LXI

ALTRUÍSMO

("Diário" de uma senhora recentemente chegada da Europa)

2 de junho

"Domingo, 6. Regresso, enfim, à pátria querida, e aos braços do meu marido. Após dois anos de ausência, embarquei, ontem, às 5 horas da tarde, em Lisboa, aonde cheguei anteontem, de Paris. O navio vai repleto de passageiros, principalmente de emigrantes, embarcados em Vigo e no Porto. O mar apresenta-se bem, e a viagem está sendo feita sem novidade.

Segunda-feira, 7. - Tudo continua bem a bordo. Os passageiros de 1ª classe, na sua maior parte argentinos, bebem e jogam, no "bar". No tombadilho, alguns ingleses, que se dirigem ao Rio e a Buenos-Aires, fumando displicentemente. Algumas francesas que conduzem vestidos feitos para a sociedade carioca; e três ou quatro famílias brasileiras, que se conservam nos seus camarotes.

Terça-feira, 8. - A viagem continua excelente. Em palestra com o imediato, este me informou que vão a bordo, para o Rio, Santos, Montevidéu e Buenos-Aires, 1.275 passageiros. Uma verdadeira cidade flutuante, em que não há cinco pessoas que reciprocamente se conheçam!

Quarta-feira, 9. - O mar permanece calmo, e o céu prenuncia bom tempo. À mesa do almoço, notei que o comandante olhava insistentemente para mim, distinguindo-me entre as outras senhoras. Achei esquisita a insistência, e fiz-me de desentendida. À noite, não desci para o jantar.

Quinta-feira, 10. - O comandante continuou, hoje, à mesa, a olhar-me com desusado atrevimento, a ponto de esquecer-se do talher e do whisky. É um inglesão alto, robusto, de quarenta e poucos anos presumíveis, bigode louro, tez corada e fina, olhos azuis como o oceano. Um verdadeiro tipo de marujo britânico. Entretanto, a sua insistência irrita-me. Por quem me tomará ele?

Sexta-feira, 11. - Após o jantar, o comandante Wiliam desceu da casa de comando ao tombadilho, procurando conversar comigo, em inglês. Fiz todo o possível para impedir uma declaração indelicada, não o conseguindo. Não é que o homem está mesmo apaixonado?

Sábado, 12. - Esta situação começa a incomodar-me. O comandante passou o dia quase todo a perseguir-me, insistindo em declarar-me a sua paixão desordenada. Tenho a impressão de que o homem enlouqueceu. E eu, sozinha, sem um amigo, sem um conhecido que me defenda! Como é perigoso para uma senhora viajar só!...

Domingo, 13. - O comandante enlouqueceu, positivamente. Hoje, à tarde, aproveitando um momento em que ficamos sós no salão de música, apertou-me os pulsos com violência, dizendo-me que não lhe é possível resistir mais. Diz ele que, se eu me não entregar à sua paixão louca, ele meterá o navio a pique em pleno oceano, fazendo perecer todos que nele viajam, Dai-me forças, meu Deus! Dai-me coragem!

Segunda-feira, 14. - Que dia horrível, este! Como um louco, o cabelo e o bigode revoltos, os olhos inchados pela insônia e pelo desejo, o comandante declarou-me, trêmulo sob palavra de honra, que, se eu não for à meia-noite de hoje, ao seu camarote, meia hora depois ele fará explodir o navio, em uma catástrofe de que se não salvará ninguém. Que situação a minha! Tende piedade de mim, minha Nossa Senhora da Penha! Iluminai-me, minha Virgem Maria!

Terça-feira, 15. - Salvei da morte 1.275 passageiros! Não haverá outros navios correndo perigo no mar?"

LXII

MODAS...

5 de julho

A imprensa carioca tem mostrado, nestes últimos tempos, um desusado interesse pelo Japão. "A Noite" mantém em Tóquio um correspondente epistolar, o Sr. Carlos Abreu, e não há quem não tenha lido, e quem não admire, no Rio, as crônicas deliciosas que o nosso cônsul em Kobe, o Sr. Osório Dutra, está mandando para "O Imparcial". Despertada assim a fome de pitoresco do publico, não há, hoje, quem não deseje conhecer a terra do Mikado, com as suas "geishas", os seus crisântemos, as suas cegonhas azuis e as suas cerejeiras cor de rosa, enfim, o Japão verídico ou de legenda, com os seus pequenos leques de seda e os seus grandes templos de porcelana.

Entre os curiosos desse gênero está, como era natural, o antigo engenheiro da Central do Brasil, Dr. Guilherme Viana, cuja velhice decorre, hoje, no meio da melhor prosperidade econômica, ao lado da esposa, a virtuosa Dona Saturnina, da filha viúva, D. Odete Meireles, e da sua encantadora sobrinha Maria Otávia, botão de rosa de dezoito pétalas, que é, pode-se dizer, uma segunda filha do casal. Interessado, dessa forma, pelo Império do Sol Nascente, o velho engenheiro perguntou-me, outro dia, se eu possuía nas minhas estantes alguma obra sobre o Japão. Eu lhe falei em cinco ou seis, entre as quais as dos nossos patrícios Drs. Oliveira Lima, Luiz Guimarães e padre Feitosa, e o meu amigo escolheu:

- Mande-me o livro do padre; deve ser mais fiel, mais de acordo com a verdade. E mande-me outro qualquer, de autor estrangeiro.

No dia seguinte remetia-lhe eu a "Viagem ao Japão", de monsenhor Feitosa, e uma obra de Mabel Bacon, americana, traduzida, há anos, para o francês, com o titulo de "Jeunes filles et femmes au Japon". E ontem fui visitar o meu velho amigo, a quem encontrei com os dois volumes em cima da mesa, rodeado das três senhoras que lhe compõem a totalidade da família.

- Excelente livro, o do padre; - observou-me, de sopetão, o meu velho camarada. - Achei apenas um pouco exagerado, naquela parte em que ele diz ter visto os soldados de um destacamento tirarem a farda, e descansarem, nus, à vista de toda gente, ao lado das baionetas.

- E o outro livro, o da americana? - indaguei.

- Também tem exageros, excessos abomináveis, como, por exemplo, esse em que a autora conta que, no interior do país, as camponesas trabalham ao sol, cultivando a terra, tendo sobre o corpo unicamente um chapéu de abas largas, e, à cintura, um leque, amarrado por um cordão.

- Como é essa vestimenta? - indagou

D. Odete, intervindo.

- Um chapéu de palha, e um leque à cintura, - repetiu o pai.

- E nada mais! - acentuou.

A essa informação, D. Saturnina juntou as gordas mãos sobre o estômago, espantada:

- Meu Deus! Parece até "toilette" do Municipal!

Mas não terminou. Escandalizada com aquela heresia, a viúva interrompeu-a, protestando, logo, não em nome da decência, mas em nome do bom gosto:

- Oh, mamãe, assim, também, não!

E acrescentou, com horror:

- Onde a senhora já viu a gente ir ao Municipal de chapéu?!...

LXIII

OS SUSPENSÓRIOS

8 de julho

Um advogado ilustre, pessoa da minha estima, contava-me, há dias, um caso curioso que o impressionara profundamente. Procurado por uma senhora, que desejava divorciar-se, fizera ele a petição competente, com todo o segredo, e foi levá-la ao juiz. E regozijava-se com a surpresa que ia causar ao péssimo esposo da sua cliente, quando abriu a boca estupefato: no cartório havia, já, uma petição do marido, que apelava para o mesmo recurso judiciário apoiado nas mesmas razões em que se apoiava a mulher. E, como conversa puxa conversa, contou-me o ilustre causídico uma história interessante, que ele havia lido, poucos dias antes, em certa revista estrangeira.

Homem de gênio desigual, o Sr. Fabiano preparava-se para sair, quando, de repente, começou a perder a paciência. Faltava-lhe o suspensório, que devia estar preso à calça vestida na véspera, e era com indignação que ele berrava, com as mãos segurando o cós:

- Não o viste, Maria?

A criada respondia-lhe negativamente e ele trovejava para a mulher:

- Não o viste, Marcela?

De repente, coordenando as idéias, ajustando o "puzzle" das lembranças recentes, calou-se, acalmando completamente a tempestade. E ia fazer o possível para que ninguém falasse mais em tal coisa, quando a mulher chegou à porta do quarto, avisando:

- Fabiano, aí tem uma pessoa que quer falar contigo, com urgência.

- Quem é?

- O Sr. Octaviano, da farmácia.

Um minuto depois, mostrando nas olheiras escuras as infinitas torturas de uma noite de insônia, entrava no quarto, usando da intimidade que ligava as duas famílias, o Sr. Octaviano, farmacêutico de renome. Estava soturno, grave, circunspecto, e, sentindo-se a sós com o amigo, explicou, misterioso, o motivo daquela visita matinal:

- Você sabe - começou, - que eu tinha absoluta confiança em minha mulher. Em minha casa não entrava, jamais, outro homem. Entretanto, ao penetrar, ontem, no nosso quarto de dormir, encontrei isto debaixo da cama. Veja!

E, dizendo isso, arrancou do bolso do sobretudo, que não tirara, um par de suspensórios azul, com fivelas de prata, que exibiu, confiante, aos olhos espantados do amigo.

A essas vozes, porém, a porta escancara-se e, de um pulo, aparece no meio do quarto uma figura de mulher. Era D. Marcela que, tendo visto e ouvido tudo pela fechadura, bradava, branca de cólera:

- Mas, que é isso, afinal? Esse suspensório é o teu, que estas procurando há meia hora!

E cerrando os punhos, no rumo do esposo:

- Indigno! Canalha! Miserável! Não fico nesta casa mais, nem um minuto! Cachorro!...

E prorrompendo em soluços:

- Bandido! Infame! Desgraçado!..

Atarantado com o que acabava de ouvir, o Sr. Octaviano recuara até à parede, boquiaberto. Pálido, tonto, desorientado, o Sr. Fabiano fizera outro tanto, em sentido contrário. E ia a comédia por essa altura, com a moça a arrancar furiosamente os cabelos no meio do quarto, quando apareceu à porta a criada, trazendo alguma coisa nas mãos.

- Patrão, achei os seus suspensórios.

A patroa parou de chorar, estacando, de olhos escancarados, pálida, de cera. E a criada continuou:

- Estavam na secretária da senhora, ao lado do canapé.

Recobrando animo, o Sr. Fabiano encaminhou-se, rápido, para a rapariga, e vendo que os suspensórios eram cinzentos, e não azuis, como os seus, trovejou, furibundo:

- De quem são estes suspensórios, senhora?

Mas não obteve resposta. D. Marcela. apavorada havia saído pela porta dos fundos.

LXIV

A BARONESA

12 de julho

Um médico ilustre, de incontestável influencia no seio da família carioca, está utilizando, ultimamente, o seu prestigio pessoal para que as senhoras eliminem, de uma vez, o habito de pintar os cabelos. Acha ele que uma cabeça alva, ou, pelo menos. polvilhada de prata, é um sinal de insubstituível respeitabilidade, que se não pode, de modo nenhum, esconder ou disfarçar. E tamanho tem sido o resultado dessa campanha metódica, persistente, silenciosa, contra a vaidade feminina, que sobem a dezenas, já, as senhoras que se reconciliaram com o destino, conformando-se com as conseqüências inevitáveis da idade.

Esse costume de mudar a cor dos cabelos não é, entretanto, um vício dos nossos tempos. As atenienses conheceram-no, conheceram-no as mulheres de Veneza, criadoras do "louro veneziano". e não houve corte européia posterior à Renascença em que não se procurasse um processo de ocultar à curiosidade do mundo, sempre impiedoso, a neve que nos avisa, alvejando-nos a cabeça, que é chegado, enfim, o triste inverno da vida... Há trinta anos, ainda, era isso em voga no Rio de janeiro. E era sobre isso mesmo que eu meditava, uma destas tardes, ao despedir-me da minha veneranda amiga a Sra. baronesa de Caçapava, cujos oitenta e seis anos constituem, em nossos dias, uma das relíquias mais preciosas da mais alta sociedade do Império.

Estendida na sua "chaise-longue", com os pés, pequeninos e engelhados como duas flores murchas, abrigados sob uma delicada toalha de seda, a boníssima titular sorria, carinhosa, com a sua boca muito pequena, escondida em um dos vales do rosto recortado de rugas, quando eu lhe falei nos inícios do nosso conhecimento.

- O senhor andava pelos trinta anos; não era, conselheiro?

Eu fiz as contas, mentalmente, embaraçando-me nos algarismos.

- Não estou certo, Sra. baronesa; não estou certo - respondi. - Recordo-me, porém, que, certa vez, ao vê-la, fiquei impressionadíssimo com a sua figura. A Sra. baronesa, nesse tempo, lembro-me bem, tinha o rosto ainda moço, mas apresentava na cabeça, já, acentuando a sua beleza, numerosos fios de prata.

- Foi em 1871, - confirmou a velha fidalga, sorrindo benevolamente com a sua boquita de criança, encolhida e funda, privada de todos os dentes. - Foi em 1871; eu tinha, então, trinta e sete anos.

- De outra vez que a vi, - tornei, - o que mais me impressionou foi, ainda, a beleza do seu cabelo. A sua cabeleira, sempre farta, abundante, maravilhosa, era, ainda, inteiramente negra.

A baronesa olhou-me novamente, com um sorriso de saudade, que era um doce perdão para nós ambos, e acentuou, bondosa:

- Foi em 1880; eu tinha quarenta e seis...

E, olhando-me significativamente, pediu-me, com a vergonha brilhando, como uma brasa, na cinza fria dos olhos:

- Cubra-me os pés, conselheiro; sim?

LXV

A FOME NO AMAZONAS

15 de julho

São alarmantes, aflitivas, desesperadoras, as notícias provenientes da Amazônia, relatando o que têm sido, ali, os horrores da fome. Reduzidas à miséria extrema, centenas de famílias vivem, naquelas regiões inóspitas, sem remédios, sem roupa, sem alimentação, num retrocesso forçado à vida selvagem. As casas, que outrora permaneciam abertas à margem das estradas e dos rios, fecharam-se de todo, para que o viajante não veja, de passagem, a nudez das pessoas que nelas habitam. Milhares de senhoras, de moças. de meninas, refugiaram-se nos aposentos, por não terem um andrajo, um molambo, um trapo, sequer, para velarem as partes vergonhosas do corpo. E, se a carência de vestidos é tamanha, que se poderá dizer, então, da falta de alimentos? O episódio narrado pelo Sr. deputado Pereira Teixeira. que dele teve notícia por um amigo recentemente chegado do Acre, é desses que dissolvem em lágrimas as fibras mais duras do coração.

Seringueiro destemido, o Antônio Cajapió havia resistido, quanto possível, na sua barraca de Santa Ifigênia, à fúria da calamidade. Avisado de que os vapores de Manaus não iriam mais àquelas paragens, levando mantimentos, enquanto a borracha não subisse de preço, meteu-se ele no seu casebre, a consumir o que lhe restava: carne seca, feijão, farinha, bolachas, e, quando acabou tudo, sentou-se na canoa, e pôs-se de viagem. descendo o rio.

Ao fim de dois dias, descobriu, à beira da grande estrada fluvial, um barracão, que se achava completamente fechado. Intrigado, encostou a embarcação, amarrou-a a uma árvore da ribanceira e, como não tivesse mais um punhado de farinha para a fome do dia, resolveu disputá-lo, mesmo pela violência, aos moradores daquela tapera. Com esse intuito encaminhou-se para a porta, e bateu:

- Ó de casa!

Ninguém respondeu.

- Ó de casa! - insistiu.

Como o silencio continuasse, o caboclo procurou uma fresta da porta, e olhou: dentro, estiradas na paxiúba do soalho, estavam, completamente despidas, a dona da casa, mulher ainda jovem, e duas irmãs desta, que lhe faziam companhia. Espiando pela fresta, viu ele que a família se encontrava em conciliábulo, procurando, talvez, um meio de atender ao viajante, quando não havia mais, na casa, quem tivesse um vestido ou um pedaço de pano para a nudez. De repente, como se tivessem deliberado alguma coisa, ele viu, do seu ponto de observação, que a dona da casa se afastava do grupo e, tímida, assustada, vergonhosa, chegava à mesa, tomava um prato vazio, que ali se achava, e, colocando-o no lugar em que devia estar a folha de parreira, encaminhar-se para a porta. Um minuto mais, a porta abria-se, e o caboclo recuava, espantado, ante o tipo escultural que lhe caía sob os olhos e cujo corpo só era vedado à sua curiosidade no ponto em que estava coberto pelo prato.

- Que deseja? - indagou a cabocla, de olhos baixos, desconfiada.

O viajante examinou, por um instante, a mulher, pensou dois minutos, e, sem se conter, trovejou:

- Almoçar!...

À tarde, quando a canoa partiu, as três mulheres juntavam com uma vassoura os cacos da louça. espalhados no chão...

LXVI

OS "REDDIS"

18 de julho

A alma humana é uma caverna tão ponteada de esconderijos e retorcida de zig-zags que ainda não houve na terra um homem, por mais atilado e meticuloso, que chegasse a conhecer a metade, sequer, do seu próprio coração. Quando a gente supõe haver encontrado uma vida simples, singela, sem complicações nem subterfúgios, eis que se abre diante de nós um abismo, um vulcão, uma boca subterrânea, capaz de engolir o peregrino que lhe busca desvendar o mistério. Mesmo no que diz respeito à educação, isto é, às qualidades adquiridas pelo indivíduo, essas surpresas não são raras nem, geralmente, pequenas. E era disso mesmo que eu me convencia, mais uma vez, há poucos dias, ao voltar da última recepção do coronel Anfrísio Guimarães, pai do Dr. Claudemiro Guimarães cujo nome é, pode-se dizer, um dos orgulhos da nova geração de advogados brasileiros.

Homem de sólidos capitais, o coronel, assim que o filho casou, teve, não se sabe por que, uma desinteligência com a esposa, a velha e virtuosa D. Cherubina, passando a residir no palacete do novo casal, cujas despesas, de nove contos por mês, são enfrentadas galhardamente pela sua fortuna. Mme. Claudemiro, a nora, tem pelos cinqüenta anos do sogro uma adoração filial. O filho, o Dr. Claudemiro, respeita-o duplamente como pai, e, principalmente, porque o velho lhe desculpa sempre, como os bons pais, perante a esposa, as suas longas vigílias jurídicas fora do lar. E como a vida lhes corra, a uns e a outros, como um ribeiro japonês entre margens de crisântemos eu me dou, de vez em quando, ao prazer de visitá-los, concorrendo para a enchente das suas salas nas costumeiras recepções dos domingos.

Um desses dias, fui. E conversávamos em uma roda sobre costumes orientais, quando, de repente, a propósito de casamentos, eu me lembrei dos "reddis", povo da Índia meridiona1, cuja história havia lido na véspera, e contei, com certo desvanecimento:

- Os "reddis", nesse particular, são originalíssimos. Entre eles, a mulher de quinze ou vinte anos pode esposar um menino de seis, o qual será criado por ela. Enquanto, porém, a criança não cresce, ela fica, por seu turno, entregue a um parente do marido, geralmente ao pai deste, seu sogro, o qual poderá substituir o filho em todas as eventualidades. E este esposo interino preenche de tal forma as suas funções de tutor, que o marido, quando cresce encontra, já, a casa repleta de crianças, que, sendo seus filhos, são. também, seus irmãos.

Como se fizesse em torno de mim um silencio geral, eu o aproveitei, continuando:

- Esses maridos não ficam, porém, prejudicados; sendo as suas mulheres mais velhas do que eles, e os "seus" filhos quase da sua idade, eles terão, mais tarde, a compensação, fazendo com os filhos o que o pai fizera com eles. E assim vivem muito bem.

Enquanto eu contava essa história, notei que alguém se afastava do grupo. E quando acabei, fiquei estarrecido com uma surpresa: junto de mim, com a minha bengala e a minha cartola na mão, estava o coronel Guimarães, que me perguntava, pálido, com ligeiros tremores no "cavaignac":

- O conselheiro pediu o seu chapéu?

LXVII

FORTUNATO

22 de julho

Em luta permanente com a adversidade, Fortunato segurou, uma noite, entre as mãos, a cabeça da mulher, e confessou o seu propósito:

- A fome, como tu vês, bate-nos à porta. Sem pão e sem amigos, a vida, neste povoado, é-me, de todo, impossível. É preciso, pois, que eu me prive do teu carinho, e parta, sozinho, pelo mundo, em busca de terra menos ingrata. Tudo que possuímos dar-te-á, com certeza, para uns vinte ou trinta meses. Com o teu trabalho honesto, poderás dilatar a utilidade desses recursos, fazendo-os durar cinco anos. Se, dentro desse prazo, eu não tornar aos teus braços e ao teu amor, considera-te viúva, porque, de certo, eu morri.

Na manhã seguinte, após um esforço inaudito para libertar-se das cadeias de cristal e mármore que eram as lágrimas e os braços da esposa jovem, Fortunato punha às costas, preso ao seu cajado de caminhante, uma trouxa com a roupa indispensável, e desaparecia, limpando os olhos úmidos na manga da camisa grosseira, na curva da estrada por onde passara, há um ano, trazendo a noiva pela mão.

Errando de terra em terra, de fazenda em fazenda, eram-lhe companheiros, por toda a parte, o infortúnio impiedoso, a má sorte inclemente, os contratempos inevitáveis. Debalde se esforçava, infatigável, para juntar um pecúlio, amontoando algumas moedas com que levasse ao lar um pouco de felicidade e fartura. As suas tentativas mais tímidas, mais simples, mais modestas, eram, sempre, como uma árvore infeliz, cujas folhas fossem dispersadas, ainda tenras, por um sopro de tempestade.

Ao fim de quatro anos, porém, como por um milagre, tudo mudou. As moedas multiplicaram-se em seu bolso, acumulando-se, amontoando-se, como se a fortuna, arrependida de tanta avareza, se tivesse predisposto a compensar a usura anterior com um gesto de espantosa prodigalidade.

Meses depois, nas vésperas, quase, do prazo concedido à mulher, Fortunato encheu de moedas o seu grande surrão de couro, prendeu-o à cintura, e, velho, barbado, desfigurado pelos sofrimentos inomináveis, tomou, a pé, o caminho da terra natal. Ao cabo de quatro semanas, com os pés sangrando, viu, enfim, da curva da estrada por onde se fora cinco anos antes, a sua aldeia e o seu lar. Trôpego, magro, faminto, mas disposto. mesmo assim, a dar uma sensação de alegria à companheira querida, encaminhou-se, de manso, para a porta e bateu. Uma criança de quatro anos, linda e forte, em quem se repetiam os traços inolvidáveis da esposa, surgiu na sala pequenina, e chamou para dentro:

- Papai!

- Heim? - respondeu, do compartimento contíguo, uma voz masculina.

- Aqui está um homem - informou, alto, a pequenita.

Fortunato cambaleou numa síncope,. encostando-se ao portal, para não cair. Antes, que o dono da casa aparecesse, entregou o saco de ouro à criança, retomou o seu bordão de peregrino, e partiu...

LXVIII

O LIMO

24 de julho

Mme. Costa Mafra particulariza-se na sociedade carioca pela originalidade das suas perguntas, que lhe colocam o marido, de vez em quando, nas piores situações. Roda em que ela se encontre, dissolve-se invariavelmente com uma das suas consultas inesperadas, a mais simples das quais poria em dificuldades, talvez, o mais hábil dos sofistas. Como, porém, todo veneno possui um antídoto, Dona Arabela tem, para neutralizar as suas perguntas indiscretas, as respostas irretorquíveis do conselheiro Brazilino do Amaral.

Desse duelo entre a inocência e a esperteza, ou, melhor, entre a ingenuidade e a experiência, fui eu próprio testemunha, há dias, no salão de chá do Jockey-Club, quando, a propósito do Sr. deputado José Bonifácio, que havíamos encontrado à porta, Mme. Costa Mafra perguntou:

- Mas, é verdade, conselheiro: por que é que os homens têm o rosto ponteado de barba, de pelos irritantes e incomodatícios, quando as mulheres possuem, em geral, o delas macio, liso, limpo, sem um fio de cabelo?

O conselheiro olhou o Dr. Mafra, que o fitava suplicante, passou a mão pelas barbas veneráveis, e começou a explicar, com os olhos na toalha:

- Como a senhora sabe, o homem foi feito de barro, e a mulher foi tirada da sua costela.

- Isto eu sei.

- Pois, bem. Feito em primeiro lugar, com alguns punhados de barro umedecido, o homem foi posto a secar ao sol, como todas as obras de cerâmica. A senhora sabe, porém, que, todo barro molhado, quando não apanha sol convenientemente, cria limo; e foi o que aconteceu ao homem, cujo rosto, na ocasião de ser o corpo submetido ao fogo solar, ficou sombreado por um ramo de árvore, na oficina do Paraíso.

- E a mulher?

- A mulher, não. Tirada da costela do homem, e posta com o rosto para o sol, ficou naturalmente, com o cabelo apenas na cabeça, posta à sombra, mas, em compensação, sem o limo na face.

D. Arabela descansou o queixo de bonequinha alemã no polegar e no indicador da mão esquerda, e, ao dar com os olhos no próprio braço de mármore posto a descoberto até a "avenida da ligação", insistiu:

- E em toda a parte aonde o sol não chegou, criou limo?

O conselheiro ia responder, mas, ao abrir a boca, fechou-a, de novo. É que, defronte dele, com a xícara suspensa e os olhos fuzilantes, o Dr. Mafra intimava, com significativos tremores na voz:

- Conselheiro, tome o seu chá...

LXIX

A VIRGEM

27 de julho

Após aquela noite de festa, em que dançara desesperadamente com todos os rapazes que lhe pediam essa honra, amanheceu mademoiselle Beatriz com febre alta, e uma tosse forte, com grandes dores no peito. Chamados os Drs. Miguel Couto, Austregésilo e Aluísio de Castro, foi debalde que eles recorreram, em conjunto, às possibilidades da ciência: ao segundo dia a encantadora brasileirinha falecia, fazendo desfilar pela rua D. Mariana o mais suntuoso enterro de virgem que já se viu no bairro de Botafogo.

Quebrados, assim, os grilhões que a prendiam a este mundo de "fox-trots" e "maxixes", foi mle. Beatriz tão alva como a de Dante, bater, sorrindo, à luminosa porta do céu. E foi um alvoroço, como dificilmente se imagina. Tratando-se de um acontecimento raro, e que se torna cada vez menos freqüente, a recepção das virgens se reveste, no céu, de uma sumptuosidade excepcional. Para ver, e saudar, de perto, a heroína, juntam-se no vestíbulo dos empíreo, agitando palmas de rosas, todos os bem-aventurados. E mal a recém-chegada põe o pé no batente florido, rompe por todo o Paraíso o coro dos anjos, cujas vozes se misturam, doces, meigas, comoventes, às das onze mil companheiras de Santa Úrsula.

Era essa a recepção que aguardava mle. Beatriz, quando ia ficando tudo inutilizado por um incidente imprevisto. Anunciada pelos serafins, de longe, do carro de ouro das nuvens, a aproximação da venturosa, ordenou S. Pedro que Santa Cecília e Santa Matilde o ajudassem no reconhecimento da nova eleita de Deus, estabelecendo a sua identidade. Para isso era preciso, entretanto, despojá-la da sua grinalda, dos seus enfeites, das suas complexas roupas terrenas, deixando patente, com a pureza do seu corpo, a inocência do seu coração.

Assim, porém, que principiou este serviço delicado, as santas recuaram, escandalizadas. E, entreolhando-se, chamaram São Pedro.

- A moça não é esta, meu santo!

O chaveiro correu, aflito, e fixando os olhos puros no corpo virginíssimo de Beatriz, indagou, espantado:

- De que foi que você morreu, minha filha?

- De pneumonia, meu santo!

O apostolo encarou-a, incrédulo, e insistiu:

- Você não está enganada, não?

- Não, senhor.

- Você não morreu em algum desastre de estrada de ferro, de alguma queda de aeroplano, de algum encontro de automóveis?

- Não, senhor! - teimou a moça, firme, sacudindo a cabeça.

- Que significam, então, - tornou o santo, - essas equimoses no seu colo, no seu estômago, no seu ventre, nas suas pernas como quem foi arrastada de bruços pelo calçamento?

Beatriz baixou os olhos negros pelo seu claro corpo maravilhoso, e, sorrindo:

- Ahn! Não é nada, não!

E explicou, com graça:

- É que eu morri, dois dias depois de um grande baile, em que dancei o tango com os rapazes mais elegantes do Rio de janeiro!

E, desatando a rir, entrou, entre os anjos, no céu...

LXX

MELHORAMENTOS...

31 de julho

A grande preocupação nacional do momento, conforme é notório, é a visita de sua majestade o rei da Bélgica. Da Gávea à Tijuca, do Cais Faroux às águas paludosas do rio Pavuna, reinam uma febre, uma atividade, uma fúria de empreendimentos verdadeiramente assombrosa. Nunca se viu, no Rio, atacados de uma só vez, tão grande número de melhoramentos. A cidade modifica-se, rejuvenesce, transforma-se, das pedras das ruas à crista dos monumentos.

Aí estão, demonstrando a influencia benéfica dessa visita real, as notícias da imprensa, registrando essas alterações. Calça-se uma rua dos subúrbios? Para que? Para o rei Alberto ver... Modifica-se o palácio Guanabara? Reforma-se o jardim da praça Maná? Aumenta-se o edifício da Prefeitura? Com que intuito? Para o rei Alberto ver... Até a pintura das carroças de lixo, ordenada pela Limpeza Publica, já foi atribuída à próxima visita de sua majestade.

Isso, no que está patente, visível, positivo. Os melhoramentos privados, secretos, de iniciativa da população, estes ainda são mais numerosos, mais sérios, mais significativos do nosso entusiasmo. Dezenas de vestidos de baile, "para o rei Alberto ver", já foram encomendados aos grandes costureiros daqui, de Paris e de Londres. Há, mesmo, até, nas rodas elegantes, quem se esteja entregando, pessoalmente, na cidade, com o mesmo fim, a melhoramentos mais interessantes.

Um destes dias, entrava eu no Instituto de Beleza, onde ia comprar um vidro de tintura para o cabelo, quando encontrei, no salão de espera, a minha velha amiga D. Sofia Pedreira, que aguardava, ali, pacientemente, a lindíssima viúva Odete Aires, que se achava, no momento, no gabinete do cabeleireiro. Começávamos nós a conversar sobre coisas sem importância, quando a formosíssima senhora suspendeu o reposteiro, e apareceu à porta, radiando e cheirando, como uma grande rosa que desabrochasse num vaso.

- O senhor por aqui, conselheiro? - gritou a encantadora criatura, com alvoroço, e com todos os dentes, estendendo-me, de longe a sua mão rosada e fina, onde as unhas faiscavam, rubras, como corais.

- É verdade, - expliquei, titubeando.

- Vim comprar uma caixa de pó para dentes... E a senhora?

- Eu? - respondeu, rindo. - Eu... Olhe?

E, espiando para um lado e para outro, a ver se não nos observavam, suspendeu até o ombro deslumbrante a manga curta e larga do finíssimo vestido de seda, mostrando a parte inferior e extrema do lindo braço de mármore, fina, alva, lisa, como de uma criança.

- Veja! - ordenou-me.

E já no primeiro degrau da escada, por trás do leque, piscando-me um olho, com brejeirice:

- Para o rei Alberto ver.

LXXI

A CAÇADA

8 de agosto

A noticia de que S. M. o rei Alberto ia realizar uma caçada em terras da família Prado, em São Paulo, trouxe à minha lembrança, tão confusa nestes últimos tempos, o fantasma de uma velha saudade.

Estudante, ainda, na Paulicéia, fui eu convidado, um dia, pelo meu colega de turma, o atual conselheiro Antônio Prado, para um recreio venatório em propriedade de sua família, na serra do Cubatão, onde abundavam, ainda, naqueles tempos, o veado, a paca, o porco do mato, e, em especial, as onças, os famosos tigres americanos, que faziam enorme estrago na criação.

Organizada a comitiva, composta de numerosos cavalheiros da melhor sociedade paulista daquela época, partimos para São Bernardo, indo pousar, ao fim de dois dias de viagem, na fazenda do Encantado, pertencente a Exma. D. Veridiana, no ponto mais alto da serrania. No terceiro dia, enfim, partíamos todos para a mata, montando vinte e oito cavalos e conduzindo quarenta e sete cães, distribuídos pelos diversos membros do séquito.

Separados uns dos outros, ia eu beirando um córrego marulhoso que rolava da penedia, quando ouvi, ao longe, entre a reza religiosa da selva, o barulho da matilha, anunciando a caça. Esporeei o cavalo, venci um bosque de ipês, atravessei uma clareira, e cheguei ao local. Em uma furna da montanha, evitando, feroz, a pontaria dos caçadores, estava uma onça, acuada, mostrando os dentes enormes, agudos, afiados, para uma dezena de cães!

- Atire, doutor! - pedi, apeando-me, ao Dr. Antônio Prado.

- É impossível! - observou-me o futuro estadista.

A posição era, realmente, péssima. Defendido por umas raízes entrelaçadas à boca da furna, o felino não só impedia o avanço dos cães, como impossibilitava, em absoluto a pontaria dos caçadores. Vários tiros já haviam sido disparados pelos atiradores mais adestrados, conseguindo eles, apenas, enfurecer o animal, que empregava toda a sua agilidade na defesa.

De repente, ouviu-se um galope no rumo da furna; e, um minuto mais, apeava-se ao nosso lado, risonha, jovem, arrebatadora, a formosíssima Sra. Corrêa Aires, cuja beleza constituía, então, com o seu moreno rosado, seus olhos azuis e os seus finíssimos cabelos castanhos, o maior dos orgulhos de São Paulo.

- Que é? - perguntou, mostrando, num sorriso, os seus lindos dentes de neve, a furiosa amazona batendo com o chicotinho de ouro na sua pequenina bota de montaria.

- Uma onça! - explicamos, todos, a uma voz.

Nesse momento, a onça. que olhava, fixa, para fora. deteve os olhos na moça, como deslumbrada. A linda caçadora tirou do cinto de veludo uma pistola de caça, de cabo de marfim, levou-a à altura dos olhos, e. fazendo pontaria no felino, que a fitava, esquecido de si esmo, disparou. A fera deu um salto de dor, estorcendo-se. A matilha investiu, latindo, penetrando a furna. Um instante depois era a onça arrastada para fora, morta.

Sorridente. Fresca, maravilhosa, a divina caçadora colocou o pezinho sobre o corpo da fera, buscando-lhe a ferida. De repente, descobriu-a:

- Foi no coração! - disse.

E. encarando Antônio Prado, desafiadora:

- Morreu como certos homens...

Nós, em torno, baixamos os olhos.

LXXII

A MANICURA

7 de agosto

O merceeiro Agostinho Pereira Alvares, proprietário de um dos estabelecimentos mais afreguesados do Engenho Novo, não havia saído, jamais, do seu bairro, para fazer a barba e cortar o cabelo. Sempre que, de dois em dois meses, lhe vinha a idéia de praticar essas medidas higiênicas, mandava ele chamar o barbeiro à sua casa de comércio, submetendo-se à tesoura e à navalha do fígaro em um compartimento nos fundos da mercearia.

Um destes dias, porém, com a noticia de que toda a cidade entrava em melhoramentos para receber o soberano dos belgas, resolveu o futuro capitalista vir, também, à zona urbana, para uns reparos estéticos na sua própria pessoa. Tornava-se preciso que o rei o encontrasse de cabelo cortado e barba feita, e era evidente que esse trabalho só podia ser efetuado por um verdadeiro mestre da arte, como deviam ser, naturalmente, os do centro da cidade.

Tomada essa deliberação, meteu-se o acreditado comerciante, sábado último, em um bonde, e saltou na rua Floriano Peixoto, enfiando-se, pressuroso, pela primeira barbearia que encontrou aberta.

- Cabelo e barba! - pediu, arrogante, libertando-se, com um soco, do formidável colarinho que o asfixiava.

Enfiada, que foi, a toalha pelo pescoço do freguês, começou o barbeiro, um mulato de nariz de batata e cabeleira revolta, a tosquiar a vítima. Terminado o serviço, que não primava, aliás, pelo asseio, o fígaro convidou-o, gentil:

- O "comendador" não quer "fazer" as unhas? Nós temos, aí, para os fregueses, uma boa manicura...

Nesse momento apareceu à porta dos fundos, escandalosamente decotada, e rescendente de si mesmo, uma cafusa de dentes alvíssimos, que cumprimentou, sorrindo; o Agostinho. O merceeiro correspondeu ao cumprimento, olhou as unhas formidáveis, que ele costumava aparar com a faca de cortar sabão, e aquiesceu, condescendente:

- Vamos lá ver isso! Vamos lá!

Uma hora depois, com os dedos ardendo, e com as unhas cortadas até o sabugo, saía o honrado negociante a porta da barbearia. regressando, de pronto, ao Engenho Novo.

No dia seguinte, à tarde, foi, porém, a rua Floriano Peixoto alarmada por um vozerio infernal. Avisado do caso, o guarda civil correu para o local, e viu: no salão da barbearia, andando de um lado para outro, como um possesso, o Agostinho, do Engenho Novo, trovejava, indignado:

- Patifes!... Canalhas!... Ladrões!... Estavam os dois combinados para essa traição, os miseráveis!

Penetrando na casa, o guarda interveio:

- Que é isso, camarada? Que foi que aconteceu?

E o merceeiro, apoplético:

- Foi este homem; este barbeiro, que, de combinação com aquela mulher, me fez uma patifaria, uma canalhice, uma perversidade. Eu vim aqui para cortar o cabelo, e ele me pôs na cabeça uns piolhos; e para que eu não os pudesse tirar, chamou a mulher, e mandou-me cortar as unhas. Veja isto!

E com as grandes mãos estendidas, mostrando os dedos enormes, de sabugo à mostra:

- Canalhas!... Patifes!... Miseráveis!...

LXXIII

MOCIDADE...

9 de agosto

O teatro Fênix enchera-se, naquela tarde de junho, para o espetáculo científico, anunciado pelo Dr. Wilhelm Korner, antigo reitor da Universidade de Iena. As frisas, os camarotes, as cadeiras, as galerias, regurgitavam de espectadores, quando, após a apresentação do sábio pelo eminente professor Austregésilo, começaram as provas práticas de magnetismo animal.

- Senhores, - começou, arrastando as sílabas, o ilustre homem de ciência, - a minha primeira demonstração, para que me não tomem por um aventureiro, um intrujão, um impostor, será coletiva. Entre vós, há velhos e moços, pessoas que sentem em si os arrebatamentos da juventude, a alegria, a saúde e o entusiasmo dos verdes anos, e anciãos que pendem para o túmulo, e que mal se arrastam por si mesmos. Para demonstrar-vos que essas energias são meros produtos da sugestão, eu vou fazer com que todos sejam postos em uma condição média, isto é, que os moços se sintam mais velhos, e que os velhos se sintam, de súbito, rejuvenescidos. A experiência durará dez minutos e começará com o simples estender da minha mão, para terminar com um sopro da minha boca, em momento oportuno.

E unindo o gesto à palavra, estendeu a mão sobre a platéia, ordenando o milagre.

O resultado, de acordo com o que ele havia prometido, não se fez esperar. Cavalheiros de idade avançada, que para ali haviam ido nos braços vigorosos dos netos, experimentavam as juntas, exercitavam os músculos, passavam as mãos pelas rugas, estranhando o ânimo novo que lhes distendia os nervos, reavivando-lhes o sangue, a memória, o coração. Nenhum deles se mostrava, no entanto, mais alegre, mais feliz, do que um ancião de cabeça inteiramente alva, que para ali havia ido a arrastar-se, e que tomara lugar em uma das primeiras filas. Agitava-se ele, porém, risonho, contentíssimo, na cadeira, quando soou a hora tremenda.

- Senhores, - trovejou o sábio, - vai terminar o encantamento. Cada um vai ser o que era antes. Vou soprar.

Nesse momento, manifestou-se um reboliço na platéia. Curiosos, olhando para o lado do palco, os espectadores perguntavam o que teria acontecido, quando viram, de pé, na primeira fila, um ancião, nervoso, pálido, agitado, empunhando um revólver. Era o octogenário respeitável, que, trêmulo, com a voz rouca, intimava o magnetizador, com o dedo no gatilho:

- Se soprar... mato-o!

E desabou na cadeira, chorando...

LXXIV

A PÉROLA

(APÓLOGO PERSA)

Em que se demonstra que a fraqueza humilde é mais proveitosa do que a grandeza arrogante.

11 de agosto

Rugiam, lá em cima, os ventos tempestuosos do inverno, quando a gota d'água, trêmula e pura, se sentiu, de repente, sozinha no espaço, desgarrada, por um sopro mais forte, da nuvem em que se formara. Medrosa, humilde, pequenina, voava a mísera arrebatada pelas doidas ondas aéreas, quando viu, de súbito, precipitando-se na mesma direção, mugindo, rolando, redemoinhando, uma enorme tromba marinha, que abalava o céu com a fúria da sua carreira. Ao perceber a límpida gota assustada, a tromba monstruosa, - equóreo traço de união colocado entre o mar e as nuvens, - parou, de repente, rodando, sobre si mesma, e indagou, irônica:

- Aonde vais tu, miserável poeira da chuva? Que fazes por estes caminhos perigosos do espaço, arrastada, como entidade invisível, pelo mínimo sopro dos ventos?

Trêmula, encolhida, assaltada por diferentes ondas de ventania, a gota límpida não pôde, sequer, responder, e a tromba continuou, zombeteira:

- Já pensaste, acaso, no destino que te espera? O vento que nos conduz a ambas, arrasta-nos, furioso, para o oceano largo, que reboa, lá em baixo, clamando por nós. Ouves?

A gota d'água prestou atenção, e percebeu. Para além da neblina que cobria a terra, em baixo, reboavam, apavorantes, os grandes soluços do mar. Como um bando de tigres enfurecidos, as ondas uivavam, despedaçando-se umas de encontro às outras, ao mesmo tempo que a água, revolvida pelos braços da tempestade, chorava, gemia, guaiava, num tumulto de vozes desesperadas.

Percebendo o susto da gota humilde, a tromba insistiu:

- Lá em baixo, estão o meu túmulo e o teu. A mim, porém, me espera um destino que é, por si mesmo, a minha glória. Tombando no oceano, eu constituirei uma parte dele mesmo, tendo, como ele, as minhas ondas, os meus vagalhões, as minhas espumas. Serão necessários dias talvez uma semana, para que as minhas águas sejam absorvidas pelo mar. E tu, que te aguarda? Mal tombes em um cabeço de vaga, em um simples floco de espuma, desaparecerás, anônima, para sempre, sem que fique, na terra ou no céu, a sombra do teu vulto ou da tua memória!

- Meu Deus!... gemeu a gota d'água. apavorada, pálida, trêmula, no horror daquele extermínio próximo.

Nesse instante, um trovão continuo, forte, soturno, anunciou a vizinhança do oceano. Rajadas formidáveis abraçaram a tromba d'água, arrebatando-a, abalando-a, desconjuntando-a. Outras rajadas, precipitando-se em sentido contrário, tomaram com o seu hálito a gota humilde, a mísera poeira de chuva, e, horas depois, serenada a tempestade, aparecia, de novo, ao sol, a face tranqüila do mar.

Dias passaram-se, porém. E uma tarde, quando da tromba marinha já não existia, sequer, na memória do oceano, um pescador do mar Índico encontrou na praia, dentro de uma concha, uma gota petrificada e brilhante. Era a gota d'água do céu, que Deus, ouvindo a prece da humildade, salvara das águas...

LXXV

OS MÉDICOS

15 de agosto

Há três ou quatro anos, quando se cuidou, no Rio, da fundação da Casa do Médico, destinada a recolher, na velhice, os numerosos náufragos da profissão, Paulo Araújo e Belmiro Valverde definiram, em interessante memorial, o que é, em verdade, a vida de um apóstolo da Medicina.

Não há, realmente, na terra, profissão economicamente mais ingrata do que a de médico. O indivíduo que entra na loja de um comerciante seu amigo, paga pelo preço comum, ou com pequeno abatimento, a mercadoria de que faz aquisição. O barbeiro não faz a barba gratuitamente a ninguém. O advogado não defende causas sem remuneração, nem o ferreiro conserta de graça a ferramenta dos operários que lhe são íntimos. Ao médico, entretanto, não se faz a mesma justiça. Pelo fato de ser o seu trabalho relativamente leve, e consistir, apenas, em pôr algumas palavras sobre uma folha de papel, acham os clientes que lhes não devem pagar por tão pouco, esquecendo-se que essas palavras, isto é, essa receita, constitui o fruto de vários anos de estudo, de esforço, de experiência, em que foram consumidas diversas dezenas de contos. Porque o médico não gasta aos olhos do cliente, senão um pouco de tinta e uma tira em branco, é o seu trabalho depreciado, especialmente pelos camaradas, pelos amigos, pelos íntimos, que não fariam, jamais, o mesmo, se se tratasse de um engenheiro ou, em esfera mais baixa, de um simples engraxate. E daí o número relativamente grande de médicos que envelhecem na pobreza, e que entram, afinal, no carro escuro da Morte, pela porta de ferro da miséria.

Tomando em consideração esse abuso é que aparecem, de vez em quando, por toda a parte, as reações justas, enérgicas, inteligentes. É conhecida, por exemplo, a história daquela senhora que, pretendendo arranjar uma receita de certo médico ilustre, indagou, ao encontrá-lo:

- Doutor, que é que o senhor faz quando tem tosse?

O médico percebeu o plano e respondeu, grave:

- Tusso, minha senhora!

A reação mais pitoresca e eficaz de que há noticia foi, porém, a de que tomou a iniciativa, há dias, o notável mestre Sr. Dr. Miguel Couto. Certa senhora de fortuna, habituada a tratar-se com o ilustre clínico brasileiro por meio de receitas obtidas de surpresa, resolveu, da última vez, fazer o mesmo cercando-o em plena. Avenida:

- Ó doutor, como está?

- Bem, D. Veneranda; e a senhora, como tem passado?

- Eu? - acudiu a matrona atingindo o ponto a que pretendia chegar. - Eu não estou passando bem, não, doutor.

E logo, em seguida:

- Tenho sentido uma dor aqui, no peito, que responde aqui, no fígado, causando-me uma aflição enorme, que me não deixa dormir. Que é que o doutor acha que seja?

O Dr. Miguel Couto olhou para um lado e para outro na Avenida fervilhante de gente, e ordenou:

- Vamos ver isso, D. Veneranda. Dispa-se!

- Como? - estranhou a velha, recuando.

- Dispa-se, para fazer-lhe um exame, tornou o médico.

A matrona arregalou os olhos, escandalizada, e protestou:

- O senhor pensa que eu sou maluca?

E o Dr. Miguel, no mesmo tom:

- E a senhora não acha que eu tenho o meu consultório no meio da rua?

A velha eclipsou-se.