melhor ainda, a um presidente de província do império brasileiro, e assistido por secretários de Estado responsáveis. O governo de Lisboa só se reservaria em última instância a nomeação dos ministros do supremo tribunal de justiça - que a Constituição portuguesa acabou por estabelecer no Brasil pelo seu artigo 193, com atribuições iguais ao de Portugal (230) - e dos bispos, submetidos em listas tríplices à sua escolha. À alçada do regente ou da regência só escapavam assim o manejo das relações exteriores, a declaração de guerra, e a concessão de títulos honoríficos.

Este projeto correspondia à "independência moderada" de que falava Dom Pedro aos baianos, mas já existiam federalistas que queriam uma legislatura para cada província, e para os regeneradores chauvinistas tratava-se de pura "independência mascarada". Do ponto de vista constitucional uma objeção foi apresentada, que tinha o seu valor: a organização preconizada ofendia as bases da Constituição na parte em que esta estabelecia uma Câmara única. O exemplo da convenção francesa, a recordação da sua obra altaneira em defesa da França revolucionária atacada por todos os lados, erguia-se contra o princípio de uma segunda câmara conservadora, câmara absorvente no modelo que fora aventado, pois que lhe caberia a faculdade de anular a obra das legislaturas cis e transatlântica. A concessão desta legislatura, independente e superior na sua missão, aterrava mesmo mais do que a de uma câmara alta ou simples câmara revisora dos projetos da câmara baixa.

O argumento brasileiro, em resposta a essa objeção, de que Cortes Gerais eram só umas, essas, reconhecidas por toda a monarquia, não passando as outras de parlamentos locais, como o eram as câmaras municipais, legislando por posturas nas suas pequenas circunscrições, soa como um sofisma. Os que o formulavam mesmo reconheciam que a função censória do proposto parlamento imperial assentava porventura melhor à Corte Suprema de Justiça ou ao Conselho de Estado.

Outro argumento brasileiro tinha mais força e era o da necessidade de haver Cortes no Brasil que temperassem a ação do executivo, facilmente despótica sem esse freio. Logo houve quem se aproveitasse de tal receio para insinuar, em vez de um regente único, uma série de vice-reis, tantos quantas as províncias, o que obedecia ao plano persistente de romper a unidade do reino americano - "único e indivisível" dizia Lino Coutinho, arremedando a França da Convenção. Gomes de Carvalho a este propósito mostra a conversão do inteligente baiano, que era dantes um puro girondino, e lembra que José Bonifácio fizera escola. Se Cortes aliás deviam ser só umas, uma só devia também ser a regência, segundo as bases.

No espírito dos que defendiam com brilho e ardor o projeto da comissão havia mais sinceridade do que se pode à primeira vista imaginar. A independência era um grande ideal, mas cuja realização trazia no bojo uma ameaça, que era a do desmembramento do Brasil. Não se achava por acaso fragmentado o império espanhol da América? Resistiria o império português às tendências desagregantes, especialmente ao federalismo dissolvente que parecia querer primar entre o elemento avançado? O dualismo conservava vantagens manifestas, se fosse lealmente aplicado, num espírito de igualdade, e o deputado português Sarmento, nascido no Brasil, chegou a notar com razão que desde o advento do regime constitucional havia maior número de afinidades e mais coesão entre Portugal e Brasil (231).

A questão estava naquela lealdade da aplicação e também em poder-se suprimir certa conformação da mentalidade, comum a todas as metrópoles, que as faz sempre olhar para suas colônias com um desprezo mesclado de ciúme, tendendo a minguar-lhes a valia e a não descobrir nelas condições para um governo próprio. A maioria portuguesa não quis atender a razão alguma, nem mesmo aceder a que a legislatura transatlântica fosse apenas consultiva: não foi sequer admitida a discussão a proposta da comissão neste ponto essencial.

O príncipe real foi excluído do direito à regência brasileira pelo temor de que se afeiçoasse demasiado a terra - o exemplo de Dom João VI estava vivo e bem recente o trabalho que dera arrancá-lo de lá - e também pelo interesse dinástico e pessoal que o mesmo teria em não despedaçar a unidade política e administrativa do reino americano. O ideal para a maioria portuguesa das Cortes era a multiplicidade dos governos provinciais, a qual, dizia ela, agiria como o melhor corretivo no caso de despotismo do executivo, apontado como possível na falta de uma legislatura. A igualdade entendida doutro modo do que esse, ao revés, traduzia a seu ver a dependência da seção menor da monarquia.

O exemplo nada distante da separação da América Inglesa, por falta de uma compreensão lúcida da situação das treze colônias e do sentimento dos seus habitantes da parte dos homens de Estado britânicos então no governo, não ajudara a regeneração a enxergar melhor o perigo. Acumulava esta erro sobre erro, acumulando as provocações que eram ainda mais de atos que de palavras.

As discussões eram simultâneas, do parecer da comissão constitucional brasileira e do da comissão mista - o de 18 de março, cuja discussão recomeçou de fato após a adoção das medidas punitivas, não passando o de 10 de junho do produto da suspensão do debate anterior, motivada pelos denominados atos de rebeldia paulista - e simultâneas eram as denegações a tudo quanto fosse aspiração de verdadeira autonomia da colônia elevada a reino.

Enquanto nas Cortes lutavam as duas deputações, o governo brasileiro adiantava-se às resoluções tomadas em seu detrimento na sede da Monarquia. A convocação da Assembléia Constituinte convertera-se numa realidade, mesmo porque a condição real do Brasil brigava com os projetos de organização de que em Lisboa se discutiam gravemente os prós e os contras, como se nada houvesse de positivo para os regular além-mar de acordo com o meio político e social.

Assim a necessidade absoluta para o predomínio português de manter e sustentar Madeira na Bahia era o argumento mais forte contra a oposição doutrinária movida pelos brasileiros à divisão nas antigas províncias do poder civil do militar, um absurdo em direito público conforme mostrou Vilela Barbosa, porque ao executivo cabe sempre a disposição da força armada, sem a qual não poderia dar sanção às suas determinações.

O parecer procurara uma forma que se lhe afigurava viável, fazendo do comandante das armas membro da junta e com voto exclusivamente nos assuntos militares, obediente no entanto às decisões coletivas. Esta participação efetiva, pois que era deliberativa, do elemento militar na vida do executivo ou na administração pública, contrariou porém vários partidários da preponderância do elemento civil, como Vilela Barbosa, que mostravam desconfiar do arreganho bélico desses "pretores lusitanos que ficavam sendo membros natos dos governos locais, com a força das legiões que comandam" (232), quando Silvestre Pinheiro Ferreira pensava até que a nomeação dos comandantes de armas devia caber às juntas provinciais.

* * *

Nesta altura dos debates surgiu entretanto no seio das Cortes uma dúvida que era uma ameaça: subscreveriam os deputados americanos, interpretando fielmente seu mandato, o pacto constitucional cuja redação estava finda, mas no qual os direitos do reino brasileiro estavam exarados platonicamente, pois que na prática lhe andavam não só regateados como até recusados? Importava que o provisório das disposições gerais não adquirisse a permanência da lei, e de uma lei orgânica, sem esse ato adicional puramente brasileiro.

Cipriano Barata, com seu habitual desassombro, formulou o dilema nos termos menos equívocos, declarando que não dava sua assinatura se o parecer da comissão fosse adiado e a Bahia continuasse ocupada por tropas européias, portanto em estado de guerra. Por despique alguns dos antagonistas do Brasil emprestavam-lhe desígnios fratricidas, de pensar em fazer derruir o edifício da regeneração pela soldadesca da Santa Aliança e em apoderar-se das colônias portuguesas, ao que se devia responder estancando em Angola, com a proibição da saída de negros escravos, a fonte da prosperidade brasileira.

Para Moura, que repudiara sem rebuços o esforço que sobre si mesmo fizera para tornar por algum tempo conciliadora sua disposição anteriormente agressiva, a situação variara completamente desde que dela se podia traçar o seguinte esboço: em vez das juntas respeitarem todas, como dantes, as decisões das Cortes, "a de São Paulo desobedecia, injuriava e até negava a autoridade do Congresso, a de Minas legislava, a de Pernambuco obedecia numas coisas e desobedecia noutras, a da Bahia fazia raciocínios, a do Maranhão hesitava e a câmara do Rio reclamava independência". Tal estado de coisas fora sobretudo criado pelo proceder dos paulistas, o qual não podia ser encarado com tibieza e contemporização.

A 22 de julho, véspera do dia em que foram publicados os decretos de l.º de julho destinados a promover o rompimento definitivo, rejeitava o Congresso, mais uma vez dominado por Fernandes Tomás, que negava à América o que reclamara revolucionariamente para a Europa - governo próprio e responsável - o artigo do parecer relativo à subordinação do governador militar às juntas provinciais, aliás já rejeitado pela comissão. Ficava essa solução provisória de lado, aguardando a solução definitiva por meio dos artigos adicionais à constituição e ficava também adiada para então a discussão da emenda proposta por Alencar, do Ceará, que no intuito disfarçado de livrar a Bahia da presença de Madeira, sugeria a remoção dos comandantes de armas em conflito com as respectivas juntas provinciais.

Ficavam portanto os procônsules na plenitude da sua autoridade mais longa que a das juntas, e, quanto à retirada das tropas portuguesas, menos possível era ainda efetuá-la quando sua permanência obedecia, segundo Moura, a um tríplice fim: reprimir os independentes, guardar as pessoas e bens dos europeus e proteger os brancos contra os negros. O Brasil era quem mais perderia aliás, no conceito do orador da regeneração, com tal retirada, como se perderia avocando uma independência que o havia de despojar do caráter político europeu que então lhe dava a união com Portugal e o poria à mercê das ambições de potências cobiçosas, contra as quais se formularia, mas só no fim do ano imediato, a doutrina de Monroe.

A aceitação pelo príncipe regente do título de defensor perpétuo significava que sua residência no Brasil estava assente pelo menos até o falecimento de Dom João VI trazer-lhe mais altos e amplos deveres. Por mais que os deputados brasileiros explicassem que toda a política dos seus conterrâneos obedecia ao fito de pôr o reino americano ao abrigo da anarquia que se seguiria ao desaparecimento do seu centro executivo, os deputados portugueses nela só viam palpitar a ânsia da separação. E não se enganavam de resto muito, pois já deixara de ser possível manter a ligação.

Negando ao Brasil os direitos de um reino não só unido mas uno, esforçando-se para roubar-lhe a integridade, as Cortes regeneradoras tinham-no levado à necessidade imprescindível de desfazer a união. Os representantes ultramarinos andavam naturalmente adstritos a certas reservas, mas ocasiões havia em que as punham de banda e a verdade irrompia fremente dos seus lábios. Antônio Carlos numa dessas agitadas sessões de junho e julho não teve pejo de dizer que seguiria em tudo e por tudo a opinião da sua província. Se o Brasil se quisesse declarar independente, para ele seria um dever religioso acompanhá-lo nessa resolução.

Pelo mês de agosto as Cortes tinham perdido o melhor do seu interesse para os legisladores brasileiros e para os seus comitentes. Não se oferecia mais uma solução satisfatória para os dois lados. A comissão constitucional brasileira ficou, pelas substituições que nela ocorreram com a retirada de Fernandes Pinheiro, Antônio Carlos, Lino Coutinho e Araújo Lima, reduzida a um pessoal secundário: apenas se conservou Vilela Barbosa, agora com Martins Basto, Belford e Fortunato Ramos, gente aliás de comprovado sentimento nacionalista.

As figuras principais da deputação americana desertaram mesmo o cenário de discussões que pareciam de simples encomenda, travadas para encher tempo. Ainda se debateu a questão malsinada da regência. A comissão, desistindo da idéia de ter no Brasil o sucessor da Coroa ocupando o cargo ex-ofício, propusera uma única junta regencial de sete membros, escolhidos pelo soberano dentre os designados por cada província. Essa junta elegeria seu presidente e vice-presidente e organizaria uma lista da qual el-rei igualmente escolheria três secretários de Estado, todos - regentes e secretários - dependentes do governo de Lisboa e não podendo prover os bispados, nem os lugares do Supremo Tribunal de Justiça, nem os postos militares da mais elevada graduação, nem praticar atos internacionais nem conceder mercês honorificas.

A maioria portuguesa, cega a todas as ameaças e surda a todos os apelos, irritando-se antes com estes e com aquelas, repeliu a unidade da regência por ser demasiado vasto o país para uma só autoridade suprema julgar os recursos que subiam até sua decisão. Indispensável lhe parecia haver dois centros executivos, podendo o Brasil setentrional continuar por seu lado diretamente sujeito a Portugal, o que redundava em três fragmentos, dois com certa autonomia e um puramente colonial.

Era destarte que o Soberano Congresso se desobrigava da sua reiterada promessa de fazer julgar pelos representantes transatlânticos o que dissesse respeito à organização dessa seção da monarquia, remediando por meio de artigos adicionais o que não tivesse sido discutido com sua participação. Duas regências implicavam logicamente dois exércitos, cada um sujeito à sua autoridade suprema, e um mecanismo administrativo e judiciário local e superior. A defesa nacional ficava com isso singularmente comprometida, assim como perigava a manutenção da ordem pública, correndo mesmo o risco de rivalidades, discórdias e até conflitos entre essas porções políticas arredadas sem razão umas das outras.

O voto do Congresso, que Gomes de Carvalho muito bem apelida de manhoso, foi por fim, como que cedendo à comissão, a favor de uma regência coletiva única, da qual pudessem ser separadas algumas províncias para ficarem sujeitas ao governo de Lisboa. Era pior do que manhoso, porque era estúpido. E verdade que dava a ilusão do respeito à vontade particularista das províncias que se quisessem desprender do seu centro americano, mas o desígnio oculto era garantir a Bahia, conservada portuguesa pela espada de Madeira, contra a vassalagem à regência brasileira.

A maioria eliminou ainda da última proposta brasileira, que Guerreiro defendeu sem a cláusula de opção política que lhe foi apensa - achando apenas eqüitativa a continuação da dependência do Pará-Maranhão do governo de Lisboa, enquanto a sede da regência brasileira não fosse transferida do Rio para ponto mais central - a eleição popular dos propostos à seleção real.

Dada a organização monárquica do país, uma delegação executiva parecia com efeito dever ser de plena e livre escolha do monarca de quem constituía a representação direta e imediata. Por outro lado, porém, tinha bastante de despótico esse executivo local de pura nomeação do soberano, sem o contrapeso de um poder legislativo, apenas o de uma imprensa atrevida, que ainda não aprendera a ser comedida, e com a fiscalização longínqua do Congresso de Lisboa. O teor da proposta, tal como foi aceita, ficou sendo o seguinte: el-rei nomearia os membros da regência após ouvir seu conselho de Estado, que era escolhido pela legislatura nacional.

Não se limitaram contudo as disposições hostis ao Brasil às questões de organização constitucional. A autorização para a celebração de um empréstimo de 4.000 contos abrangia o custeio de expedições militares contra as províncias rebeldes, para onde o governo de Lisboa pensava transportar os voluntários reais da Banda Oriental, 3.600 homens que a indisciplina espreitava.

Por um lado o vivo antagonismo político suscitado entre os elementos europeu e americano no Brasil e que, tornando-se agudo, levou à transformação do reino autônomo em império independente, e por outro lado a adesão da campanha à cidade de Montevidéu, fizeram com que as forças portuguesas da guarnição não mais achassem fora de propósito que os elementos patrióticos da Província Cisplatina se voltassem para Buenos Aires, cujo governo apesar de inspirado por um ministro como Rivadavia, não considerou todavia oportuno o momento para se lançar numa guerra que poderia acarretar a extinção do laço político federal que desde pouco ligava as Províncias Unidas, preferindo tentar o recurso diplomático com a missão de D. Valentim Gomez, a qual gorou por completo.

Os voluntários reais não queriam na verdade contribuir para assegurar a unidade e integridade de um Brasil poderoso, que detivesse a importante posição de Montevidéu. Diziam-se, segundo refere Cairu, atacados de nostalgia, pelo que o velho economista os compara aos suíços pelo desejo que estes mostravam, quando ao serviço do estrangeiro e sem a menor quebra aliás da sua reconhecida fidelidade, de regressar para seus cantões. O decreto de convocação da constituinte brasileira ofereceu-lhes o pretexto da sublevação.

O brigadeiro D. Álvaro da Costa de Sousa de Macedo seduziu para isso a principal oficialidade e tropa e, em conseqüência, a proclamação do conselho militar de 28 de junho repeliu in limine toda coligação com as outras províncias do Sul para separarem o Brasil de Portugal. Se os brasileiros se julgavam com direito a tanto, não os podiam auxiliar soldados portugueses nessa empresa desleal: motivos de honra e melindre disso os inibiam". A providência tomada pelo regente de dissolver o conselho militar não impediu a sublevação de tornar-se efetiva, apoderando-se D. Álvaro da cidade, usurpando o governo e obrigando o general Lecor, que no entanto assinara a proclamação do referido conselho, a retirar-se para a campanha com a parte da tropa que lhe ficara fiel e alguma força uruguaia comandada por Frutuoso Rivera. Também a guarnição da Colônia do Sacramento continuou firme na sua adesão à causa brasileira. O castigo infligido no Rio aos soldados da expedição de Francisco Maximiliano contribuiu depois para acirrar as disposições dos rebeldes, cuja atitude se prolongou como tal pela fase da independência e só então recebeu seu desfecho.

* * *

A rejeição sistemática de quanto fosse projeto favorável ao Brasil e a adoção igualmente sistemática de quanto fosse contrário aos seus interesses ou às suas simpatias tinham semeado o desânimo entre a deputação brasileira, pelo menos entre a grande parte dela que era brasileira de nome e de sentimento, ao ponto de julgarem esses ociosa sua presença. Não queriam entretanto as Cortes ir até as conseqüências lógicas da sua política, que abrangiam a exclusão, de resto requerida por Antônio Carlos e alguns colegas paulistas, dos representantes das províncias que tivessem abraçado a causa da regência, províncias portanto taxadas de rebeldes.

A regeneração preferia jungi-las ao seu carro de triunfo, por mais inconseqüente que pudesse parecer, a partir da decisão de 3 de junho relativa à constituinte brasileira, a simultaneidade da presença de representantes das províncias do Brasil no Rio de Janeiro e em Lisboa, onde o Congresso deixara de ser imperial. O estado de espírito da maioria das Cortes continuava porém a ser tal, e aliás fatos havia que o tornavam exeqüível, que muitos eram ainda no seu seio os que contavam com a continuada adesão ultramarina, tantos quantos os que descontavam o malogro da tentativa parlamentar de união.

As figuras principais dentre os americanos eram nacionalistas: vários destes eram antes bairristas, mas por esta circunstância mesma e pela sugestão ainda poderosa que a mãe-pátria exercia sobre outras das figuras, a deputação brasileira estava longe de oferecer um todo coeso e uniforme, do que a maioria tirava partido para mais facilmente fazer pesar sobre o reino transatlântico o jugo da sua preponderância.

Nem pela rebeldia parecia dado às províncias separarem-se da Monarquia e assim se ia engendrando uma situação embaraçosa. A Bahia por exemplo debatia-se nas convulsões de uma luta armada: aos seus deputados entretanto cumpria ficarem e votarem a constituição que lhes ia ser apresentada como a lei orgânica do Reino Unido e que sua terra estava dando provas inequívocas de repulsar, pelo menos sem ter a oportunidade de discuti-la e modificá-la por meio da sua própria legislatura.

Fervia a rebeldia não só fora como dentro das Cortes com as declarações dos deputados díscolos, fundadas nos votos dos seus comitentes, que aqueles interpretavam intencionalmente como revogações de mandatos; fundadas também na lógica dos fatos. O Brasil já possuía por vontade da nação um arcabouço constitucional que Portugal não admitia e de que não cogitava sua constituição, a qual devera ser comum. Em oposição a uma regência "temporária e amovível", exercendo sua autoridade por delegação do executivo de Lisboa, o Brasil tinha agora um "defensor perpétuo" aclamado pelo povo e ia ter sua assembléia legislativa. Muitos derivavam daí razão para não quererem jurar a constituição, cujo voto estava iminente no mês de setembro.

Em que posição ficavam esses, diante que fosse das suas consciências, se aceitassem um pacto que, uma vez promulgado, coagia o príncipe a deixar a regência e regressar para Portugal sob pena de perder o direito de sucessão à Coroa? Cederia o Brasil o penhor único que possuía da sua soberania, a garantia exclusiva da sua autonomia? E com que direito assumira Portugal o encargo de dirigir a organização brasileira, quando entre as duas seções da Monarquia desaparecera a primazia desde a trasladação da corte para o Rio de Janeiro e quando Portugal rompera revolucionariamente os lados que as uniam, procedendo à sua própria organização de acordo com as normas de um regime que não era o estabelecido?

O deputado baiano, padre Marcos Antônio de Sousa, numa carta (233) escrita de Londres a um amigo em 29 de março de 1823, tratava a obra das Cortes de "peripatetismo democrático" e, ao chegar ao Rio a 23 de maio do mesmo ano, apresentou ao imperador um histórico elucidativo (234) das ocorrências passadas no Congresso e por ele qualificadas de "grande terremoto político produzido pelo interesse mercantil de restringir ao Tejo e Douro o comércio brasileiro".

A questão econômica tinha-se com efeito identificado com a questão política a ponto tal que não era mais possível destrinçá-la. As Cortes moviam-se sob o duplo e associado impulso do amor próprio português e do interesse nacional. O juramento das bases constitucionais firmara apenas a igualdade dos direitos e não se reportava a modalidades que podiam ser peculiares a um ou a outro reino. A adesão brasileira ao constitucionalismo fora franca e espontânea, mesmo porque ninguém há que se preste voluntariamente à sujeição. Estava entendido que o regime a adotar-se seria de comum e recíproca liberdade.

Nos últimos debates das Cortes reapareceu a este propósito, nos lábios de Alencar, o mesmo argumento que fora empregado para vencer as hesitações da junta de Pernambuco presidida por Gervásio Pires. Dom Pedro não excedera seu mandato convocando Cortes no Brasil, porque a autoridade de que ele agora se achava revestido não era mais a que lhe fora delegada por el-rei e sim a que lhe fora confiada pelo povo brasileiro, o qual procedeu nessa crise como o povo português na sua reivindicação de 1820.

Num ponto parecia assistir aos regeneradores razão, e era que os brasileiros tinham jurado aceitar a constituição que fosse elaborada nas Cortes, onde seus mandatários tiveram ensejo de discuti-la amplamente e pode dizer-se que até certo tempo livres de coação, não desconhecendo que constituíam minoria e que nas assembléias são as maiorias que prevalecem. Era esta porém precisamente a argüição dos brasileiros: que não havia para eles meio de levarem por diante vantagem alguma quando o volume dos votos portugueses lhes barrava o caminho. Nestas condições toda discussão era um ludibrio e buscava-se o meio de fugir a representação brasileira ao compromisso constitucional.

Propôs-se também, e nesta proposta foi conspícua a deputação pernambucana, como na contrária à assinatura tinham sido salientes as deputações paulista, baiana e cearense, aguardar notícias do acolhimento dispensado pelas províncias do Brasil ao chamamento da União para Cortes privativas nacionais. Se viesse a dar-se a dualidade de legislaturas, para que jurar o que deixava por si mesmo de ser um pacto para ser tão somente a lei orgânica de uma das seções da Monarquia? O pacto a fazer-se seria então o resultado de uma transação entre as duas assembléias constituintes e soberanas.

É de 11 de setembro a indicação apresentada pelo padre Marcos Antônio e outros deputados, dizendo que o "Congresso tinha destruído a base principal da legislação e que aquela constituição não era legal por não ser conforme à vontade geral do Brasil ou da maioria da nação, e por conseqüência não valiosa; e qualquer assinatura devia ser considerada coata, e por isso nula, e irrito o juramento acessório, que não legaliza um contrato de sua natureza inválido e ofensivo dos direitos mais sagrados de um grande povo". Por este meio, dizia o futuro bispo do Maranhão na carta citada, "temos salvado o direito dos nossos constituintes e a nossa honra responsabilizada aos nossos compatriotas".

O argumento capital dos portugueses era que aos brasileiros competia dar execução ao mandato que tinham recebido e não adiarem a discussão final com subterfúgios. Tinham entretanto os brasileiros podido cumprir seu mandato? Eles afirmavam que não, porque todas as suas propostas tinham sido rejeitadas, todas as suas aspirações cortadas, todas as suas esperanças ceifadas. Não se tratara da votação de projetos sem transcendência: tratara-se do assunto da maior relevância para uma comunidade, qual a carta dos seus direitos. Acima das excelências do texto constitucional estava a vontade das populações para as quais devia ela servir de instrumento patriótico.

* * *

Não houve afinal com relação à assinatura e depois ao juramento da Constituição Portuguesa de 1822 uniformidade de ação da parte dos deputados brasileiros, sinal de que a união se achava quase formada do outro lado do Atlântico, mais ainda o não estava deste lado, apesar da irmandade dos esforços desenvolvidos em prol de uma mesma causa. O que houve foi muita vacilação, bastante discordância de opiniões e alguma pusilanimidade, exceção feita dos paulistas, dos quais Fernandes Pinheiro foi o único a condescender com a atitude da maioria, a qual entendeu que nenhum representante da nação devia ser dispensado da sua obrigação, não só parlamentar como cívica. Em certos espíritos influiu para igual condescendência a circunstância do nascimento, noutros as tradições das suas terras.

Aconteceu para mais que o juramento teve lugar a 30 de setembro e desde a véspera que as notícias chegadas do Rio davam a segurança da independência legislativa do reino americano. Escreve Gomes de Carvalho que no ânimo do maior número dos que juraram pesou a consideração de que um ato anormal e violento como tal recusa, traria de novo em Portugal o despotismo, dada a tendência crescente à reação. E de fato a independência do Brasil foi a razão determinante da dissolução em 1823 do regime constitucional português de 1820.

Nos clubes da regeneração era naturalmente viva a sanha contra o governo da regência brasileira e os deputados de além-mar que persistiam em não aprovar a Constituição estavam especialmente indicados para os desforços da demagogia. O padre Marcos Antônio de Sousa refere na sua carta já citada que "houve denúncia ao intendente geral da polícia que se tramava uma conspiração contra os brasilienses". Destes alguns tinham abandonado o Congresso, Outros protestaram que não era espontânea a sua assinatura da lei orgânica.

Entre os mais notáveis dos representantes do reino americano, juraram a constituição Araújo Lima, Vilela Barbosa Alencar, Castro e Silva, Borges de Barros e Manuel Zefirino dos Santos. Dois, Lino Coutinho e Muniz Tavares, que tinham assinado, abstiveram-se de jurar. A 6 de outubro soube-se que na véspera tinham clandestinamente embarcado no Marlborough, com direção a Falmouth - aceitando-os o capitão sem passaportes por saber que a legação britânica permitia que ele fechasse os olhos a essa infração das disposições policiais do porto - os paulistas Antônio Carlos, Bueno, Feijó e Costa Aguiar de Andrada e os baianos Cipriano Barata, Lino Coutinho e Agostinho Gomes.

A decepção foi grande e grandes os impropérios que a exprimiram. A 15 de novembro o Congresso Constituinte cedia o passo às Cortes ordinárias, onde os deputados brasileiros ficavam com assento, para não ser interrompida a representação ultramarina, até chegarem os novos eleitos. Foram porém finalmente excluídos da assembléia legislativa os mandatários das províncias consideradas rebeldes, isto é, aquelas que elegessem deputados à Constituinte Brasileira, ou reconhecessem a regência do Rio, cassado por desobediência ao governo de Lisboa.

Já então a maior parte, quase todos, os cearenses e baianos nomeadamente, tinham desertado de vez às sessões. Araújo Lima, sempre amigo da legalidade, convidado a embarcar, declarara que o não faria sem passaporte. Agora ficavam sem direitos à representação os deputados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Ceará. O que sobrava era a arraia miúda e esta mesma se absteve quase unanimemente de comparecer na legislatura ordinária, uma vez posta a questão em semelhantes termos. O Brasil acabou representado tão somente por dois portugueses - o padre Domingos da Conceição (Piauí) e o desembargador Segurado (Goiás) - e dois brasileiros - Francisco de Sonsa Moreira (Pará) e José Cavalcanti de Albuquerque (Rio Negro), o qual viera ocupar o lugar que o seu substituto estava preenchendo. O escol e o número, tudo havia debandado.

Uma vez chegados a Falmouth, os deputados retirantes redigiram o seu protesto. Antônio Carlos e Costa Aguiar de Andrada fizeram-no mais prolixamente, os outros mais sucintamente, todos declarando em resumo que se retiravam das Cortes por terem visto nelas malogrados seus esforços a bem dos interesses do seu país, meditarem-se apenas planos hostis contra o mesmo e oferecerem-lhes para ser jurada uma Constituição na qual só se encontravam disposições humilhantes para o Brasil. Nestas condições, proibindo-lhes suas consciências que aceitassem tal lei orgânica, sua permanência não era mais do que uma provocação inútil aos doestos e aos atentados que não respeitavam sua inviolabilidade, nem sequer sua liberdade civil.

O manifesto de Antônio Carlos e de Costa Aguiar de Andrada, de 20 de outubro - o outro é de 22 (235) - é parecido na argumentação e até na linguagem com os manifestos de agosto. As idéias são idênticas, como não podiam deixar de sê-lo, e expressas com igual paixão: há um ar de família entre esses documentos. Os dois deputados paulistas citam as ameaças anônimas que recebiam e denunciam o projeto que havia de assassiná-los, "adotado pelas sociedades secretas", do que "alguns poucos bem-intencionados" lhes deram aviso, queixando-se eles da "plebe assalariada pelo partido jacobínico".

O protesto de Antônio Carlos contra o Astro da Lusitânia, escrito em Londres e datado de 9 de novembro, é particularmente interessante pela corroboração do conceito que para a separação dos dois reinos as Cortes contribuíram essencialmente. Antônio Carlos fora por esse periódico citado como um velho independente. "Quando eu me achei no Rio de Janeiro, escrevia ele em resposta, ainda ninguém pensava na independência ou em legislatura separada; foi mister toda a cegueira, precipitação e despejado anúncio de planos de escravização para acordar do sono da boa fé o amadornado Brasil e fazê-lo encarar a independência como o único antídoto contra a violência portuguesa".

Antônio Carlos explica-se com habilidade e no entanto com sinceridade, acrescentando: "Não pretendo com isto incluir-me no número dos que não sonhavam com este desejo futuro; não por certo; não tenho tão curta vista que me escapassem as vantagens de só pertencermos ao pacífico sistema americano, e nos desprendermos dos laços da revolta Europa; mas o respeito à opinião contrária do Brasil naquela época, a prudência de não querer avançar um só passo que não fosse escorado em anterior experiência, e sobretudo o natural aferro ao doce sentimento, filho do parentesco e comum origem do Brasil e Portugal, junto à precisão que ainda me parecia ter de algum apoio a minha pátria, para segurar-lhe os primeiros passos em a nova e escabrosa carreira de uma repentina emancipação, fizeram com que abafasse os meus desejos e os adiasse para mais oportuno tempo".

O que sucedeu como Antônio Carlos aconteceu a uma infinidade de outros espíritos, cuja evolução política nacionalista foi rápida uma vez que a favoreceram e impeliram as circunstâncias. Outro ponto interessante, embora restritamente pessoal, do seu protesto, é o que trata da sua pretensa incompatibilidade para íntimo conselheiro do príncipe regente, por terem sido seus primeiros princípios democráticos. Antônio Carlos sustenta que a liberdade civil e política tanto pode dar-se em formas republicanas como nas monarquias representativas e que "seria perder o fruto da experiência se não abandonássemos o caminho que nos desviava do objeto desejado".

E ajunta: "Um brasileiro liberal podia crer em 1817 ser necessário aderir a republicanos, e hoje adotar as instituições monárquicas. Em 1817 a casa reinante, enganada pelo ódio português, acabrunhou o Brasil: era pois óbvio lançarmo-nos nas formas republicanas, que só então permitiam emancipação. Hoje, graças à Providência, S. A. Real conhece os seus verdadeiros interesses, e está convencido que a emancipação do Brasil é o passo preliminar da sua prosperidade e da glória do seu reinado, e tem desta maneira ajuntado em roda de si os verdadeiros patriotas. E desta arte, obtendo-se na Monarquia o mesmo que se buscava nas repúblicas federadas, não pasma que nenhum republicano mude de partido. Quanto mais que jamais se provará que a minha cooperação em 1817 passasse de passiva tolerância e chegasse a ativa participação". Esta última frase era dispensável, mesmo porque não é exata. Antônio Carlos fraquejou por ocasião do processo dos revolucionários de 1817 e, para coonestar sua debilidade que tanto contrasta com a altivez do padre Miguelinho por exemplo, deu para repudiar uma solidariedade que toda a documentação histórica prova haver existido e sido até íntima.

Chegou Antônio Carlos ao Rio a 30 de janeiro de 1823, no brigue inglês Regente, vindo de Londres em 49 dias. Lino Coutinho, Cipriano Barata, Agostinho Gomes, Bueno e Feijó partiram de Falmouth a 8 de novembro e ficaram em Pernambuco, por lhes haver constado que duas corvetas de guerra da esquadra portuguesa cruzavam na altura dessa barra. O brigue chegou ao Rio a 31 de dezembro, tendo feito, ao que se refere, a viagem de Pernambuco até lá em sete dias, o que é extraordinário.

O manifesto publicado no Recife a 3 de janeiro de 1823 por aqueles cinco representantes tem efetivamente a data de 24 de dezembro e relata que no Funchal o povo se amotinou com a presença dos brasileiros, querendo o governador da Ilha da Madeira arrancá-los de bordo. Imperou contudo ulteriormente mais avisada resolução, tanto mais quanto o cônsul britânico assegurou aos retirantes políticos para sua pátria que empregaria a resistência que estivesse ao seu alcance para evitar esse ultraje ao pavilhão do seu país. Os ex-deputados aconselharam o povo pernambucano que se premunisse porque em Lisboa se tramava uma expedição contra o Brasil, ou mais precisamente contra Pernambuco e Alagoas, províncias descritas em Portugal como anarquizadas, com um governo que é "um fantasma" e tropa sem disciplina em que os soldados comandam os oficiais".

Medidas violentas como a projetada invasão eram de natureza a produzir vítimas inocentes entre os residentes de nascimento europeu. Não se descuidou porém Cipriano Barata de atiçar o fogo, dirigindo-se também aos seus conterrâneos baianos para condenar o preceder dos portugueses. Secundou-o fortemente nesta literatura de combate o seu colega de deputação padre Marcos Antônio de Sousa, vigário da Vitória, na Bahia.

Cipriano Barata era um democrata exaltado, um republicano; o padre Marcos Antônio era acentuadamente conservador, identificando o liberalismo com o jacobinismo. Suas idéias concordam com as de Antônio Carlos: um vindo da democracia revolucionária, o outro da religião tradicional, comungavam juntos no altar da realeza constitucional. "Nas monarquias representativas, e bem organizadas, a realeza é venerada. Apesar de toda a liberdade nos debates do parlamento inglês, o monarca é o primeiro cidadão e goza toda a responsabilidade no meio de uma nação livre. Assim pratica o povo mais ativo, e moral, do mundo civilizado, e por isso é mantida na Inglaterra a ordem pública. Em toda a parte não é só acreditado o governo inglês, como elogiado o caráter da nação... Remata o abaixo-assinado o seu protesto, e reclamação, declarando que depois da fatal experiência da França, não é mais tempo de se alucinarem os homens com o otimismo político e governo perfeito. República universal, felicidade perfeita sobre a terra, é quimera; o homem só deve procurar sua felicidade na moral, nos sentimentos virtuosos, e por conseqüência na obediência às leis, aos imperantes, e autoridades, legitimamente constituídas. Enquanto se ocupa com o reino de entes metafísicos, com repúblicas platônicas, e utopias para inteligências puras, enquanto distraído das ocupações úteis se entrega a vás teorias, o tempo voa, a sepultura se abre diante dos seus passos".

O alicerce político do Brasil tinha de ser uma Monarquia constitucional e liberal associada à democracia, que estava nos hábitos como o liberalismo estava nas idéias. Aristóteles, o maior dos filósofos da antiguidade, escreveu aliás que democracia pura não passava de tirania.

CAPÍTULO XVIII

OS MANIFESTOS DE AGOSTO
A CONCEPÇÃO DA MONARQUIA DEMOCRÁTICA

Os manifestos de agosto contêm a doutrina do rompimento entre Portugal e Brasil: formam a exposição da cisão constitucional que acabou com o Reino Unido fundado e legitimado por Dom João VI. Um foi o ato nacional, o outro o ato internacional da abertura das hostilidades, coincidindo aliás com atos positivos de guerra. Existia mesmo, desde algum tempo, entre as duas seções da monarquia um estado que se não poderia chamar de paz e a independência não foi afinal mais do que a exteriorização dessa situação qualificada nos últimos tempos por medidas contrárias, respectivamente tomadas pelos dois governos irmãos.

Portugal continuava a afetar sempre que manejava a férula: ao decreto de convocação da Constituinte Brasileira respondeu com o decreto de 24 de setembro - cronologicamente já posterior ao grito do Ipiranga - declarando nulos quaisquer atos legislativos emanados da regência do Rio de Janeiro; mandando verificar a responsabilidade dos secretários desse governo "de fato e não de direito", que tivessem referendado tais atos; considerando traidores os comandantes de terra e mar e criminosas quaisquer outras autoridades que obedecessem ao sobredito governo a partir da publicação do presente decreto, salvo em casos de coação pela força; dando por finda a delegação do poder executivo confiado ao príncipe real e por nomeada uma regência nos termos da constituição (236), e ordenando ao ex-regente o embarcar para Portugal no prazo de um mês contado desde esta intimação, sob pena de perda dos seus direitos de sucessão à Coroa.

Pelo teor do decreto das Cortes a permanência de Dom Pedro no Rio de Janeiro tornara-se, não só desnecessária como "indecorosa à sua alta hierarquia", e convindo ao futuro da nação que aquele que teria de vir a ser seu soberano fizesse sua educação política constitucional, mandavam-no os representantes do povo viajar incógnito pelos países onde o sistema deixara de ser absoluto, acompanhado por pessoas esclarecidas, virtuosas e fiéis aos novos princípios.

Quase dois meses antes a regência brasileira, que já era uma regência nacional, adotara porém uma resolução com relação a Portugal que virtualmente encerrava uma declaração de guerra e que constituía a resposta adequada à proibição do despacho de armamento do estrangeiro para os portos do Brasil, sob pena para os contraventores do confisco da carga e do navio. Alguns tinham então considerado semelhante proibição como uma medida bélica (237) e ela importava pelo menos no reconhecimento de uma condição de rebelião no reino americano e portanto na admissão do estado de sítio pela limitação posta à liberdade comercial.

A medida brasileira era contudo mais drástica ainda: nem é de resto tão fora do comum que as hostilidades ocorram praticamente antes de teoricamente estabelecidas. No decreto de 1.º de agosto, pelo qual mandava o príncipe regente reputar inimigas todas e quaisquer tropas portuguesas que fossem mandadas ao Brasil, sob não importa que pretexto, sem seu prévio consentimento, bem como as guarnições e tripulações dos navios que as transportassem, Dom Pedro declarava com um tanto de exagero que fora confirmado "por unânime consentimento e espontaneidade dos povos do Brasil na dignidade e poder de regente deste vasto Império que el-rei meu augusto pai me havia outorgado, dignidade de que as Cortes de Lisboa, sem serem ouvidos todos os deputados do Brasil, ousaram despojar-me, como é notório".

O decreto invocava ainda os encargos que lhe cabiam como defensor perpétuo daquela "máxima parte da Monarquia portuguesa" que nele se confiara; a política das Cortes, de recolonização pela força armada, apesar do Brasil já haver "proclamado sua independência política" e convocado uma Assembléia Constituinte Legislativa a requerimento de todas as câmaras municipais, quando o Congresso de Portugal fora na sua origem somente "um ato de clubes ocultos e facciosos; o fato de Dom João VI estar prisioneiro, sem dispor daquela liberdade de ação que é dada ao poder executivo nas monarquias constitucionais, para mandar "rechaçar com as armas na mão por todas as forças militares de 1.ª e 2.ª linha e até pelo povo em massa" qualquer tentativa de desembarque no Brasil, "pondo-se em execução todos os meios possíveis para, se preciso for, se incendiarem os navios e se meterem a pique as lanchas de desembarque".

Se, apesar de toda resistência e mau grado as fortificações mandadas levantar e as munições e petrechos mandados reunir, as tropas de além-mar tomassem pé em algum porto ou parte da costa, cumpria aos habitantes retirarem-se para o centro levando para as matas e montanhas todos os mantimentos e boiadas de que pudessem utilizar-se", enquanto as tropas de terra faziam aos invasores "crua guerra de postos e guerrilhas, evitando combates gerais".

Pela letra do decreto continuavam entretanto "livres as relações comerciais e amigáveis entre ambos os reinos para conservação da união política, que muito desejo manter". Assim dizia o príncipe, mas a contradição era flagrante entre união política e independência política, esta excluindo aquela na forma porque estava sendo posta e estava sendo compreendida. Nem o ajuste das relações mercantis entre as duas seções da Monarquia conseguiu vingar nas Cortes. O trabalho emendado da comissão só foi apresentado a 14 de setembro, subsistindo porém nas suas piores feições, sem curar dos debates travados, o espírito que o animara, exclusivo e interesseiro.

O momento era aliás péssimo para intentar novas discussões a respeito, achando-se pendente a questão máxima da adoção da Constituição pelos representantes americanos. Manuel Zeferino dos Santos voltou contudo à carga, auxiliado por Castro e Silva, do Ceará, e denunciou a proposta ardilosa de Ferreira Borges, especialista na matéria, de manter-se até um estudo mais aprofundado do assunto a tabela extravagante que, no intuito de dar a Portugal o monopólio do tráfico ultramarino, estabelecia, por exemplo, a taxa de um por cento para o algodão transportado em embarcações nacionais e de quinze por cento para o que fosse transportado em vasos estrangeiros. O projeto voltou à comissão para no seu seio se harmonizarem as opiniões, que apareciam fundamente divergentes e eram de fato irreconciliáveis porque não era um simples debate acadêmico que se agitava, sim uma luta de vida e morte que se abrira entre as economias dos dois países. O manifesto de 6 de agosto increpava mesmo as Cortes de terem esbulhado o Banco do Brasil da administração dos contratos que lhe concedera el-rei para amortização da dívida contraída.

Neste ponto as Cortes mereciam antes piedade do que censura, porque se achavam colocadas numa postura difícil, entre a resistência do Brasil, já descambando em rebelião, e a impopularidade em Portugal, ameaçando transformar-se em levantamento.

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O manifesto de 1.º de agosto foi redigido por Ledo. Constitui o histórico do divórcio político imanente e encerra a sua justificação. Como mandava dizer Mareschal para Viena (238), esse documento formava o complemento de quanto aparecera desde janeiro e definia finalmente de modo claro e sem reticências a atitude do governo da regência brasileira. A impressão produzida no país pela sua publicação foi grande e o encarregado de negócios da Áustria confessava à sua chancelaria que o público acolhera bem as razões expostas, calando-se a facção portuguesa por perceber que o governo nacional se robustecera com suas francas declarações.

Apenas dois sargentos dos da expedição de Francisco Maximiliano tinham feito representação adversa, dirigida ao príncipe, e sido por isso severamente castigados. Aí se deparava contudo, no entender de Mareschal, um apoio perigoso para a autoridade constituída além-mar e precioso para quem dele se quisesse valer. O espírito dessa gente aliciada ficara sendo o da sua nacionalidade e aqueles sargentos foram os primeiros do pronunciamento gorado que terminou em açoites dos quais fez grande escarcéu a correspondência diplomática de Condy Raguet, o encarregado de negócios dos Estados Unidos (239).

"Brasileiros! está acabando o tempo de enganar os homens" - começa por dizer o manifesto. Por terem pretendido tal coisa, as Cortes de Lisboa forçaram as províncias meridionais do Brasil a repelirem o seu jugo e o Brasil todo se congregou em redor do regente para que este defendesse os seus direitos e mantivesse a sua liberdade e independência. Foi semelhante proceder das Cortes que levou ao exame dos títulos em que se apoiava Portugal para aventar tão desassisadas pretensões, qual a de forçar o Brasil a aceitar um sistema desonroso e aviltador, em desacordo com os próprios princípios sobre que se fundara a revolução de agosto de 1820 e com as bases que representam os direitos inalienáveis dos povos. Os mandatários do povo de Portugal passaram porém a soberanos do soberano de toda a monarquia portuguesa e, intitulando-se pais da pátria, iniciaram uma marcha desorientada e tirânica. "Julguei então indígno de mim - exclamava o príncipe - e do grande rei, de quem sou filho, e delegado, o desprezar os votos de súditos tão fiéis; que sopeando talvez desejos, e propensões republicanas, desprezaram exemplos fascinantes de alguns povos vizinhos, e depositaram em mim todas as suas esperanças, salvando deste modo a realeza neste grande continente americano, e os reconhecidos direitos da augusta Casa de Bragança".

As Cortes não se deram todavia por ensinadas com a lição do Fico, e em vista do seu egoísmo e dos seus tramas, as províncias coligadas do Brasil projetaram, "sem o estrépito das armas, sem as vozearias da anarquia", a instalação de uma Assembléia Constituinte e Legislativa Brasileira. Nem assim cedendo as Cortes aos ditames da razão e da justiça, o príncipe teve de tornar efetivo o seu papel de defensor perpétuo para sobrestar os males da desordem e os furores da democracia explodindo nas suas facções, sob pena de "lacerar-se o Brasil, esta grande peça da benéfica natureza, que faz a inveja, e a admiração das nações do mundo".

O manifesto, no intuito de afastar a responsabilidade do seu augusto signatário na solução que se antevia violenta, passa então a enumerar, "pelo respeito que devemos ao gênero humano", todas as afrontas e iniquidades assacadas pelo Congresso de Lisboa, cujo fito patente aos espíritos desprevenidos era "paralisar a prosperidade do Brasil, consumir toda a sua vitalidade, e reduzi-lo a tal inanição e fraqueza, que tornasse infalível a sua ruína e escravidão".

A lista era longa e está apresentada com habilidade e calor, de maneira a gerar simpatia nos que nela atentassem. Por outro lado o programa da Constituinte nacional chega a ser idílico, tal era o ambiente de sinceridade e de pureza em que se desdobrava. Os direitos brasileiros, "calcados aos pés e desconhecidos a três séculos", tinham afinal recebido ou melhor dito iam receber a sua consagração. Responsável o funcionalismo; dotada de um vôo altaneiro a vontade da nação; eliminados os abusos; espalhada a luz no "caos tenebroso" da administração, da fazenda e da legislação; esclarecida e lisa a justiça; íntegros os magistrados; humanitário o código penal; eqüitativos os impostos; posto às claras o sistema financeiro; elevada a disciplina militar, que não exclui as virtudes cívicas; honradas as profissões liberais e honrado o cultivo das letras e das ciências; apreciada a virtude e reconhecido o mérito; zelada a educação - eis o que o futuro reservava a nação brasileira, em harmonia com o "fluxo da civilização que começa a correr já impetuoso desde os desertos da Califórnia até ao estreito de Magalhães".

À Europa oferecia o Brasil paz e comércio livre, ao mesmo tempo que protestava não se envolver nos negócios particulares do Velho Mundo. "Constituição, e liberdade legal são fontes inesgotáveis de prodígios, e serão a fonte, por onde a bem da velha, e convulsa Europa passará ao nosso continente".

Todo o final é um hino à união e à independência, uma exortação às províncias para formarem "o feixe misterioso, que nenhuma força pode quebrar", um apelo patético para sacrificarem o seu espírito regional, o que depois se chamou bairrismo, ao espírito novo do patriotismo.

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O manifesto de 6 de agosto é obra de José Bonifácio e constitui um documento comprobativo do seu espírito americano no conceito de Mareschal, o qual era de resto o primeiro a reconhecer que o sentimento político de uma incipiente solidariedade continental, esse entusiasmo americano porté au plus haut degré, que o ministro de Dom Pedro procurava incutir no ânimo do regente e de que saturava sua linguagem oficial, era ou devia ser inevitável na alma de um príncipe destinado a reinar em terras americanas (240).

Mareschal achava, é claro, preferível que os brasileiros professassem esse embrionário pan-americanismo, que lhe parecia mais geográfico do que proselítico, a que se deixassem arrastar por princípios puramente revolucionários, que tanto importava dizer republicanos. No seu juízo, entretanto, a designação de americano tinha forçosamente de equivaler a democrático. Aliás expurgada a França, como o pensava a Santa Aliança, do espírito revolucionário pela restauração da realeza tradicional, embora adaptada a certas fórmulas constitucionais, e em véspera de ser abafado na Espanha o foco ultra-liberal que ali vingara, a América ficava sendo o continente republicano; mas lá mal podia atingir a ação reacionária, mesmo antes de definida a doutrina de Monroe, o que ocorreria no ano imediato.

O sentimento americano manifestou-se primeiro nas colônias espanholas pela organização dos seus regimes políticos e sistemas de governo imitados dos Estados Unidos. Conservadores em matéria de constituição social, os dirigentes dessas novas nacionalidades, os quais sobretudo entenderam firmar o direito a governá-las que tinham os filhos da América e de que andavam esbulhados pelos filhos da Europa (241), foram radicais em matéria de constituição política.

Outro tanto aconteceu no Brasil, onde veio porém a imperar de preferência a sugestão liberal européia ocidental, a saber, inglesa e francesa, a qual achou meios de acomodar-se, tal qual sucedeu à democracia americana, com a instituição servil que nas colônias espanholas foi inicialmente suprimida, ao mesmo tempo que era proclamada a liberdade para esses países de regerem os seus destinos. Neste ponto se distanciou de modo notável a América Espanhola da Inglesa e da Portuguesa, onde o braço escravo, que era sobretudo africano, se afigurava um instrumento econômico indispensável, a ser perpetuado.

Em ambas estas terras de escravidão - a abolição no Brasil ainda levaria 66 anos para consumar-se - existia apesar disso mais espírito democrático do que na maioria das colônias espanholas, cujo pendor aristocrático se patenteou na oligarquia portenha avassalada pelo caudilhismo gaúcho e que só depois de 1852 tiraria sua desforra, e se evidenciou nas primeiras constituições chilenas em que o Senado Americano se refletiu numa imagem de aumento. Efeito talvez da mestiçagem muito mais abundante, o fato é que aquele espírito igualitário predominou no Brasil mesmo através do Império e que, senhores feudais como eram, pelo poderio que exerciam sobre seus dependentes, os fazendeiros e senhores de engenho nunca deram mostras de querer aproveitar-se da sua posição e riqueza para com elas formarem a base de uma preponderância política a que só aspiravam moderadamente, muito provavelmente porque sentiam pairar sobre eles a majestade da autoridade imperial. Em vez de constituírem uma vasta oligarquia, delegaram desde o começo sua participação na vida pública nos profissionais da administração - bacharéis, juristas, legisladores.

A democracia brasileira foi assim paralelamente política e social, teórica e prática, fundada nos costumes e na onipotência da razão. Foi todavia graças especialmente a José Bonifácio que a feição construtiva primou a negativa por ocasião da emancipação nacional. O representante diplomático dos Estados Unidos no Rio de Janeiro em 1822 tinha de José Bonifácio a impressão de que era um delineador mais do que um executor, de que lhe faltava talvez em maleabilidade de ação o que lhe abundava seguramente em sagacidade de pensar (242). Era pois um homem nascido para as eminências, capaz de representar um momento histórico, sobretudo associando sua iniciativa intelectual a uma ação vigorosa qual a que lhe prestou o regente. Sua argúcia de estadista, se era o efeito de um predicado pessoal, fora porém aguçada pela sua farta e já longa experiência da vida. A natureza dos seus principais estudos, botânicos e mineralógicos, dera por outro lado uma feição prática ao seu espírito, ao qual não era originariamente estranho um lirismo até ardente e sensual, e o seu liberalismo, tal como se denuncia nos seus planos de utilidade pública, era antes econômico do que político, quer dizer que não sacrificava a realidade à imaginação.

Entretanto parecia a Mareschal que havia no manifesto de 6 de agosto, cuja autoria lhe era conhecida, muita fraseologia ociosa sobre liberdade, soberania do povo, direitos das nacionalidades, tudo aquilo que horripilava a Santa Aliança e os seus agentes, num pavor de que tais fórmulas voltassem à arena da discussão com a sua capacidade incendiária. Monsieur d'Andrada, felizmente, pois que era o pivot do governo, não era um democrata, um liberal na acepção comum e perigosa da palavra: "luta contra a revolução - dele escrevia Mareschal - não sossegando e esclarecendo os espíritos, mas desviando-os, oferecendo-lhes outra meta, mais ao alcance e mais consubstanciada com os seus interesses" (243). Nesse caso era a independência dentro do círculo monárquico. O diplomata austríaco era de opinião que a independência já existia de fato e de direito, mas considerava um ato político de grande transcendência o dar o governo da regência o impulso quando parecia segui-lo, tomando a dianteira do movimento em vez de ser por este arrastado. Assim o via inspirado e assim o via praticar.

Mareschal censurava apenas no manifesto as referências que Dom Pedro autorizava com sua firma aos atos tirânicos dos seus avoengos e às prodigalidades da corte paterna. É que José Bonifácio não se sabia muito bem conter, nem nos arroubos poéticos, nem nas graçolas das cartas particulares, nem nas apóstrofes dos documentos públicos: era sempre o mesmo homem descrito por Maler como fougneux et très ardent, uma cabeça vulcânica debaixo das cãs, o que segundo o rabugento encarregado de negócios da França dos Bourbons, lhe roubava "a madureza das idéias, o método na concepção dos projetos e o sistema no seu conjunto e aplicação".

O momento histórico era em demasia não só agitado como crítico, tratando-se de uma nacionalidade em formação, para a serena realização de um programa fixo e pautado de planos de governo. Do que se cuidava antes que tudo era de obter a separação com o menor sacrifício possível de vidas e de fazenda. Nesse mês de agosto as hostilidades já se tinham anunciado em terra, na Bahia, mas no mar as duas esquadras não se tinham ainda medido. O comandante brasileiro não recebera ordem para atacar e o português por seu lado evitava ser o primeiro a derramar sangue.

A guerra trazia em si conseqüências de todo gênero. Ela podia facultar ao Príncipe a ditadura que a facção avançada lhe estava de antemão disputando. Pelo contrário do que Mareschal se arreceava era de que as duas constituintes, a portuguesa, e a brasileira, pudessem chegar a um acordo e juntas empreenderem obra política de caráter democrático. É verdade que não existia na América, no mesmo grau que na Europa, um ancien régime a destruir e quando o houvesse, sendo os agentes da demolição os próprios elementos desse regime, não se haviam de destruir eles pessoalmente. Mais natural seria que buscassem harmonizar a ordem de coisas antiga com a moderna. Assim foi que continuaram usos tradicionais, que se prolongaram velhas instituições, que se perpetuou em vários pontos a legislação privada que já desconhecia certas servidões da classe livre na Europa, como as corvées francesas. A Igreja possuía os seus bens de mão morta, mas sabemos que o dízimo, que era o tributo, fora sempre cobrado pelo Estado, pela razão de que o rei como grão-mestre da ordem de Cristo provia as necessidades do culto.

A obra da independência devia consistir em tornar extensivas aos novos países as feições integrais de uma civilização até aí privativa das suas ex-metrópoles, qual era a civilização européia. Nesta veio porém a distinguir o espírito americano, que o meio e as circunstâncias do desenvolvimento local tinham criado e fariam predominante. Em toda a América existe uma espécie de preconceito, de superstição constitucional proveniente das condições da sua organização política, que obedeceu a fórmulas e teorias quando na Europa continuou em muitos casos a ser vazada em moldes consuetudinários.

Isto se explica facilmente porque na América as constituições representavam um protesto, primeiro contra o passado colonial, julgado de opressão e depois contra o sistema europeu, julgado de reação. Do desacordo original, mais tarde degenerado em conflito, entre tais fórmulas legais, representativas da concepção social gerada pela filosofia do século XVIII, e a condição cívica das populações que por elas se tinham de reger, nasceu o estado de constante agitação política da América Espanhola no século XIX. Se outro tanto não aconteceu na América Inglesa e na América Portuguesa, foi porque para a primeira foi transplantado o self-government e na segunda prevaleceu o espírito de ordem da monarquia, simultâneo com a independência e que ainda assim levou um quarto de século para se impor.

As constituições revolucionariamente implantadas pretendiam sempre limitar as faculdades extremas da autoridade, em oposição ao despotismo tradicional e em defesa dos direitos naturais que, segundo a doutrina do contrato social, o indivíduo trazia como contribuição à coletividade. Raras vezes as constituições do Novo Mundo obedeceram a um desígnio ou mesmo a um instinto conservador. A aplicação dos princípios falseava porém freqüentemente o seu liberalismo e a conseqüência foi que as comunidades espanholas flutuaram, até se integrarem numa organização adequada, entre a tirania e a anarquia, expressões ambas de reação contra os moldes vazados na estrita legalidade.

O manifesto de 6 de agosto, dirigido pela regência do Rio de Janeiro aos governos e nações amigas, no intuito de "continuar a merecer-lhes a aprovação e estimação de que se faz cre4or o caráter brasileiro", obedece a essa corrente de idéias visível em toda a América, sobretudo na primeira metade do século decorrido. Estende-se o documento sobre a política tirânica de Portugal com relação à sua colônia, firmada em "leis de sangue ditadas por paixões, e sórdidos interesses".

Impostos, até o de capitação, proibições que envolviam castigos, monopólios odiosos, de tudo se servia a metrópole para expressar sua autoridade; por outro lado vedando ao Brasil o "mercado geral das nações" para só lhe permitir negociar com os seus tiranos, e inundando-o de "paxás desapiedados, magistrados corruptos e exames de agentes fiscais de toda a espécie que dilaceravam as entranhas da terra que os sustentava e enriquecia". Salvaram-na seus filhos, "fortes e animosos que a natureza tinha talhado para gigantes", e a terra como boa mãe por sua vez os alentava e envigorava para que lograssem desprezar todos os "obstáculos físicos e morais" levantados contra o seu progresso.

Pela pena de José Bonifácio evocava o príncipe a chegada de Dom João VI à sua corte americana e observava o acolhimento que o soberano e os nobres do reino receberam dos brasileiros, para o meio dos quais trouxeram novos abusos a acrescentar aos velhos, frutos aqueles "da imperícia, da imoralidade e do crime". O Brasil deixou Portugal levantar primeiro o grito de regeneração política da Monarquia; mas julgando os outros por si, não contava ser atraiçoado, como foi, nas suas esperanças e interesses.

Nesta altura entra o manifesto, a traços largos, mas incisivos, na análise da obra dissolvente das Cortes com relação ao ultramar, pouco lhe importando as desgraças que provocava e bastando-lhe proveitos momentâneos: "nada se lhe dando de cortar a árvore pela raiz contanto que, à semelhança dos selvagens da Luisiana, colhesse logo seus frutos, sequer uma vez somente". Nenhum libelo pode ser mais vigoroso e mais persuasivo do que esse, nem escrito com maior clareza e alcance.

Queixa-se o manifesto não somente da política ostensiva das Cortes, mas da sua política clandestina - a "corte de emissários mandados a desorientar o espírito público e a fomentar a desunião no Brasil. O que sobretudo espalhavam esses emissários era o intuito brasileiro de inteira separação e o desejo concomitante do príncipe de "reviver à antiga arbitrariedade", isto é, de restabelecer o governo absoluto, do qual só a união com as Cortes, a saber, a parceria constitucional poderia livrar o reino americano. Do manifesto se deduz expressamente que a queixa brasileira era toda do Congresso de Lisboa e não do monarca que ali estava nominalmente reinando. Neste ponto condiz esse documento com as cartas de Dom Pedro a Dom João VI, a última das quais, de 22 de setembro de 1822, sanciona a independência no sentido de desobediência às Cortes e não ao rei (244).

No manifesto redigido por José Bonifácio a nota é idêntica à da carta de Dom Pedro: o soberano era de fato um prisioneiro de Estado e suas ordens resultavam apócrifas merecendo tão pouco ser cumpridas quanto as que da sua prisão de Valença pudesse ter Fernando VII ditado aos seus domínios americanos. O manifesto completa porém a carta, que aliás precedeu, num ponto interessante e que de ordinário escapa à atenção do que volve os olhos para essa época, e é que a idéia de separação não deve ser contada como exclusivamente brasileira. Ela aparece igualmente como portuguesa, almejando-a no reino europeu duas classes de pessoas: as que o queriam ver entregue a si próprio e privado da solidariedade ultramarina, "para melhor darem ali garrote ao sistema constitucional", e as que por outro lado queriam uni-lo à Espanha, consumando a União Ibérica no fito de preservar o referido sistema liberal. Não admirava portanto "em Portugal escrever-se e assoalhar-se descaradamente, que aquele Reino utiliza com a perda do Brasil".

José Bonifácio fazia ainda referência a um tópico que no Brasil era antipático à facção intransigentemente independente, mas que era pessoalmente simpático a Dom Pedro: o de uma possível preservação dó Reino Unido com a supremacia do Brasil. As Cortes tinham porém feito tudo para tornar impossível essa solução. "Cegas pois de orgulho, ou arrastadas pela vingança e egoísmo, decidiram as Cortes com dois rasgos de pena uma questão de maior importância para a Grande Família Lusitana, estabelecendo, sem consultar a vontade geral dos portugueses de ambos os hemisférios, o assento da Monarquia em Portugal; como se essa mínima parte do território português, e a sua povoação estacionária e acanhada, devesse ser o centro político e comercial da nação inteira. Com efeito se convém a Estados espalhados, mas reunidos debaixo de um só chefe, que o princípio vital de seus movimentos e energia exista na central e poderosa da grande máquina social, para que o impulso se comunique a toda a periferia com a maior presteza e vigor, de certo o Brasil tinha o incontestável direito de ter dentro de si o assento do Poder Executivo".

Numa das cartas do príncipe regente a seu pai (245) aparece pela primeira vez uma sugestão que depois seria um dos motivos da desunião da família real portuguesa e da guerra civil entre absolutistas e constitucionais e que mostra que já naquele tempo preocupava o herdeiro da coroa a regulação futura da sucessão. "Peço a V. M. deixe vir o mano Miguel para cá, seja como for, porque ele é aqui muito estimado, e os brasileiros o querem ao pé de mim para me ajudar a servir no Brasil, e a seu tempo casar com a minha linda filha Maria".

A idéia oculta de Dom Pedro era não perder afinal a autoridade sobre nenhuma das seções da Monarquia. Nesse momento convinha sacrificar Portugal ao Brasil para não passar a seção mais importante a outras mãos ou a outro regime, com o que nem lucraria sua felicidade pois que, na frase desabusada de José Bonifácio no manifesto, "mudados os déspotas, continua o despotismo". O tempo viria de recobrar Portugal, subordinada embora a antiga metrópole à sua ex-colônia independente. Mesmo que isto não pudesse vir a dar-se pela legítima repulsão portuguesa de ocupar o segundo plano, mediante o casamento do tio com a sobrinha - Dom Miguel era o único infante da Casa de Bragança - tudo se arranjava satisfatoriamente: a prole de Dom Pedro reinaria nos dois hemisférios, como de fato veio a suceder a despeito do consórcio frustrado, até que em ambos os países se implantasse a República.

Dom Pedro fazia porém particular empenho no matrimônio de família, que a seu juízo simplificava muito a questão, tanto assim que ajuntava na carta a Dom João VI: "Espero que V. M. lhe dê licença, e lhe não queira cortar a sua fortuna futura, quando V. M. como Pai, deve por obrigação cristã, contribuir com todas as suas forças para a felicidade de seus filhos. V. M. conhece a razão, há de conceder-lhe a licença que eu, e o Brasil tão encarecidamente pedimos, pelo que há de mais sagrado".

Antes de romper os laços que prendiam o Reino Unido, justo título do desvanecimento paterno, exigia o decoro público do regente, não só o seu sentimento filial, que ele justificasse internacionalmente sua altitude, o que José Bonifácio fez com habilidade, definindo-a como a única possível para corresponder à confiança dos brasileiros e mesmo de toda a monarquia, desde o momento em que das Cortes de Lisboa "seria absurdo esperar medidas justas e úteis aos destinos do Brasil, e ao verdadeiro bem de toda a Nação Portuguesa". Nação significava a associação dos dois países, prestes a liquidar-se (246).

Perdido o Brasil, está perdida a Monarquia - rezava o manifesto, e para salvá-lo mister era que o príncipe regente se conservasse à sua frente, certo aliás de que não tardariam as Cortes de Lisboa em fornecer o motivo definitivo para a separação improrrogável.

* * *

A maçonaria entretanto não descansava. Antes de partirem seus emissários para as províncias com o fito de assegurarem a aclamação unânime de Dom Pedro como soberano do Brasil, cuidou-se da fórmula de juramento a remeter às câmaras municipais, que até então constituíam o único órgão legítimo da vontade popular, portanto da soberania nacional. Não era muito fácil conceber essa fórmula de um modo satisfatório, porque se os espíritos que tinham incubado a idéia de independência e que estavam levando a um termo feliz a gestação da nova nacionalidade não tinham posto ainda em conflito as suas preferências distintas, já se achavam contudo frente a frente aspirações, conjugadas com interesses, com tendências umas e outros a inconciliáveis.

Sabemos que não se estabelecera um acordo prévio sobre a forma de governo a ser escolhida: o acordo fizera-se tão somente sobre a base da união brasileira, mas como a regência encarnada no príncipe real fora o fator principal dessa consolidação política, era natural que a monarquia tivesse sido adotada como o instrumento necessário para a sua preservação. Por todos os motivos ela não podia porém deixar de ser uma Monarquia democrática, alguma coisa como um presidencialismo hereditário, derivando todavia desta tradição transplantada da função dinástica, um enfraquecimento de poder que o regime presidencial corrigia pela renovação periódica do mandato popular, ao passo que a monarquia tinha que buscar seu alento nas virtudes pessoais de cada imperante, com as quais ele justificava sua exaltada hierarquia.

Nalgumas províncias, Minas Gerais e Pernambuco entre outras, houvera desde começo receios de despotismo de um trono armado no Rio de Janeiro mais do que de dependência de um Portugal constitucional, e as desconfianças persistiam em forma latente depois de sopitada sua crise aguda, convindo dissipá-las e dar satisfação a anelos liberais que, por estarem em desacordo com o seu ambiente de cultura social, nem por isso eram menos instantes. Em atenção a eles se aventou que o Imperador jurasse cumprir a constituição que fosse elaborada pela Assembléia Constituinte, o que equivalia a colocar nesta a soberania nacional e conceder-lhe a primazia dos poderes.

Dizia-se ter isto também a vantagem que, se tal constituição não fosse tão radical quanto o sonhavam os ideólogos da democracia, não caberia a responsabilidade do fato ao monarca, que da sua elaboração não fora parte ativa. Não ocorreria portanto razão para queixas do regime e por outro lado mal podia suceder que a constituição não resultasse verdadeiramente liberal, ainda que dentro de termos razoáveis, refratários à demagogia, se iam proceder à sua feitura representantes da nação pela maior parte filiados na maçonaria. O juramento antecipado e incondicional de princípios cuja extensão e alcance se ignoravam, tinha contudo contra si a circunstância de ser uma violência exercida contra a consciência individual e mesmo de constituir um contra-senso inquinado de nulidade jurídica.

Aprovou-se entretanto a fórmula lembrada, que foi a que o padre Januário levou para Minas Gerais e que afinal por inconveniente se pretendeu retirar, quando o senado fluminense já a tinha oferecido à outras corporações municipais, dando azo a ser incriminado e com ele o Grande Oriente brasileiro de terem procurado um governo republicano, partindo o movimento da periferia para o centro. Por ocasião da discussão em sessão da câmara do Rio da cláusula primeiro debatida na assembléia maçônica e que continha em si o germe do futuro conflito entre o Imperador e a Assembléia Constituinte por ele finalmente dissolvida, deram-se demonstrações populares preparadas pelo Apostolado, pondo em ação arruaceiros de profissão que já eram de classe inferior aos padres Macamboa e Góes do ano anterior, chamando-se entre outros Miquelino e Porto Seguro. Apupados e apedrejados pelo poviléu os vereadores, seu presidente José Clemente Pereira escapou, todo coberto de lama, de pior tratamento, graças ao bolieiro da sua sege, o qual fustigou as bestas e conseguiu distanciar-se.

A luta estava travada em redor do Imperador, querendo os Andradas conservá-lo fiel aos princípios que depois se denominariam liberais dinásticos e querendo a facção avançada peá-lo com formas virtualmente republicanas, começando por se comprometer a aceitar qualquer lei orgânica que lhe fosse imposta. Era a repetição do que em Portugal se passara com a intitulada regeneração. A maçonaria servia admiravelmente de meio a essa facção ultra-liberal para agir sobre a imaginação de Dom Pedro, sendo sua atmosfera de mistério propícia como nenhuma outra às intrigas desse gênero. O príncipe ficara radiante com a idéia de ser grão-mestre, embora às custas de José Bonifácio, e conta Drummond que no regresso de São Paulo, depois do Ipiranga, o jovem soberano - que já o era pela sua decisão e pela sagração popular - vinha delirante sob a impressão de contentamento que lhe dera aquela singular honraria, a qual ninguém de resto lhe poderia disputar se, como ele parecia pensar, a maçonaria não tinha outro objetivo senão trabalhar pela causa da independência do Brasil.

O constitucionalismo de Dom Pedro sempre foi o de Cortes deliberativas, não apenas consultivas; mas nunca foi o de uma Assembléia soberana delegando a função executiva num monarca irresponsável, servido por ministros responsáveis para com a Nação dos atos políticos e administrativos praticados sob a sanção real. Na concepção democrática do sistema a soberania cabia em última análise ao povo: na sua concepção pessoal ela cabia ao Rei e à Nação. "O Rei e a Nação sempre estão reunidos e nunca separados escrevia Dom Pedro a Dom João VI (247) a propósito do seu título de defensor perpétuo, em virtude do qual também lhe cabia defender o pai, não somente como filho, mas como súdito - pois que, quem defende o rei defende a Nação".

Oportunamente surgiria a idéia de um quarto poder - o poder modelador - ao qual Dom Pedro se apegaria estritamente para garantia das prerrogativas que ele julgava essenciais à majestade e à independência da coroa e que lhe seriam concedidas em troca do privilégio exclusivo de que abria mão, quer por sobreposição da autoridade de uma constituinte eleita, quer por dádiva magnânima como era de sua inclinação.

A sua concepção de um príncipe reinante não era pois a do simples manequim constitucional que advogavam os que consentiam em conservar a monarquia como uma ficção que tranqüilizasse ou um rótulo que não assustasse. "Um príncipe, escrevia ele, deve ser sempre o primeiro a morrer pela pátria": deve ser portanto um chefe, não um subordinado; "deve trabalhar mais que ninguém pela felicidade dela ; porque os príncipes são os que mais gozam da felicidade da Nação e é por isso que eles devem esforçar-se por bem merecer as riquezas que consomem, e as homenagens que recebem dos outros cidadãos".

No misto de idéias tradicionais e de idéias modernas que no seu cérebro se associavam muito mais do que contendiam, Dom Pedro concedia grande importância às câmaras municipais, células na verdade do organismo político da nação, e deu constantemente provas de preferir entender-se com elas do que com as câmaras legislativas, de certo porque estas, transformando a essência das antigas Cortes que reviviam, avocavam uma primazia sobre a coroa que não era rigorosamente histórica. Os homens bons dos conselhos procedentes dos forais representavam mercês da realeza e o Terceiro Estado, que eles encarnavam, não só não pretendia antepor-se aos outros, como deixava pairar sobre todos a Coroa a que ajudavam na sua tarefa construtora.

CAPÍTULO XIX

O GRITO DO IPIRANGA

Dom Pedro partiu para São Paulo com uma mui pequena comitiva: acompanharam-no Luís de Saldanha da Gama, depois marquês de Taubaté, filho do conde da Ponte, veador da Princesa Real, e que lhe servia de secretário político, como na viagem a Minas Gerais Estevão Ribeiro de Resende; o gentil-homem da câmara Francisco de Castro Canto e Melo, irmão da que foi mais tarde marquesa de Santos e toda poderosa favorita; o já infalível Chalaça - ajudante Francisco Gomes da Silva - que tantos dissabores acarretou a seu amo pela impopularidade que o cercava, e os criados particulares do Paço, João Carlota e João Carvalho. Na Venda Grande juntaram-se ao séquito o tenente-coronel Joaquim Aranha Barreto de Camargo, que o príncipe fez em caminho governador da praça de Santos, e o padre Belchior Pinheiro de Oliveira, de Minas Gerais, muito seu confidente e diz o barão de Pindamonhangaba que mesmo seu mentor (248).

A princesa Dona Leopoldina ficava empossada da regência, isto é, incumbida de presidir o conselho de ministros para despacho do expediente ordinário das secretarias e outrossim o conselho de Estado, podendo conjuntamente com o gabinete "tomar logo todas as medidas necessárias e urgentes ao bem e salvação do Estado", tudo sujeito naturalmente à aprovação e ratificação do príncipe. Cabia igualmente à regente dar no lugar do seu esposo audiências públicas. José Bonifácio, cabeça do gabinete, era o primeiro a não regatear à augusta senhora a confiança política que nela era assim depositada. Sua nova gravidez fora a principal razão da sua permanência na capital, quando Dom Pedro decidiu ir em pessoa pôr ordem na província que constituía a pedra angular do sistema nacional.

A autoridade régia, superior às facções políticas, aparecia-lhe e ao seu principal conselheiro como justamente indispensável para a coesão dos esforços patrióticos e para a manutenção da ordem pública. As dissensões paulistas não eram entretanto, na opinião de Mareschal (249), de natureza política, antes meras rivalidades de famílias ou de indivíduos por motivo de colocações administrativas. Dava-se mais ou menos caso idêntico em todas as províncias, "onde as juntas são geralmente compostas de parentes e de amigos, sendo de esperar que o abuso e o descontentamento que dai resultara permitam em breve tempo ao governo substitui-las por pessoal da sua escolha" - escrevia o diplomata austríaco, querendo dizer delegados diretos da autoridade executiva.

Uma certa centralização era na verdade necessária e segundo o agente de Metternich a condição da Bahia, reflexo da política das Cortes, servia de salutar espantalho contra a anarquia em que podia cair todo o Brasil e essa política anti-brasileira, por um lado reacionária e pelo outro demagógica, verdadeira política de Jano em que se convertera pela fatalidade das circunstâncias a regeneração liberal, impelia para a solução monárquica o espírito democrático da colônia americana e congregava as simpatias em redor do príncipe. Na frase de Mareschal ele era nessa ocasião "adoré de son parti et craint de ses ennemis" e com ele se achava identificada a corrente popular. Esta expressão escapou seguramente no correr da pena ao diplomata da Santa Aliança.

O aniversário da resolução constitucional portuguesa - 24 de agosto, data do movimento do Porto - fora nesse ano de 1822 apenas celebrado por uma salva de artilharia: não houve cortejo, nem beija-mão. As coisas podem dizer-se que iam correndo antes feição para o partido brasileiro e para o seu real porta-voz apesar da situação não ser de todo calma, não falando já na Bahia, onde o choque estava para cada minuto e a cidade de São Salvador já entrara a ser abandonada pelos próprios negociantes desde que o general Madeira começara a aplicar aos gastos imprescindíveis da defesa que lhe fora confiada os recursos dos bancos. Em São Paulo o ciúme dos Andradas emprestava simpatias republicanas a Francisco Inácio e a Costa Carvalho (futuro marquês de Monte Alegre), unindo-os à causa portuguesa, ao que Dom Pedro ia obstar com sua presença.

Em Minas pelo contrário as coisas tinham francamente retomado um aspecto regular: o antigo governador Dom Manuel de Portugal fora reeleito presidente da junta e a população acolhera-o favoravelmente. Em Pernambuco Gervásio Pires Ferreira, que representara uma corrente disfarçada de autonomia, tanto sentira fugir-lhe o terreno debaixo dos pés que embarcou para o Rio de Janeiro com o filho. Mal lhe foi contudo a retirada porquanto portugueses de Pernambuco, que se tinham refugiado na Bahia por se não julgarem ali seguros, reclamaram por vingança seu desembarque e, não obstante ser inglês o paquete que o transportava, fez-se sua entrega às autoridades locais.

O ex-presidente da junta pernambucana foi recolhido preso à fortaleza de São Pedro, no meio de uma grande escolta e seguido "de muitos taberneiros e caixeiros portugueses, com archotes acesos, entre vozerias insultos e apupadas e não o espancaram, por ir com ele o comandante de policia tenente coronel Antônio José Soares" (250). A razão dada pelo desembargador Francisco Carneiro de Campos secretario da Junta provisória baiana, no ofício que dirigiu ao cônsul britânico Pennel sobre o assunto, foi o receio que nutriam aqueles emigrados portugueses, no tocante aos seus direitos e bens, do prosseguimento da viagem até o centro político do país de quem os havia compelido a deixarem o meio onde exerciam sua atividade; também, como é pretexto costumeiro em casos semelhantes, declarava-se querer pô-lo a recato de "qualquer sinistro acontecimento, à vista da efervescência em que se acham os ânimos dos que exigem essa medida" (251).

Deu-se isto a 25 de setembro de 1822 e a prisão de Gervásio na Bahia foi muito curta, sendo remetido para Lisboa, onde chegou em começos de dezembro e onde foi acusado nas Cortes por todos os seus atos reputados favoráveis à regência do Rio de Janeiro e portanto contrários à política constitucional portuguesa, do que ele se defendeu em publicações. Em setembro de 1823 já Gervásio se achava no Rio: a contra-revolução absolutista de 5 de junho, encabeçada por Dom Miguel, suspendeu seu processo e restituiu-lhe a liberdade.

O governo da regência brasileira mais se arreceava, antes de proclamada a independência, da reação portuguesa que se poderia desdobrar em Pernambuco, como que ligando a Bahia ao Maranhão, do que da renovação de quaisquer veleidades de separação republicana tanto assim era que pensava em fazer para lá regressarem os soldados de 1817, então levados para Montevidéu (252), onde a regência bem quisera poder logo desembaraçar-se das tropas portuguesas. Diz-se que ela deixava até o general Lecor sem dinheiro para pagar suas soldadas a fim de forçar-lhes o embarque. Os transportes já se achavam fretados, faltando, no entanto, navios de guerra para comboiá-los.

A negativa oposta ao pedido de Saldanha de ir do Rio Grande do Sul para Montevidéu, privava contudo as forças rebeldes de um chefe destemido e prestigioso que poderia causar grandes trabalhos. O perigo nessa ocasião não era porém tanto

interno como externo, constando que em Portugal se preparava uma forte expedição, tendo a Companhia dos Vinhos do Alto Douro oferecido ao governo de Lisboa um milhão de cruzados para esse fim pelo que seus fundos e depósitos no Rio de Janeiro foram postos sob embargo (253). O espírito de resistência nacional estimulara-se com tais rumores e o governo da regência dela se aproveitava no intuito da defesa, vigiando de perto os agentes portugueses e não só adestrando a tropa regular e miliciana, como organizando batalhões de voluntários com os isentos da primeira e segunda linha. A capital era o foco da política patriótica e as dificuldades por vencer serviam para consolidar a autoridade e a popularidade do príncipe.

* * *

Dom Pedro fez a viagem pausadamente, vencendo em 10 dias as 96 léguas de distância entre o Rio e São Paulo, pernoitando em fazendas, recebendo no caminho homenagens e obséquios e não perdendo o ensejo de testemunhar seu descontentamento aos adversários dos Andradas. Em Santa Cruz encontrou-se com o presidente Oyenhausen, a quem negou audiência, intimando o futuro marquês do Aracati a seguir sem demora para seu destino, que era a corte. Em Lorena, a 19 de agosto, expediu um decreto dissolvendo o governo provisório de São Paulo, cujos emissários não foram recebidos em Mogi das Cruzes, até onde se tinham adiantado, e recusou a guarda de honra de 32 praças - todas oficiais de milícias e comerciantes - formada por Francisco Ignacio, dando na portaria a razão de não haver para isto sido tirada licença.

A chamada guarda de honra compunha-se todavia de pessoal muito mais numeroso e Dom Pedro não a dispensou, antes se cercou sempre dela durante a sua feliz excursão. Era um destacamento dessa guarda de capacetes de dragões e botas à l'ecuyère que o acompanhava de Santos para São Paulo ao ser proclamada a separação, e o pintor Pedro Américo a fixou na atitude teatral de cavalgada heróica que melhor servia a idealização artística do momento histórico que marca a transição da colônia brasileira para a nação independente.

Outras pessoas gradas da capitania tinham ido aumentando a comitiva, entre elas o capitão-mor de Guaratinguetá e o coronel Manuel Marcondes de Oliveira Melo, que foi depois o barão de Pindamonhangaba. A entrada em São Paulo teve lugar a 25 de agosto, recebendo-o, a mandado seu, a câmara que servia antes da bernarda de 23 de maio. No cortejo que imediatamente se celebrou tratou o príncipe com desagrado o coronel Francisco Inácio e o intendente de Santos, Sousa Pinto, negando-lhes a mão a beijar e mandando-os retirarem-se para o Rio de Janeiro.

Na pequena cidade de então, a que alguns conventos emprestavam a única feição arquitetônica de vulto ainda que sem estilo, a visita do regente pusera uma nota ruidosamente festiva: eram as salvas de artilharia, os repiques dos sinos, as girândolas de foguetes. O palácio do governo, onde Dom Pedro se hospedou, já era então no antigo colégio dos jesuítas. Do cimo da calçada do Carmo, onde ele se apeou da montaria e onde passou por baixo de um arco triunfal "de estofos e festões de flores" em que figuras alegóricas disputavam o prêmio da ingenuidade aos dísticos poéticos, caminhou o Príncipe debaixo do pálio, cujas varas sustentavam os notáveis da cidade, até a Sé para o Te-Deum celebrado pelo prelado octogenário que, paramentado de pontifical, fora ao seu encontro. Das janelas decoradas de colchas choviam pétalas de flores sobre o docel, atiradas pelas senhoras que, debruçadas, aclamavam o moço herói, esteio do Brasil". Outro arco, fronteiro a Sé, fingia ser de granito e a Minerva posta sobre a cimalha e ladeada de estátuas simbólicas escudava as armas do Reino Unido que estava prestes a ser despedaçado por aquele cujo nome, segundo a imaginação dos versejadores da terra,

... hombreará co'a eternidade.

Há quem pense e porventura com razão que não foi alheio ao espírito de José Bonifácio, ao insistir com Dom Pedro para ir pacificar os espíritos em São Paulo, como o estavam reclamando várias das câmaras municipais da capitania, o desejo de ver a independência ali proclamada e portanto mais intimamente associada, consubstanciada mesmo, com sua terra natal, à qual era particularmente afeiçoado. A união brasileira só poderia derivar um acréscimo de força dessa circunstância que roubava ao centro, senão a iniciativa do momento, pelo menos a honra do acontecimento que o culminava.

Quando o príncipe empreendeu a sua jornada, a separação estava teórica e praticamente deliberada, restando apenas a formalidade do seu anúncio, isto é, a ocasião que qualquer nova pressão devia produzir. A circular de José Bonifácio ao corpo diplomático estrangeiro, em 14 de agosto, dia da partida do príncipe, transmitindo às legações o manifesto de 6 do mesmo mês, já é virtualmente uma participação da independência. Nem este vocábulo falta no documento, embora atenuado pela ficção da união nominal sob um só soberano, que mais tarde justificaria o título imperial reconhecido a Dom João VI no tratado de reconciliação (254). O motivo que se aguardava para o rompimento definitivo, o impulso necessário para esse instante decisivo, foi fornecido pela chegada ao Rio de Janeiro, a 28 de agosto, do brigue Três Corações, trazendo notícias de Lisboa até 3 de julho.

Não se tratava portanto apenas de boatos aterradores, como o da reconquista a ser intentada por um golpe direto contra o Rio de Janeiro mediante um desembarque em Itaguaí - plano mencionado por Porto Seguro - mas de notícias muito positivas acerca das resoluções das Cortes, que só foram, no entanto, oficialmente transmitidas em datas posteriores, pelas cartas régias de 1.º e 2 de agosto. O Príncipe tinha que escolher entre a desafronta pela rebelião e a humilhação pela submissão: passar nesta segunda hipótese de regente autônomo a delegado temporário e passivo das Cortes, e só nas províncias onde já exercia autoridade efetiva, porque nas outras deveriam ser instaladas as juntas de governo subordinadas ao Soberano Congresso; com secretários de Estado nomeados em Lisboa (255), para onde era transferida a sede real do governo do Brasil; ficando sem efeito mesmo a convocação no Rio de Janeiro do conselho de procuradores e sendo responsabilizados quantos tivessem procedido em contrário à política das Cortes.

Reunido o conselho de ministros sob a presidência da regente, assentou-se sem discussão ter chegado a hora precisa e almejada e foi despachado para São Paulo o correio Paulo Emílio Bregaro, com a recomendação de José Bonifácio, que bem traduz a impaciência que o dominava, de arrebentar quantos cavalos quisesse para o mais depressa possível alcançar lá o príncipe, sob pena de perder o lugar. Aos papéis oficiais de Lisboa, entre os quais vinha também uma carta de Antônio Carlos de 2 de julho, muito desanimada com o andamento dos negócios pela atitude hostil das Cortes e da população, juntou José Bonifácio uma carta sua e juntou a Princesa Real outra que Drummond conta haver lido e que diz ter agido poderosamente sobre o espírito de Dom Pedro.

As próprias notícias trazidas da Bahia por Drummond tendiam a provocar a resolução que o Príncipe não hesitou em tomar quando, depois de galgada a serra do Cubatão montado numa besta baia gateada e envergando a fardeta da polícia (256), lhe foi entregue aquela correspondência na colina junto ao ribeiro Ipiranga, à vista de São Paulo, pelas 4 e 1/2 horas da tarde, pelo major Antônio Ramos Cordeiro, também vindo do Rio com Bregaro. Nesse momento supremo como que lhe foi preparado o tempo para uma última reflexão sobre o jogo do seu destino, tão breve e tão agitado.

Sabendo por Canto e Melo, que tinha de São Paulo, da chegada dos emissários do Rio, os quais de perto seguiam o gentil-homem da câmara, Dom Pedro adiantou-se ao seu séquito a receber os despachos que lhe foram apresentados pelo oficial portador. Distanciando-se porém de novo da sua guarda de honra, que entretanto o alcançara e que mandou seguir adiante enquanto ele se atrasava um pouco, foi encontrá-la passada meia légua no ponto doravante memorável em que cavalgada pousara. Comunicando então à comitiva que as Cortes queriam "massacrar" o Brasil, arrancou o tope de fita azul claro e encarnado (as cores constitucionais portuguesas antes do azul e branco) que ostentava no chapéu armado, lançou-o por terra e, desembainhando a espada, bradou - "É tempo!... Independência ou Morte!... Estamos separados de Portugal...".

A guarda e os demais circunstantes repetiram o brado, que foi o juramento de honra de perene liberdade da nova nacionalidade criada nesse instante e que ecoou pela campina deserta, talvez até do carreiro que o pintor ali colocou para um feliz efeito de contraste. De roldão galoparam então todos em direção à pacata cidade que a notícia alvorotou, dando origem a manifestações de júbilo diante do palácio onde o príncipe entrementes desenhava num papel a legenda - Independência ou Morte, mandando Canto e Melo levar o molde a um ourives por nome Lessa, para que sem perda de um minuto lhe fizesse uma braçadeira com que pudesse aparecer no teatro. Os demais exibiram nessa ocasião laços de fita verde, que é a cor da Casa de Bragança.

Como Rouget de Lisle a sua inspiração de melomano, aliada ao seu ardor político que fazia brilhar aos próprios olhos sua auréola de libertador, trasbordou num hino à independência, que nessa mesma noite se executou a meio de uma ovação estrondosa e a par de um entusiasmo retórico de que podem dar a medida os dois versos seguintes da poesia recitada pelo alferes Tomás de Aquino e Castro:

Será logo o Brasil mais que foi Roma
Sendo Pedro seu primeiro Imperador!...

O príncipe gostou tanto que mandou chamar o alferes ao camarim para felicitá-lo e dizer-lhe seu agrado. As poesias não se cifraram nessa: uma mesmo correu como de lavra de Dom Pedro, o qual tomou parte na execução do seu hino juntamente com algumas senhoras (257).

No decorrer do espetáculo o cônego Ildefonso Xavier Ferreira vitoriou Dom Pedro como "o primeiro rei brasileiro" ao passo que o lirismo militar de Tomás de Aquino o consagrou como o "primeiro Imperador". A questão ia ser finalmente decidida no Rio de Janeiro, em assembléia maçônica, na própria noite da chegada do príncipe, que fez o percurso de volta na metade do tempo que empregara para a ida, a saber, em cinco dias, partindo na madrugada de 9 e alcançando São Cristovão ao lusco-fusco de 14, apesar das chuvas torrenciais, dessas que, no dizer de Mareschal, "l'on ne conoit qu'entre les tropiques" (258).

O governo paulista ficava confiado a uma junta composta do bispo, do ouvidor geral e do marechal de campo governador das armas e o príncipe, antes de partir, publicou uma proclamação recomendando união e reiterando a afirmação da independência, sobre a qual ia providenciar na corte com os seus ministros.

Conta o encarregado de negócios da Áustria que Dom Pedro trazia um laço de fita verde no braço esquerdo, acima de um ângulo de metal dourado com o lema gravado da Independência ou Morte. O laço verde começou então a ser usado por todos e no dia 21 apareceu o decreto de 18 fazendo-o de rigor para os do partido nacional, os quais começaram também a arvorar nos chapéus o tope verde e amarelo (259).

Boletins em estilo mais do que enfático, pomposo, entraram simultaneamente a circular agregando ao título de defensor perpétuo o de imperador constitucional com que o Príncipe entrou a ser brindado em público, no teatro e nas praças, e que aliás não constituía novidade pois que desde outubro de 1821 - quase um ano antes - fora o povo convidado por aquele meio a aclamá-lo numa dignidade que parecia mais consoante com a enormidade do país, com a relevância do fato e com a identificação da nação com as instituições que ela livremente escolhia, conservando a dinastia porque, nas palavras de Ledo em uma das referidas proclamações, "o grande Pedro nos defende: os destinos do Brasil são os seus destinos".

* * *

É uma puerilidade ou antes uma perversidade querer tornar José Bonifácio estranho à direção do movimento da independência e à sua orientação para a modalidade adotada, atribuindo-lhe um papel senão de comparsa, secundário, e concedendo a primazia a outros; e como nenhum se depara com envergadura bastante para assumi-la sozinho, repartindo tal primazia entre José Clemente Pereira, a maior influência eleitoral da capital, Ledo e Januário, paladinos indefessos da propaganda pela imprensa e nas lojas maçônicas, onde a emancipação política do Brasil foi de fato em grande parte tramada e vazada no seu molde por esses instigadores infatigáveis da integral liberdade americana.

José Bonifácio nunca visou outro objetivo: com o que se não achava de acordo, era com a subalternação do monarca à Assembléia, exarada na fórmula do compromisso constitucional por antecipação. Ele tinha na memória o exemplo da Convenção francesa e diante de si o do Soberano Congresso de Lisboa, impondo ao Rei toda classe de vexames, indo ao ponto de tirar-lhe a administração dos bens da Casa de Bragança mandando que os seus rendimentos fossem recolhidos ao erário para ser oportunamente entregue ao Príncipe Real o que lhe competisse, e de anular as promoções de marinha, os títulos e as mercês com que se manifestara a régia munificência na viagem de regresso do Brasil para celebrar o dia 24 de junho, do santo do nome do soberano.

Bastava ao ministro da regência como garantia democrática tornar-se o príncipe imperador por unânime aclamação do povo, não só ou não tanto pela graça divina. Seu maior empenho era isolar a Coroa nas inevitáveis discussões doutrinárias e pessoais, da próxima Constituinte. Segundo Rio Branco (260) foi José Bonifácio quem conseguiu eliminar da cerimônia da aclamação o incondicional juramento prévio, forçando a câmara municipal do Rio a desistir dessa exigência demagógica, mas com isto inimizando-se de vez com o grupo de Ledo. Chegou esta facção um instante a preponderar na simpatia do jovem soberano, do que é reflexo a ordem de suspensão da devassa sobre a bernarda paulista, assim se explicando que José Bonifácio fosse levado a solicitar demissão no dia 23 de setembro. Tal foi a data do decreto de suspensão ou melhor dito de anulação do referido inquérito, com que Dom Pedro quis "corresponder à geral alegria desta cidade pela nomeação dos deputados para a assembléia geral constituinte e legislativa, que há de lançar os gloriosos e inabaláveis fundamentos do Império do Brasil".

Ledo fora dos contemplados pelo sufrágio nessa eleição ocorrida no dia anterior - 22 de setembro - apesar de toda a cabala dos amigos dos Andradas, sendo o quarto votado na lista de oito, composta mais do barão depois marquês de Santo Amaro, Dr. Agostinho Goulão, Sousa França, Nogueira da Gama (depois marquês de Baependi), Pereira da Cunha (depois marquês de Inhambupe), Silva Coutinho (bispo do Rio de Janeiro) e Dr. Jacinto Furtado de Mendonça. Martim Francisco só conseguiu ser eleito suplente não obstante ser ministro da Fazenda; ele e J. J. Carneiro de Campos (depois marquês de Caravelas) foram os mais votados desta classe, e substituíram Ledo e Goulão, que não tomaram assento.

Data igualmente de 22 de setembro a inserção num número extraordinário do Correio da ordem de 18 sobre o distintivo patriótico a ser ostentado, anunciada na noite de 21 ao som de trombetas (261). De 18 é também o decreto relativo ao escudo de armas do reino do Brasil e à bandeira nacional (262), cuja publicação foi contudo posterior pois que o encarregado de negócios da Áustria escrevia a 25 de setembro que não tinham ainda aparecido as respectivas disposições.

Entre os dois grupos, desde então em franca oposição, havia por certo um antagonismo suscitado por antipatias pessoais, mas havia também e mais que tudo uma divergência de princípios, não só de ambições, que se fora gradualmente agravando. Dentro de um regime monárquico, como dentro de um regime republicano, cabem entretanto um partido avançado e um partido conservador e pelo correr dos tempos até se verificou e não raramente, na Inglaterra como no Brasil, cujo regime imperial foi nos países de civilização ocidental o que mais de perto seguiu o parlamentarismo britânico, que os conservadores, sob a pressão da opinião nacional, realizaram no poder e nem sempre com as salvaguardas que seriam de esperar, as medidas primeiro aventadas e defendidas pelos liberais. Assim aconteceu com a reforma eleitoral inglesa e com a abolição brasileira da escravidão.

Para a superioridade partidária, isto é, para a efetividade da autoridade, o favor do soberano valia então ainda tanto ou mais do que o prestígio popular, e por isso as duas facções se disputavam no Rio de Janeiro o valimento do príncipe a quem queriam servir, servindo ele próprio os ideais diferentes desses dois grupos de conselheiros que tinham rivalizado nos seus esforços pela libertação constitucional do reino americano.

Em Lisboa, onde as Cortes tinham excelentes informações sobre o que se passava no Brasil pelo intercurso do pessoal político e pelas idas e vindas de personagens em evidência, não nutriam os regeneradores ilusões sobre o papel primacial desempenhado por José Bonifácio nos sucessos de além-mar. Ele era o alvo das objurgatórias e dos ressentimentos. Por ocasião dos famosos decretos de 23 de julho de 1822, os membros da junta provisional paulista que assinaram a representação ao príncipe Real do 24 de dezembro do 1821 e os membros da delegação paulista recebida por Dom Pedro a 26 de janeiro de 1822, foram os únicos mandados submeter a processo, portanto os únicos expressamente considerados culpados. "Contra nenhuma outra pessoa - rezava o decreto - além das indicadas no artigo primeiro, se procederá pelos documentos que nele se referem, e fatos a que nele se aludem". Ao ministério do Rio de Janeiro, por motivo da convocação do conselho de procuradores, só se mandava verificar a responsabilidade, e bem assim por quaisquer outros atos da sua administração. As Cortes destarte faziam partir todo o movimento tendente ao rompimento da iniciativa paulista, o que quer dizer de José Bonifácio.

Os agentes diplomáticos estrangeiros julgavam-no sem discrepância a alma da regência e na peça política a que o Brasil estava servindo de tablado, se Dom Pedro fazia o galã e a nação era a ingênua, a José Bonifácio coubera encarnar o centro dramático, o que no teatro francês se chama o Père noble. Nestas condições e pelas exigências da sua visão política, não pelas da sua idiosincrasia, sua ação exercia-se num sentido moderador e dele seria com efeito a inspiração da resposta imperial de 12 de outubro, que conciliava a susceptibilidade dinástica com o melindre popular, declarando o soberano que aceitava a investidura porque tal era o voto das câmaras municipais, células do organismo político. Nas suas conversações com aqueles agentes estrangeiros, de monarquias associadas numa aliança reacionada, a habilidade diplomática do ministro que todos eles respeitavam, empenhou-se em fazê-los acreditarem que ele considerava prematuro e mesmo mal maquinado (pris dans de mauvaises formes na expressão de Mareschal) o desfecho que ia ser dado à desavença sobrevinda no Reino Unido.

A popularidade de que momentaneamente se achavam gozando os ultra-liberais entre os partidários da independência e que José Bonifácio admitia nas citadas confabulações de chancelaria, mesmo porque lhe era isto de proveito como argumento, provinha do impulso que pela sua atitude intransigente tinham incontestavelmente dado à emancipação em andamento, agora em conclusão. Essa popularidade tenderia porém a desaparecer, na opinião de José Bonifácio, quando os ultra-liberais pretendessem entrar em conflito com os direitos do trono. Era-lhe por isso mister imolar suas preferências doutrinárias à conveniência superior de não abandonar o príncipe nas mãos dos democratas que o queriam assoberbar e pôr na sua dependência, para o que não tinham aliás força bastante.

No entanto - e aí se descobria o patriota sob o manto do diplomata - José Bonifácio não podia dissimular aos representantes europeus que os "votos verdadeiros" do Brasil eram bem esses: separação completa de Portugal e a fundação do Império do Brasil. Nem em rigor havia nisso matéria para surpresa, acrescentava (263), porquanto o Rei Dom João VI fora saudado com esse título ao abordar na Bahia e desde então muita gente se servia freqüente e intencionalmente da expressão - império, ao referir-se ao reino ultramarino. Datavam de um ano atrás os versos, pecos mas expressivos, com que um poetastro anônimo traduzira o seu sentimento nacionalista e liberal e que apareceram afixados nas esquinas da capital brasileira:

Para ser de glórias farto
Inda que não fosse herdeiro,
Seja já Pedro Primeiro
Se algum dia há de ser quarto.
Não é preciso algum parto
De Bernarda, atroador;
Seja nosso Imperador
De Cortes, franco e leal
Mas nunca nosso senhor.

Por sua vez fazia Mareschal diplomacia para Viena, onde seu mestre Metternich dava o devido valor ao tom de desolação com que o encarregado de negócios jurava que a Princesa Leopoldina estava presa de uma "juste e profonde affliction" perante o desenlace da crise que ela pelo contrário ajudara poderosamente, com muita discrição, mas com muito critério, para que fosse consoante a lógica dos fatos e a fatalidade histórica. Comunicava ao mesmo tempo Mareschal que Dom Pedro resistira quanto pudera à corrente, o que ele bem sabia não ser exato, pelo menos desde o Fico, e que apenas cedera aquilo que fora levado a julgar uma necessidade absoluta, declarando-se pronto a restituir as rédeas do governo às mãos paternas no caso de Dom João VI voltar para o Brasil.

Entretanto dizia o mesmo diplomata em seu ofício que fora ao Paço no dia 23, mas que Dom Pedro não lhe dera nessa ocasião o ensejo, antes o evitara d'une maniêre marquée, para que ele apresentasse respeitosamente as suas advertências com relação ao passo que o príncipe ia dar contra a legitimidade. Mareschal apenas pôde formular suas razões na audiência especial que lhe foi concedida a 25. O encarregado de negócios da Áustria fazia sobretudo questão do título de legitimidade, não querendo que houvesse menoscabo dos direitos majestáticos do soberano do Reino Unido. Que o príncipe muito embora se proclamasse imperador, ou melhor dito proclamasse o império, mas que, ao colocar sobre a própria cabeça a Coroa Imperial, não desfizesse o laço pessoal com Dom João VI, neste continuando a. subsistir a união política por ele fundada dos reinos sobre que se estendia igualmente sua autoridade suprema.

Mareschal, admitindo o império, ia pois de encontro à opinião daqueles que se arreceavam que as maiores potências da Europa achassem demasiada a pretensão do Brasil querer irmanar em categoria com a Áustria e com a Rússia. José Bonifácio dissera aliás um dia (264) diante do representante inglês, Chamberlain, que o Brasil não havia de consentir em que os demais governos interviessem nos seus negócios internos, sendo esta uma humilhação a que se não submeteria o reino americano. A forma da independência cabia essencialmente no número dos assuntos nacionais, se bem que também tivesse o seu aspecto internacional. Mareschal não ignorava contudo ser impossível transmudar-lhe a substância, pois que informava para Viena que tropa e povo nem queriam esperar pelo dia 12 de outubro para aclamarem Dom Pedro imperador e que só se conformaram em aguardar até essa data, que era a do aniversário do novo monarca, tão somente brasileiro, que o país ia pôr à frente dos seus destinos, porque a câmara Municipal do Rio de Janeiro fizera pública a 21 de setembro uma proclamação fixando o referido dia 12 de outubro para a realização dos desejos da nação (265).

Do grêmio da comunidade independente eram apartados e mandados sair do país, no prazo de quatro meses das cidades do interior e no de duas das cidades marítimas, os dissidentes da vontade dos adeptos da libertação e constituição à parte da nova nacionalidade, contra cuja independência não se atentaria sem incorrer nas penas de alta traição com processo sumário e castigo rigoroso. Concedia-se entretanto anistia geral para todas as passadas opiniões políticas, manifestadas até a data do decreto, excluídos dela apenas os que já se achassem presos e respondendo a juízo. O fundamento da resolução do governo era que "não devia participar com os bons cidadãos dos benefícios da sociedade, todo aquele que não respeitasse os direitos da mesma e, ou por crassa ignorância, ou por cego fanatismo pelas antigas opiniões (266), espalhasse rumores nocivos à união e tranqüilidade de todos os bons brasileiros, e até mesmo ousasse formar proselitos de seus erros".

* * *

As condições de segurança do Império que ia tomar lugar entre as nações soberanas sem partilha, não eram completamente auspiciosas se a mãe-pátria resolvesse atacá-lo ou antes se dispusesse de forças para tanto. O espírito de insubordinação lavrava entre a marinhagem, já de se pouca, sendo escasso seu viveiro local, e a maior parte dela portuguesa, sem o sentimento portanto de nacionalidade e sem qualquer entusiasmo profissional, porque em grande parte fora recrutada contra a vontade. Refere Mareschal que numa rebelião a bordo da esquadrilha de Labatut, a fragata União esteve em grande perigo, tendo a oficialidade que se agrupar toda na popa, só conseguindo dominar o motim com a ajuda de 40 galés napolitanos, aos quais foi prometida a liberdade em troca do serviço que deles se reclamava.

Entre as forças de terra também o elemento lusitano não podia inspirar confiança e facilmente se amotinava, sendo contínua a repressão da sua indisciplina, que contagiava o elemento nacional, mas mais facilmente se explicava. Como é natural numa quadra como essa, de constante agitação e sem os meios de informação e de observação hoje existentes, os boatos terroristas fervilhavam, embora fossem mais tarde desmentidos e confirmados outros mais tranqüilizadores. Amiúde se falava por exemplo em navios de guerra portugueses, que cruzavam aqui e acolá, em velas que se avistavam vindo da Europa. O próprio governo tinha certo interesse em que essas notícias se propalassem para melhor poder reforçar os meios de defesa, adotando providências que de outro modo poderiam ser ressentidas. O apelo ao elemento estrangeiro impunha-se porém especialmente na marinha.

Nem é de surpreender que reinassem tantos rumores pessimistas quando de Londres escrevia Felisberto Caldeira a José Bonifácio (267), em 5 de julho de 1822, que "um amigo intimo de Sarmento (Encarregado dos Estados Portugueses em Londres) acabava de lhe participar que ele recebera aviso de estar feito um tratado de aliança ofensiva, e defensiva com Espanha, o que as gazetas francesas haviam já anunciado no mês passado, e que um dos artigos é dar Espanha 12.000 homens a Portugal para a expedição do Brasil: assim conta o tal Sarmento que irão 20.000 sendo 8.000 portugueses, o que subjugará completamente o Brasil. Eu não sei qual das duas Nações está mais pobre, e mais fraca, mas propendo a crer que a Espanha ainda pode dispor menos de 12.000 do que Portugal dos 8.000. Entretanto convém preparar para o pior dos acontecimentos".

O português estava gradualmente passando a ser o inimigo, cuja exaltação podia ser avaliada de uma forma indireta, mas sugestiva, pela atitude tatuada na Bahia pelas autoridades inglesas quando anuíram à entrega de Gervásio Pires Ferreira, protegido pelo pavilhão britânico, somente pelo receio de que os súditos britânicos ali estabelecidos sofressem violências. Beresford, que conhecia de dentro os assuntos do Reino Unido de Portugal e Brasil e privava numa longa familiaridade com a administração portuguesa, tendo sido comandante em chefe do exército português e lorde protetor da junta de regência, era o primeiro a admitir perfeitamente a hipótese das Cortes levantarem dinheiro com enorme usura e continuarem a mandar tropas para a Bahia, estendendo-se a guerra civil às outras províncias, chamando o partido mais fraco os negros em seu favor, revoltando-se estes depois contra os brancos (268) e acabando Portugal, exausto e arruinado, por ser presa da Espanha que o conquistaria e incorporaria. Era o que o marquês de Campo Maior (269) confessava em Londres ao futuro marquês de Barbacena numa entrevista que tiveram e que o último relatava para o Rio a 7 de julho de 1822.

Se entre os portugueses crescia o despeito, entre os nacionais subia paralelamente tanto o entusiasmo que o prestígio dos Andradas diminuía sensivelmente, pode pelo menos dizer-se apreciavelmente, com se propalar que eram eles avessos às soluções extremas e dispostos a contemporizar com as tradições do passado, aconselhando ao Príncipe respostas ambíguas às aclamações populares, em vez de proclamar um rompimento absoluto, não só com Portugal como com o que se veio a chamar o sistema europeu.

Dom Pedro, ao acalmar as desconfianças do diplomata austríaco sobre o seu próprio radicalismo dinástico, prometera "uma resposta ao povo que satisfaria toda gente, aqui e lá", concordando seu parecer com o do seu ministro e com o daquele agente estrangeiro. A idéia de Mareschal, que este se mostrava persuadido de que era também a idéia do governo, parecia sumamente hábil pois que consagrava o princípio da legitimidade e desacreditava as Cortes, sem entretanto ir de encontro ao sentimento nacional brasileiro. O príncipe assumiria com o título de Imperador a efetividade dos poderes soberanos de que era até então delegado e usufrutuário; mas não o faria pela investidura popular e sim em virtude do seu caráter de herdeiro da coroa e da prerrogativa régia, pelo fato de achar-se o monarca privado deles e cativo das Cortes.

Para José Bonifácio o essencial era que a independência se consumasse e para este caso valia a substância mais do que as formas. A resposta de Dom Pedro sobre que se estribava a diplomacia de Mareschal no tocante à citada harmonia de vistas entre as antigas monarquias do Velho Mundo e a jovem monarquia do Novo Mundo, prometia contudo revestir uma aparência antes evasiva. José Bonifácio, tendo que guiar o barco da nacionalidade, que se constituía, entre o escolho reacionário e o escolho demagógico, entendera mesmo conservar em segredo a fórmula pela qual, no momento da aclamação, o Imperador acolheria a expressão dos desejos do povo.

No conselho de Estado não foi essa questão discutida, como o não fora a questão do título, real ou imperial, porque dada a sua composição, não se chegaria porventura a uma resolução serena e que pudesse permanecer sob sigilo até o último momento. A impressão de muitos era que a autoridade de Dom João VI não seria completamente eliminada, antes se veria respeitada na hipótese, aliás pouco favorável, do seu regresso ao Brasil. O ministro da regência queria muito salvaguardar a independência do trono, sem sacrificar entretanto a independência da nação, e visava a que a invasão por um elemento da esfera de atribuições e regalias do outro não produzisse uma confusão prejudicial à estabilidade política e social.

O problema era difícil, pela atmosfera, carregada de preconceitos democráticos, em que se agitavam as aspirações nacionais, mas não era impossível de resolver. Haveria para isso que moderar a altanaria das câmaras municipais, que se achavam muito inclinadas a assumir o papel do Terceiro Estado na Revolução Francesa e, sem ir de encontro à sua influência, canalizá-la para aproveitar a sua indispensável colaboração na organização dos destinos pátrios na Assembléia Legislativa que compartilharia constitucionalmente com a coroa a soberania nacional e executariam ambas, intimamente associadas, uma tarefa ordeira e construtora e não dispersiva e anárquica. No consórcio projetado caberia porém ao Imperador o ser a cabeça do casal: neste ponto é que concordavam Dom Pedro, José Bonifácio e Mareschal. As circunstâncias levariam pouco depois os Andradas a darem maior consistência ao seu patrocínio dos direitos da nação, mas era neles ingênito e foi sempre acentuado o amor do princípio da autoridade.

Com as responsabilidades da administração do Estado a seu cargo, José Bonifácio e seus colegas de gabinete sabiam que os recursos do Brasil se achavam numa condição de fraco aproveitamento pela situação geral dos negócios públicos do país, e que o erário carecia positivamente de dinheiro, o qual somente na Europa se poderia levantar entre os banqueiros ingleses em quantidade mais avultada, comparativamente ao que podiam fornecer os negociantes da praça. Aqueles banqueiros não se mostrariam naturalmente muito dispostos a emprestar seus capitais a terras alvoroçadas, onde as autoridades não dispusessem de eficiência e de prestígio. Era igualmente por isso preciso que a aclamação, a qual se apresentava em suma ainda como uma separação não amigável, se realizasse com as cautelas ou antes as reservas próprias a não abolir a confiança indispensável ao fortalecimento do Império.

Daí a atitude passiva do governo, parecendo alheio aos preparativos do grande dia da emancipação definitiva. Tomar ostensivamente sua direção, seria comprometer o conceito adquirido junto a vários fatores, de fora sobretudo, que eram de índole a embaraçar o movimento se vissem que este tomava um rumo radical, não só integral, o que já por si representava um obstáculo, dado o particularismo histórico das províncias. Felisberto Caldeira, escrevendo de Londres a Gervásio Pires Ferreira (270) e supondo-o, como toda a gente o supunha, republicano e autonomista, exprimia sua convicção de que cada uma das províncias brasileiras "havia de ter sua particular administração" e comentava a propósito: "A revolução de 1817 fez persuadir a toda gente que os pernambucanos desejam fazer de sua Província uma República independente, e supondo isso possível que consideração política teria no mundo? Para os ignorantes não há razão que baste, mas V. Exa. de certo conhece as vantagens de um Estado que abrange do Prata ao Amazonas, e por isso espero em Deus que por todos os meios a seu alcance se esforçará por conservar a integridade do Brasil".

Renunciar à participação nos festejos que se organizavam, o que eqüivalia a não intervir e até a desprezar os sucessos que se desenrolavam, seria contudo um contra-senso à vista dos precedentes e apenas daria ensejo a animarem-se os adversários de dentro, que já especulavam tanto com a calculada frieza patriótica do governo que o apodavam de aristocrático. O Correio do Rio de Janeiro estava na primeira fila dos que reclamavam não só princípios, como atos democráticos. A Londres chegara havia meses o eco dessas divergências e desses embustes. "A intriga trabalha por todos os modos, para o príncipe escreve-se que não se fie nos brasileiros que o não amam, que fazem dele escudo para vencer aos portugueses e que uma vez seguros o rejeitarão porque são todos democratas: para os brasileiros escreve-se V. Exa. é um Aristocrata que quer restabelecer o despotismo etc. Conseguida a divisão entre os brasileiros qualquer força portuguesa irá subjugando as Cidades Maritimas" (271).

CAPÍTULO XX

PRIMEIROS TRABALHOS DIPLOMÁTICOS NA EUROPA

O reino do Brasil já contava em 1822 com a sua diplomacia privativa. Encarnava-se na Europa o futuro marquês de Barbacena, a quem José Bonifácio fez encarregado de negócios ou antes dos negócios, não sem escândalo do contemplado à vista da sua patente militar de marechal de campo, que lhe parecia merecer categoria mais alta. Para o bom resultado da sua gestão pouco importava a denominação. Barbacena era naturalmente ladino e partindo das premissas, que estabelecia, de que o governo britânico só tinha intimidade com os ministros que sacrificavam os interesses da sua pátria aos da Inglaterra (272) e de que ele pelo contrário antepunha os primeiros aos segundos, tinha que entrar no jogo político com os trunfos da astúcia e da previsão.

Seu espírito acusou sempre uma feição utilitária, isto é, desde moço, na Bahia, o fascinaram os progressos materiais com os quais queria conjugar o desenvolvimento social, pelo que se sentia bem na Inglaterra, pátria das indústrias e pátria do governo representativo. Para a falta de união das províncias brasileiras por exemplo, encontrava ele um remédio certo na maior facilidade de comunicações entre elas que traria a aquisição de barcos a vapor, então nos seus princípios, os quais reduziriam a quinze dias a viagem do Rio de Janeiro ao Amazonas ou antes Pará, com as escalas principais, pois "os barcos da força de cem cavalos andam 10 milhas contra o vento, e maré nos mares da Escócia, e levam as cartas com a mesma regularidade de hora dos correios de terra. Em ocasião de furiosos temporais há de haver alguma diferença, mas os furiosos temporais são tão raros na zona tórrida que pouca consideração merece essa diferença" (273).

Poderia no senso prático que distinguia Barbacena infiltrarem-se algumas ilusões a par de outras tantas antecipações, como a do carvão de pedra nacional; mas era bem verdadeiro o seu conceito, então enunciado, de que o Brasil naquela ocasião precisava sobretudo de militares, de banqueiros e de maquinistas: os primeiros para defenderem-lhe a integridade; os segundos para o salvarem da bancarrota - o banco, a praça e também o Estado - visto que novos tributos não eram viáveis e seria possível obter um empréstimo com a hipoteca da remessa de diamantes e pau-brasil e parte do rendimento de certas alfândegas; os terceiros para valorizarem-lhe os recursos. Não lhe parecia sequer demasiado desenvolver lá a indústria siderúrgica apesar dos obstáculos levantados pelo governo britânico, vindo a fabricar-se no país mesmo máquinas, dificílimas de serem transportadas serra acima, para esgotamento das águas com o fito de aumentar muito a produção do ouro das lavras de Minas Gerais.

Barbacena não deixava de partilhar de um defeito comum aos diplomatas de todos os tempos e de todos os países, que é o de observarem as coisas por um prisma falso, exageradamente estrangeiro ou exageradamente nacional. Pensava ele que à Santa Aliança repugnaria reconhecer um Brasil completamente independente, possuidor de uma soberania sem restrições, mas que era óbvio que aplaudiria qualquer atitude decidida que Dom Pedro tomasse contra as Cortes usurpadoras da autoridade real, indo mesmo até retirar os representantes brasileiros da Assembléia de Lisboa, convocar deputados de todas as províncias na sua capital americana, segundo o que ocorria noutras monarquias duais como a Suécia e Noruega e a Grã-Bretanha e Hanover, romper os laços políticos estabelecidos pela revolução regeneradora e elaborar uma constituição nacional brasileira.

Sua visão de estadista era contudo ampla bastante para que seus possíveis preconceitos europeus, bebidos nas Cortes que entrara a freqüentar, não chegassem ao ponto de levá-lo a votar ao ostracismo as idéias liberais que ele sentia estavam fadadas para o triunfo. Já vimos que achava que para o Brasil estava pronta a faina da preparação de uma lei orgânica pois que "A Constituição Americana com palavras, e fórmulas monárquicas é quanto nos convém", escrevia a José Bonifácio (274). Um banqueiro inglês lembrava ao mesmo tempo que a expressão - Cortes andava em tamanho descrédito na Europa conservadora por causa dos desmandos doutrinários da Espanha e de Portugal, que vantajoso seria dar à Assembléia Brasileira o nome britânico de Parlamento porque, quase toda a gente deixando-se levar por palavras, essa mudança de rótulo representaria um benefício de 2% no empréstimo projetado.

Fazia Barbacena grande caso da sua profissão militar e punha grande garbo nas suas relações militares, e como não via no Brasil como recrutar gente suficiente para sua defesa tão espalhada, preconizava a importação de mercenários da Irlanda, França e Suíça, embarcando os dos dois primeiros países como agricultores e seus oficiais como administradores, para iludir os respectivos governos se é que estes não fechavam por si os olhos. De todos considerava os melhores a serem engajados os irlandeses, porque a situação da ilha era como sempre desgraçada e porque como cultivadores de trigo e salgadores de carne sua colonização estava muito apropriada para o Rio Grande do Sul, que era a zona particular dos atritos entre as duas grandes raças peninsulares povoadoras da América do Sul e ficava próximo à ilha de Santa Catarina, em cuja ocupação se falava correntemente em Portugal (275).

A Barbacena parece pertencer a prioridade da idéia de contratar-se lord Cochrane - "ouço que é muito amigo de dinheiro, escrevia ele3, e que está em discórdia com S. Martin" - a fim de pelo menos bloquear o porto da Bahia e desmoralizar com o prestígio do seu nome o inimigo ali concentrado. Além do almirante inglês, fácil devia ser engajar algum "bravo americano com suas fragatas" - estavam frescas na memória de todos as brilhantes façanhas navais dos Estados Unidos na guerra de 1812 - e também as tropas estrangeiras Bolívar tinha sob seu comando e que entravam a ser-lhe dispensáveis pois que era fatal a rendição do Peru, último baluarte espanhol na América do Sul. Por tudo quanto ocorrera parecia até conveniente misturar com ingleses e americanos os marinheiros portugueses, e oficiais das armas científicas, pelo menos, não podiam deixar de ser necessários.

Num ponto insistia com razão o primeiro diplomata do Brasil imperial e era na vantagem de grangear as boas graças da Grã-Bretanha mediante a estipulação de um prazo curto para a cessação do tráfico de escravos. A filantropia inglesa andara nesta questão bastante tempo sobrepujada pelo interesse comercial, que até levara o gabinete britânico a obter da Espanha por tratado o monopólio do tráfico para as colônias espanholas; mas filantropia e interesse tinham acabado por entender-se e associar-se ao ponto que a admissão franca do assacar brasileiro no mercado inglês seria porventura uma das conseqüências da medida abolicionista recomendada por Barbacena.

Escrevia este que não havia homem público de importância na Inglaterra que não fosse contrário à escravidão e afigurava-se-lhe que o Brasil só teria a lucrar com fazer a abolição contemporânea da sua própria emancipação. Se era ela antipática ao sentimento público brasileiro, acostumado ao trabalho servil, valia por isso mesmo a pena, da opinião de Barbacena, que fossem os ingleses os que incorressem no odioso suscitado pela sua eliminação. O diplomata como que previa o bill Aberdeen e a cessação do tráfico determinada pela imposição estrangeira.

* * *

Eram múltiplos os objetos de que Barbacena tinha a cuidar na sua missão até certo tempo oficiosa, mas nem por isso de um caráter menos substancialmente diplomático. A entrevista com Beresford foi seguida de outra mais formal em que o marechal inglês, falando virtualmente pelo governo britânico depois de conferenciar com o Foreign Office, sugeriu ao Príncipe Regente que buscasse a mediação da Inglaterra no caso de recear deveras que se verificasse a hipótese da guerra civil e de querer sustar a projetada expedição portuguesa. S. M. Britânica, "como medianeiro no ulterior arranjo dos dois Continentes, empregaria todos os meios de conciliação para terminar as diferenças de uma maneira honrosa, e útil a ambas as partes" (276).

Barbacena achava mesmo que Beresford formulava sua insinuação por conta do ministério inglês, sendo aliás a melhor concretização, a mais benéfica para os interesses de uma e outra parte, da idéia lançada pelo antigo procônsul britânico em Portugal de apelar Dom Pedro para os soberanos da Europa à vista da situação de Dom João VI que, por não haver seguido o conselho britânico de ficar nas Ilhas, longe da tutela das Cortes, se via "reduzido a Grão-Lama sem autoridade de propor ou impedir qualquer lei, e assinando quanto lhe mandam". É claro que o gabinete de St. James protestava sempre não querer intrometer-se nas dissensões internas da monarquia portuguesa; mas como dizia sentir os males de ambas as suas seções, desejava concorrer para o bem da nação em geral sem tomar partido por este ou aquele reino.

O plano de Beresford era que, solicitando a mediação britânica, como por fim aconteceu para o reconhecimento do Império, e expondo as reclamações derivadas da usurpação pelas Cortes de quanto era regalia e autoridade da coroa, o Príncipe Regente não melindrasse seu pai, não repudiasse Portugal e não rompesse a integridade do Reino Unido. "Ele deve lisonjear o amor próprio dos brasileiros, mostrando-se persuadido que eles perderão contentes a vida em defesa da sua pessoa, e direitos, mas que por isso mesmo maior é sua obrigação de evitar a guerra civil; deverá garantir que eles querem a união, mas com dignidade, que concorrerão para as despesas gerais mas tendo no Brasil uma pessoa real com Parlamento Brasileiro para que nenhum dos Reinos possa intervir na administração particular do outro" (278).

Reproduzindo estas opiniões, Barbacena exultava porque nelas achava o reflexo das suas próprias, anteriormente manifestadas a José Bonifácio (279). "Não proponho - escrevia ele então- a declaração de Independência ou Aclamação de S. A. Real em Soberano do Brasil, porque esta medida tornando-o desobediente a seu pai, e privando-o da herança de Portugal também embaraçaria o reconhecimento dos Soberanos da Europa, que estimando, e aprovando todos à resolução de ficar S. A. Real no Brasil, não podem fazer ato algum público contra os princípios de Legitimidade garantidos pela Santa Aliança, quando aliás em Regente do Brasil, e fazendo o que adiante lembro, será reconhecido por todos os soberanos, terá a glória de fundar num novo Império, e mudará a triste sorte de seu pai, e de Portugal" (280).

Beresford e Barbacena estavam com a hora política atrasada. No Brasil já estava passado o zenith da união e as próprias Cortes Portuguesas, não querendo abolir no seu seio a representação das províncias de além-mar que se haviam ligado ao príncipe, porquanto tomavam tal deliberação como emanada das suas juntas e esperavam que fossem eleitos os deputados à Constituinte Brasileira para então acatarem a vontade popular manifestando-se favorável à separação das assembléias, foram as que ensinaram a respeitar a expressão da soberania nacional. As Cortes timbravam na deferência as fórmulas quando mesmo violavam a essência do self-government. Barbacena dava em todo caso boa cópia do seu tino quando falava em serem estipuladas por uma convenção especial as relações comerciais entre os reinos desunidos. Os interesses mercantis e econômicos de Portugal constituíam de fato a preocupação máxima das Cortes.

No conceito destas a Santa Aliança preteria-lhes o príncipe, a quem diziam abertamente protegido pelo sistema reacionário. De uma excursão pelo continente trouxe com efeito Barbacena a impressão de que Dom Pedro gozava da maior consideração e seu gabinete da melhor reputação: pelo menos assim o referia (281), e é verdade que o Imperador da Rússia costumava até exclamar com freqüência - Viva o rapazinho, aludindo ao dito de Borges Carneiro, que Barbacena qualificava de "tremenda insolência", e vaticinando que seria aquele outro Pedro o Grande. Ora, para não ver comprometida essa "pública aprovação" é que o agente diplomático brasileiro não queria ver seu país afastar-se do espírito monárquico ainda que constitucional. O próprio ministério britânico, mandava ele dizer para o Rio, "nutria receios" sobre a força da torrente democrática no reino americano. Beresford informou Barbacena na entrevista que tiveram em junho que os brasileiros tinham adquirido na Inglaterra fama de "demasiadamente democratas" e que o gabinete inglês estava persuadido "que a afeição que ora mostram pelo príncipe é fingida enquanto se fortificam contra Portugal". Respondeu-lhe Barbacena que não duvidava "que nas cidades marítimas aonde existe maior número de negociantes portugueses, abunde, mais ou menos, de furiosos democratas, nem isso admira porque neste mesmo país (Inglaterra) a gente pobre, e das ocupações ordinárias da sociedade são radicais. Quanto porém ao interior do Brasil, e principalmente nas províncias de S. Paulo e Minas Gerais, todos são partidistas da Monarquia temperada" (282).

Se assim pensava o governo de Londres, como o não pensariam os outros? A idéia predominante entre os gabinetes conservadores da Europa era que, a haver constituição, fosse esta sob a forma de uma Carta outorgada pelo soberano e não de uma declaração de direitos, equivalente a uma expressão da soberania nacional e das garantias inerentes à atividade do cidadão. Tal era também a preferência de Dom Pedro, que ele não ousou formular em 1822 porque tinha presente a sábia recomendação paterna (283); que o levou no ano imediato a dissolver a Constituinte; que o fez procurar em 1824 o meio-termo de uma constituição redigida por uma comissão ad hoc e aprovada pelas câmaras municipais, e que em 1826 o decidiu a conceder a Portugal a carta cujo destino teve que ser decidido numa porfiada guerra civil.

Um dos maiores diplomatas da Europa na frase de Barbacena, que não diz entretanto quem fosse, observou-lhe que o Príncipe Regente tinha "agora bela oportunidade de dar um grande golpe, e lição a Portugal. Deve apresentar uma Magna Carta, que sem ofender a essência dos Governos Monárquicos, segure em toda extensão possível os direitos, e privilégios do Povo, a fim de ser completamente aceita pela Assembléia, a qual longe de perder o tempo em discussões, e vaidosa ostentação de eloqüência, se ocupará das leis (segundo os princípios da carta) para o bem da administração da Justiça, e Fazenda. Não perder tempo a Assembléia do Brasil com pedantarias do colégio, é já um grande bem mas acresce outro, que é dar aos portugueses a mesma carta, tirando a nação do precipício em que se acha de reunir-se a Espanha. Se a constituição for feita pela assembléia, dirão os portugueses que não tiveram nela representantes, e portanto a não podem admitir: Se porém for dada por S. A. Real e aceita pelos brasileiros, que dirão os portugueses?".

Uma carta constitucional outorgada aos dois países significava destarte a preservação da sua união pelo laço pessoal do soberano. O governo britânico não favorecia por certo um regi-me absoluto, contrário às suas próprias tradições e sentimentos, e sua influência, que despertava nos Estados Unidos ciúmes que dentro em breve se Cristalizariam numa doutrina exclusivista, carecia, para melhor se exercer, que o príncipe contasse com a afeição, respeito e obediência dos brasileiros (284).

Para a Santa Aliança o império brasileiro, embora vazado num molde constitucional, representava a única sobrevivência na América do princípio monárquico europeu e era assim uma porta de entrada mais acessível para os interesses do Velho Mundo no Novo Mundo. Não convinha portanto levar o Brasil a fazer em tudo causa comum com o resto do duplo continente, já sendo bastante a fatal pressão do habitat, das idéias políticas e do intercurso social. O Brasil carecia, é verdade, do reconhecimento europeu e Barbacena, desde que se esboçou a hipótese da mediação, lembrou a José Bonifácio que juntasse à da Inglaterra a da Áustria, cujo prestígio estava em seu apogeu. O pan-americanismo já constituía porém um instinto, cuja consciência levaria tempo a desenvolver-se.

A Inglaterra, que não visava senão a primazia no globo, que a tinha a bem dizer alcançado com a queda de Napoleão, e que no hemisfério ocidental enxergava um vasto e prometedor campo de lucros, era a primeira a saber que uma aliança das novas nacionalidades que se iam constituindo seria, dado o caso que se formasse, toda em proveito das suas antigas colônias emancipadas nos Estados Unidos. Urgia portanto que ela tirasse vantagem das simpatias que soubera criar-se entre as colônias espanholas e a que se não conservaria alheia a portuguesa, se lhe fosse prestado qualquer concurso.

A neutralidade britânica era nestas condições uma ficção: de fato o governo inglês andava ativamente interessado, e mais o ficou depois que Canning entrou para o gabinete em setembro de 1822, na composição dos problemas da grande seção do mundo que irrompia para a vida independente. A Inglaterra não pretenderia arcar com um continente coligado; mas antes que isto se desse, pretendia ter nos negócios americanos a sua participação e, se possível, a sua preponderância. Para tanto era-lhe indispensável a amizade brasileira, como ao Brasil era por sua vez essencial a coadjuvação inglesa. No terreno em questão pelo menos eram recíprocos os interesses dos dois países. À Grã-Bretanha repugnavam como aos Estados Unidos a recolonização pelas antigas metrópoles e novas conquistas por outras potências européias, cabendo na primeira categoria a submissão do reino ou império brasileiro pelas forças da mãe-pátria, se bem que o móvel do reino português fosse incomparavelmente mais a reconquista comercial do que a política.

Um Brasil aliado aos Estados Unidos não lhe podia contudo sorrir e o regime monárquico por aquele adotado, se não se levantava como um obstáculo a um entendimento como os fatos se encarregaram de demonstrá-lo, sempre traduzia para a Grã-Bretanha uma condição imanente de aproximação, oferecendo ela por garantia sua não identificação, para não dizer seu afastamento da Santa Aliança. Sua convicção de que o Brasil devia permanecer liberal, mas não ir além disso, era porque seria esse o meio de a um tempo manter-se no continente americano uma Monarquia que a designação de exótica já espreitava, de não incorrer no desagrado da Santa Aliança ao ponto de se tornarem incompatíveis e de firmar uma concordância de vistas e de índole com a Monarquia Britânica.

Na ordem da política interna do Brasil as conveniências eram idênticas. Havia que não querer suprimir violentamente a sugestão republicana que já se implantara. Barbacena escrevia a José Bonifácio (285) que "se nas medidas adotadas no Rio de Janeiro depois da reunião dos Deputados houver alguma que não seja liberal, e própria de uma Monarquia Constitucional, ai de nós que sofreremos guerra civil, e desgraças por longo tempo! Se porém tudo for conforme ao espírito público, como espero das luzes de V. Exa., e do gênio do P. Augusto, que nos rege, as províncias dissidentes se envergonharão, e por sua conveniência virão imediatamente prestar obediência. Os portugueses mesmo nos terão inveja, e deitarão por terra seu mau governo".

Se o governo britânico acolhia com agrado um regime constitucional que não fosse entretanto democrático, os outros governos europeus que não os da Península Ibérica mais afastados ainda estavam de toda expressão ultra-liberal, e as informações que José Bonifácio recebia e que corroboravam suas próprias meditações, pesavam sobre seu espírito no sentido de aconselhar-lhe uma prudência política que brigava com seu temperamento vivo e apaixonado, mas não Com sua razão disciplinada pela cultura científica. De Paris escrevia-lhe Barbacena a 20 de agosto que os receios do ministério britânico sobre a torrente democrática no Brasil eram "transcendentes a vários outros gabinetes, e por isso para S. A. Real ir de acordo com eles, e segundo o espírito constitucional de que S. A. Real está animado, é urgente estabelecer a organização política do Brasil sobre instituições monárquicas, que tendendo a consolidar a mesma organização política neutralizem a ação do partido democrático. Para consumar porém esta obra entendem os grandes homens de Estado com os quais tenho falado, que S. A. Real não deixe subordinar sua política às decisões caprichosas da facção regeneradora de Lisboa, mas sim única e privativamente ao que for de interesse do Brasil, e concernente a dar-lhe o merecido realce, porque a todo tempo terá lugar o estipular com o governo de Portugal (logo que ali haja um governo legítimo) as condições decorosas, e razoáveis da união dos dois reinos".

Na atmosfera política européia Barbacena ainda podia julgar possível a manutenção do Reino Unido pelo vinculo pessoal de um soberano comum; mas além-mar já se evidenciara a impossibilidade dessa preservação política e se tornara palpável e até imediata a solução da independência. A questão estava antes, ou melhor dito estava toda na subseqüente modalidade constitucional. As assembléias tumultuárias, anárquicas e tirânicas inspiravam desconfiança e receio. Por isso os "grandes homens de Estado" a quem Barbacena aludia entendiam, como aliás sentia José Bonifácio, que "no estado atual da exaltação do espírito público nesse Reino será imprudente a convocação de todo corpo deliberante mui numeroso, e julgam que para discutir nesta conjuntura quanto diz respeito a organização política do Brasil suficiente fora o Conselho de Estado convocado pelo Decreto de 16 de fevereiro, contanto que se dê a devida importância às suas deliberações".

Barbacena não se descuidara de discretamente procurar influir, como lhe cumpria, para criar na imprensa uma opinião favorável ao Brasil, para isto valendo-se dos seus conhecimentos. Os sucessos por si eram porém sugestivos e diretamente ditavam as apreciações que a diplomacia buscava. Referindo-se aos debates violentos das Cortes de Lisboa, o Times escrevera por exemplo que negócios dessa natureza não se terminavam com argumentos de retórica e de lógica, mas com força física, e quando foi do 13 de maio, isto é, da declaração do Príncipe Regente de aceitar o título de defensor perpétuo, o mesmo órgão, com todo o prestígio que lhe dava a respeitabilidade de que gozou no século XIX, aconselhava Portugal a que não cavasse a sua total ruína, "lembrando-lhe que se Inglaterra não pôde com os Estados Unidos, se Espanha não pôde conservar ao menos uma Província com suas expedições, que fará Portugal com o sistema de guerra?" (286).

* * *

Barbacena entrou em negociações diretas para o reconhecimento do Reino do Brasil, antes da proclamação do Império subseqüente à independência, servindo-se dos bons ofícios do encarregado de negócios da Áustria barão Neuman. Ficou previamente entendido que para não haver comprometimento ele falaria como general ao serviço de S. A. Real, sem declarar antes de tempo sua comissão diplomática, isto é, sem assumir caráter político. O barão Neuman prestara-se à mediação mesmo porque acreditava, ou pelo menos julgava adequado que o gabinete inglês se concertasse para tal fim com os outros aliados. De fato porém tal reconhecimento por parte da Grã-Bretanha, com a subsistência bem entendido da suserania de Dom João VI nos dois hemisférios, teria sido pronto se apenas o Brasil se houvesse desde logo prestado a abolir o tráfico dos escravos.

Canning esquivava-se ao reconhecimento de uma independência integral porque esta o obrigaria moralmente a reconhecer as nações neo-espanholas da América, o que ainda era considerado prematuro nesse momento. Também Canning se recusava a admitir o estado de cativeiro do monarca português porquanto, a admiti-lo, teria que retirar seu ministro de Lisboa e quiçá interromper as relações comerciais com Portugal. Não deixava entretanto de dar razão às queixas do Brasil contra a antiga metrópole e na atitude do reino americano só tinha que censurar sua obstinação em prolongar o tráfico negreiro. À vista das esperanças que sobre o assunto lhe deu o agente brasileiro, Canning mostrou-se tão conciliador e tão simpático à causa ultra-marina que conveio até em receber ministro e cônsules do Brasil, alegando-se para Portugal o interesse britânico de não interromper suas relações mercantis (287).

Tendo Canning solicitado de Barbacena uma exposição escrita de motivos, objetou este que só em caráter público o poderia fazer, mas o secretário de Estado dos negócios estrangeiros advertiu que o objeto do seu pedido era precisamente apresentar ao conselho de ministros as razões para o reconhecimento da categoria diplomática do enviado, pelo que concordou Barbacena em continuar a agir como militar tão somente.

A pedido de Canning, Barbacena suprimiu da exposição que primeiro mandou quanto se referia à coação real, insistindo apenas, pela recomendação do mesmo, nas injustiças cometidas por Portugal contra o Brasil e nos méritos do Príncipe Regente para resistir às Cortes de Lisboa. O agente brasileiro observou com intenção que muito estimariam os portugueses que não fosse a Inglaterra a primeira potência a praticar esse ato de justiça internacional, para poderem fomentar intrigas no Brasil contra os negociantes ingleses. Canning não era entretanto homem que se deixasse levar por argumentos que não fossem muito positivos e voltou por sua parte ao ponto que mais tinha a peito prometendo até o reconhecimento da independência se Dom Pedro de seu lado prometesse abolir o tráfico de escravos.

Respondeu Barbacena que nela ele, nem ninguém poderia na Europa garantir que o príncipe faria isto ou aquilo; pois que dependia das circunstâncias em que entravam a exaltação nacional, os agravos dos regeneradores e a indiferença ou simpatia dos soberanos aliados. Tudo isto pesava mais no espírito do príncipe do que seus próprios sentimentos, os quais eram indubitavelmente filantrópicos e concordavam aliás com a razão, pelo que não duvidaria Barbacena apostar que, feito imediatamente o reconhecimento, cessaria em quatro anos o nefando comércio, máxime se a Inglaterra admitisse o consumo do açúcar brasileiro.

Barbacena era da escola dos que tratam logo de tirar o maior número de vantagens e já nessa ocasião (16 de novembro) tinha informação, posto que não oficialmente confirmada, do 7 de setembro. Nesse mesmo dia 16 teve ele nova entrevista com Canning, nela reclamando o estabelecimento com reciprocidade da representação diplomática e a exigência pelo governo britânico, como medianeiro em Lisboa, da suspensão de novas expedições contra o reino americano e retirada das tropas portuguesas da Bahia. Assim sendo estaria o governo brasileiro disposto a favorecer as relações comerciais com a antiga metrópole. Era portanto uma transação o que ele propunha, ou pelo menos a correspondência de uma promessa a um ato positivo de benevolência, mas no tocante à questão dos negros, Barbacena estava longe de querer comprometer-se igualmente com a Inglaterra, sob pretexto de que os brasileiros eram gente que "por generosidade e gratidão farão tudo, mas por ameaça coisa nenhuma".

O reconhecimento da independência puro e simples, sem condição alguma, mas acompanhado de uma intervenção para acabar com as hostilidades entre Portugal e Brasil -, eis o que o agente brasileiro esperava do governo britânico, o qual por si apenas exprimiria o desejo de que no Rio de Janeiro se soubesse dar valor a essa política generosa, cimentando a amizade das duas nações com uma medida francamente abolicionista. Barbacena ajuntou para reforço da sua argumentação na conversa com Canning que "perderia a cabeça" se o príncipe Regente procedesse diversamente, não deixando entretanto de ponderar para 1á (288) que "pouco importa que eu perca a cabeça uma vez que o Brasil consiga o que deseja". É de justiça acrescentar que pessoalmente Barbacena opinava pela abolição do tráfico.

Canning e lord Liverpool, que era o primeiro ministro, não se entregaram à diplomacia de Barbacena, alegando que reconhecimento e mediação deviam ser resoluções conexas com a abolição, porque de outro modo o gabinete se sujeitaria a graves ataques parlamentares; pois que continuando suspenso o reconhecimento dos países de origem espanhola que tinham extinguido o tráfico de escravos, assim catando a simpatia inglesa, seria pelo menos ilógico, senão iníquo, que se reconhecesse precisamente o país que persistia em fomentar tão horrendo comércio.

Além disso à oposição parlamentar britânica os liberais portugueses não podiam ser antipáticos, porquanto professavam a doutrina constitucional em forma embora extremada, ao passo que o Príncipe Regente do Brasil era por eles denunciado como despótico. As negociações fracassaram neste ponto e por esse motivo, com grande desapontamento de Barbacena que por si admitiria a condição - ad referendum como não podia deixar de ser - porque estava persuadido de que o Brasil não lograria resistir à pressão moral, mais ainda do que material, que sobre ele se exerceria para que se enfileirasse na cruzada humanitária que o interesse econômico de alguns países urgia associado com o adiantamento dos tempos. Quando não fosse senão para castigar o Brasil, embora prejudicando Portugal com o conseqüente atraso da agricultura brasileira pela falta do braço escravo, as Cortes tomariam partido pela Inglaterra à menor indicação de Londres.

Hipólito José da Costa, que era um arguto jornalista e conhecia perfeitamente a política do seu tempo, pensava exatamente como Barbacena sobre o assunto e seu parecer lhe estava de antemão assegurado: Barbacena, porém, do que mais se arreceiava era de que entretanto, com a nova regência nomeada em Lisboa e composta de gente moderada, a Bahia, cansada de lutar e de gastar, pois que a luta só trazia gastos às classes sobre que recaía o seu ônus, desse mostras de acomodar-se e se deixasse levar pelo oferecimento de anistia e pela perspectiva de lucros próximos que lhes compensassem os prejuízos já sofridos. Longe do teatro da ação e portanto sem uma noção completa do desenvolvimento dos acontecimentos, Barbacena não acreditava muito na eficácia ou sequer na possibilidade dos socorros do Rio, e argumentava do seguinte modo escrevendo a José Bonifácio (289): "Se a Esquadra do Rio fugiu de navios mercantes armados em guerra, ousará ela aparecer havendo na Bahia nau, charruas, e Fragatas?".

O agente brasileiro deliberou aceitar a proposta do gabinete britânico, mas teve que esperar pela resposta de Lisboa à sugestão de mediação que Canning formulara no sentido de evitar ainda a separação, a qual seria fatal se continuassem as coisas como estavam. A Inglaterra achava-se resolvida a conservar-se em paz com ambos os reinos e agia debaixo do princípio de serem os dois independentes, apenas com um só soberano. Era tanto ou mais do que hoje têm o Canadá e a Austrália. A sugestão estava de resto de acordo com as declarações oficiais do Príncipe Regente e por si só teria o efeito de sustar qualquer expedição militar, compreendendo Portugal que "ficará só na contenda".

Sobreveio contudo a notícia do rompimento do Brasil e Canning mostrou-se dela mais surpreendido do que de fato se sentia, porque desse acontecimento queria tirar partido para a sua política abolicionista. "Como entender isto sr. General? perguntava ele a Barbacena a 30 de novembro, mostrando-lhe o edital da câmara do Rio de Janeiro com o anúncio da aclamação imperial. Como contar com qualquer ajuste, ou asserção do ministério do Rio, quando nos atos de maior ponderação mostra freqüente mudança de principios?" (290). E a Barbacena o que se lhe deparava melhor para responder era que a fermentação no Brasil era tal, que o Príncipe Regente nem sempre podia fazer o que entendia mais acertado e devia por vezes ceder à torrente que as medidas violentas das Cortes de Lisboa faziam avolumar.

Barbacena invocou também os decretos, que qualificou de absurdos, das Cortes para justificar a aclamação imperial, posto que esta se lhe afigurasse contraditória com o manifesto de 6 de agosto aos soberanos estrangeiros. Neste sentido escreveu para uso de Canning um arrazoado atribuindo a iniciativa da separação "ao povo, e tropa em massa que se dirigirão a S. A. Real aclamando-o Imperador, e pedindo que os defendesse das injustiças, hostilidades e ultrajes cometidos pelos facciosos de Lisboa contra o Brasil" (291). Dom Pedro vira-se, no dizer de Barbacena, impotente para sufocar a exaltação pública que ameaçava desintegrar o Brasil se lhe não fosse dada satisfação.

Era um novo Estado que assim se constituía pelo que muito depois se haveria de chamar self determination, e que desejava ardentemente firmar amizade eterna com a Grã-Bretanha e receber franca e liberalmente os seus produtos, abrindo todos os seus portos à navegação britânica uma vez que fosse reconhecido seu status de soberania absoluta, não só a larga autonomia ou antes a virtual independência que propusera o citado manifesto com o qual S. M. Britânica se conformara e de harmonia com o qual pretendia agir, tendo insinuado para Lisboa que do mesmo modo procedesse S. M. Fidelíssima.

Tanto Barbacena como Gameiro (futuro visconde de Itabaiana), que era o outro agente diplomático que o novo império então mantinha na Europa e que fora a Verona procurar admissão nos conselhos dos aliados, menos feliz porém do que Cavour em Paris, em 1855, quando conseguiu alistar o Piemonte entre as potências ativas e deliberantes, não tinham grande confiança num reconhecimento imediato por parte da Santa Aliança, que então dominava a situação, já por causa do título imperial assumido por Dom Pedro, já pela consagração na modalidade constitucional das doutrinas de soberania popular.

Barbacena, que volvera a ser belicoso e com mais ênfase porventura do que sinceridade expressava o voto que o deixassem acabar a vida com a espada na mão defendendo os direitos do seu soberano e os de todo o Brasil (292), escrevia para o Rio que se não devia contar "com o socorro de ninguém" (293): o que melhor defesa assegurava ao Brasil era o tratar-se de fatos consumados.

CAPÍTULO XXI

PETRUS IMPERATOR
AS PRIMEIRAS NUVENS NO CÉU DA INDEPENDÊNCIA

Boda molhada, boda abençoada, diz o rifão português, e assim deveria ter sucedido à boda do Imperador com a nação brasileira, a julgar pelas fortes bátegas d'água que assinalaram o dia da cerimônia posta em cena por Debret, o pintor de história emigrado da corte dos Bourbons para o Rio de Janeiro de Dom João VI e em cujo cotação nunca cessaram de palpitar as saudades da época napoleônica.

A moda conservava-se ainda toda pelos arcos de triunfo e nada menos de cinco, devidamente alegóricos, se destacavam desde o campo da Aclamação até à rua Direita, para os quais - imitações de madeira e lona, destinados a vivre l'espace d'un matin - contribuíra largamente o Grande Oriente, que com justa razão considerava a festa como a sua própria. Era ao mesmo tempo uma festa militar, porque mal poderia um império desprender-se da pompa guerreira. Três mil praças no cálculo de Porto Seguro, seis mil no de Rio Branco, sempre minucioso nos pormenores, especialmente desta natureza, mas tendendo invariavelmente a acentuar a valia militar da nação, formaram a guarda do jovem soberano. Para o seu efetivo concorreram o Rio de Janeiro, Minas e São Paulo, não faltando o batalhão dos henriques porque as tradições da guerra holandesa associavam intimamente no espírito público as três raças que nela tinham combatido juntas pela restauração portuguesa e entravam agora a inflamar a ênfase da retórica patriótica expressando-se pela voz da independência, a qual, "mais poderosa que o trovão, retumbava do Amazonas ao Prata", com a variante, geograficamente exagerada, "do equador ao pólo".

O Espelho, ao descrever os festejos da Aclamação, o menos que chama Dom Pedro é de numen tutelar, expressão muito usada entre os publicistas brasileiros, e compara-o com os maiores vultos da história - Alexandre, Augusto, Tito, Luís, não sei se São Luís ou Luís XIV - perdendo positivamente a fala como diz ("as vozes expiram na garganta") quando trata do esplendor do golpe de vista do espetáculo, já pelo luzimento da tropa a postos, já pelas cores vivas das colchas dependuradas das janelas e das varandas onde se ostentavam senhoras, muitas delas vestidas de verde e de amarelo.

O juramento imperial era o que se poderia denominar a pedra de toque, do ponto de vista político, do regime que se ía inaugurar. Os liberais pretendiam expurgá-lo de todo caráter aristocrático e sobretudo excluir ab initio as prerrogativas da realeza de um sabor que lhes parecia arcaico, o veto absoluto por exemplo. Na reunião da câmara municipal do dia 10 de outubro ficara porém decidido, por proposta de Pedro da Costa Barros, major da brigada nacional da marinha, que se era "conforme a todos os sólidos princípios do sistema convencional até reconhecido pelas Cortes de Lisboa, ser livre, quando alguma nação muda o seu pato social e forma de governo, separar-se qualquer parte da mesma nação se as condições do novo pacto lhe não agradarem - o que acontece ao Brasil relativamente a Portugal, por serem manifestamente lesivas as condições do mesmo pacto social que este lhe prescreve - não lhe parecia ser o dia 12 próprio para S. A. Real prestar o juramento do estilo, por ser costume prestar-se este no ato das coroações dos monarcas, ato que se não verificava naquele dia, devendo reservar-se a prestação do mesmo juramento para o dia da coroação do mesmo senhor".

Costa Barros mostrou-se assim o que hoje denominaríamos um tradicionalista, mas a sua sugestão foi por todos aprovada e a ata da sessão traz como primeira assinatura a de José Clemente Pereira, que era dos constitucionais rubros. O que dois dias depois se incluía na cerimônia da aclamação era a aceitação do título imperial mediante a investidura nacional que estabelecia a legitimidade do regime aos olhos da facção avançada, ao passo que a consagração de um novo trono o tornava aceitável aos que se apegavam ao passado, no que este pelo menos oferecia de garantia da ordem e preservativo da anarquia.

Nas curtas palavras proferidas pelo Imperador fez-se mesmo abstração de toda referência à futura lei orgânica, limitando-se Dom Pedro a declarar que aceitava aquele título soberano, com a restrição de constitucional, porque estava convencido de que tal era a vontade da nação, faltando, pela escassez do tempo apenas, as representações de certas câmaras a juntar às que tinham sido apresentadas, e tendo-se pronunciado favoravelmente a respeito o conselho de Estado e de procuradores gerais.

* * *

A crise política começou pois verdadeiramente na ocasião da aclamação, ou melhor começara poucos dias antes da solenidade, pretendendo a facção democrática cercear a autoridade imperial no próprio momento em que ela era conferida, o que só não tentou realizar porque o príncipe e seu ministro, sabedores de suas intenções, tomaram precauções para tolhê-las e iludir semelhante propósito. A questão era de quem predominaria - o soberano ou a assembléia, a coroa ou a constituição?

Os democratas entendiam que o príncipe devia subordinar-se à lei orgânica adotada, mais do que isto, elaborada pela nação. Os conservadores, como José Bonifácio, não queriam ver o soberano simples mandatário da nação, antes queriam repartir a soberania nacional entre monarca e parlamento, cabendo muito embora ao monarca a sua parte pela investidura de uma autoridade superior ao parlamento que era a vontade direta do povo, manifestada por uma espécie de plebiscito que lhe confiara a direção executiva dos negócios públicos, ao passo que aos representantes eleitos da nação ficava exclusivamente reservada a tarefa legislativa, isto é, a redação dos estatutos a serem aplicados pelo executivo. Estabelecia-se deste modo um pacto em virtude do qual o soberano a nada se obrigava senão a rejeitar aquilo que fosse inadmissível, conservando-se portanto a porta aberta para as suas afirmações eventuais de autoridade que contrabalançassem as demasias da liberdade.

Assim definia José Bonifácio a Mareschal a situação (294) ao explicar-lhe a necessidade da solução da completa independência e fazendo valer a pressão que sobre ele e o príncipe tinha exercido o conhecimento de certos fatos, entre outros a existência de um tratado ofensivo e defensivo de Portugal com a Espanha contendo o compromisso da devolução de Montevidéu, a negociação de um empréstimo na Inglaterra, dando o governo constitucional em garantia a ilha da Madeira para lhe serem facultados os recursos de debelar a resistência brasileira, e um projeto de manifesto do rei contra seu filho a que Dom João VI seria coagido a dar sua assinatura.

José Bonifácio insinuava além disso ao principal dos governos da Santa Aliança que a aclamação imperial seria inevitável uma vez que se reunisse no Rio de Janeiro a assembléia representativa, e que melhor era que se fizesse da maneira por que ia ter lugar - este colóquio ocorreu no dia 11 à noite - sem colocar numa dependência perigosa o Imperador, que assumia tal título mercê da grandeza territorial do país, um dos maiores da terra.

O diplomata austríaco estava de resto perfeitamente convencido de que o ministro brasileiro tinha razão, ou pelo menos de que a aclamação era fatal, o que lhe dava razão, e informou mesmo a sua corte de que o entusiasmo popular fora muito grande, especialmente quando Dom Pedro e Dona Leopoldina apareceram na varanda do palacete do campo de Sant'Anna e mostraram à multidão, erguida nos braços paremos, a princesinha Dona Maria da Glória.

O povo não cuidava de melindres constitucionais: um príncipe desempenado e garboso, capaz de belas atitudes, produzia mais apelo sobre sua imaginação do que qualquer teoria de direito público. Para aumento da satisfação geral, recebeu-se de Lisboa poucos dias depois, a 16 de outubro, a notícia de que as tropas destinadas à reconquista do Brasil tinham desembarcado dos navios que as deviam transportar, o que levava a crer na desistência pelas Cortes do seu plano.

Mareschal consolava-se facilmente da independência, que era em suma toda em prejuízo de Portugal, com a convicção de que se achava possuído de que caíra inteiramente qualquer idéia de república tanto assim que a Monsieur d'Andrada adviera como que uma reconquista do seu prestígio que os seus inimigos tinham procurado marear. E tanto melhor, ajuntava o diplomata, porque, a despeito da sua petulância e do seu ardor, era ele incontestavelmente um estadista de recursos e sinceramente devotado a seu amo e à causa monárquica, donde o empenho da oposição em fazê-lo sair do gabinete.

As formas ou convenções, quando não fosse a cautela inerente à profissão, obrigavam porém Mareschal a não prejulgar os sentimentos do seu governo com relação à transformação política de que o agente estrangeiro estava sendo testemunha; pelo que este se abstinha de dar ao príncipe e princesa tratamento de majestade e, para evitar dificuldades dai procedentes, deixava de comparecer na corte; sem que isto implicasse sombra de desrespeito ou desafeição para com as augustas personagens, pela ventura das quais fazia os votos mais calorosos.

Nos conselhos diplomáticos da capital brasileira não reinava a tal propósito uniformidade de opiniões. O cônsul geral e encarregado de negócios da França Maler, que era um esturrado, dera por terminadas as suas funções políticas e julgava apenas subsistentes nas relações mercantis que não excluíam mais da corte, como antigamente, os respectivos agentes comerciais, pelo que os cônsules gerais inglês e russo, Chamberlain e Langsdorff, assim se considerando apesar de igualmente encarregados de negócios, tinham comparecido ao beija-mão do Paço, com isto armando, no dizer de Mareschal, à popularidade brasileira. Langsdorff, que se interessava pelo país científica e economicamente, estudando-lhe a história natural e ocupando-se de colonização européia nas suas terras, aconselhara-se a respeito com José Bonifácio e compareceu até no campo de Sant'Anna.

Se bem que conservasse muitos dos atributos essenciais e todos os atributos exteriores da realeza, Dom Pedro não criou logo uma nobreza especial, pelo que o felicitaram publicamente os democratas, que apontavam a casta aristocrática como encerrando o princípio corruptor das nações. É difícil compreender como eles harmonizavam o seu republicanismo - pois que negavam a coexistência de outra soberania com a soberania popular - com a exaltação do dinasta que outra coisa não era Dom Pedro, não obstante o caráter democrático que pretendiam emprestar à sua ascensão ao trono. Verdade é que no íntimo do seu pensamento o trono constituía uma solução temporária, e no dizer de João Soares Lisboa, à frente do Correio do Rio de Janeiro, imperadores desse quilate equivaliam a presidentes, sendo aliás um "Dom Pedro I sem segundo".

Entretanto instigado pelo seu ministro, a quem os adversários não poupavam e pensavam em depor por meio de um pronunciamento que os levasse ao poder, Dom Pedro patenteava não renunciar à sua função suprema, tanto mais prestigiosa quanto na sua modalidade se combinavam neste caso a feição tradicional e a feição popular. Nem hesitou em aprovar uma série de medidas contra os seus apologistas radicais. A 21 de outubro o Correio do Rio de Janeiro era suprimido e dado ao seu redator o prazo de uma semana para sair do Império; José Clemente Pereira era intimado a solicitar sua demissão; o padre Lessa era desterrado para vinte léguas da Corte, e a vários militares eram dadas comissões no interior, entre os índios.

José Bonifácio quis porém forçar a nota, conquanto no conselho dos procuradores já se tivessem levantado protestos pelos seus atos arbitrários, sem forma de processo, contra a liberdade de imprensa e de reunião. Entendeu ele englobar nas detenções os seus inimigos paulistas, a começar pelo Francisco Inácio da bernarda, e pôr cobro à atividade do Grande Oriente, que o desfeiteara, vibrando contra o mesmo a deliberação do seu imperial grão-mestre, o que era um refinamento de vingança.

A fraseologia era a do costume, qualificando-se os contrários de "perversos" e os seus projetos de "tramas infernais", e lançou-se a idéia de decretar a lei marcial contra as chamadas "chicanas forenses".

Tudo isto, enxergando-se por trás da divergência política o elemento pessoal que mais a azedava, determinou prontamente uma reação e Dom Pedro, cuja natureza era acessível à verdade, despontando facilmente no seu espírito, amigo de novidades, assomos de decisão voluntariosa e quiçá por vezes injusta, mas também impulsos de demência e magnanimidade, caiu em si quando viu três procuradores no conselho protestarem contra as medidas de rigor e ouviu falar em petições monstros em favor do jornalista condenado. Ledo, que pretendera pôr o mar de permeio depois que Dom Pedro sobre ele desfechara verbalmente a sua cólera, correndo que emigrara para Buenos Aires, não o fez porque o soberano se mostrou disposto a deixá-lo ficar em paz.

A reabertura do Grande Oriente foi ordenada, Dom Pedro não podendo esquecer que, na frase de Mareschal (295), o ato do dia 12 fora entiérement leur ouvrage. O certo é que a 27 de outubro já José Bonifácio informava o agente diplomático austríaco de que fora aceito o seu pedido de demissão apresentado ao Imperador e motivado pela discrepância de vistas. Na verdade Dom Pedro e Dona Leopoldina tinham ido repetidas vezes solicitar do ministro que não desamparasse seu posto de responsabilidade, mas também de confiança. Mareschal reputava o Príncipe capaz de desenvencilhar-se num momento de apuro dos laços perigosos em que se deixara enlear e que prolongavam uma situação ambígua, pois não havia dúvida que o "clube obscuro de franco-maçonaria" a que se referia Mareschal tinha realmente tomado a iniciativa da aclamação imperial, mas com isto lucrando o partido democrata que tão bem se poderia denominar republicano.

Por outro lado a luta política que assim se esboçava era de feitio a açular a índole apaixonada de um jovem cedo sacudido no terreno de ação e que em alguns dos seus ímpetos dava antes mostra de carecer de influência moderadora no exercício da "maior amplitude de poder" (296) com que o fora brindar o povo, para que ele encarnasse superiormente a defesa dos seus direitos.

* * *

O novo ministério organizou-se com certa dificuldade, porque mesmo havia a impressão de que seria uma coisa muito transitória. Foi José Bonifácio substituído nos negócios do império e estrangeiros pelo conde da Palma, por haver recusado o lugar o barão de Santo Amaro; Caetano Pinto na justiça pelo chefe de polícia João Inácio da Cunha (futuro visconde de Alcântara); Martim Francisco na fazenda pelo desembargador Tinoco da Silva; Luís Pereira da Nóbrega na guerra pelo coronel João Vieira de Carvalho (depois marquês de Lages), e Farinha na marinha pelo chefe de esquadra Luís da Cunha Moreira, veterano da expedição de Caiena e depois barão de Cabo Frio:

Nada havia que dizer contra a honradez deste pessoal escolhido para a alta administração, mas o prestígio dos Andradas superava a boa reputação dos seus substitutos e, como sempre acontece, a opinião, que neste caso lhes era positivamente favorável, recebeu estímulo de uma propaganda eficaz. Mareschal na sua correspondência, escrita sob a impressão imediata dos acontecimentos que se iam desenrolando, não mostrava confiança no futuro desse gabinete sem cor e sem força no seu dizer; composto de verdadeiros verbos de encher (pièces de remplissage). O único dos ministros que não era uma personagem nula e desconhecida era o conde da Palma, o qual aliás parece que nem chegou a tomar posse do cargo: galant homme, dele escrevia o diplomata austríaco, mas que dera mostras na Bahia, ao romper a crise constitucional, de não ter energia para arcar com as situações anormais.

José Bonifácio retirara-se entretanto para uma chácara em Botafogo, senão amuado, pois que não recusou seu concurso para a escolha dos novos ministros, pelo menos despeitado e patenteando com esse afastamento o desfavor em que caíra em resultado das intrigas armadas em redor do trono a fim de monopolizar o valimento imperial, daí resultando o que Melo Morais (297) denominou "funesto choque de animosidades e interesses, uns cidadãos se esconjurando contra suspeito despotismo, outros contra presumido democratismo".

Na cidade entrou logo, a 29 de outubro, a reinar bastante agitação, julgando-se os liberais ameaçados nas suas franquias e poucos seguros nas suas garantias porque os andradistas contra eles açularam a população, tratando-os de republicanos e carbonários, acusações que ainda correspondiam a pecados graves em vista do recentíssimo consórcio da realeza, personificada em Dom Pedro, com a autonomia nacional que o ministro da regência encaminhara com tanta constância quanta felicidade.

José Bonifácio e Martim Francisco não se tinham arredado do poder sem a intenção de volverem aos seus postos, tanto mais quanto a separação se efetuara em bons termos. É também natural, que Dom Pedro se não conformasse, passado o primeiro momento de uma aquiescência determinada pelo desejo de superar a exacerbação partidária que via crescer, com a ausência do seu acatado conselheiro numa emergência semelhante, quando ainda não fora reconhecido o seu trono nem pelas potências aliadas, nem muito menos pela antiga metrópole. Os da facção adversa aos Andradas tinham igualmente prestado seu apoio à solução monárquica, mas eram em suma demagogos contrários a uma coroa bem provida de prerrogativas e de preferência pautavam seu modelo pelos modelos peninsulares, execrados pelos que conservavam o respeito da autoridade tradicional.

Ainda era cedo para nutrir o soberano receios de tutela. As representações em favor da reintegração dos ministros demissionários atingiram pelo esforço dos seus amigos consideráveis proporções; a fraseologia apologética desmanchou-se: os Andradas eram os Franklins brasileiros, os anjos tutelares da regeneração política, a única âncora de salvação do Império, os Atlas que carregavam nos seus ombros o peso da república, os traumaturgos da independência. "O Imperador pareceu qual César circunvalado no Capitólio" - é como Melo Moraes define a situação.

O gosto pelos pronunciamentos militares, introduzido quando o constitucionalismo português se estendeu ao Brasil, fazia com que fossem de temer novas manifestações dessa índole e se por um lado o democrata Nóbrega era popular entra a tropa, por outro os amigos dos Andradas não se descuidaram de chamar a si oficiais da guarnição para que se juntassem as petições respeitosas dirigidas ao soberano para repor nas suas pastas os ministros "beneméritos da pátria" e punir os conspiradores desleais, que não tinham hesitado em semear a desunião na alta esfera governativa.

O povo seria antes sincero no apego que evidenciou por nomes feitos, cuja obra histórica era visível mesmo aos olhos dos ignaros, e o Imperador não foi de encontro aos seus próprios sentimentos anuindo ao que dele reclamavam. Segundo narra a Gazeta do Rio de Janeiro (298), ao ir a casa de José Bonifácio, que encontrou deserta, e ao ver das janelas a "turba imensa que se apinhava e que mais e mais se aumentava, resolve ir de novo pessoalmente não já com motivos próprios, mas com motivos gerais da necessidade pública, debelar a pundonorosa resistência, que até ali havia encontrado naqueles ânimos por extremo sensibilizados".

Saiu o Imperador, acompanhado pela Imperatriz, em demanda do retiro do seu ministro; seguia-os grande magote popular. Em caminho, na rua da Glória, encontraram-se com outro magote que entre aclamações - em charola, escreve com pouca gravidade o cronista Melo Moraes - trazia para a cidade os dois Andradas triunfantes. Vinham ambos a cavalo e Dom Pedro apeou-se do carrinho para abraçar José Bonifácio e o irmão e perguntar ao primeiro se não havia previsto bem a oposição popular à sua saída?

Porto Seguro, sempre hostil aos Andradas, quer que o encontro com o casal imperial tivesse sido casual e descreve, com intuito de ridicularizar, o espetáculo do ministro reintegrado debulhado em lágrimas, prostrado de joelhos diante de seu amo na casa do largo do Rocio, esquina da rua do Sacramento, onde este de novo compareceu, e dando expansão ao seu reconhecimento com as mãos levantadas para o céu. Era natural a emoção de José Bonifácio diante do que se passava, mas Mareschal na sua correspondência diplomática não insere traço algum grotesco. José Bonifácio conservou suficiente domínio sobre si mesmo para declarar da janela, onde apareceu com Dom Pedro, que só aceitava a reintegração com a condição de serem punidos os culpados, e o seu reconhecimento para com o soberano que o estava por tal modo distinguindo traduziu-se nos vivas que soltou e a que o povo correspondeu com júbilo. Vivam Pedro primeiro, segundo, terceiro, quarto, bradou ele, aludindo ao Pedro sem segundo dos democratas (299).

O gabinete recompôs-se com os dois Andradas e Caetano Pinto, que partilhou das ovações, continuando os dois novos ministros da guerra e marinha. Como intendente geral da polícia ficou provisoriamente o desembargador França Miranda. José Bonifácio queria sobretudo ver-se livre dos seus adversários, desembaraçar-se de uma oposição incômoda porque tendia a colocar sobre o tapete da discussão, apesar do protesto escrito de Ledo, de que trabalhara com afinco pelo sistema monárquico, a essência mesma do regime que o paulista ajudara tanto a fundar. No decreto de reintegração, de medo de parecer haver cedido ao povo com desprestígio da coroa, o Imperador afirma antes a sua prerrogativa constitucional de nomear ou demitir livremente os seus ministros, segundo as conveniências do serviço público, e até declara que aceitou as demissões solicitadas pelos dois Andradas e pelo seu amigo Caetano Pinto para que o povo pudesse pronunciar-se a respeito, "fazendo justiça à probidade e à virtude" e condenando "os autores desta vil cabala com que eles pretendiam engrandecer-se e promover tumultos, dissenções e finalmente a guerra civil".

É claro que semelhante consulta ao povo não passava de um pretexto para dar realce à concessão, que só se não pode dizer arrancada porque da parte de quem a fez, havia para isto boa vontade. Melhor fora ter deixado aí as coisas. José Bonifácio devia ver logo, aliás, que uma devassa não daria o resultado buscado, por não ser possível chegar a provar nada de positivo. O crime, se o havia - crime político bem entendido -, estava nas intenções mais do que nos atos, e os acusados eram pessoas de recursos intelectuais, que sabiam defender-se, sem falar na roda que lhes seguia o parecer.

O governo estava de antemão certo de encontrar resistências ao pôr em prática sua perseguição. Entretanto não esmoreceu, denunciando por uma portaria dirigida a todas as juntas provinciais e câmaras municipais o "partido anarquista descoberto pelo povo e pela tropa a 30 de outubro". A portaria não só apontava o perigo, como indicava os meios de prevenir-lhe os efeitos mediante a vigilância e prisão dos emissários despachados do foco da conspiração, cujos dirigentes eram mandados deter apesar de exporem - Nóbrega além de Ledo - a razão que os assistia em arredarem de si as acusações de meditarem e promoverem a ruína de instituições de comum acordo adotadas. Nóbrega foi levado para a fortaleza de Santa Cruz; outros, como Ledo e José Clemente, homiziaram-se no primeiro momento, o que constituía para José Bonifácio a melhor das soluções porque, conforme escrevia Mareschal para a sua corte (300), é fácil verificar pela justa ansiedade do ministério de pôr os acusados à distância que o processo a nada pode conduzir.

Pessoalmente Dom Pedro ganhava em relevo pela chegada à Bahia nos começos de novembro dos reforços de Lisboa, que se supusera de vez suspensos. Eram socorros militares, que iam dar novo alento a resistência portuguesa em São Salvador e navais, que representavam uma ameaça para toda a costa. O Império sentia-se falho de meios de ação e, com receio de que os dos contrários ainda se acrescessem com as tropas portuguesas de Montevidéu, onde Lecor, fiel a Dom Pedro, fazia causa a parte, tendo estabelecido em São José seu quartel-general, mandou o governo do Rio de Janeiro, a 14 de novembro, os transportes necessários para conduzi-las de lá para a Europa.

O governo do Rio de Janeiro sentia-se porém em dificuldades no fixar sua atitude para com Portugal e politicamente, neste terreno caminhava às tontas. Pensara, informava Mareschal para Viena, em declarar abertamente a guerra contra a ex-metrópole, outorgar cartas de corso e tratar com toda severidade os portugueses residentes no Brasil que fossem hostis ao Império, assim se prevenindo, pelas medidas prescritas, contra os constitucionais portugueses e espanhóis que as perturbações políticas nos seus respectivos países fizessem porventura emigrar para a América. Um senso mais vivo das realidades depressa convencera porém o ministério brasileiro de que uma declaração de guerra era ociosa, desde o momento em que existia um estado de hostilidades; que a instituição de corsários produziria prejuízos comerciais de que sobretudo se aproveitariam aventureiros estrangeiros, mas não contribuiria para se formar uma marinha nacional; e que providências opressoras sem uma razão de salvação pública tornariam odioso o governo e só fortaleceriam o partido democrata (301).

* * *

A devassa foi reclamada pelo próprio Ledo na representação que dirigiu a Dom Pedro a 2 de novembro e na qual censura seus adversários no poder pelo esquecimento que suas arbitrariedades evidenciavam das fórmulas e dos princípios constitucionais, necessários para chamar ao grêmio da união política, "que ainda flutua nos embates da contradição entre os povos das províncias" aquelas "cuja acessão ao nosso sistema não está geralmente decidido". Os acontecimentos de 1823 e 1824 vieram depressa dar razão ao leader democrata, que no referido documento desafiava seus perseguidores a exibirem "o corpo de delito sobre que assenta sua nojosa e negra inculpação a tal respeito".

Ledo achava que ele era quem tinha razão de insurgir-se contra práticas anárquicas dos detentores da autoridade, como por exemplo as "assembléias tumultuárias", segundo denomina os ajuntamentos populares promovidos contra ele e seus amigos defronte da casa onde se reunia o senado da câmara. Requerendo uma ação criminal, conforme a lei, a fim de ser apurada sua conduta, mostrava ele impavidez física e moral, não se deixando acobardar pela atitude de manifesta parcialidade adotada por Dom Pedro para com o seu ministro, de quem dissera o soberano ser o dia de triunfo e caber todas as homenagens, recusando por se permitir que o povo puxasse o seu carro desde o ponto do encontro com José Bonifácio até o coração da cidade.

A devassa foi no próprio dia mandada abrir, mas o governo como que antecipava seu resultado qualificando as pessoas contra quem ia proceder o inquérito dos representantes do poder judiciário de "facciosas e perturbadoras da ordem" - "já infamadas na opinião pública" na expressão de Cairu. E sem esperar mesmo pela palavra da justiça e sem que se os pudesse argüir de flagrante delito, foram deportados para o Havre, a 20 de dezembro, Nóbrega, José Clemente, afinal encontrado, e o cônego Januário da Cunha Barbosa, de regresso de Minas. Ledo conseguiu permanecer acoutado até poder embarcar às ocultas para o Rio da Prata numa embarcação sueca, pela proteção do respectivo cônsul que assim o livrou das tramas dos aduladores dos Andradas e das violências dos capangas oficiais.

A vários outros se estendeu a malevolência do governo, inculpando-os de quererem que fosse adotada provisoriamente a Constituição Portuguesa quase integral enquanto os representantes brasileiros não elaborassem a do Império. Os acusados foram contudo declarados afinal inocentes por falta de provas, apesar dos esforços do juiz sindicante para culpá-los, aduzindo adrede fatos que os perseguidos taxaram de "desfigurados e falsificados" (302).

O bom senso aliás indicava que os mesmos que a 12 de outubro tanto se tinham assinalado na aclamação imperial, não se haviam de por dezoito dias depois a conspirar para destruírem sua própria obra. Sua questão era não com o império: na sua representação a Dom Pedro, Ledo até aventa que "os povos querem ser bem governados e não se importam com formas de governo". Ele combatia os Andradas, que Armitage acusa de terem-se tornado arbitrários e intolerantes quando empolgaram o poder (303) .

As testemunhas, visivelmente preocupadas em agradar o poderoso ministro reintegrado no favor imperial, depuseram sobretudo que tinham ouvido este ou aquele Ledo ou José Clemente especialmente desacreditar José Bonifácio, sugerir a conveniência que haveria em derrubá-lo, qualificar de despótico seu governo, aspirar por uma mudança radical em vez do prolongamento do passado. Tudo se cifrava pois em conversas, quando muito em propósitos, não se mencionando propriamente gestos positivos de tentativa armada contra as instituições.

A testemunha mais fidedigna e menos sujeita talvez a influência dos Andradas foi Antônio Teles da Silva, futuro marquês de Resende, fidalgo da casa de Penalva, camarista predileto e amigo dedicado de Dom Pedro. Este falou sem hesitar em conspiração tramada nos clubes secretos em que, sob a denominação de "franco-maçonaria" se reunia o "nefando partido, cujos infames membros tinham por fim a destituição do governo monárquico no Brasil, pela introdução dos princípios demagógicos e anárquicos que se contém nos estatutos das sociedades dos carbonários, radicais, comúneros e cavaleiros de liberdade, nomes da mesma seita em diferentes países, que parecendo-se com a sociedade dos pedreiros livres nas exterioridades, diferem sumamente nos fins e alvo a que tendem".

Teles da Silva era porém duplamente suspeito para o caso: em primeiro lugar, como ele próprio declarou no seu depoimento, tinha profundas queixas dos acusados, os quais haviam pretendido macular sua reputação por motivo de discordância de opiniões políticas; em segundo lugar tal discordância era irreconciliável, porque Teles da Silva aborrecia de coração O sistema constitucional, tanto que se referindo à assembléia representativa do Brasil que se ia reunir, não diz que ela teria que elaborar a lei orgânica da nação, mas sim que havia de coordenar as leis fundamentais do Estado. No seu entender eram entretanto os contrários que ignoravam o verdadeiro espírito constitucional e advogavam a adoção de princípios quiméricos "inconjugáveis com a forma de um governo monárquico e que, apresentando uma aparente perspectiva de beleza considerados teoricamente, são realmente inexeqüíveis na prática".

O mais que se apurou contra os democratas foi que se declaravam avessos a despotismos e que não queriam absolutamente ser tidos como corcundas. No fundo vê-se a intenção dos seus inimigos de irremediavelmente malquistá-los com o Imperador; insistindo em que, por ocasião da publicação dos primeiros decretos das Cortes, o pensamento dos democratas não foi resistir, nem representar em contrário, antes obedecei; organizando-se de acordo com as recomendações de Lisboa uma junta fluminense, como as havia noutras províncias, tendo esta embora o Príncipe por Presidente.

José Clemente, a figura central do Fico, teria pois apenas sido um convertido pelo "grande concurso dos leais habitantes do Rio de Janeiro, que o constituíram órgão de seus puros sentimentos" (depoimento de Teles da Silva). Também pelo que toca à aclamação imperial, a cooperação dos democratas teria sido nula desde o momento em que tal era a vontade geral das populações, manifestando-se em São Paulo, em Pernambuco, nas Alagoas e noutros pontos "restando unicamente dar aos desejos dos povos uma forma legal". Ainda assim, recordou a testemunha, em desabono dos acusados; que no conselho de Estado do dia 11 de outubro, Ledo opinara que o príncipe daria prova da sua coerência com os princípios do liberalismo que professava, deferindo o uso do título imperial para tempo posterior a instalação da Assembléia Geral e recebendo portanto dela, que era a representação nacional, a investidura da sua dignidade.

Teles da Silva e os que com ele comungavam, enchiam-se de horror, ou pelo menos assim o diziam, com a doutrina aventada no Correio do Rio de Janeiro, de que os reis eram "meros administradores do tesouro das graças e poderiam ser argüidos e até refutados réus pela nação quando se demasiassem na distribuição das graças".

Algumas testemunhas secundárias falaram em tratarem os conspiradores "de arranjar uma República" (depoimento do tenente-coronel Couto de Meneses, natural de Braga), tirando-se do Brasil o tigrezinho ou o leãozinho, porque ambas as denominações, aliás distintas na hierarquia zoológica, eram dadas a Dom Pedro. As provas porém dessa intentada mudança de regime não passavam do juramento prévio e incondicional da Constituição que fosse elaborada pela Assembléia e da retirada do ministério dos dois Andradas, a qual os liberais tanto almejavam. O padre José Cupertino de Jesus, paulista residente no Rio de Janeiro, depôs mesmo que num Jantar em casa do cônego Januário, a que assistia Lêdo, ambos estes corifeus democratas declararam "que não convinha por enquanto outro governo senão o monárquico constitucional, e que só depois de aclarado o povo poderia admitir-se o governo federativo, à imitação do da América Setentrional, atenta a nímia distância entre umas e outras províncias".

Isto é o que era o lógico e razoável, o que estava de acordo com as circunstâncias que aconselhavam de preferência a adoção de um regime monárquico, posto que assegurando por meio de garantias liberais os direitos políticos dos cidadãos e os foros soberanos da nação. É possível que Ledo tivesse de si próprio a opinião que exarava quando se gabava de que ele e José Clemente seriam capazes de revolucionar um reino uma testemunha chegou a dizer ao mundo inteiro -, mas não ficou demonstrado que ele visasse mais do que a queda dos ministros e que se abalançasse até a queda do príncipe que fora mais nas suas mãos do que um instrumento de liberdade, que fora um agente consciente dessa liberdade. Na folha democrática pelo menos, na frase da testemunha Vasconcelos Drummond, "as máximas revolucionárias apareciam com honestas cores".

A 21 de abril de 1823, declararia o imperador, ao remeter a devassa ao chanceler servindo de regedor da Casa da Suplicação, que "não queria ver a inocência oprimida, nem o Império do Brasil perturbado com facções". Era o ocaso do favor dos Andradas que se anunciava.

* * *

Prosseguira entrementes o governo imperial a cercar-se dos atributos da soberania. A 10 de novembro era o corpo diplomático estrangeiro na capital notificado da adoção da bandeira e do tope do Brasil, sem que entretanto lhe houvesse sido previamente participada oficialmente a aclamação. No mesmo dia3o4 distribuía o imperador aos regimentos da guarnição do Rio de Janeiro o novo emblema da pátria independente, depois de benzido pelo bispo capelão-mor; ratificando-se, por ato de piedade religiosa, diz Melo Moraes, a provisão régia de 25 de março de 1646 pela qual Dom João IV o fundador da dinastia de Bragança, tomou Nossa Senhora da Conceição por padroeira do reino de Portugal e seus domínios.

Dom Pedro, invocando sua qualidade de generalíssimo, pronunciou nessa ocasião uma alocução vibrante, e os navios de guerra da Inglaterra e da França ancorados no porto do Rio de Janeiro, saudaram com os tiros das suas peças a bandeira imperial içada no tope de proa, ato que contudo não envolvia o reconhecimento por parte dos seus governos e não passava de uma cortesia do hóspede estrangeiro para com o único pavilhão nacional desfraldado.

Os democratas, segundo o depoimento do capitão-mor José Joaquim da Rocha, "queriam pôr em Dom Pedro a coroa, cingir-lhe a espada imperial, revesti-lo de todas as exterioridades magníficas, porque reverte para a nação tudo quanto se lhe dá" e ele não passava a seu ver do mandatário executivo da mesma, à qual cabia até, por meio dos seus representantes, conceder as recompensas em vez do imperador; a quem os serviços públicos eram prestados como ao chefe do Estado e não a título pessoal. Por isso a opinião democrática não aprovou a criação da Ordem de Cavalaria do Cruzeiro, simultânea da coroação, bem como o início da formação de uma classe aristocrática pela concessão do título de barão da Torre de Garcia d'Ávila.

A coroação teve lugar a 1.º de dezembro, aniversário da restauração portuguesa do senhorio da Espanha associada com a Casa de Bragança, e foi um misto do cerimonial usado na sagração de Napoleão em Notre Dame e dos imperadores da Áustria em Frankfort, combinação portanto de tradicionalismo e de modernismo revivido dos romanos. Imitou-se também um pormenor da coroação dos reis da Hungria, consistindo em fender o ar com o gládio, alusão nacional ao título de Dom Pedro de defensor perpétuo do Brasil, sua primeira investidura popular tornada hereditária na sua família, o que a despojava do primitivo caráter democrático se é que a não queriam mesmo converter, no dizer de Mareschal305, numa arma contra a democracia.

O Imperador apareceu vestido de uma túnica de seda verde golpeada, calçado de botas de montaria com esporas e ostentando um manto de veludo verde forrado de cetim amarelo, bordado de estrelas e com uma guarnição de ouro. Não se julgando que a nota nacional fosse suficientemente fornecida pelos diamantes mineiros da coroa e no intuito de remontar até a nota indígena pela exibição da arte plumária dos aborígenes, ajuntou-se a indumentária imperial uma romeira de papos de tucano.

A cerimônia dividiu-se entre o Paço da Cidade, com as salas forradas de verde e ouro, e a capela imperial, ligada àquele por uma galeria adornada e alcatifada por onde o povo viu desfilar a corte - à frente os arqueiros com suas alabardas, logo os músicos com seus tímbales e charamelas, depois o rei de armas, arauto e passavante, em seguida procuradores gerais das províncias carregando as insígnias imperiais, moços fidalgos fazendo sua aprendizagem, dignitários novos de velhos cargos, como o de condestável, preenchido pelo conde da Palma. Atrás do pálio, sob cujo docel caminhava o soberano e cujas varas eram sustentadas por outros procuradores das províncias, como que a afirmarem a coesão nacional operada pelo império, marchava o senado da câmara, rematando o préstito nova guarda de arqueiros.

Após o ritual eclesiástico, precedido de um sermão de frei Sampaio, que tomou por tema a unção de Salomão, e concluído pelo Te Deum das solenidades festivas, volveu o cortejo ao Paço, onde o Imperador, sentado no trono, firmou o juramento pronunciado sobre o evangelho, ao pé do altar, e depois repetido ao povo, de uma das varandas, como sendo o cumprimento do que ele prometera. Esse juramento era de zelar a religião católica apostólica romana, sustentar e defender os direitos da nação, manter e observar a constituição que a Assembléia Legislativa elaborasse, contanto que ela fosse digna dele e do Brasil.

Ao efetuar-se a coroação que no dizer de Mareschal despertou vivo entusiasmo, já se tinha recebido a notícia do êxito do combate de Pirajá travado a 8 de novembro e que constituiu uma vitória das armas brasileiras sobre as portuguesas na terra baiana. O pavilhão imperial já tremulava portanto aos olhos dos brasileiros, nesse instante, aureolado de glória militar, se bem que algumas nuvens maculassem o azul do céu da independência, que todavia ainda se não enfarruscara.

O imperador recebera a unção sagrada que o fazia aos olhos dos monarcas europeus soberano legítimo e aos seus próprios olhos e do seu povo plus que roi: para que florescesse verdadeiramente um império, faltavam porém as condições necessárias. Sobre que fundamentos havia de descansar um regime de essência monárquica posto que constitucional, onde não existiam uma nobreza privilegiada, um exército disciplinado e um clero sectário do direito divino dos reis? O clero brasileiro era das classes nacionais a mais liberal; o exército só se conseguia reforçar com mercenários; a nobreza não se trazia do berço, antes se conquistava no decorrer da existência, deixando de formar uma casta para significar uma distinção individual. O Império foi pois de fato desde o seu início uma democracia coroada, em que o executivo começou por prevalecer e o legislativo acabou por predominar.

NOTA COMPLEMENTAR

Entre os papéis do arquivo particular do autor, desencaixotados em Washington depois de terminado este livro, acham-se apontamentos provenientes da leitura da correspondência diplomática inglesa nos anos de 1820 e 1821, conservada no Record Office de Londres, os quais confirmam em vários pontos os dizeres deste livro e que por isso pareceu acertado resumir nesta nota complementar, subordinando-a aos tópicos mais importantes.

REGRESSO DO REI OU IDA DO PRÍNCIPE

Assim, se vê claramente que a Inglaterra desejava que fosse posto cobro a situação anormal de Portugal que produziu a revolução de 1820. O despacho de 25 de maio de 1820, dirigido ao ministro Thornton, reza, a propósito do zelo com que o governo britânico proclamava meses antes do movimento constitucional de agosto, mas já depois da sedição de Cadiz que foi a 1.º de janeiro, ocupar-se da segurança do domínio europeu da monarquia portuguesa:

"Não ocultareis contudo a S. M. a indispensável necessidade de fazer imediatamente da sua parte os arranjos necessários a fim de que, caso sua majestade não possa em pessoa voltar já para Lisboa, ao seu governo em Portugal sejam atribuídas a relevância e a popularidade de ter à sua frente um dos membros da família real. O caráter provincial que a presente condição faculta ao espírito de uma nação de há muito acostumada a considerar-se a sede do Império, é de natureza a expor os interesses de S. M. F. aos mais sérios perigos".

O despacho informava que Palmela ia tratar deste assunto, cumprindo portanto ao ministro britânico não se antecipar, se bem que os deveres internacionais derivados dos tratados públicos não permitissem ao governo de Londres guardar o silêncio, devendo seu representante diplomático tornar bem patente que a garantia de integridade territorial a que a Grã-Bretanha se obrigara para com Portugal se prendia essencialmente a uma solução satisfatória de uma tal questão, tanto mais quanto não fora concedida tendo em vista um estado de coisas tão pouco consoante os sentimentos e os interesses do povo português".

A 31 de julho de 1820 comunicava Thornton para Londres que na audiência que obtivera do rei para falar-lhe dos negócios da Espanha e das instruções mandadas a Sir Henry Wellesley lhe apontara a necessidade e conveniência de volver a visitar seus domínios europeus. "Esta sugestão, escrevia o ministro, foi acolhida por S. M. com sua habitual complacência, mas num absoluto mutismo, sem a menor observação". Os negócios da Espanha tinham, na opinião de Thornton, importância bastante para que devesse o rei refletir seriamente em ir pessoalmente ou mandar o filho para Lisboa, mas "o caraterístico do governo português consistia em ser muito sensível às primeiras impressões e gradualmente recair na mesma norma de proceder, desde que aquelas entrassem a desvanecer-se ou a tornar-se familiares, a menos que não fossem renovadas por ulteriores impulsos".

Segundo o ofício de Thornton de 24 de outubro tratou-se com maior insistência, por ocasião da chegada ao Rio de Janeiro das primeiras notícias de Lisboa, na ida do Príncipe Real, a qual não constituía portanto uma novidade do momento, antes fora uma hipótese anteriormente formulada. O ministro britânico achava este alvitre o mais razoável porque à distância ficava o rei mais livre de aceitar ou não os acontecimentos e, ao expor a Dom João VI o seu modo de ver, este interrompeu-o confirmando que "sua sanção não poderia assim ser arrancada pelas exigências tumultuárias de um exército amotinado, como na Espanha, ou com a baioneta nas goelas, como ocorreu ao rei de Nápoles". Oportunamente poderia o monarca dizer o que julgava infração aos direitos e prerrogativas da coroa ou invasão de uma classe social por outra. Haveria assim o ensejo de elaborar-se uma constituição, cuja modalidade a um tempo assegurasse a prosperidade e as liberdades do povo sem o sacrifício do que fosse essencial à conservação da monarquia.

No próprio dia 24 teve o ministro inglês outra entrevista com Dom João VI, a qual relatava num ofício do dia imediato. Prometeu-lhe por essa ocasião o Rei que lhe mandaria notícias definitivas das suas resoluções a fim de que ele as transmitisse à corte inglesa, já tendo contudo deliberado aceitar a adesão da regência de Lisboa à reunião das Cortes. Sobre a ida do Príncipe Real é que o rei se mostrava hesitante. Insinuou-lhe Thornton que a junta governativa de Lisboa devia ser quase inteiramente mudada, cercando-se o Príncipe Real, cabeça da nova regência, de homens de talento e comprovada fidelidade as instituições, como Palmela, os quais indicariam o bem a ser feito e os males a serem remediados em Portugal.

Neste ponto atalhou o rei: "Bem está; mas se o povo o aclamar rei a chegada?" - o que não deixava de ser possível. "Repudiei veementemente que tal eventualidade pudesse ocorrer - escreve Thornton haver respondido - não a julgando absolutamente provável em vista da grande dedicação à pessoa do soberano. S. M. persistiu todavia em afirmar a possibilidade dela, dizendo que seu povo poderia acusá-lo de falta de palavra, não tendo voltado para Portugal, de acordo com sua promessa, quando os negócios da Europa volveram a uma condição de tranqüilidade".

Para Thornton esse temor real fornecia a chave do enigma e assim o comunicava ele a lord Castlereagh, ajuntando que os conselheiros brasileiros do rei ou aqueles que não desejavam ver partir o Príncipe com receio de perderem por completo sua influência junto a este, estavam envidando esforços para incutir no Rei semelhante sentimento de ciúme; do qual a sua índole o tornava suficientemente suscetível.

Quatro dias depois declarava El-Rei a Thornton ser sua intenção positiva mandar seguir Dom Pedro para Portugal: entretanto não sabia ele então qual dos filhos iria, porque também se falava em Dom Miguel, ou se iria mesmo um dos dois. O que é verdade é que até esse momento o Rei ainda não dissera a Dom Pedro que nutria qualquer intenção de mandá-lo como seu representante. Sua natural irresolução, que se fosse menos se chamaria prudência, era justamente na ocasião estimulada pelas notícias da intervenção austríaca na Península Itálica por motivo da revolução de Nápoles, dando-lhe a esperança de que a Santa Aliança interviria igualmente na Península Ibérica. A Gazeta do Rio de Janeiro reflete essa persuasão.

Com a chegada de novas notícias de Lisboa, entrou Thornton a urgir El-Rei a despachar logo o seu herdeiro, tomando as medidas rápidas e urgentes que o caso exigia e que ele tinha vindo protelando, pois que Beresford já fora ao Brasil nesse ano, segundo o ofício secreto e confidencial de Thornton de 31 de maio, no intuito de descrever a El-Rei a deplorável situação do reino de Portugal e a necessidade imperiosa de melhorá-la: o que a regência considerava ser para ela uma tarefa impossível e apenas exeqüível regressando Dom João VI ou indo encabeçá-la o Príncipe Real.

Beresford confessava não alimentar esperança de conseguir quer uma quer outra coisa, parecendo-lhe que na primeira se não devia porventura pensar então, nem mesmo jamais, apesar do matreiro do rei afetar saudades de Portugal, que na verdade não experimentava. Thornton tampouco julgava, realizável a segunda hipótese, já pelo ciúme que ele reputava constitucional da monarquia portuguesa, já pelo caráter mesmo do monarca, que não gostava de se ver desamparado e muito menos de abdicar da sua autoridade.

Pretendia Beresford, antes que a revolução de agosto lhe cortasse os planos, ser ele o verdadeiro delegado real. Não se contentando, como no Egito moderno lord Kitchener a princípio, com ser somente o Sirdar ou comandante em chefe do exército, aspirava a participar da autoridade civil, e participar nesse caso significaria encarná-la. Seria ele deste modo o que nas margens do Nilo foi lord Cromei; com voz preponderante no capítulo acerca de todas as matérias do serviço público. Para ist9, que era do interesse da Inglaterra, consentia o governo britânico em que ele se naturalizasse português.

O que Beresford particularmente buscava era a exclusão prática da regência de D. Miguel de Forjaz, patriota mais rebelde com quem se não entendia, alegando para tanto que regentes havia que exerciam simultaneamente outras funções, as quais lhes permitiam abusarem e oprimirem a população. Havia portanto necessidade de uma medida de incompatibilidade, menos para ele bem entendido. E assim aconteceu: ao passo que a D. Miguel de Forjaz era vedado votar nos assuntos militares, contrariando as idéias de Beresford, este adquiria por uma nova carta a suprema direção do departamento da guerra e voz no conselho de regência, onde passaria a ter assento sem ser propriamente um dos governadores do reino. Tal distinção era-lhe conferida em resultado mesmo do posto com que foi galardoado, de marechal-general junto à pessoa do rei, dando-lhe o direito de comunicar-se diretamente com o soberano, sem intervenção de qualquer ministro.

Dom João VI não suportaria de boa mente junto a si essa espécie de tutoria, mas não desgostava de ter longe, ao lado da regência que o representava, um fiscal de tamanho prestígio. O conde dos Arcos hostilizara as pretensões de Beresford, favorecidas pelo contrário por Tomás Antônio, confidente do monarca. O Rei entrara a desconfiar de Arcos por ser este o conselheiro de Dom Pedro e Thornton chegava a informar para Londres ter sabido de muito boa fonte que aquele ministro não tivera conhecimento do teor das instruções expedidas à regência de Lisboa pelo brigue português de guerra.

Thornton não formava um alto conceito da personalidade de Arcos como homem público. Nas suas palavras não possuía ele, nem o talento superior que poderia induzir El-Rei a dominar seus preconceitos pessoais, nem sequer influência bastante sobre o seu afeto para convencê-lo de repudiar semelhantes preconceitos. Entre impulsos agindo em sentido oposto, receava o ministro britânico que Dom João VI, cujo caráter, dizia ele, é feito de irresolução e incerteza, não adotaria qualquer decisão segura ou pronta ou mesmo decisão alguma, a não ser sob a ação de uma nova e violenta emergência em que toda decisão seria porventura tardia.

No tocante à ida do príncipe não pode em rigor dizer-se que EI-Rei vacilava, pois que sempre lhe foi intimamente adverso. Ainda no seu ofício de 18 de novembro de 1820 escrevia Thornton que a menção que dessa partida fizera dias antes fora pouco calorosamente acolhida, sugerindo-lhe o fato o seguinte comentário: "Seja que as pessoas que convivem de perto com S. M. tenham inoculado no seu espírito um crescente ciúme de S. A. Real, seja - o que é mais provável - que os próprios acontecimentos de Portugal tenham avolumado suas apreensões de que o povo se valha da presença do Príncipe para aclamá-lo rei, a verdade é essa. EI-Rei não me deu ensejo algum de supor que adotara definitivamente a resolução de mandar S. A. Real para Lisboa".

Dom João VI ressentia-se aliás da interferência estrangeira nos assuntos que considerava domésticos.

GARANTIA BRITÂNICA

Dizendo-lhe Thornton, no mês de novembro, que aguardava pelo paquete próximo instruções do seu governo sobre as medidas que ao governo português do Rio urgia tomai; El-Rei insinuara sua esperança ou desejo ou persuasão (não pude apanhar a expressão precisa) que não havia da parte do governo britânico intenção alguma de intervir nos negócios internos do reino". A esta observação, feita de um modo frio e seco se bem que despido de mau humor, diz Thornton, que julgou do seu dever responder que em certo sentido nunca poderia ser intenção do seu governo imiscuir-se na administração portuguesa; mas que no espírito de boa amizade e tendo em vista a paz e bem-estar do país amigo, julgava ser obrigação do governo do seu soberano oferecer o seu parecer nas conjunturas críticas sobre as medidas que se afigurassem corresponder melhor aos grandes fins.

Acrescenta Thornton que não quis dizer que a garantia concedida pela Grã-Bretanha a Portugal justificava qualquer interferência por parte do seu governo. Nem poderia em rigor afirmá-lo, porquanto o despacho de Castlereagh, de 25 de maio, punha limites aquela garantia, nele se recomendando, por meio do representante britânico, a D. João VI que se não aproveitasse dos embaraços da monarquia espanhola para promover seus próprios interesses na América, sob pena de concitar contra si os soberanos aliados e até provocar um ataque contra Portugal, o qual colocaria o governo britânico em situação mesmo de hesitar quanto à propriedade em semelhante caso de tornar efetiva a sua garantia. Entretanto admitia o gabinete de Londres o fracasso da mediação assumida pela Santa Aliança entre os Reis de Portugal e da Espanha e não atribuía a culpa desse malogro ao rei de Portugal.

A 15 de novembro a atenção de Thornton era chamada pelo Foreign Office para dois tópicos importantes: o primeiro, que a corte portuguesa não fundasse sobre o que se denominava a Santa Aliança qualquer expectativa que El-Rei pudesse graças a ela e por meio dela reconquistar Portugal aos liberais, sendo tal recurso pura ilusão; o segundo, que não supusesse jamais El-Rei que a garantia britânica, se aplicava à questão de autoridade que se levantara entre o soberano e seus súditos. Não se podia a esse propósito esperar que a Grã-Bretanha, na hipótese por exemplo da interferência de uma terceira potência como a Espanha, chamasse a si todo o ônus de preservar os interesses reais contra seu próprio povo e contra os estrangeiros.

Castlereagh dizia pretender tornar patente a indispensável necessidade do rei de Portugal conformar-se com o que pudesse salvar do naufrágio do seu próprio poder, por ele exposto a uma completa destruição pela sua direção dada e por um injustificável ciúme de prestígio britânico, gerando indiferença aos conselhos de Londres. Tal aviso era dado a Thornton, ou antes lhe era reiterado, a fim de que os esforços envidados pelo governo britânico junto a corte de Madri no sentido de mantê-la numa atitude correta, fossem pela corte portuguesa interpretados de modo a empenhar a solicitude inglesa até o ponto de impor pela guerra as advertências feitas.

Achava o Foreign Office preciso firmar este ponto, pois que por parte de algumas das autoridades portuguesas se notava como que um desígnio fixo de considerar por um prisma exagerado o proceder dos agentes espanhóis, lançando assim os fundamentos de uma situação em que a Grã-Bretanha, em vez de uma auxiliar, como os tratados a estabeleciam, aparecia como o elemento principal da defesa de Portugal, não contra uma invasão de fora, mas contra movimentos revolucionários de que os compromissos britânicos nunca tinham cogitado.

Ficava pois destarte previamente resolvido que a garantia britânica não cobria a questão da separação do Reino Unido, uma vez que fosse ela posta. Thornton achava que a revolução espanhola pouco perigo oferecia de produzir na América Portuguesa distúrbios políticos para os quais faleciam os elementos. No entanto, da sua correspondência mesmo se deduz que uma reação constitucional poderia surgir a qualquer momento além-mar, pois que o assunto já estava fornecendo tema a palestras e discussões que eram muito fora dos hábitos correntes, só lhes podendo emprestar vigor o interesse crescente dos novos acontecimentos na Península e a mal calculada ansiedade do governo em empatar sua divulgação, e sendo notório o horror com que o rei ouvia ou pronunciava o nome de constituição.

Quando se deu a revolução portuguesa, Thornton não achou a princípio muito visível o efeito dela sobre o espírito público no Brasil, mas calculava ser grande, no dizer do seu ofício de 18 de novembro. Apenas era difícil orçá-la exatamente quem quer que não mantivesse um intercurso familiar e mesmo confidencial com a gente da terra. Do que não havia dúvida era que o proceder do governo, reprimindo a circulação das novas da Europa, era pouco judicioso porque suscitava despeitos e ressentimentos, e era além disso ocioso porque as notícias transpiravam sempre das cartas recebidas e das conversações que as propalavam.

A INFILTRAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO E O FUTURO DO REINO UNIDO

A implantação do constitucionalismo era fatal além-mar e a incerteza só podia ocorrer quanto ao aspecto, que assumiriam num futuro imediato as relações entre os dois reinos. Castlereagh oficiava a 17 de outubro de 1820 ao representante britânico em Portugal, Ward, que Palmela suspeitava, por uma conversa que tivera com dois membros proeminentes da junta liberal portuguesa, que não havia um verdadeiro desejo que a família real ou qualquer membro dela volvesse a antiga sede da monarquia. O constitucionalismo português melhor agiria por si só.

Nas cartas de Dona Leopoldina ao marquês de Marialva, de que é possuidor o Sr. Dr. Alberto Lamego, se encontra o reflexo da incerteza especialmente reinante acerca do porvir da união luso-brasileira. A 20 de setembro de 1821 mostrava-se ela satisfeita da partida, que parecia então dever pôr termo à regência de Dom Pedro. A 9 de junho, quatro dias depois do conhecido pronunciamento, escrevera a Princesa Real a Marialva que melhor era guardar em Paris os livros de ciências naturais que encomendara, pois que as circunstâncias, "qui me rendent bien, bien melancholique", lhe aconselhavam isso, "jusqu'à ce que je puisse vous assurer quelle est notre vraie patrie".

As tropas portuguesas provocavam quase diariamente no seu dizer motins revolucionários, não se podendo prever com segurança o desenlace do terrível turbilhão constitucional, o qual ela considerava perigoso e de um funesto prognóstico apesar de confessar-se "coupable de sentimens libéraux". Sua simpatia pela terra de que seria imperatriz já se denunciava, achando que o povo e exército do Brasil se compunham de súditos fiéis e excelentes, a quem a força impunha silêncio. A 26 de março de 1822 mandava ela ordem para a remessa dos livros para o Rio de Janeiro e ajuntava uma grande lista de obras de história, geografia, viagens e história natural. O Brasil seduzia o seu gênio estudioso, que Dom Pedro II herdou, como um terreno fecundo, mas inexplorado. A 10 de maio a sua carta a Marialva expressava positivo contentamento de poder devotar-se ao adiantamento de um país que sofria do mal da rotina e carecia de poder livremente expandir sua atividade, para isto acolhendo sem inveja e sem ódio - tais eram suas expressões - o concurso dos estrangeiros.

Eis como Dona Leopoldina se manifestava: "Voilà une vraie fortune que notre séjour au Brésil est décidé, pour ma maniêre de voir et penser en politique, c'est l'unique moyen de conserver la monarchie portugaise de sa chute totale; je puis vous assurer que je suis parfaitement contente, étant reunie a tous les objets que j'adore, et sachant par les temoignages qu'on nous prodigue par toute part, que le peuple brésilien est heureux voyant les efforts et sacrifices, que mon bien aimé Epoux fait pour le bien et tranquillité publique, et reunion de toutes les Provinces de ce vaste Empire. Croyez-moi que nous Brésiliens ne serons jamais capables de soufrir les extravagances de la Mère Patrie, et que nous marcherons toujours le chemin de l'honneur et fidelité".

A Arquiduquesa da Áustria identificara-se bem com os destinos da sua nova pátria, do que dava testemunho a última em data das cartas adquiridas pelo referido distinto bibliófilo, na qual, de 26 de novembro de 1822, se nos depara o seguinte começo: "Meu querido marquês! Segundo o seu desejo, vou escrever-lhe como brasileira em nossa amada língua portuguesa..."

 

APÊNDICE

O PAPEL DE JOSÉ BONIFÁCIO NO MOVIMENTO DA
INDEPENDÊNCIA

Conferência publicada na Obra Seleta organizada por Barbosa Lima Sobrinho. INL, 1971.

MEUS SENHORES:

O instinto popular raramente ou nunca se engana. As suas simpatias e antipatias distribuem-se com eqüidade. Não se fez preciso que os estudiosos do passado, acobertando-se com a indulgência da distância no tempo, proclamassem Dom João VI um rei benemérito. O povo já como tal o consagrara, recusando associar-se as chufas que durante um século lhe tem sido dirigidas pelos políticos daquém e dalém-mar, apoiados em historiadores novelistas. No exagero das caricaturas grotescas o bom senso, devia talvez dizer o bom gosto popular, soube descobrir os traços genuínos da sagacidade e da bondade.

O fato é que a memória de Dom João VI vivia cercada de estima quando pretendeu reabilitá-la num assomo de justiça a crítica histórica, que mais não fez do que corroborar uma feliz intuição nacional, da mesma forma que a crítica filológica nobilita as felizes expressões plebéias, concedendo-lhes foros literários. Todos, no Brasil, tiveram a saudade do rei excelente, antes mesmo que ele, constrangido, nos deixasse, e, quase um ano depois, o encarregado de Negócios da França, de quem o governo da regência nutria queixas por desafeto à nova ordem de coisas que se preparava, fazia notar na sua correspondência oficial que os libelos mais descabelados e mais licenciosos saídos dos tristes prelos da Capital - os qualificativos são dele - poupavam sempre o monarca português, a quem nunca deixavam de referir-se com amizade e veneração.

Outro tanto acontece com José Bonifácio. Aclamado por uns, denegrido por outros, em vida e depois de morto, o sentimento público, quero dizer a voz popular; atribuiu-lhe a autoria da Independência, cognominando-o de seu patriarca. Se alguns ainda lhe contestam, movidos por um impulso, que às vezes degenera em mania de destruir legendas e reformar tradições, com a primazia do esforço a legitimidade do título, ninguém ousaria desligar seu nome da direção do movimento, felizmente iniciado e felizmente concluído, da nossa autonomia política. Seria faltar a verdade essencial dos fatos.

Outros podem compartilhar da glória, mas os seus nomes não são como o dele representativos do acontecimento. Calar o de José Bonifácio, quando se trate da nossa emancipação política, seria o mesmo que falar da Reforma sem mencionar Lutero ou recordar o Ressurgimento escondendo Cavour.

A teoria dos homens providenciais pode ter sido suplantada por uma doutrina mais conforme com os princípios de uma sociologia inspirada na harmonia biológica, e, sobretudo, mais adequada às justas reivindicações das multidões cansadas do anonimato. Os grandes homens subsistirão na História e continuarão a aparecer no mundo, senão como fatores únicos de acontecimentos decisivos, pelo menos como representantes supremos das aspirações coletivas, em todo o caso, como entes excepcionais.

Neste sentido continua José Bonifácio a ser um grande homem visto que o Príncipe Dom Pedro aparece nas suas mãos como o instrumento precioso - um instrumento mágico que fosse dotado de consciência e vibrasse com inteligência própria - por meio do qual se realizaram as aspirações políticas e se preservou a integridade territorial e moral de uma nação, cujo lugar é amplo na geografia e cujo papel deverá ser notável na história universal.

Sabeis todos quem foi José Bonifácio. O vosso intenso e legítimo orgulho paulista dele se desvanece, como se desvanece dos aventureiros sem temor que rasgaram largos horizontes continentais à população do litoral e transformaram em fazendas do interior esses arraiais da costa, embebidos na contemplação do vasto oceano que lhes trazia, frescas nas suas brisas as recordações das aldeias brancas, da "casinhas da serra" que o poeta mais tarde cantaria "co'a lua da sua terra".

Há que respeitar-vos o sentimento e partilhá-lo. Os bandeirantes paulistas foram os "conquistadores" brasileiros, os criadores desta pátria que o ministro de 1822 conseguiu - ele mais do que ninguém - manter ainda sob o cetro imperial de um soberano imaginoso, já quase um romântico, cheio de vida, com todas as ilusões e esperanças desta, e prestigioso tanto porque nascera príncipe como porque tinha por si a mocidade, o garbo, a força e a exuberância.

O santista era um sábio, um mineralogista de merecimento. A política foi buscá-lo no meio dos seus quartzos e dos seus calcários. Latino Coelho, incumbido do seu elogio acadêmico em Portugal, país ao qual pertence José Bonifácio pelos estudos da sua mocidade e pelas preocupações intelectuais da sua virilidade, no-lo descreveu, em seu soberbo estilo escultural, percorrendo a Europa culta, centro por centro, ouvindo professores eminentes das Universidades francesas, alemãs e suecas, visitando laboratórios, coleções e minas.

A ciência, porém, lhe não consumiu outros ardores. Foi soldado do batalhão acadêmico que se formou ao tempo das invasões francesas; a política empolgou-o num instante crítico da nossa existência nacional, e até o poeta que versejara a margem do Mondego e na Bertioga reapareceu no exílio.

Em Bordéus, com efeito, no ano de 1825, foi que Américo Elísio - ainda duravam os apelidos bucólicos dos árcades do século pastoril, num prolongamento patriótico mitológico - autenticou seus arroubos, colecionando suas composições de uma inspiração emperrada mas de um estro sensual:

Se te vejo, as entranhas se me embebem
De insólito alvoroço;
O sangue ferve em borbotões nas veias!
Sou todo lume, fico todo amores!

Ao mesmo tempo que publicava essas suas cantatas e odes, deixava ele correr o fel dos seus despeitos nas cartas que hoje são em parte do domínio de toda a gente, e nas quais se mostra esquecido de quando metrificava em Coimbra, dirigindo-se ao amigo Armindo:

Ignorados da "turba" viveremos
Da singela virtude acompanhados,
Enquanto com quimeras vis, ridículas
Frenéticos mortais a vida estragam
No seio de mil males e mil crimes.

José Bonifácio foi um homem de sentimentos muito vivos: os seus entusiasmos eram fortes como os seus ódios. Ainda não chegara ao Rio, chamado pelo Regente para aconselhá-lo sobre a organização do Governo, que de português ia passar a brasileiro, e ajudá-lo a por cobro a uma desordem que tocava em anarquia, e já o encarregado de Negócios da França, instruído da sua reputação, o descrevia para Paris como um homem fougueux et très ardent. Este foi o seu principal defeito, se defeito se pode chamar a manifestação irreprimível de um temperamento apaixonado.

O referido agente diplomático, Coronel Maler; que também pecava por arrebatado... nos escritos por não poder sê-lo nos atos, ao transmitir a notícia da nomeação de José Bonifácio (o qual vinha ostensivamente na qualidade de deputado da junta de São Paulo perante o Príncipe Regente) para ministro do Interior e dos Negócios Estrangeiros, ao mesmo tempo que informava a Corte das Tulherias do bom conceito geral que mereciam os conhecimentos do político, ontem homem de estudo, elevado ao poder, inteirava-a da fama certa de impetuoso e exaltado de que o agraciado gozava sem injustiça.

Do que nenhuma dúvida nutria o correspondente diplomático em questão era de que "Monsieur d'Andrada" tomaria ascendente sobre o espírito de Dom Pedro, que parecia firmemente disposto a abraçar os interesses nacionais e se tornaria o diretor influente dos seus colegas de gabinete. Eram estes colegas: Caetano Pinto de Miranda Montenegro, o antigo capitão-general de Mato Grosso e de Pernambuco, que tivera o ânimo de transitar por terra de um dos seus dois governos para outro, numa dura, posto que instrutiva peregrinação pelo imenso sertão, mas não tivera ânimo igual para abafar a conspiração donde surgiu a revolução de 1817, agora, não obstante, alvo da confiança do Regente e encarregado das dificílimas finanças de um país de tesouro exausto; o Marechal-de-Catupo Joaquim de Oliveira Álvares, português do velho Reino, casado e estabelecido no novo, onde combatera na fronteira do Rio Grande contra a malta de Artigas, e acabava de comandar as tropas brasileiras reunidas no Campo de Santana, a 12 de janeiro de 1822, para fazerem frente à divisão portuguesa de Jorge de Avulez, e Manuel Antônio Farinha, que, tendo sido o único do antigo gabinete a prestar-se a continuar a assinar o expediente, permanecia como Ministro da Marinha.

Os acontecimentos que originaram a substituição do gabinete são geralmente conhecidos. Achava-se o Príncipe no teatro na noite de 12 de janeiro, quando o foram prevenir da atitude abertamente insubordinada da guarnição portuguesa que, ameaçada em segredo de desarmamento, entendia protestar contra a humilhação e jurava carregar com Dom Pedro para Lisboa, assim desmentindo praticamente o famoso "fico" pronunciado três dias antes.

As Cortes, no intuito de bem desagregarem o Reino ultramarino e privarem os sentimentos políticos brasileiros do seu centro natural de convergência, tinham decretado o estabelecimento de juntas provisórias, uma em cada província, correspondendo-se "diretamente" com a soberana assembléia das Necessidades, e decidido o regresso à Europa do herdeiro da Coroa, a fim de seguir, nos países neste sentido mais adiantados, um curso prático de singeleza democrática e de nulidade constitucional. Precisamente contra semelhantes resoluções se rebelaria a junta de São Paulo, que, movida por José Bonifácio, a 24 de dezembro de 1821, convidava a junta de Minas a reunir-se a ela e fazerem causa comum, constituindo um núcleo de resistência. Desta resistência, por essa deliberação, de súbito o paulista se tornava a alma.

Ao propalar-se o boato de um motim incomparavelmente mais grave do que qualquer outro e tinham sido freqüentes desde um ano - presenciado pelo Rio de Janeiro, a sala de espetáculos do Rocio ficou deserta. O motim, porém, gorou. Os brasileiros acudiram tão pressurosamente aos seus postos que, ao alvorecer, mais de 4.000 homens, em grande parte gente de milícia trazida do interior, se tinham congregado em armas. Força foi aos regimentos de Avulez, em menor efetivo, capitularem e anuírem à intimação de retirada para a Praia Grande, donde rompeu um manifesto, mas nenhuma hostilidade material. Os nossos movimentos políticos sempre começam incruentos, como que assim se denunciando a nossa instintiva repugnância às sangrentas discórdias civis.

Se estava vencida na Corte a resistência européia - prenúncio de uma fácil emancipação da capital - restava o problema mais custoso, que era o de assimilar o centro o espírito provincial, e expelir os focos de ocupação portuguesa que mantinham um desequilíbrio nacional, sintomático desse período de transição política. A cristalização não podia aparecer perfeita enquanto o embaraçassem matérias estranhas e a primeira coisa a fazer devia ser eliminá-las - pareceu ao naturalista, numa feliz aplicação ao mundo moral das regras elementares do mundo físico.

José Bonifácio entrava na política mais ativa que um país pode comportar, no outono da existência humana, com um nome feito no mundo científico da época durante quadra mais repousada, e uma farta experiência da vida com que sustentar a agitação que avocara. Tinha 58 anos em 1821, assistira durante mais de dez na Europa dalém Pirineus, colaborara distantemente em publicações especiais, privara com teóricos e industriais de muitos países, e em Portugal exercera cargos no professorado, na magistratura e na administração. Observara aspectos vários da natureza e aspectos vários da sociedade, adquirira traquejo e nas idéias alcance, consolidara a feição prática do seu espírito como lha emprestara a natureza dos seus principais estudos, e tingira de liberalismo, senão político, pelo menos econômico, o seu cabedal de planos de utilidade pública.

Talvez fosse, era mesmo, um delineador mais do que um executor. Porventura lhe faltava em maleabilidade de ação o que lhe abundava em sagacidade de pensar. O representante diplomático americano - e aos americanos não falta a perspicácia- teve esta impressão do ministro de Dom Pedro e exarou-a na sua correspondência para Washington, onde a encontrei. Para a crise da independência José Bonifácio foi todavia o homem indicado, o homem adequado.

Teve habilidade para jogar com as circunstâncias favoráveis e teve decisão para arcar contra as circunstâncias adversas, cabendo naquela fase o ser brusco em algumas ocasiões e o ser enérgico em todas. Depois, quando o aparelho constitucional entrou em movimento com suas molas ainda perras, é que se fazia preciso mão mais delicada para dirigir-lhe a marcha e ajeitar-lhe o andamento; não só uma vista afeita aos trabalhos do microscópio para examinar nos seus menores detalhes a composição do complicado maquinismo.

O representante da França, da França dos Bourbons, o qual não suportava com paciência quanto tresandasse a liberal, negava até ao ministro da independência madureza nas idéias, ordem metódica nos projetos, o que ele chamava um desenvolvimento sistemático no seu conjunto e aplicação, como se naqueles momentos difíceis e mesmo angustiosos, fosse coisa muito possível a serena realização de um programa fixo de planos.

A essas críticas, porém, responde melhor do que qualquer defesa literária o êxito da política servida pelo vosso conterrâneo, esse a quem o Coronel Maler descrevia nos seus ofícios para Paris como "uma cabeça vulcânica apesar das cãs, confundindo tudo no falar e no administrar, ora divagando, ora perdendo o rumo levado pelo impulso de seu patriotismo exaltado e pelo seu ódio às Cortes". Maler sobretudo se espantava - reputava na sua frase um fenômeno - de que um homem de saúde tão precária como era José Bonifácio pudesse berrar havia então dez meses (este ofício é de outubro de 1822) sem estar de todo esfalfado.

O reverso da medalha gravada pelo francês é tão lisonjeiro que merece e deve ser conhecido, para honra do diplomata e para glória do político. É como se de um lado o perfil mais duro do personagem acusasse um queixo redondo e voluntarioso e um nariz aquilino e dominador, e do outro o rosto de frente deixasse ver uns olhos de expressão bondosa e uma larga testa inteligente. O artista que o era Maler; em estilo oficial pelo menos - põe com efeito mais de uma vez em relevo as sãs opiniões do patriota, o seu coração excelente, o seu inexcedível desinteresse, a sua detestação dos princípios antimonárquicos, que combatia com furor. Aí estava aliás um ponto de concordância, portanto, de simpatia entre os dois.

Não estou fazendo mais do que reproduzir textualmente os dizeres do Coronel Maler, que das suas conversas com José Bonifácio, e eram freqüentes, se julgou autorizado a concluir a harmonia das preferências monárquico-constitucionais do primeiro-ministro brasileiro com as bases da Carta francesa da Restauração.

É fato que, como governante, José Bonifácio zelou sempre os foros do Executivo e teve a mão pesada quando se tratava de repressão, e pode bem ser exato o que referia o encarregado de Negócios, de nutrir o patriarca uma verdadeira ternura dinástica, ele próprio afirmando não poder ver sem viva comoção as crianças reais, os pequeninos rebentos nacionais da casa de Bragança. Já tínhamos então o Império, pois que este outro ofício é de novembro de 1822.

O "Elogio" de Dona Maria I, pronunciado em Lisboa, em apurada linguagem, no ano de 1817 e no seio da Academia Real das Ciências pelo seu ilustre sócio paulista, é um testemunho considerável em favor daquele ardor monárquico, do que em inglês se chamaria com mais simpleza e mais precisão o loyalism de José Bonifácio. "Louvar um soberano virtuoso é acender farol em torre altíssima, para atinarem os outros a carreira" - foi, nas suas palavras, a regra a que obedeceu a elaboração desse panegírico de encomenda, de uma intensa devoção dinástica, deve antes dizer-se de uma marcada deferência cortesã no seu estilo engalanado, nos seus atavios pagãos, nas suas reminiscências clássicas, nas suas citações freqüentes de filósofos gregos e romanos, na sua sensibilidade que era contudo em demasia afetada para não ser exagerada.

Era, pois, José Bonifácio um adversário declarado das tendências republicanas, pelas disposições do seu temperamento tanto quanto pelos conselhos da sua inteligência: o ideal consistia então nas democracias tão liberais que chegassem a ser ingovernáveis. Não bastava no entanto à sua visão de estadista evitar a república. Ponhamos ao seu crédito que mais urgente e mais necessário lhe apareceu manter a própria nacionalidade brasileira ameaçada de dissolução.

O regímen não passava afinal de coisa secundária diante desse magno problema, que, de resto, uma vez resolvido pelo prestígio do representante da dinastia e pela convicção geral do interesse patriótico, assegurava a um tempo a união nacional e a estabilidade monárquica.

Antes mesmo de ser ministro de Dom Pedro e de se transportar para o que devia ser o centro da nacionalidade em formação, já José Bonifácio compreendera admiravelmente a situação, abraçando com olhar agudo toda a perspectiva. Ao serviço do seu ideal, e nenhum mais nobre se poderia dar do que evitar o naufrágio de uma agremiação moral e solidária que custara tanto sangue e representava tantos esforços, pusera ele aquela combatividade que o levara, professor, a pegar em armas com seus discípulos para enxotar de Portugal os agressores franceses.

É mister ter bem presente que o Brasil oferecia à tentativa de recolonização das Cortes uma seara ótima de realidades, não só um terreno fértil em esperanças. Onde quer que se denunciava o maior vigor do elemento português, tanto quanto onde se revelava o maior fermento do espírito local, na Bahia e no Maranhão como em Pernambuco e no Ceará, em todo o Norte enfim, a idéia de rompimento com a capital de origem colonial e de ligação direta com a sede das Cortes e da realeza, das autoridades supremas da nação em sua nova classificação hierárquica - as Cortes primando ~ realeza - recebera um acolhimento o mais simpático.

Com ela pensava lucrar os que meditavam a recolonização constitucional - muito parecida nos seus projetados processos com a colonização absolutista - e não menos os que aspiravam à independência democrática, mais acessível ou pelo menos mais compatível com o fato de uma libertação de que a emancipação com uma monarquia.

O Sul, não obstante a preocupação regional ser aí também viva e muito imperfeita a solidariedade moral, então impediu a fragmentação do Brasil; e no Sul foi o vosso conterrâneo quem, decidindo a junta de São Paulo a prestar obediência ao Rio de Janeiro e reconhecer a supremacia do Príncipe-Regente "com autoridade própria", arrastou as demais divisões administrativas para a esfera de influência paulista, constituindo esse traço um primeiro esboço de união.

A província de Minas Gerais, apesar da sua superior população, dependia pela sua localização central das do Rio e São Paulo, sem cujo acordo ficaria até privada das suas melhores comunicações com o exterior. Paraná não existia ainda; Santa Catarina pouquíssimo valia isoladamente, e São Pedro do Sul era por demais despovoado e exposto às correrias dos guerrilheiros orientais para que pudesse desprezar o interesse de uma união. O influxo de São Paulo estendeu-se até a Cisplatina, onde, a 19 de julho de 1821, ficara admitida, sob os auspícios do conquistador Lecor, a suserania fluminense na pessoa do príncipe-regente e depois Defensor Perpétuo do Brasil, mas onde era instável o equilíbrio pelo valor do fator militar português.

José Bonifácio entrou para os conselhos de Dom Pedro certo de que a unificação nacional se efetuaria se a Coroa - e a Coroa estava mais sobre a cabeça do filho que sobre a do pai, coacto pelas Cortes - quisesse desempenhar o seu papel tradicional de protetora das regalias populares contra uma oligarquia de adventícios, como outrora as defendera contra o feudalismo; certo também de que no momento que atravessavam a Europa culta e suas descendências, não mais se podia dizer dependências ultramarinas, o espírito liberal, um certo espírito liberal bem entendido, deveria caracterizar a ação da autoridade.

A força era indispensável, mas já se não suportaria a tirania. Acreditava assim José Bonifácio na eficácia de uma legislação esclarecida, produto sadio da ciência do Governo que, nas suas palavras elevadas e orientação prática, devia consistir "em indagar o que pode ser um Estado para corresponder aos seus mais altos fins; em conhecer todos os seus recursos presentes e futuros, e todas as suas faltas atuais". Nisto, como no gosto extremo pelas ciências naturais, era ele um digno filho do século XVIII, o século da regeneração intelectual e do paternalismo administrativo.

No "Elogio" da "Óptima Maria", conforme apelidava o acadêmico a excelsa soberania defunta, depara-se-nos uma frase que trai a vibração da alma do que apenas era então um homem de estudo, ainda não um homem de governo, quando tocada pelo afã das conquistas morais. Referindo-se aos decretos reduzindo os segredos dos acusados, regulando a jurisdição ilimitada da polícia, declarando e restringindo a jurisdição dos donativos, o orador acrescentava como comentário:

Foi esta uma prova mais do quanto a nossa Rainha desejava condescender com as novas luzes, espalhadas pela Europa, começando assim gradualmente a limpar o edifício social da ferrugem de tempos bárbaros e escuros.

Não deve surpreender-vos que, quem assim pensava, fosse, caso raro entre os nossos homens públicos da época, infenso à instituição servil, que por ele se haveria extinguido quase simultaneamente com o resto de dependência colonial que ficara após o reinado americano de Dom João VI e a organização do reino do Brasil. Não era oportunista em tal matéria, e se não obteve ganho de causa o ilustre paulista, em seu adiantado modo de ver neste ponto, foi porque os acontecimentos decidiram diversamente, não porque lhe faltassem coragem e vontade.

O predomínio mesmo de José Bonifácio no Governo durou pouco: cessou com a cessação da crise cuja terminação foi principalmente obra sua. Os Andradas foram derrubados e votados ao ostracismo quando, por um lado, o Príncipe, naturalmente arvorado em emblema da união, mostrou ter sugado no berço o leite do despotismo, e por outro lado os elementos radicais, contidos ou contendo-se durante a luta pela integridade nacional, se não quiseram submeter por mais tempo, cederam às suas paixões e levantaram suas resistências. Colocado entre as duas correntes opostas, no ponto pior do embate, o estadista da Independência perdeu o prumo e desgarrou: também estava cumprida a sua alta missão, que fora a de salvar o Brasil por meio do Império constitucional.

A história das relações íntimas entre Dom Pedro e José Bonifácio, entre Telêmaco e Mentor, é uma história ainda por fazer e para a qual faltam infelizmente as contribuições de caráter pessoal que mais interessante a tornariam. Os Andradas, transformados em "corcundas", depois da abdicação, partidários quase únicos no Brasil da restauração imperial do Duque de Bragança, cujas tendências autoritárias reconheceram afinal quanto se casavam com a concepção que eles tinham da autoridade, calaram seus ressentimentos de 1823 e não deixaram revelações bastantes ou interessantes bastante.

Um momento houve, que a ninguém escapa, no qual o ministro se impôs ao Príncipe como se impôs à situação. Dom Pedro procurava com a maior assiduidade e a qualquer hora o seu conselheiro na modesta casa por ele ocupada. Maler conta que, passando pelo Rocio a cavalo, na ocasião de uma dessas visitas, ouvira que um popular, com aquela zombaria tão peculiar à população fluminense e as mais das vezes apropriada e conceituosa, alcunhava o Regente de "ajudante-de-campo de José Bonifácio".

Não faltaria quem fizesse chegar a São Cristóvão ditos semelhantes. Muitos seriam os que, uns por pura maldade, outros por inveja rancorosa, tentariam envenenar relações que eram mais a conjugação de duas energias do que o encontro de duas simpatias.

Só os homens verdadeiramente superiores aparecem despidos de pequenas invejas, e são raríssimos. Poucos são também os reis que, dotados de imaginação e atividade, suportam a colaboração de grandes ministros. Ora, José Bonifácio chegara a crescer tanto em popularidade, em poder e em iniciativa, que ofuscava o trono. Aliás, sua influência se derivava em boa parte da aura que cercava o Príncipe-Regente depois das suas manifestações brasileiras; assim como o prestígio de Dom Pedro proviera muito do acerto das resoluções promovidas pelo seu conselheiro.

A inteligência entre estas duas forças repousava sobre uma base concreta, pois que era recíproca a vantagem; mas ao se separarem, Dom Pedro teve o arranco de quem sacudia uma canga e José Bonifácio a melancolia de quem lidara com um ingrato, ocorrendo que a ambos assistia a razão. Um e outro possuíam a índole violenta e o gesto pronto. A continuação da associação requeria abnegação, que tendia, porém, a relaxar-se uma vez passada a crise, e exigia delicadeza, que não era o predicado característico de nenhum dos dois personagens.

Quando digo delicadeza, quero referir-me, é claro, à polidez superficial das maneiras, não à delicadeza íntima dos sentimentos. José Bonifácio tinha o doesto fácil e grosseiro. As viagens pelos países mais cultos não tinham envernizado completamente esse português - que o era, de pátria até 1822, de educação e feitio toda a vida - forte na sua delgadeza, colérico, de poucas contemplações estudadas e de bastante jactância. A sua alma, porém, tinha vibrações que desciam até às senzalas: alma fidalga num invólucro comparativamente rústico, o que vale mais do que o contraste oposto.

Também Dom Pedro tinha uns arrancos brutais que eram antes manifestações da falta de educação familiar de que se ressentira a sua infância, e da incoerência, não quero dizer do desbragado do meio em que desabrochara a sua mocidade; mas não faltava, não podia faltar uma sentimentalidade rica a quem se despojou altivamente de uma coroa para ir defender em incertíssima contenda os direitos de uma criança e se prestava a acabar como regente em nome da filha, tendo começado a vida pública como regente em nome do pai e sido, no intervalo, imperador e rei e o outorgador generoso e sincero - porque tanto era sincero no bem como no mal - de duas cartas constitucionais, consagrando em suma por parte do direito divino todas as conquistas políticas, isto é, todas as liberdades da Revolução.

É pena que a boa inteligência do começo não houvesse podido manter-se de lado a lado, entre soberano e ministro de forma a organizar-se a vida autônoma do país sobre os auspícios dessa dupla individualidade, exercendo-se associada numa mesma orientação e sob uma única inspiração, de fato constituindo uma só ação.

José Bonifácio dissera ao pronunciar o elogio da Rainha Dona Maria I - e cito mais de uma vez esta oração acadêmica porque foi escrita na virilidade, mas quando ainda não pesavam sobre seus ombros, nem coisa alguma indicava que dentro em pouco pesariam, as responsabilidades do poder - estar "capacitado de que os grandes projetos devem ser concebidos e executados por um só homem, e examinados por muitos; de outro modo desvairam as opiniões, nascem disputas e rivalidades, e vem a faltar aquele centro comum de força e de unidade, que tão necessário é em tudo, e mormente em objetivos de suma importância".

Um só homem para conceber e executar, entendia ele. Mas não conhecera a mitologia greco-romana um deus de duas caras dessemelhantes, e não encerrava o panteão budista uma deusa de cem braços independentes? Por que se não verificaria politicamente uma anormalidade anatômica que não fosse um embaraço à existência fisiológica? Porque se não combinariam na personalidade a diretriz e o cérebro amadurecido do homem de estudo e o braço juvenil do homem de impulsos e de entusiasmos? A fusão seria perfeita - nada a contrariava - de um pensamento reflexivo e de uma vontade espontânea. A unidade moral até se acomodava com a dualidade física.

O encarregado de Negócios da França, um observador arguto, malgrado os seus preconceitos reacionários, julgava o estadista mais de molde a concordar com o Príncipe do que a guiá-lo com circunspecção; mas a verdade é que se Dom Pedro se esqueceu inteiramente de que era herdeiro de um Reino Unido, foi porque a seu lado havia quem lhe mostrasse a cada passo as vantagens de ser imperador.

É fato que se Dom Pedro foi por vezes imprudente melhor dito impaciente, numa ocasião aliás em que as delongas eram contra-indicadas, por seu lado José Bonifácio não pecava pelos hábitos de procrastinação. A ambos se pode atribuir a origem de vários instantes sediciosos dessa série agitada de dias que precedeu e seguiu de perto a Independência.

A reflexão é velha e quase banal - mas as banalidades não são mais do que verdades repetidas - de que nas crises nacionais, e em quaisquer momentos de apuro, aos governantes cabe dirigirem o movimento, sob pena de serem levados na enxurrada dos acontecimentos. Faz-se, contudo, mister que a direção se não descubra muito, para não provocar os ciúmes ou ofender as veleidades de rebeldia dos que disfarçadamente se pretende tutelar ou pelo menos encaminhar.

Dom Pedro e José Bonifácio aplicaram a máxima com a restrição, e deram-se bem com ambas. Uma vez realizada a separação, a saber, proclamados rotos os laços de dependência entre as Cortes de Lisboa e as províncias do Brasil, ficava por fazer alguma coisa de essencial que era ajeitar no novo molde esse imenso corpo amorfo e de uma plasticidade desigual, que tanto podia vir a ser uma monarquia centralizada como uma república federativa - uma confederação neste caso de escassa duração.

O governo constituído não abriu mão do leme, para não naufragar em algum escolho, mas aparentou deixar o navio flutuar à mercê das ondas. Foram os republicanos, os adeptos das doutrinas democráticas pelo menos, que inventaram de fato o Império. Foi Ledo quem redigiu, fez imprimir e afixou a proclamação de 21 de setembro, sugerindo a aclamação. Foi José Clemente Pereira quem expediu, em nome da sua Câmara, emissários às outras municipalidades para aderirem à idéia que, adotada na penumbra de uma loja maçônica à qual pertencia Dom Pedro, trazia em si uma satisfação vibrante do amor-próprio nacional e a promessa de demonstrações positivas da munificência imperial.

O príncipe relutou, para salvar as aparências. José Bonifácio fingiu desinteressar-se da forma e só fazer questão do fundo, mergulhando na passividade para permitir a atividade aos agitadores profissionais: estes marcharam para a frente e a procissão acompanhou-os.

Todos, aliás, acharam no cortejo o seu lugar: só o corpo diplomático estrangeiro, de que tinham permanecido uns restos na debandada da corte de Dom João VI, com atribuições antes consulares, ficou desnorteado, sem bem saber que atitude lhe cumpria, ou melhor, sem ousar definir precisamente sua atitude. Naturalmente refugiaram-se, aqueles dentre o corpo que revestiam caráter diplomático, na abstenção, que é um recurso sempre aberto aos agentes internacionais.

O encarregado de Negócios da Áustria, um Barão Mareschal, que era muito inteligente e cuja situação mais delicada se fazia e mais perplexo o tornava pelo fato de ser a nova imperatriz uma arquiduquesa da linhagem dos Habsburgos, inventou uma dessas doenças que se denominam diplomáticas - antonomásia de fingidas - para desculpar-se de não ir ao Paço no dia 12 de outubro - aniversário de Dom Pedro e ao mesmo tempo data escolhida para a aclamação imperial - e rogar ao seu colega de França, de, na sua qualidade de primus inter pares, apresentar por ele as desculpas e as congratulações.

O de França, que não pecava por tolo, respondeu-lhe muito francamente que não compareceria na corte fluminense, por motivo das alterações aí sobrevindas, sem novas instruções do seu governo, e que, portanto, reduzido a zero em vez de um, não lhe era lícito por diante dos olhos "de Suas Altezas" o "triste" boletim de saúde do amigo. Os consules de Inglaterra e da Rússia- que ainda eram Chamberlam e Langsdorff -, despidos como andavam de caráter diplomático, não tinham igual motivo para dúvidas e subterfúgios, e não pensaram sequer em ausentar-se.

Uma prova, entretanto, indiscutível de que José Bonifácio não abandonara de fato o timão aos representantes municipais ou populares, está em que pôs embargos a uma manifestação política que se projetava simultânea com o oferecimento da Coroa, e que consistia em obter do soberano - impor-lhe seria mais exatamente o termo - a sua prévia sanção da Constituição que viesse a ser elaborada pela assembléia legislativa adrede convocada.

Teles da Silva, o futuro Marquês de Resende, foi quem deu parte a Maler do desígnio, que era o de José Clemente e seus amigos e do furor de José Bonifácio ao ouvir falar em tal. O plano, contudo, não vingou na reunião pública do Senado da Câmara a 10 de outubro, da qual a ata publicada fornece uma noção imperfeita, e por isso se transmudou em júbilo a cólera do ministro, que o agente francês nessa ocasião descrevia preso de uma grande exaltação patriótica que buscava vazão numa extrema volubilidade de língua.

Não obstou em todo caso o recuo da Municipalidade que no teatro, onde o espetáculo do palco era menos interessante e menos dramático que o da sala, e no Largo do Rocio, cena dos motins e algazarras, o povo, desafiando a chuva torrencial que caía, misturasse com seu brados festivos e sinceros em honra do jovem imperante freqüentes e entusiásticos vivas à Constituição liberal do Brasil.

Na verdade, se todos num momento dado aclamavam e aplaudiam o Império, cada qual pretendia que o imperador fosse a seu jeito. A lua-de-mel foi por isso curta entre conservadores e demagogos, se é que estas designações correspondem fielmente, uma aos que professavam pela autoridade um respeito mais decidido, e outra aos que antepunham às regalias soberanas o fervor pelas franquias populares, nas suas ilusões apelidando o Imperador o primeiro democrata do Império e apontando-o, muito erradamente decerto, como prestes a converter-se, se tal fosse a vontade geral, num simples cidadão da República Brasileira.

Mercê dessa ironia tão comum na história, as circunstâncias levaram o ministro conservador de 1822 a afetar em 1823 modos de demagogo, sendo envolto nos sucessos que assinalaram a dissolução violenta da Constituinte - ele que pessoalmente tinha o orgulho não só das tradições intelectuais de ascendentes próximos, mas também da fidalguia da sua linhagem, que entroncava em casas nobres do Reino; e cujas inclinações iam para uma Constituição pautada pela Carta francesa, na qual se alentasse o poder sem se sacrificarem as liberdades.

No seu espírito mesmo travavam luta, para se ajustarem numa fórmula estereotipada a Benjamin Constant, a jurisprudência severa do antigo desembargador da Relação do Porto, educado na tradição coimbrã e o filosofismo do discípulo das reformas de Konigsberg, o estudioso do criticismo racionalista de Kant, do idealismo transcendental de Fichte e do metafisismo agudo de Schelling.

Aquela aspiração de conciliação política continuou de pé depois dele, e não é seu menor título à nossa consideração o haver no momento necessário refreado a desordem nas ruas, assim como oportunamente contivera a desordem nos espíritos, quando esta última podia ter acarretado, e acarretaria fatalmente, a decomposição desta nossa nacionalidade que não lograria, fragmentada, cumprir o destino que lhe anda certamente reservado, de que José Bonifácio expressou a confiança em versos que se acham recordados em bronze no pedestal do monumento, no Rio, do descobridor do Brasil, e a que o nosso eminente representante na Conferência da Haia, o Sr. Rui Barbosa, começou a emprestar realidade perante todo o mundo civilizado, nas suas admiráveis orações e propostas, vazadas nas formas de bronze do Direito e da Justiça.