A harpa do crente, de Alexandre Herculano

Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
www.bibvirt.futuro.usp.br
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa
www.ipn.pt/opsis/litera/

A HARPA DO CRENTE

A Semana Santa
A Voz
A Arrábida
Mocidade e Morte
Deus
A Tempestade
O Soldado
D. Pedro
A Vitória e a Piedade
A Cruz Mutilada

NOTAS

Eis o poema da minha mocidade: são os únicos versos que conservo desse tempo, em que nada neste mundo deixava para mim de respirar poesia. Se hoje me dissessem: faz um poema de quinhentos versos acerca da Semana Santa. eu olharia ao primeiro aspecto esta proposição como um absurdo: entretanto, eu mesmo há nove anos realizei esse absurdo. Não é esta a primeira das minhas contradições, e espero em Deus, e na minha sincera consciência, que não seja a última.
Quando compus estes versos, ainda eu possuía toda a vigorosa ignorância da juventude; ainda eu cria conceber toda a magnificência do grande drama do cristianismo, e que a minha harpa estava afinada para cantar um tal objecto. Enganava-me: a Semana Santa do poeta não saiu semelhante à Semana Santa da religião. O que é esta, de feito? Um poema representado, um drama, cuja essência é um facto universal, o maior de todos; o que veio mudar ideias, civilização e destinos do género humano inteiro. Tinha eu forças para o tratar? Não por certo: porque até hoje só houve um Klopstock; talvez só um haverá até à consumação dos séculos.
Assim, eu corri as memórias do passado, e as esperanças do futuro; chorei sobre Jerusalém e sobre a minha pátria: subi aos Céus, e desci aos Infernos: saudei o Sol, e as trevas da noite; em tudo e em toda a parte busquei inspirações, menos onde as devia buscar; porque acima da minha compreensão estava o meu objecto – a redenção e as suas consequências. Foi disto justamente que eu não tratei; e era disto que eu devia tratar, se o Pudesse ou soubesse fazer.
Porque, pois, não acompanharam estes versos os outros da primeira mocidade no caminho da fogueira'' Porque publico um poema falho na mesmíssima essência da sua concepção?
Porque tenho a consciência de que há aí poesia; e porque não há poeta, que, tendo essa consciência, consinta de bom grado em deixar nas trevas o fruto das suas vigílias.

(1) A loucura da Cruz não morreu toda:

Verbum enim Crucis pereuntibus quidem stultitia est.
Porque a palavra da Cruz é, na verdade. uma estultícia para os que se perdem.
Paul. ad Corinth. C 1-18

 (2) ignoto vate / Teceu: ainda que os salmos se atribuam geralmente a David, há cerca disso muita incerteza, e o que, ao menos, parece indubitável é que alguns lhe não pertencem, por falarem no cativeiro de Babilónia e trazerem alusões a épocas mais recentes. Verdade é que se chegou a crer herética semelhante opinião; mas os padres gregos, e com eles Santo Hilário e S. Jerónimo, julgam absurdo atribuí-los todos a David. Esdras, voltando do cativeiro, foi quem reuniu estes hinos, e nessa colecção é provável fizesse entrar todas as poesias hebraicas deste género lírico e religioso.

(3) E ao esconder-se o Sol entre as montanhas / De Bethoron: Bethoron inferior, cidade situada perto da Gadara, ou Gazara, e de Bethel, e todas elas em uma série de montanhas no extremo de tríbo de Efraim, ao ocidente de Jerusalém. Cumpre não a confundir com a outra Bethoron, ou Bethra, a quatro milhas de Jerusalém para o norte, no caminho de Siquém, ou Naplusa.

(4) O SALMO:

Commota est, et connemuit terra: iundamenta montium cunturbata sunt, et commota sunt, quoniam iratus est eis.
Ascendit fumus in ira ejus: et ignis a facie ejus exarsit: carbones succensi sunt ab eo.
Inclinavit coelos et descendit: et caligo sub pedibus ejus.
Et ascendit super cherubim, et volavit: volavit super pennas ventorum.
Comoveu-se a Terra e tremeu: os fundamentos dos montes estremeceram e se abalaram, porque se indignou contra eles.
Subiu fumo na ira dele, e saiu fogo ardente do seu rosto; por ele foram incendidos carvões.
Inclinou os Céus e desceu: e obscuridade debaixo dos seus pés.
E subiu sobre querubins, e voou; voou sobre as asas dos ventos.
Salmo 17 – V. 8-9-10-11
Quo ib a Spiritu tuo? et quo a facie tua fugiam?
Si ascendero in coelum, tu illic es: si descendero in infernum, ades.
Si sumpsero pennas meas diluculo, et habitavero in extremis maris:
Ete nim illuc manus tua deducet me: et tenebit me dextera tua.
Et dixi: Forsitan tenebrae conculcabunt me: et nox illuminatio mea in deliciis meis;
Quia tenebrae non obscurabuntur a te, et nox sicut dies illuminabitur sicut tenebrae ejus, sicutet lumen ejus.
Como me irei do teu Espírito? e para onde fugirei da tua presença?
Se subir ao Céu, tu ali te achas: se descer ao Inferno, presente nele estás.
Se eu tomar as minhas asas, ao romper da alva, e for habitar nas extremidades do mar:
Ainda lá me guiará a tua mão e me susterá a tua direita.
E disse: Talvez me ocultarão as trevas; mas a noite se converte em claridade para me descobrir, entregue às minhas delícias;
Porque as trevas não serão escuras para ti, e a noite será iluminada como o dia; como as trevas daquela, assim são também a luz deste.
Salmo 138 – V. 7-8-9-10-11-12
...arcum suum tetendit et paravit illum.
Et in eo paravit vasa mortis, sagittas suas ardentibus effecit.
...armou o seu arco e o tem pronto..
Já pós nele os instrumentos da morte; já preparou as suas setas ardentes.

Salmo 7 – V. 13-14

(5) À sua voz seguiu-se. Uma toada / De órgão rompeu do coro. Assemelhava: o órgão é um instrumento propiíssimo para acompanhar os hinos religiosos. Os protestantes, apartando-se da comunhão romana, e fazendo voltar o culto quase à simplicidade primitiva, conservaram nos seus templos este instrumento, cujos sons melodiosos, e ao mesmo tempo severos, se adaptam tão bem às ideias que suscitam os cantos da Igreja. O primeiro órgão que se viu no Ocidente da Europa foi o que mandou, em 758, Constantino Coprónimo, imperador de Constantinopla a Pepino, pai de Carlos Magno. Depois o seu uso se tornou quase exclusivo nos templos. [Os versos em epígrafe são variantes dos que se lêem n'A Harpa (A sua voz seguiu-se: e um som soturno / De órgão partiu-o; som que assemelhava). A alteração ao texto original não implica a sucessão da nota, porque a palavra que a origina (órgão) mantém-se.]

(6) Modulando o Nébel: o Nébel, que os Gregos traduzem por Psalterion, ou Nablon, era entre os Hebreus um instrumento próprio da música religiosa, como entre os cristãos o órgão.
A sua forma triangular, e o ser instrumento de cordas, fez com que na Vulgata se vertesse a palavra hebraica Nébel, umas vezes por lira, outras por cítara, sem ser nenhuma das duas coisas. Veja-se a Dissertação de Calmet acerca da música dos Hebreus.
(7) Do imundo stélio:
O estélio é o lagarto da primeire espécie, ou a salamandra de Lacepede. Stellio manibus nititur et moratur in aedibus regis.
Migale, et chamaeleon, et stellio, et lacerta, et talpa.
A saramântiga, que se sustém nas suas mãos, e que mora no palácio dos reis.
Prov. 30 – V. 28
O musaranho, o camaleão, a saramântiga, a lagartixa e a toupeira.
Levit. 11 – V. 30

(8) Nas margens do Cédron, a rã grasnando: a torrente do Cédron, que passa entre Jerusalém e o monte Olivete, ao oriente da cidade, seca inteiramente no Estio, e no Inverno as suas águas são torvas e avermelhadas. Daí o seu nome, que soa como – Torrente da Tristeza. Alguém lhe chamou Torrente dos Cedros, tomando a palavra hebraica Kedron pelo plural grego Kedron.

(9) O vate de Anatoth:

Jeremias era natural de Anatoth, cidade sacerdotal na tribo de Benjamim. er Jeremiae filii Helciae, de sacerdotibus qui fuerunt in Anatoth, in terra Benjamim.
Palavras de Jeremias, filho de Helcias, um dos sacerdotes que viviam em Anatoth, na terra de Benjamim.
Jerem. I – V. 1

(10) Entre o povo infiel, de Eloha em nome: Eloha, ou Elah, nome de Deus em hebraico, ou antes caldaico, e palavra assaz comum na Bíblia. O autor do Génesis usa do plural Elohim, ou Elahim, para significar ora o Deus uno, ora os deuses dos pagãos. Consulte-se Volney, Recherches sur l'Histoire Ancienne, cap. XVII.

(11) Inspirara Moisés: alusão ao cântico depois da passagem do mar Roxo.

(12) LAMENTAÇÃO:

Quomodo sedet sola civitas plena populo! Facta est quasi vidua Domina Gentium: princeps provinciarum facta est sub tributo.
Plorans ploravit in nocte, et lachrymae ejus in maxillis ejus: non est qui consoletur eam ex omnibus caris ejus: omnes amici ejus spreverunteam, et facti sunt ei inimici.
Viae Sion lugent, eo quod non sint, qui veniant ad solemnitatem: omnes portae ejus destructae: sacerdotes ejus gementes: virgines ejus squallidae, et ipsa oppressa amaritudine.
Como assim, solitária, está assentada uma cidade, cheia de povo; chegou a ser uma como viúva a senhora das gentes; a princesa das províncias ficou sujeita ao tributo.
Chorou, sem cessar, durante a noite, e as suas lágrimas correm pelas suas faces: não há quem a console, entre todos os seus amados; todos os seus amigos a desprezaram e se lhe tomaram inimigos.
As ruas de Sião choram, porque não há quem venha às solenidades; todas as suas portas se acham destruídas; os seus sacerdotes gemendo; as suas virgens esquálidas, e ela, oprimida de amargura.
Threni C. I – V. 1-2-4
Omnis populus ejus gemens, et quaerens panem: dederunt pretiosa quaeque pro cibo ad refocilandum animam.
Todo o seu povo está gemendo e mendigando pão; eles deram tudo o que tinham de precioso a troco de alimento, para sustentar a vida.
Threni C. I – V. 11
Aegypto dedimus manum, et Assyriis ut saturaremur pane.
Jacuerunt in terra foris puer, et senex.
Ao Egipto demos a mão, e aos Assírios, para sermos fartos de pão.
Ficaram nas ruas, estendidos por terra, o moço e o velho.
Threni C. 2 – V. 2
Manus mulierum misericordium coxerunt filios suos: facti sunt cibus carum in contritione filliae populi mei.
As mãos das mulheres compassivas cozeram os seus filhos, serviram-lhes de mantimento na ruína da filha do meu povo.
Threni C. 4 – V. 10
Recordare Domine quid acciderit nobis: intuere et respice oppobrium nostrum.
Hereditas nostra versa est ad alienos; domus nostrae ad extraneos.
Servi dominati sunt nostri: non fuit qui redimeret de manu eorum.
Quare in perpetuum oblivisceris nostri? derelinques nos in longitudine dierum?
Lembra-te, Senhor, do que nos tem acontecido; considera e olha para o nosso opróbio.
A nossa herança passou a forasteiros, as nossas casas a estranhos.
Os servos nos dominaram; não houve quem nos resgatasse da mão deles.
Por que razão te esquecerás tu de nós para sempre? Nos desampararás tu pela longura de dias?
Oratio Jerem. C. 5 – V. 1-2-8-20

(13) Bem como aquela que aterrou um ímpio:

Balthasar rex fuit grande convivium optimatibus suis milli: et unusquisque secundum suam bibebat aetatem. Praeepit ergo jam temulentus ut afferrentur vasa aurea et argentea, quae asportaverat Nabuchodonosor pater ejus de templo, quod fuit in Jerusalem, ut biberent in eis rex et optimates ejus, uxoresque ejus, et concubinae. Tunc allata sunt vasa aurea et argentea, quae asportaverat de templo, quod fuerat in Jerusalem: et biberunt in eis rex, et optimates ejus, uxores et concubinae illius. Bibebant vinum et laudabant deos suos aureos, et argenteos, aereos, terreos, ligneosque et lapideos. In eadem hora aparuerunt digiti, quasi manus hominis scribentis contra candelabrum in superficie parietis aulae regiae: et rex aspiciebat articulos manus scribentis. Tunc facies commutata est, et cogitationes ejus conturbabant eum; et compages renum ejus solvebantur; et genua ejus ad se invicem collidebantur. Haec est autem scriptura, quae digesta est: Mane, Thecel, Phares. Et haex est interpretatio sermonis: Mane: numcravit Deus regnum tuum et complevit illud. Thecel: appensus es in statera, et inventus es minus habens. Phares: divisum est regnum tuum, et datum est Medis, et Persis.
O rei Baltasar deu um grande banquete a mais de mil grandes da sua corte, e cada um bebia nele conforme d sua idade.
Estando, pois, já bem cheio de vinho, mandou que lhe trouxessem os vasos de ouro e de prata que Nabucodonosor, seu pai, tinha transportado do templo de Jerusalém, para beberem por eles o rei e os grandes da sua corte, e as mulheres dele e concubinas.
No mesmo ponto, foram trazidos os vasos de ouro e de prata que tinha transportado do templo de Jerusalém, e por eles beberam o rei e os grandes da sua corte, as mulheres dele e concubinas.
Eles bebiam o vinho, e louvavam os seus deuses de ouro e de prata, de metal, de ferro, de pau e de pedra.
Na mesma hora, apareceram uns dedos, como de mão de homem, que escrevia defronte do candeeiro, na superfície da parede da sala do rei; e o rei via os movimentos das juntas dos dedos da mão que escrevia.
Então o semblante do rei se mudou, e os seus pensamentos o perturbavam; e as juntas dos seus rins se relaxaram, e os seus joelhos batiam um no outro.
Esta é pois a escritura que ali está disposta: Mané, Técel, Fares.
E esta é a interpretação das palavras:
Mané: Deus contou os dias do teu reinado, e lhes pôs termo.
Técel: tu foste pesado na balança, e achou-se que tinhas menos de peso.
Fares: o teu reino se dividiu, e foi dado aos Medos e aos Persas.
Danielis Proph. C. 5 – V. 1 a 6 e 25 a 28

(14) Hoje, campo de lágrimas, só cria / Humilde musgo de escalvados cerros: vários passos, cem vezes citados, de Tácito e de outros escritores gravíssimos da antiguidade nos provam que a Judeia foi um país feracíssimo. Os viajantes modernos no-la descrevem como uma região árida e inculta. O despotismo, que há séculos tem oprimido a Síria, e a rapacidade dos Árabes são em grande parte causa da aniquilação da agricultura na Palestina; porém, a sua esterilidade não se pode atribuir, por certo, a uma causa política. Os sectários do Crucificado não podem deixar de ver neste fenómeno os efeitos da maldição de Deus sobre a Tema que bebeu o sangue do Filho do Homem.

(15) Ide vós a Mambré: o vale de Mambré estava situado junto de Kariath-Arbé (Hébron), na tribo de Judá, e ao Meio-Dia de Jerusalém. O carvalho, ou terebinto de Abraão, que, segundo o testemunho de S. Jerónimo, ainda existia no tempo de Constantino, o tomava notável. Acerca desta árvore célebre existem muitas tradições entre os Judeus; e até para os cristãos dos primeiros séculos era o vale de Mambré um lugar de devoção e romagem. Sozomeno nos descreve o vale de Terebinto como um sítio de festivas reuniões, e foi a sua narração quem suscitou este pedaço de poema.

(16) ...na primavera, / Vinham os moços adornar-lhe o tronco: aqui (em Mambré) há um lugar que hoje chamam Terebinto, distante de Cébron que lhe fica ao Meio-Dia, quinze estádios, e de Jerusalém quase duzentos e cinquenta. Os habitantes deste sítio, no tempo do Estio, fazem uma feira, a que concorrem os vizinhos do vale, e ainda povos mais remotos, como os Palestinos, os Árabes e os Fenícios, Sozomeno, História Eclesiástica.

(17) No Gólgota plantada, a Cruz clamara: o monte Gólgota, ou Calvário foi o lugar onde crucificaram J. C. Esta palavra significa: lugar onde repousam os crânios dos mortos.

(18) No Moriá surgiu: o monte Moriá, onde estava o templo de Salomão, levantava-se no meio de Jerusalém, e ficava-lhe ao norte o monte Sião. Diz-se que neste lugar estivera Abraão para sacrificar seu filho. (Calmet, Diction.).