XVI

AS CRUZES

17 de fevereiro

As senhores grazinavam, como periquitos em roçado, em torno da mesa do chá, quando Mme. Gama Simpson se curvou, rindo com alarido, sobre a toalha de linho bordada de cegonhas vermelhas, numa escandalosa explosão de alegria. Segurando em uma das mãos a taça de porcelana e na outra, fechadinha como um botão de rosa, uma torradinha cor de ouro, a linda criatura ria despreocupadamente, agitando-se na cadeira, quando, com o movimento do corpo, lhe saltou do colo de neve e rosa, pela janela de seda do decote, a sua custosa cruz de brilhante, fugindo-lhe para o ombro, com o risco de perder-se.

- Cuidado com a cruz, madame! - avisou, atencioso, do outro lado da mesa, o conselheiro Atanásio, que observava, sem perder um movimento do solo, as ondulações do Calvário e os arredores da Jerusalém.

D. Lisete olhou o decote, apanhou a cruz fugitiva, e, aconchegando-a à carne rosada, queixou-se, risonha:

- Também, que idéia esta, de inventar cruzes para o colo da gente!

- Vossa Excelência não sabe, então, o que elas significam, na opinião de Tabarin?

As senhoras mostraram-se curiosas de conhecer a origem daquele costume, e o antigo palaciano começou, medindo as palavras:

- Na Idade Média, quando eram deficientes os meios de comunicação de cidade para cidade, de aldeia para aldeia, de um castelo para outro castelo, os monges, que dominavam nos países barbarizados da Europa tomaram a si a incumbência de marcar os caminhos, cujas direções eram assinaladas por meio de cruzes. Ao deparar, na mata ou na montanha, um destes símbolos da cristandade, o viajante já sabia que não errara o seu roteiro, e que a estrada era, mesmo, por ali...

- Mas... - interrompeu, impaciente, Mme. Souza Batista.

- Espere... - implorou o conselheiro.

E continuou:

- Mais tarde, com o advento das modas femininas, e com o aproveitamento, por parte das mulheres, de todas as conquistas do homem, entenderam elas de utilizar o mesmo símbolo, com a mesma significação.

- A cruz no colo das mulheres quer dizer, então, alguma coisa? - interrompeu, franzindo a testa, Mme. Werther.

- Evidentemente, minha senhora! - tornou o conselheiro.

E explicou:

- Elas estão dizendo, como nas montanhas antigas, que... o caminho é por ali!

Quando o conselheiro terminou a sua narrativa, Mme. Simpson procurou a sua cruz de brilhantes, e tomou um susto. Com os seus modos estabanados, a cruz havia, de novo, abandonado o decote, e fugido para trás...

XVII

O PERFUME

(Sobre uma frase de Dumas Filho)

20 de fevereiro

Saída do colégio em dezembro último, Angelita recebeu da sua mamãe a promessa de um vestido de passeio, um verdadeiro vestido de moça, escolhido por ela mesma, assim que regressassem da fazenda, em Barra Mansa, depois do Carnaval. Inocente ainda, foi batendo os dois lírios das mãos que a menina ouviu a noticia. E foi, para ela, para os seus dezesseis anos incompletos, um momento de alegria irreprimível, aquele em que, sentado na sua cama alva, pura como um berço, escolheu, manuseando uma dúzia de revistas de modas, o figurino que mais lhe encantava os olhos.

Feita a encomenda a uma das modistas do bairro, foi esta, dias depois, levar o vestido à última prova. Contente, feliz, pulando pela casa, era com uma jovialidade descomedida que Angelita recebia a costureira. E não foi sem um certo calor na face, e sem um certo tremor nos dedinbos afilados, que desabotoou a sua blusinha leve, patenteando os encantos do seu colo virgem, do seu corpo desabrochante, aos olhos daquela senhora estranha, habituada a ver, certamente, por aí, por exigência do seu próprio ofício, centenas de corpos pecadores.

- Tire o corpinho também, mademoiselle, - ordenou a modista.

A menina enrubesceu mais:

- O corpinho, também?

Minutos depois, trajando o seu lindo vestido novo, Angelita abria de par em par a porta da sua alcova, onde estivera encerrada, sozinha, com a costureira. Estava deslumbrante. Era um maravilhoso figurino de verão, bordado a seda, com um rosário de pequeninas flores à cintura, que lhe punha em destaque, no colo e nos braços, a imaculada frescura da pele. Curvando-se, risonha, numa grande mesura, foi a mocinha perguntando, logo, a D. Adelaide:

- Então, estou linda?

A ilustre senhora, que a esperava na sala de jantar, junto à mesa, abriu os braços, para receber a filha.

- Que tal? - tornou a moça.

D. Adelaide beijou-a nos cabelos castanhos e, com um sorriso de bondade, em que lhe ia toda a sua alma, externou o seu pensamento:

- Está muito bom, muito lindo, mas falta uma coisa.

A menina arregalou os grandes olhos escuros, imobilizando no rosto um sorriso de espanto.

- É aqui! - explicou a senhora, pondo-lhe a mão aberta sobre o colo de neve.

E abraçando a menina:

- As mulheres, minha filha, são uma essência delicada, de que o vestido é um vidro desarrolhado, por onde se evola, insensivelmente, o pudor da mulher...

E lançou, maternalmente, sobre o colo da filha, a macia misericórdia do seu claro lenço de seda.

XVIII

EXPERIÊNCIA

23 de fevereiro

Companheiros de mocidade, o comendador Otacílio Fagundes e o desembargador Portela haviam se separado, de repente, em uma das numerosas encruzilhadas da vida. Dedicados, um ao comércio, e outro a magistratura, havia cada um deles seguido o seu caminho, apertando a mão ao companheiro. E nunca mais tiveram noticia um do outro

E, no entanto, haviam os dois prosperado. Dirigindo-se para Santos, onde um tio, velho comerciante de café, lhe oferecia um lugar no escritório, progredira Fagundes rapidamente, até que se tornara, por morte do tio, o único proprietário da casa. Tomando o rumo da Corte, com a sua carta de bacharel, o amigo não havia sido menos feliz. Hábil, maneiroso, aproveitando as situações sem quebra de dignidade, não lhe foi difícil um cargo de juiz em pequena província do norte, onde regressara, afinal, ao sul, como desembargador aposentado.

Quarenta anos haviam decorrido, quase, sobre a separação dos dois infatigáveis campineiros, quando, um destes dias, indo receber um cheque no Banco do Brasil, o comendador Fagundes ouviu gritar, na pagadoria, ao portador de uma ordem de pagamento: - Francisco Ribeiro Portela!

Atendendo ao chamado, aproximou-se empertigado ainda, um ancião de sessenta anos, vestido com distinção, demonstrando nos modos, no porte, nas maneiras, saúde e prosperidade.

Ao anúncio daquele nome, o comendador Fagundes, que assinava o cheque em mesa próxima, voltou-se, rápido, com o peso das suas banhas e dos seus setenta anos, e encarou o outro. E encaminhando-se para ele, indagou:

- É o Francisco Portela, de Campinas?

- Sim, senhor.

- Eu sou o Otacílio Fagundes.

Um abraço enorme, que mais parecia um primeiro assalto de luta romana, selou esse encontro de duas saudades.

- Fagundes!

- Portela!

Três minutos depois estavam os dois velhotes a um canto, de pé, enxugando os olhos, trocando noticias da vida e da fortuna. O capitalista contou, primeiro, como ficara com de a casa do tio; como lhe corriam admiravelmente os negócios; como lhe havia sido, em suma, favorável, no mundo, a roda do Destino. E o magistrado contou-lhe, depois, como subira, como prosperara, como enriquecera, como havia chegado, enfim, ao mais alto posto da sua carreira, no Estado. De repente, porém, o comerciante indagou:

- E constituíste família?

- Eu? Não. Continuei solteiro. E tu?

- Eu casei-me.

- Casaste?

- É verdade.

- Há muito tempo?

- Não. Há dois anos. Casei com uma menina de vinte anos, minha afilhada, e já tenho um filhinho.

- Um filho? - indagou o desembargador, recuando.

E ao ouvido do comendador, indignado:

- E de quem tu desconfias?

XIX

ILUSÃO

25 de fevereiro

Abraçado a um poste de iluminação elétrica, tonto de cerveja e de fome, o velho boêmio levantou os olhos para as estrelas longínquas, naquela madrugada fria, sentindo a terra, em torno, estremecer e rodar. Com medo de cair, o notívago apertou mais o poste de encontro ao peito, fechou os olhos e começou a sonhar.

A principio era um monte de moedas de ouro, postas umas sobre as outras, que lhe dava quase pelos joelhos. De repente, o monte começou a subir, a crescer, a avolumar-se, atingindo a sua altura e galgando o espaço, rápido, como um caule dourado de crescimento vertiginoso. O boêmio acompanhava o desenvolvimento daquela árvore curiosa, quando, no escândalo daquela ascensão, lhe viu desaparecer a ponta nas nuvens, estabelecendo uma corda de ouro, fina e imensa, ligando a terra ao céu. Olhava-a ele admirado, quando ouviu uma voz, que lhe dizia:

- Sobe, Alfredo!

O notívago segurou-se à corda de ouro, feita de moedas acumuladas, e principiava a subi-la, quando esta, de repente, estalou, partindo-se, fazendo-o vir aos trambolhões pela altura, estatelar-se, com força, no chão.

Abrindo os olhos, o boêmio sentiu-se assentado no calçamento da rua, ao lado do poste. Espantado, passeou a vista em redor, e, detendo-a em certo ponto, viu, no asfalto, caída da algibeira de algum transeunte, uma pequena moeda de cem réis. Estendendo a mão, apanhou-a, revirou-a nos dedos, examinou-a, e, ao fim de tudo isso, pensou, num sorriso de consolo:

- Felizmente, sempre ficou, no chão, a ponta da corda!

E metendo o níquel no bolso, continuou, aos trancos, o seu caminho.

XX

FERRABRÁS

28 de fevereiro

O coronel Otaviano de Meireles, comandante de um batalhão da Guarda Nacional aquartelado em Niterói, era conhecido em toda a cidade pela sua valentia, e, em especial, pela sua intransigência em questões de honra. Casado com uma das senhoras mais formosas do bairro, era tal o pavor infundido pelo seu nome, que ninguém se atrevia, sequer, a levantar os olhos para a sua cara metade. Aquele que tal fizesse, era, na opinião de toda a gente, um homem liquidado.

Foi por esse tempo, e quando mais se acentuava, em toda a praia de Icaraí, a fama da coragem do coronel, que passou a residir na vizinha capital o jovem advogado Dr. Otacílio Fernandes, que não era coronel, nem major, nem capitão, nem tenente, mas fora, sempre, um dos mais famosos namoradores de Niterói. Proprietário do prédio em que o coronel residia, não foi necessário grande esforço da parte do moço para travar amizade com o inquilino; e esta foi tão rápida, e tão sincera, que, uma semana depois, era o Dr. Otacílio convidado para um almoço, no primeiro domingo, na residência do brioso militar.

Chegado o dia, lá estava, na praia de Icaraí, o jovem capitalista. Risonho, amável, dissimulando com um sorriso gentil a austeridade da sua fisionomia marcial, correu o dono da casa ao portão, para receber o convidado e fazê-lo subir até à sala, onde madame já o esperava, obsequiosa e linda, com o rosto a emergir, como uma grande rosa, das espumas de neve do seu elegantíssimo "peignoir" de linho e renda.

- O Dr. Otacílio Fernandes - apresentou o coronel.

E ao recém-chegado:

- Minha esposa...

Minutos depois, sentados à mesa redonda, em que havia apenas três talheres, a palestra corria jovial, feliz, entre petiscos saborosos e sorrisos significativos, quando o telefone tilintou. Era o procurador do coronel que reclamava a sua presença, urgente, na estação das barcas, para ultimação de um negócio inadiável.

- Diabo! - exclamou o bravo militar. Tenho de ir, não há remédio!

E virando-se para o capitalista, enquanto desamarrava o guardanapo:

- Esteja à vontade, doutor. É questão de meia hora. Fique por aí; eu não demoro!

E para a esposa:

- Orminda, faze as honras da casa; eu venho já!

Mal o coronel tomou o bonde, duas taças se chocavam no ar, por cima da mesa, festejando ruidosamente aquele encontro, há tanto desejado. E de tal forma foi a saudação, que, ao reentrar em casa, o coronel foi encontrar os dois no seu gabinete, num colóquio de excessiva intimidade. Apanhado em flagrante, o advogado pôs-se de pé, lívido. Apoiado na porta, que empurrara, o coronel encarou-o trovejando:

- Sim, senhor, Sr. Dr. Fernandes!

Pálido, trêmulo, o advogado lembrou-se da fama do coronel, e sentiu que chegara a última hora da sua vida.

- Sim, senhor! - tornou o militar.

E abrandando a voz:

- Você não tem medo de uma congestão?

XXI

INDEFESA

3 de março

O Dr. Edgard esperava há meia hora na sala de visita a formosa dona daquela casa, e evocava, saudoso, o tempo em que a conhecera.

Fora há seis anos, em uma festa náutica, em Botafogo. Passageiros da mesma lancha, ele acompanhava um páreo, detidamente, com o seu binóculo de marfim, quando alguém lho arrancou violentamente dos olhos, gritando-lhe com alvoroço:

- Ora, empreste-me! sim?

Ele voltou-se, e viu que o seu binóculo estava ao serviço de dois olhos tão verdes como as águas, e, preso deles, não conseguiu mais, nesse dia, acompanhar um número sequer daquela campanha esportiva, travada nas ondas.

Dentro de seis meses estavam noivos. E um dia, por um arrufo, por um breve ciúme sem causa, acabou-se o noivado, partindo ele para a Alemanha, a aperfeiçoar os estudos, ficando ela, jovem e linda, no Rio, onde se casara, afinal, com um advogado, quatro meses antes do seu regresso.

Ele sabia do casamento quando a encontrou, uma tarde, na Avenida:

- Então, de volta, doutor? - exclamou a maravilhosa criatura, estendendo-lhe a mão pequenina, numa grande alegria.

- É verdade. E venho encontrá-la mais formosa, mais risonha, e, com certeza, mais feliz!

- Sabe que me casei? - tornou a moça, despedindo-se - Apareça em nossa casa. Teremos imenso prazer em recebe-lo.

E apertando-lhe a mão, com um olhar, que era um relâmpago:

- Vá! Sim?

Recapitulava o jovem médico esses episódios, origens daquela visita, quando ressoaram passos na escada, e surgiu à porta da sala, deslumbrante de graça e de mocidade, a figura que mais o encantara na vida.

- Oh!... - exclamou, deslumbrado, pondo-se de pé.

Sentaram-se os dois, pálidos, entreolhando-se em silêncio. De repente, com uma audácia imprevista, ele aventurou, incontido.

- Estás deslumbrante, Ecilda! Estás tentadora... maravilhosa... irresistível!

E, de súbito, cerrando os dentes:

- Se tu não gritasses... eu me precipitaria sobre ti, cobrindo-te de beijos!

A moça, trêmula, os lábios entreabertos, olhou-o nos olhos, e, levando à garganta a mãozinha branca, sussurrou, apenas, a meia-voz, tranqüilizando-o:

- Estou... rouca!

E fechou os olhos...

XXII

A SANTA CASA

(Paródia a uma sátira de Emílio de Menezes)

5 de março

As nuvens começavam a tomar uma cor arroxeada, anunciando o fim do crepúsculo e o inicio de uma noite soturna, quando alguém bateu, medroso, à luminosa porta do Céu.

- Quem bate? - gritou, de dentro, São Pedro, arrastando as suas alpercatas de couro e tilintando, trêmulo, a sua enorme penca de chaves.

- Sou eu! - respondeu de fora o recém-chegado.

Aberta a portinhola do parlatório, informou o retardatário haver sido despachado da vida naquele dia, com destino à mansão dos justos, onde devia, portanto, ser admitido.

- Aqui? - observou o apostolo, espantado. - Aqui. não. Todas as pessoas que tinham de entrar hoje, já entraram. Não falta mais nenhuma.

E bondoso:

-- Não será engano seu, meu filho? Você não terá sido despachado para o Purgatório?

O peregrino admitiu a hipótese de uma confusão, e, saltando de nuvem em nuvem, como quem salta de rochedo em rochedo, foi ter à porta de fogo do Purgatório, onde bateu.

- Quem vem lá? - trovejou um anjo, escancarando, com um gancho, a rubra fornalha das penitências.

O desventurado deu o seu nome, e, momentos depois, reabria-se o forno.

- Há engano na direção, camarada! - informou o guardião, soprando, severo, a sua vermelha espada de chama. - O seu lugar não será no Inferno? Aqui, é que não é. Não consta nada sobre a sua pessoa!

E, fechando a fornalha, deixou-o na amplidão, tristonho, solitário, abandonado, tendo aberto, apenas, à sua frente, o caminho escuro do Inferno. Resolvido a cumprir o seu destino, tomou o infeliz esse rumo, até ir ter, corajoso, à porta da caverna formidável.

- Quem é? - rugiu, de dentro, uma voz que parecia um trovão.

Tremendo de pavor, o mísero deu o seu nome, e esperava, já, o instante de ser precipitado nas enormes caldeiras ferventes, quando o portão monstruoso se abriu, dando passagem aos chavelhos de ferro de Belzebu.

- Quem o mandou para cá? - indagou o bruto, acendendo os olhos.

- A mim? - gemeu o desventurado. - Ninguém. Fui ao Céu, disseram-me que não era lá. Fui ao Purgatório, e informaram-me a mesma coisa. Logo, é aqui, por força.

O Diabo meditou um instante, consultou umas chapas de ferro incandescente que estavam próximas, e protestou, firme:

- Aqui, também, não é!

- Não?

- Não; absolutamente! - tornou o Capeta. - O seu lugar deve ser mesmo no Céu. O Pedro está muito velho, já, e, com certeza, não viu bem. Volte lá! Volte lá!

Um momento depois, estava o desgraçado, de novo, à porta do Paraíso.

- Outra vez? - observou São Pedro, paciente.

- Outra vez, sim, - confirmou, grosso, a vítima. - O meu lugar não é no Purgatório, não é no Inferno; deve ser, forçosamente, aqui. Veja bem!

O apóstolo enforquilhou os óculos no nariz, abriu o livro em que estavam registrados os nomes das almas, folheou, folheou, folheou, e, de repente, voltando-se, indagou:

- Diga-me uma coisa: onde foi que você morreu?

- Eu? Na Santa Casa do Rio de janeiro! - respondeu a vítima.

E o chaveiro, escancarando a porta:

- É aqui mesmo, entre!

E mostrando o livro:

- A culpa não foi minha, filho! Você devia vir para cá, daqui a vinte anos!

E aborrecido:

- Esta Santa Casa tem me estragado a escrita!...

XXIII

O GATO E O PASSARINHO

8 de março

A encantadora Palmirinha Camargo havia concluído o seu curso de datilografia na Escola Remington, quando, uma tarde, participou, contente, a Dona Brasília:

- Sabe, mamãe, arranjei um emprego excelente. O ordenado é de trezentos mil réis!

A bondosa senhora deixou a costura, endireitou os óculos, e, chamando a filha para perto de si, ordenou:

- Senta aí. E onde é esse emprego?

A moça, risonha e inocente, explicou:

- É no escritório do Dr. Alexandre.

- E quem é esse Dr. Alexandre? É aquele que esteve, outro dia, no baile da Violeta?

Palmirinha confirmou, ingênua, e Dona Brasília, tomando-lhe as, mãos, retorquiu, sensata:

- Queres que te fale com franqueza, minha filha? Esse emprego não te convém.

A menina fixou com os seus grandes olhos claros e puros a doçura do rosto materno, e a boa senhora continuou:

- Tu és uma jovem inexperiente, um anjo que não conhece os espinhos do mundo. O Dr. Alexandre é um moço esperto, um homem habituado a lidar com as fraquezas alheias. Se se tratasse de um escritório grande, de uma casa em que trabalhassem outras moças ou outros advogados, eu não teria receio; mas, assim, com ele e tu, sozinhos, no escritório, o meu coração não poderia ficar descansado.

- Oh, mamãe! - estranhou a moça, corando. - A senhora não tem confiança em mim?

Dona Brasília compreendeu a ofensa que fizera àquele pedaço do seu coração, e, para não insistir, atalhou:

- Tenho, minha filha, tenho toda a confiança em ti.

E concordou, beijando-a nos olhos:

- Está bem, vai. Amanhã, podes ir para o teu novo emprego.

A moça pulou, contente, beijando sofregamente a testa, a cabeça, a face, a boca e os olhos maternos, e, à noite, ia recolher-se, quando D. Brasília chamou:

- Palmira?

- Senhora! - acudiu a, mocinha.

Bondosa e grave, a digna senhora pediu:

- Traze daí a gaiola do teu canário.

A moça foi à copa, e voltou com a gaiola, onde um canarito dormia, sossegado, muito encolhido, muito amarelo.

D. Brasília abriu a portinhola daquele carcerezinho de ouro, e, indo à cozinha, voltou com o gato na mão.

- Para que é isso, mamãe? - indagou a moça, espantada.

Para meter na gaiola, com o canário.

- Oh, mamãe! - gemeu a mocinha, horrorizada.

- Que mal faz? - indagou D. Brasília, sorrindo significativamente para a filha. Tu não tens confiança no teu canário?

Palmirinha compreendeu o alcance da lição, e atirou-se nos braços maternos, prometendo, entre soluços:

- Eu não irei, minha mãezinha; deixe estar, eu não irei!

E não foi. No dia seguinte, contrariando as esperanças do gato, o canário amanheceu feliz e simples, cantando na sua gaiola...

XXIV

A NOIVA DO DONATO

11 de março

- Foi um caso espantoso, único, inacreditável, Sr, conselheiro, esse de que fui testemunha, e que eu lhe conto, embora o senhor já o tenha lido no "D. Quixote".

E puxando o relógio, para ver se ainda havia tempo, o ilustre advogado santista começou, em estilo rápido, vivaz, nervoso, pictural, a referir-me a horrível história, sob o alpendre da Central, à hora, quase, do noturno de luxo:

- "Era no sitio do "Pau d'Alho", em Vila Bela, onde se haviam casado, naquele dia, o Donato e a Rosinha. Um despotismo de gente, como o senhor não imagina. A Vila, as cercanias, a redondeza toda, no "Pau d'Alho". Até veio gente de Ubatuba! Calcule!"

Uma olhadela ao relógio, e continuou, telegráfico:

"Violeiro: o Chico Messias. Dança-se "baile" no terreiro. Chico Messias tira da toeira uma coriza lacrimosa, de valsa sem motivo."

E acrescentou, num parênteses:

"O caiçara diverte-se sem sorrir. Diverte-se por obrigação. Sua alegria é uma hipótese triste, socavada de ancilóstomos."

E reatou, descritivo, unindo o gesto à palavra, dando voltas no meio do alpendre:

- "Damas e cavalheiros vão e vem, e tornam a ir, e tornam a vir, e dão-se as mãos, e balanceiam, e remoinham, e desnalgam-se, numa choréa que tem passos de lanceiros, atitudes de Pedowa e desengonços tupinambás."

Outra interrupção, para um surto histórico:

"D. Pedro Fernandes Sardinha, quando foi do seu caso com os Aimorés, devia ter assistido a paulovices muito semelhantes."

E tornando, com uma soberba vivacidade de descrição:

"Ela, a noiva, dentro do vestidinho clássico, de manzuk branco, o filó pendente da mão. Tem olhos baixos e constrangidos de protagonista. Ele, traz a fatiota de elasticotine, que tem reflexos envernizados e o suplemento da gravata escura, de tricô frouxo, escorrida pelo "adão".

E descreve a festa:

- "Ambos assistem sem apetite o apetite dos convidados. Há um mastigo odioso de bocados grandes, e o cair do bocado, goela abaixo, com um rumor de rã assustada em pântano adormecido. Comem! E comem!

Nova consulta ao relógio, e a descrição despenhou-se, para ganhar tempo:

"Hora da sobremesa. O Inocêncio, professor publico, vai falar! Recuo de cadeiras; engolir de últimos bocados; bigodes engordurados que se chupam. - Atenção, senhores! O Inocêncio vai falar."

Como se estivesse na festa, eu próprio me empertigo, e o ilustre viajante repete, assombroso:

"Vai falar o Inocêncio. E começa tan, tan, tan, e meus senhores, e o himeneu, e a família, e o tugúrio, e mais isto, e mais aquilo e... e.... e o Inocêncio perde o fio, e embrulha, enrola, engole, mastiga, encaroça, embatuca. Estende-se um vágado coletivo, pesado como um paralelepípedo. O Inocêncio, que empunha o copo, guina a boreste gorgolões de cerveja."

Noutro parênteses, o meu amigo sentencia, outra vez:

- "Há situações que obstruem a vida como caroços de jabuticaba!"

E engatando, de novo, com os olhos no trem, desabou, história abaixo:

- "Coitado do Inocêncio! Felizmente, o Dito Pintassilgo, que lhe estava ao lado, encontrou uma saída. Levanta-se, sorri, braceja, e, alto e sonoramente:

- "Viva a noiva!

"O viva desonerou aquele constrangimento, como um laxativo. Um alívio geral.

- "Viva!...

"E o Dito prosseguiu, vitorioso:

- "Viva os óio da noiva!

- "Vivôooo!

- "Viva os dente biturado da noiva!

- "Viva!

- "Viva o pescoço da noiva!

- "Viva!

- "Viva os peito da noiva!

- "Viiiiva!

Tomando fôlego, o narrador continuou, elétrico:

- "Os vivas desciam, conselheiro, assustadoramente, noiva abaixo. O noivo, o Donato, piscou, por três vezes, os olhos, apreensivo. De repente, remexe-se, mergulha a mão pela cinta, toma da garrucha trochada, coloca-a à sua frente, na mesa, e, com aquele sorriso seu, desdentado, e a vozinha gutural, oitava acima:

- "Oie, seus convidado: não é por nada: mas eu queria apreveni, que os "viva" que passá do imbigo da noiva pra baixo... eu sapeco!"

Último apito. Um pulo do meu amigo, um barulho de ferragens, um resfolegar fatigado de máquinas. E o trem desapareceu.

XXV

O DATILÓGRAFO

15 de março

Trajando o mesmo figurino, a mesma seda, as mesmas cores, as duas irmãs, tão distintas na sua mocidade, na sua graça e no seu espirito, entraram, na sessão das 2,15, no Cinema Avenida. Estavam as duas sentadas uma ao lado da outra, na mesma fila, quando na primeira parte da "fita" penetrou no salão um vulto masculino, que, tateando na meia escuridão desnorteadora de quem vem da claridade, se foi sentar junto à mais jovem das duas formosas espectadoras. No primeiro intervalo, desabrochadas no teto estucado as constelações de fogo das lâmpadas, a moça olhou, de soslaio, o seu vizinho, que a examinava, por sua vez, com dissimulada indiferença. Era um rapaz moço ainda, de rosto escanhoado e face morena, que vestia com apuro, patenteando na correção das maneiras, na superioridade do olhar, na displicência dos gestos, uma certa distinção.

Apagadas, de novo, as luzes, começavam as duas a olhar a continuação do "film", quando a vizinha do rapaz sentiu, de leve, no seu cotovelo, um contato estranho. Olhou, sem voltar a cabeça, e viu: era o rapaz que avançava pelo seu braço, levemente, suavemente, o pelotão dos cinco dedos, com um jeito de quem toca piano, ou de quem sonda cautelosamente o terreno. Percebendo a indiferença da vítima, os dedos iam avançando, marchando, caminhando, roçando ligeiramente com as pontas a epiderme sedosa da moça, e já estavam perto do ombro, a caminho do colo, quando a mais velha desconfiou de alguma coisa, e indagou da irmã:

- Quem é esse moço que esta aí a teu lado?

E ela, de modo a ser ouvida pelo vizinho:

- Não sei; mas parece que é... datilógrafo!

Quando a sala clareou e a "Remington" consertou o decote, o moço havia desaparecido.

XXVI

O MILAGRE

17 de março

Um escritor francês, cujo nome complicado me fugiu, como um pássaro, da gaiola da memória, escreveu seiscentas páginas de prosa cerrada sobre a psicologia do milagre. Acha ele que os milagres são possibilíssimos, esquecendo-se, entretanto, de citar um episódio famoso, que circula, entre nós, com diversas modalidades, nos anais da anedota nacional.

D. Eufrosina estava doente do fígado, e submetia-se, uma tarde, sem o assentimento do marido, ao exame que o Dr. Abdenago Fortuna lhe exigira, quando bateram repentinamente no portão da casa.

- Minha Nossa Senhora! é meu marido! E eu não queria que ele soubesse que eu me submeti a exame médico! Como há de ser, meu Deus?!...

E repetia:

- Como há de ser, minha Nossa Senhora?!!...

As mulheres possuem, felizmente, uma qualidade providencial que falta aos homens: removem com facilidade os obstáculos mais graves, mesmo os que nos parecem, à primeira vista, irremovíveis. E foi essa virtude que socorreu, nessa tarde, D. Eufrosina, a qual, criando ânimo, pediu, aflita, ao jovem esculápio:

- Fuja, doutor! Pelo amor de Deus, fuja! Esconda-se ali, depressa!

E apontou o alto do guarda-vestidos, para onde o médico subiu, trêmulo, afim de evitar um escândalo e uma tragédia.

Dois minutos depois o chefe da casa batia à porta da alcova, onde a mulher o metralhou, logo, com uma saraivada de beijos.

- Meu amor! -- exclamava a moça, abraçando-o.

- Meu amor! - plagiava o marido, correspondendo.

Sentados no leito, passaram os dois a conversar, íntimos, sinceros, carinhosos. E discutiam matéria econômica, isto é, as dificuldades financeiras do casal, quando, em certo momento, o marido aludiu a uma letra de vinte contos, que devia pagar naquele mês.

- Coitado! - soluçou a mulher. - Deixa estar, que tudo será arranjado!

E, levantando os olhos para o teto, com a fé no coração:

- Aquele que está lá em cima, lá no alto, há de nos ajudar! Tem confiança!

E assim aconteceu. Para pagamento da letra, o Dr. Abdenago, aquele "que estava lá em cima", entrou com dez!

XXVII

A SURPRESA

19 de março

Educada no tumulto das rodas elegantes. cujas festas mundanas freqüentava desde criança, Mlle. Altair havia se tornado, aos dezessete anos, uma das moças mais em evidência na sociedade do Rio de janeiro. O pai, médico ilustre, mais devotado à família da ciência do que, talvez, à ciência da família, descurava, em absoluto, as pequenas coisas do lar. E era de tal forma, nesse ponto, a sua despreocupação, o seu descaso ingênuo, mas prejudicial ao próprio conceito, que Mlle. Altair se tornou notável, em breve, na cidade, pelo exagero escandaloso dos seus vestidos.

As suas "toilettes" eram, realmente, clamorosas, e em inteiro desacordo com a inocência da sua idade. Trajando sempre as fazendas mais leves, a sua preocupação, sugerida por figurinos inadequados, consistia em deixar à mostra a perna, até o joelho, e o colo, até o estômago. Quanto ao resto do corpo, não havia quem não o adivinhasse na transparência indiscreta do crepe da China ou da seda lavável, que lhe modelavam sensualmente, num abraço voluptuoso, os seios túrgidos, a cintura flexível, as ancas ondulantes, patenteando, como num desafio à bestialidade humana, o conjunto harmonioso das formas.

Um dia, foram os círculos elegantes surpreendidos com uma notícia sensacional: o Dr. Edmundo Figueira, um dos espíritos mais equilibrados e vigorosos da nova geração de juristas brasileiros, havia pedido em casamento Mlle. Altair Sobreira, formosíssima e conhecidíssima filha do Dr. Peixoto Sobreira!

Realizado o casamento, em que a noiva se apresentou mais nua do que nunca, e despedidos os convidados, penetraram os noivos, felizes, na alcova nupcial. Envolta, de leve, na seda finíssima, ou, antes, na névoa imperceptível do vestido, a recém-casada fazia lembrar as estátuas de mármore, veladas convencionalmente para o momento da inauguração. Anfitrite, com os pés mergulhados na espuma e vestida, apenas, pela bruma fugitiva do Arquipélago, não seria, talvez, mais nua, e mais bela!

Entreolhavam-se, os dois, na alcova silenciosa, ninho de ouro e seda armado para um casal de pombos amorosos, quando o noivo se adiantou, e, sorrindo, anunciou a moça, tomando-lhe, carinhoso as mãos geladas e brancas:

- Sabes, meu amor, que eu te preparei uma novidade?

- Tu? Que é? - indagou a noiva, casando, de repente, a curiosidade à aflição.

O noivo suspendeu os travesseiros da cama, e, tirando dali uma camisa de noite, trabalhada em seda branca, e opaca, afogada até o pescoço e descendo até o tornozelo. pediu:

- É para que me faças uma surpresa, dando-me uma sensação inédita nesta noite de casamento.

E entregando-lhe a camisa:

- Eu nunca te vi... vestida!...

XXVIII

AS FOLHAS

21 de março

Lançados para longe da pátria pelos movimentos revolucionários que estalaram depois da guerra, o conde Ricardo e o príncipe Romualdo conversavam, displicentes, naquele começo de verão oriental, à sombra do grande platano do parque do hotel, trocando idéias e fazendo comentários discretos sobre a situação política dos países em que haviam reinado. Estirados nas suas cadeiras de viagem, mostravam, ambos, um profundo desinteresse pelas coisas vulgares do mundo. E era por isso que, de vez em quando, mergulhavam em silêncio profundo, quedando a acompanhar com os olhos, melancólicos e soturnos, as oscilações da fumaça clara que atiravam, preguiçosos, para o ar.

O dia estava morno, quieto, parado, anunciando para a noite uma nova tempestade do Deserto. E era nisso que pensavam os dois fidalgos ilustres, despojos elegantes de dois tronos desmoronados, quando o príncipe começou a seguir com os olhos, uma a uma, as folhas amarelas que se desprendiam da árvore, e que se vinham espalhar no chão, estendendo pelo solo um crespo tapete de topázio. De repente, lançando para o espaço uma nuvem de fumaça cheirosa, o príncipe observou, alisando a barba negra e cerrada:

- Como os homens se assemelham às árvores!...

O conde Ricardo fechou o livro que principiara a ler, e, erguendo para a fronde os seus olhos muito azuis e muito doces, esperou a explicação do companheiro.

E o príncipe continuou:

- Enquanto a árvore está verde, e tem seiva, nenhuma folha o abandona, senão arrancada à força. Venha, porém, o verão, e, com ele, a falta de seiva, a decadência da planta, e nenhuma quer ficar mais presa ao ramo!

Compreendendo o símbolo, o conde acentuou, sacudindo, triste, a cabeça leonina:

- São como os amigos...

E o príncipe confirmou:

- São como os amigos...

No silencio do dia, as folhas, uma a uma, continuavam a cair...

XXIX

AS JACOBITAS

25 de março

Chegada há pouco do Oriente, onde visitara, em companhia do esposo, alguns países exóticos, D Margaridinha descrevia aos seus vizinhos de mesa, no banquete oferecido ao casal pela Exma. viúva Santos Soutelo, algumas curiosidades que mais lhe haviam ferido a atenção.

- A coisa mais interessante que eu assisti, - dizia, sorridente, enxugando com o guardanapo de linho os seus polpudos lábios cor de cereja, - foi um costume dos jacobitas, seita religiosa cujo mosteiro visitamos no Malabar.

As damas vizinhas descansaram o talher para ouvir melhor, e D. Margaridinha, irrequieta e risonha, contou:

- Quando um jacobita se casa, o seu primeiro cuidado consiste em ir ao templo no mosteiro, e pedir ao seu Deus que lhe dê uma descendência numerosa e sadia, para maior esplendor da religião. Feito isso, toma diversos pedaços de papel, escreve em cada um deles um nome de homem ou de mulher, mete-os em um canudo de bambu que os sacerdotes lhe oferecem, e, colocado a certa distancia do ídolo, sopra o canudo, com toda força. Impelidos assim, os papeluchos partem rodopiando e quantos caiam sobre o altar, tantos serão os filhos que o casal deve ter!

- Esplêndido! - exclamaram as senhoras, rindo. - Esplêndido!

À observação, porém, de uma que lhe ficava mais próximo, a linda viajante objetou, jovial:

- Eu? Experimentei, sim!

E sem olhar para o marido, que a fixava, severo, continuou:

- Alfredo tem, como não é segredo, um desejo enorme de ter um filhinho. E é natural, coitado! Enquanto estamos no vigor da idade, os filhos não nos fazem falta, porque viajamos, passeamos, nos divertimos. Mas, depois, na velhice, é que se sente a tristeza, o abandono, a solidão... Pensando nisso, nós fomos, um dia, no Malabar, ao templo dos jacobitas.

- A senhora?

- Então? Era o último recurso, filha! Chegando lá, Alfredo escreveu uma porção de nomes, bem uns cinqüenta, em outros tantos pedaços de papel, meteu-os no bambu e soprou com toda a força.

- E quantos caíram no altar? - indagaram as senhoras, interessadas.

E madame:

- Nenhum, meninas, nenhum!

E explicou:

- Ele, na sua ansiedade, havia posto papel demais no bambu, e...

- E...

- Entupiu o canudo!...

E soltou uma das suas gargalhadas sonoras, altas, musicais, enquanto o marido, vermelho, se engasgava, a um canto, com a sobremesa, à semelhança dos canudos do Malabar...

XXX

A CHÁCARA

29 de março

Nestes tempos, em que, embora com dinheiro no cofre, no Banco ou no bolso, não se encontra, no Rio, uma casa, mesmo de segunda ordem, para alugar ou adquirir, é de meter inveja a felicidade do comendador Severiano Braga de Souza, com a sua chácara monumental, situada, como numa floresta, em pleno coração do bairro de Botafogo.

A propriedade do comendador Severiano constitui, realmente, um dos orgulhos do Rio de janeiro. O prédio, que pertenceu ao saudoso visconde de Coroatá, e, mais tarde, à baronesa de Itapirú, é, depois das reformas a que foi submetido, um verdadeiro palácio. O que, porém, valoriza, ainda mais, tudo aquilo, é o terreno beneficiado pela mão dos seus antigos proprietários, e conservado com um zelo religioso pelo opulentíssimo capitalista que atualmente o possui.

Informado da existência dessa preciosidade, eu próprio me fiz, um destes dias, convidado, e atirei-me a visitar o comendador. E foi, para mim, um deslumbramento aquele conjunto de maravilhas, em que se casam, numa suave harmonia que embala os sentidos, a inteligência da Arte e a graça inocente da Natureza.

- Quer, então, ver esta sua casa?... - observou, satisfeito, o antigo presidente do Banco Popular Carioca.

E, tomando-me pelo braço, levou-me a percorrer, um a um, os pontos encantadores da chácara.

- Isto aqui, - observou-me, apontando-me um enorme viveiro em que pipilavam toda a sorte de passarinhos nacionais ou exóticos, - isto aqui é o meu encanto, de todas as manhãs. Temos aqui o melro, o corrupião, o rouxinol, o periquito, a cambachirra, o curió, enfim, duzentas ou trezentas aves diferentes.

E, como se eu não soubesse, explicou-me, com ênfase:

- É o aviário!

Mais alguns passos, e, ao fundo de uma gruta iluminada, onde peixinhos de mil espécies rabeavam, como jóias vivas, em pequenos depósitos de água límpida, esclareceu-me, com a mesma erudição:

- É o aquário!

Examinados os recantos da caverna encantada, que me transportava, como num sonho, ao fundo maravilhoso do oceano, passamos adiante. Era uma espécie de clareira, de várzea chã, onde se estendia; cheirando e florindo, um tapete macio, úmido, multicor, de ervas aromáticas.

- É o herbário! - ensinou-me o comendador.

Nesse momento, porém, chamaram a minha atenção umas latadas enormes, artisticamente dispostas, formando caminhos ensombrados. Endireitei os óculos para examinar melhor, e vi: tratava-se de uma admirável plantação de parreiras abertas em frutos, em que os cachos, amarelos, uns, roxos outros, pendiam, sumarentos, brilhantes e numerosos, como bolhas de ouro ou de vinho suspensas miraculosamente das folhas.

- Magnífico! - exclamei, deslumbrado.

O comendador inflou a barriga, sorriu, desvanecido, e, estendendo o dedo no rumo do parreiral, explicou, com orgulho:

- É o "uvário"!