João do Rio
AS
CRIANÇAS QUE MATAM
É
assombrosa a proporção do crime nesta cidade, e principalmente do crime
praticado por crianças! Estamos a precisar de uma liga para a proteção das
crianças, como a imaginava o velho Júlio Vallés...
- Que
houve de mais? - indagou Sertório de Azambuja, estirando-se no largo divã
forrado de brocado cor de ouro velho.
- Vê o
jornal. Na Saúde, um bandido de treze anos acaba de assassinar um garotinho de
nove. É horrível!
O meu
amigo teve um gesto displicente.
- Crime
sem interesse... A menos que não se dê um caso de genialidade, um homem só pode
cometer um belo crime, um assassinato digno, depois dos dezesseis anos. Uma
criança está sempre sujeita aos desatinos da idade. Ora, o assassinato só se
torna admirável quando o assassino fica impune e realiza integralmente a sua
obra. Desde Caim nós temos na pele o gosto apavorador do assassinato. Não
estejas a olhar para mim assim assustado. As mais frágeis criaturas procuram
nos jornais a notícia das cenas de sangue. Não há homem que, durante um segundo
ao menos, não pense em matar sem ser preso. E o assassínio é de tal forma a
inutilidade necessária ao prazer imaginativo da humanidade, que ninguém se
abala para ver um homem morto de morte natural, mas toda gente corre ao
necrotério ou ao local do crime para admirar a cabeça degolada ou a prova
inicial do crime. Dado o grau de civilização atual, civilização que tem em
germe todas as decadências, o crime tende a aumentar, como aumentam os
orçamentos das grandes potências, e com uma percentagem cada vez maior de
impunidade. Lembra-te das reflexões de Thomas de Quincey na sua pedagogia do
crime. É dele esta frase profunda: "O público que lê jornais contenta-se
com qualquer coisa sangrenta; os espíritos superiores exigem alguma coisa
mais..."
Humilhadamente,
dobrei o jornal:
- Então
só os espíritos superiores?...
- Podem
realizar um crime brilhante. Esse caso da Saúde não tem importância alguma. É
antes um exemplo comum da influência do bairro, desse bairro rubro, cuja
história sombria passa através dos anos encharcada de sangue. Nunca foste ao
bairro rubro? Queres lá ir agora? São oito horas. Vamos? Vem daí...
Descemos.
Estava uma noite ameaçadora. No céu escuro, carregado de nuvens, relâmpagos
acendiam clarões fugazes. A atmosfera abafava. Uma agonia vaga pairava na luz
dos combustores.
Sertário
de Azambuja ia de chapéu mole, com um lenço de seda à guisa de gravata. Ao
chegar ao Largo do Machado, chamou um carro, mandou tocar para o começo da Rua
da Imperatriz.
- Que
te parece o nosso passeio? Estamos como Dorian Gray, partindo para o vício
inconfessável. Lord Henry dizia: "Curar os sentidos por meio da alma e a
alma por meio dos sentidos". Vamos entrar no outro mundo..
Eu
atirara-me para o fundo da vitória de praça e via vaga-mente a iluminação das
casas, os grandes panos de sombra das ruas pouco iluminadas, a multidão, na
escuridão às vezes, às vezes queimada na fulguração de uma luz intensa, os
risos, os gritos, o barulho de uma cidade que se atravessa. Na Rua Marechal
Floriano, Sertório pagou ao cocheiro, dizendo:
-
Saltaremos em movimento.
E para
mim:
- Não
vale dar na vista...
Um
instante depois saltou. Acompanhei-o. O carro continuou a rodar. O bairro rubro
não é um distrito, uma freguesia: é uma reunião de ruas pertencentes a diversos
distritos, mas que misteriosamente, para além das forças humanas, conseguiu
criar a rede tenebrosa, o encadeamento lúgubre da miséria e do crime,
insaciáveis. A Rua da Imperatriz é um dos corredores de entrada.
O
bairro onde o assassinato é natural abraça a Rua da Saúde, com todos os becos,
vielas e pequenos cais que dela partem, a Rua da Harmonia, a do Propósito, a do
Conselheiro Zacarias, que são paralelas à da Gamboa, a do Santo Cristo, a do
Livramento e a atual Rua do Acre. Naturalmente as ruas que as limitam ou que
nelas terminam - São Jorge, Conceição, Costa, Senador Pompeu, América, Vidal de
Negreiros e a Praia do Saco - participam do estado de alma dominante.
Toda
essa parte da cidade, uma das mais antigas, ainda cheia de recordações
coloniais, tem, a cada passo, um traço de história lúgubre. A Rua da Gamboa é
escura, cheia de pó, com um cemitério entre a casaria; a da Harmonia já se
chamou do Cemitério, por ter aí existido a necrópole dos escravos vindos da
costa da África; a da Saúde, cheia de trapiches, irradiando ruelas e becos,
trepando morro acima os seus tentáculos, é o caminho do desespero; a da
Prainha, mesmo hoje aberta, com prédios novos, causa, à noite, uma impressão de
susto.
Como
dizia o meu guia, estávamos num novo mundo...
A Rua
da Imperatriz, às oito e meia, com uma porção de casas comerciais velhas e tão
juntas, tão trepadas na calçada, que parecem despejadas na rua, estava em plena
febre. Os botequins reles, as barbearias sujas, as tascas imundas gargulejavam
gente, e essa gente era curiosa - trabalhadores em mangas de camisa,
carroceiros, carregadores, fumando mata-ratos infectos, cuspinhando cachaça em
altos berros, num calão de imprevisto, e rapazes mulatos, brancos, de grandes
calças a balão, chapéu ao alto, a se arrastarem bamboleando o passo, ou em
tabernas barulhentas. A nossa passagem era acompanhada com um olhar de ironia,
e bastava parar dois segundos defronte de uma taberna, para que dentro todos os
olhos se cravassem em nós.
Eu
sentia acentuar-se um mal-estar bizarro. Sertório ria.
- A
vulgaridade da populaça! Há por aqui, entre esses marçanos fortes, gente boa.
Há também ruim. Estão fatalmente destinados ou a apanhar ou a dar, desde
crianças. É a vida. Alguns são perversos: provocam, matam. Vais ver. Nasceram
aqui, de pais trabalhadores...
Tínhamos
chegado à Rua Camerino, esquina da da Saúde. Há aí uma venda com um pequeno
terraço de entrada. O prédio desfaz-se, mas dentro redemoinha uma turba
estranha: negralhões às guinadas, inteiramente bêbedos, adolescentes ricos de
músculos, embarcadiços, foguistas.
Fala-se
uma língua babélica, com termos da África, expressões portuguesas, frases
inglesas. Uns cantam, outros rouquejam insultos. Sertório aproxima-se de um
grupo. Há um mulato de tamancos, que parece um arenque ensalmonado, no meio da
roda. O mulato cuspinha:
- Go on, go on...
yeah. farewell! yeah!
É
brasileiro. Está aprendendo todas essas línguas estrangeiras com os práticos
ingleses.
Há um
venerável ancião, da Colônia do Cabo, tão alcoolizado que não consegue senão fazer
um gesto de enjôo; há um copta, apanhado por um navio de carga no Mar Vermelho;
há dois negrinhos retintos, com os dentes de uma alvura estranha, que bradam:
- Eh
oui, petit monsieur, nous sommes du Congo. Étudiés avec pères blancs...
Todos
incondicionalmente abominam o Rio: querem partir.
Sertório
paga maduros; eles fazem roda. O mulato brasileiro está delicado.
- Hip! Hip! Cambada! Para mostrar a vocês que cá na terra há
gente para embrulhar língua direito! Agüente, negrada!
- Sai
burrique! - grunhe o ancião.
Dando
guinadas com os copos a escorrer o líquido sujo do maduro, essa tropa parecia
toda vacilar com a casa, com as luzes, com os caixeiros. Saí antes, meio tonto.
Sertório livrava-se da matilha distribuindo níqueis.
Quando
conseguiu não ser acompanhado, meteu-se pelo beco. Segui-o e, de repente, nós
demos nos trechos silenciosos e lúgubres. Nas ruas, a escuridão era quase
completa. Um transeunte ao longe anunciava-se pelo ruído dos passos.
De vez
em quando uma rótula aberta e dentro uma sombra. Que lugares eram aqueles? O
outro mundo! A outra cidade! A atmosfera era aquecida pelo cheiro penetrante e
pesado dos grandes trapiches. Em alguns trechos, a treva era total. Na passagem
da estrada de ferro, a luz elétrica, muito fraca, espalhava-se como um sudário
de angústias.
Foi
então que começamos a encontrar em cada esquina, ou sentados nas soleiras das
portas, ou em plena calçada, uns rapazes, alguns crescidos, outros pequenos. À
nossa passagem calavam-se, riam. Mas nós íamos seguindo, cada vez mais
curiosos.
Afinal,
demos no Largo da Harmonia, deserto e lamentável. À porta da igreja uma outra
roda, maior que as outras, confabulava. Aproximamo-nos.
- Boa
noite!
- Boa
noite! - respondeu um pretalhão, erguendo-se com os tamancos na mão.
Os
outros ficaram hesitantes, desconfiando da amabilidade.
- Que
fazem vocês aí?
- Nós?
- indagou um rapazola já de buço, gingando o corpo - Contamos histórias: ora aí
tem! Interessa-lhe muito?
-
Histórias! Mas eu gosto de histórias. Quem as conta?
-
Isso é costume cá no bairro. Há rapazes que sabem contar que até dá gosto. Aqui
quem estava contando era o José, este caturrita...
Era
um pequeno franzino, magro, com uma estranha luz nos olhos.
Talvez
matasse amanha, talvez roubasse! Estava ingenuamente contando histórias...
Sertório
insistia, entretanto, para ouvi-lo. Ele não se fez de rogado. Tossiu, pôs as
mãos nos joelhos...
-
Era uma vez uma princesa, que tinha uma estrela de briIhantes na testa.
A
roda caíra de novo num silêncio atento. A escuridão parecia aumentar, e,
involuntariamente, ou e o meu amigo sentimos na alma a emoção inenarrável que a
bondade do que julgamos mau sempre nos causa...
Cinematographo - 1909