Machado de Assis
GARNIER
1893, outubro
Segunda-feira desta
semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte
que não a livraria. Revertere ad locum tuum - está escrito no alto da
porta do cemitério de São João Batista. Não, murmurou ele talvez dentro do
caixão mortuário, quando percebeu para onde o iam conduzindo, não é este o meu
lugar; o meu lugar é na rua do Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de trabalho,
ao fundo, à esquerda; é ali que estão os meus livros, a minha correspondência,
as minhas notas, toda a minha escrituração.
Durante meio século,
Garnier não fez outra coisa, senão estar ali, naquele mesmo lugar, trabalhando.
Já enfermo desde alguns anos, com a morte no peito, descia todos os dias de
Santa Teresa para a loja, de onde regressava antes de cair a noite. Uma tarde,
ao encontrá-lo na rua, quando se recolhia, andando vagaroso, com os seus pés
direitos, metido em um sobretudo, perguntei-lhe por que não descansava algum
tempo. Respondeu-me com outra pergunta: Pourriez-vous résister, si vous
étiez forcé de ne plus faire ce que vous auriez fait pendant cinquante
ans? Na véspera da morte, se estou bem informado, achando-se de pé, ainda
planejou descer na manhã seguinte, para dar uma vista de olhos à livraria.
Essa livraria é uma
das últimas casas da rua do Ouvidor; falo de uma rua anterior e acabada. Não
cito os nomes das que se foram, porque não as conheceríeis, vós que sois mais
rapazes que eu, e abristes os olhos em uma rua animada e populosa onde se
vendem, ao par de belas jóias, excelentes queijos. Uma das últimas figuras
desaparecidas foi o Bernardo, o perpétuo Bernardo, cujo nome achei ligado aos
charutos do duque de Caxias, que tinha fama de os fumar únicos, os quase
únicos. Há casas como a Laemmert e o Jornal do Comércio, que ficaram e
prosperaram, embora os fundadores se fossem; a maior parte, porém,
desfizeram-se com os donos.
Garnier é das figuras
derradeiras. Não aparecia muito; durante os 20 anos das nossas relações,
conheci-o sempre no mesmo lugar, ao fundo da livraria, que a princípio era em
outra casa, n.º 69, abaixo da rua Nova. Não pude conhecê-lo na da Quitanda,
onde se estabeleceu primeiro. A carteira é que pode ser a mesma, como o banco
alto onde ele repousava, às vezes, de estar em pé. Aí vivia sempre, pena na
mão, diante de um grande livro, notas soltas, cartas que assinava ou lia. Com o
gesto obsequioso, a fala lenta, os olhos mansos, atendia a toda gente. Gostava
de conversar o seu pouco. Neste caso, quando a pessoa amiga chegava, se não era
dia de mala, ou se o trabalho ia adiantado e não era urgente, tirava logo os
óculos, deixando ver no centro do nariz uma depressão do longo uso deles.
Depois vinham duas cadeiras. Pouco sabia da política da terra, acompanhava a de
França, mas só o ouvi falar com interesse por ocasião da guerra de 1870. O
francês sentiu-se francês. Não sei se tinha partido; presumo que haveria
trazido da pátria, quando aqui aportou, as simpatias da classe média para com a
monarquia orleanista. Não gostava do império napoleônico. Aceitou a república,
e era grande admirador de Gambetta.
Daquelas conversações
tranqüilas, algumas longas, estão mortos quase todos os interlocutores, Liais,
Fernandes Pinheiro, Macedo, Joaquim Norberto, José de Alencar, para só indicar
estes. De resto, a livraria era um ponto de conversação e de encontro. Pouco me
dei com Macedo, o mais popular dos nossos autores, pela Moreninha e pelo
Fantasma Branco, romance e comédia que fizeram as delícias de uma
geração inteira. Com José de Alencar foi diferente; ali travamos as nossas
relações literárias. Sentados os dois, em frente à rua, quantas vezes tratamos
daqueles negócios de arte e poesia, de estilo e imaginação, que valem todas as
canseiras deste mundo. Muitos outros iam ao mesmo ponto de palestra. Não os
cito, porque teria de nomear um cemitério, e os cemitérios são tristes, não em
si mesmos, ao contrário. Quando outro dia fui a enterrar o nosso velho
livreiro, vi entrar no de São João Batista, já acabada a cerimônia e o
trabalho, um bando de crianças que iam divertir-se. Iam alegres, como quem não
pisa memórias nem saudades. As figuras sepulcrais eram, para elas, lindas
bonecas de pedra; todos esses mármores faziam um mundo único, sem embargo das
suas flores mofinas, ou por elas mesmas, tal é a visão dos primeiros anos. Não
citemos nomes.
Nem mortos, nem vivos.
Vivos há-os ainda, e dos bons, que alguma coisa se lembrarão daquela casa e do
homem que a fez e perfez. Editar obras jurídicas ou escolares, não é mui
difícil; a necessidade é grande, a procura certa. Garnier, que fez custosas
edições dessas, foi também editor de obras literárias, o primeiro e o maior de
todos. Os seus catálogos estão cheios dos nomes principais, entre os nossos
homens de letras. Macedo e Alencar, que eram os mais fecundos, sem igualdade de
mérito, Bernardo Guimarães, que também produziu muito nos seus últimos anos,
figuram ao pé de outros, que entraram já consagrados, ou acharam naquela casa a
porta da publicidade e o caminho da reputação.
Não é mister lembrar o
que era essa livraria tão copiosa e tão variada, em que havia tudo, desde a
teologia até à novela, o livro clássico, a composição recente, a ciência e a
imaginação, a moral e a técnica. Já a achei feita; mas vi-a crescer ainda mais,
por longos anos. Quem a vê agora, fechadas as portas, trancados os mostradores,
à espera da justiça, do inventário e dos herdeiros, há de sentir que falta
alguma coisa à rua. Com efeito, falta uma grande parte dela, e bem pode ser que
não volte, se a casa não conservar a mesma tradição e o mesmo espírito.
Pessoalmente, que
proveito deram a esse homem as suas labutações? O gosto do trabalho, um gosto
que se transformou em pena, porque no dia em que devera libertar-se dele, não
pôde mais; o instrumento da riqueza era também o do castigo. Esta é uma das
misericórdias da Divina Natureza. Não importa: laboremus. Valha sequer a
memória, ainda que perdida nas páginas dos dicionários biográficos. Perdure a
notícia, ao menos, de alguém que neste país novo ocupou a vida inteira em criar
uma indústria liberal, ganhar alguns milhares de contos de réis, para ir afinal
dormir em sete palmos de uma sepultura perpétua. Perpétua!
in A Semana, Gazeta de Notícias, 08/10/1893
Fonte: A Semana - Machado de Assis - W. M. Jackson
Inc. - 1946
Ortografia Atualizada.