Machado
de Assis
SALTEADORES DA TESSÁLIA
1893,
novembro
Tudo isto cansa, tudo
isto exaure. Este sol é o mesmo sol, debaixo do qual, segundo uma palavra
antiga, nada existe que seja novo. A lua não é outra lua. O céu azul ou
embruscado, as estrelas e as nuvens, o galo da madrugada, é tudo a mesma coisa.
Lá vai um para a banca da advocacia, outro para o gabinete médico, este vende,
aquele compra, aquele outro empresta, enquanto a chuva cai ou não cai, e o
vento sopra ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma chuva. Tudo isto cansa,
tudo isto exaure.
Tal era a reflexão que
eu fazia comigo, quando me trouxeram os jornais. Que me diriam eles que não
fosse velho? A guerra é velha, quase tão velha como a paz. Os próprios diários
são decrépitos. A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira
semana dele, dia por dia, até o sétimo em que o Senhor descansou. O cronista
bíblico omite a causa do descanso divino; podemos supor que não foi outra senão
o sentimento da caducidade da obra.
Repito, que me trariam
os diários? As mesmas notícias locais e estrangeiras, os furtos do Rio e de
Londres, as damas da Bahia e de Constantinopla, um incêndio em Olinda, uma
tempestade em Chicago, as cebolas do Egito, os juízes de Berlim, a paz de
Varsóvia, os Mistérios de Paris, a Lua de Londres, o Carnaval
de Veneza... Abri-os sem curiosidade, li-os sem interesse, deixando que os
olhos caíssem pelas colunas abaixo, ao peso do próprio fastio. Mas os diabos
estacaram de repente, leram, releram e mal puderam crer o que liam. Julgai por
vós mesmos.
Antes de ir adiante, é
preciso saber a idéia que faço de um legislador, e a que faço de um salteador.
Provavelmente, é a vossa. O legislador é o homem deputado pelo povo para votar
os seus impostos e leis. É um cidadão ordeiro, ora implacável e violento, ora
tolerante e brando, membro de uma câmara que redige, discute e vota as regras
do governo, os deveres do cidadão, as penas do crime. O salteador é o
contrário. O ofício deste é justamente infringir as leis que o outro decreta. Inimigo
delas, contrário à sociedade e à humanidade, tem por gosto, prática e religião
tirar a bolsa aos homens, e, se for preciso, a vida. Foge naturalmente aos
tribunais, e, por antecipação, aos agentes de polícia. A sua arma é uma
espingarda; para que lhe serviriam penas, a não serem de ouro? Uma espingarda,
um punhal, olho vivo, pé leve, e mato, eis tudo o que ele pede ao céu. O mais é
com ele.
Dadas estas noções
elementares, imaginai com que alvoroço li esta notícia de uma de nossas folhas:
"Na Grécia foi preso o deputado Talis, e expediu-se ordem de prisão contra
outros deputados, por fazerem parte de uma quadrilha de salteadores, que
infesta a província da Tessália." Dou-vos dez minutos de incredulidade
para o caso de não haverdes lido a notícia; e, se vos acomodais da monotonia da
vida, podeis clamar contra semelhante acumulação. Chamai bárbara à moderna
Grécia, chamai-lhe opereta, pouco importa. Eu chamo-lhe sublime.
Sim, essa mistura de
discurso e carabina, esse apoiar o ministério com um voto de confiança às duas
horas da tarde, e ir espreitá-lo às cinco, à beira da estrada, para tirar-lhe
os restos do subsídio, não é comum, nem rara, é única. As instituições
parlamentares não apresentam em parte nenhuma esta variante. Ao contrário,
quaisquer que sejam as modificações de clima, de raça ou de costumes, o regime
das câmaras difere pouco, e, ainda que difira muito, não irá ao ponto de pôr na
mesma curul Catão e Caco. Há alguma coisa nova debaixo do sol.
Durante meia hora
fiquei como fora de mim. A situação é, na verdade, aristofanesca. Só a mão de
grande cômico podia inventar e cumprir tão extraordinária facécia. A folha que
dá a notícia, não conta nada da provável confusão de linguagem que há de haver
nos dois ofícios. Quando algum daqueles deputados tivesse de falar na câmara,
em vez de pedir a palavra, podia muito bem pedir a bolsa ou a vida. Vice-versa,
agredindo um viajante, pedir-lhe-ia dois minutos de atenção. E nada ficaria, em
absoluto, fora do seu lugar; com dois minutos de atenção se tira o relógio a um
homem, e mais de um na câmara preferiria entregar a bolsa a ouvir um discurso.
Mas, por todos os
deuses do Olimpo! não há gosto perfeito na terra. No melhor da alegria,
acudiu-me à lembrança o livro de Edmond About, onde me pareceu que havia alguma
coisa semelhante à notícia. Corri a ele; achei a cena dos maniotas, que
ameaçavam brandamente um dos amigos do autor, se lhes não desse uma pequena
quantia. O chefe do grupo era empregado subalterno da administração local.
About chega, ameaça por sua vez os homens, e, para assustá-los, cita o nome de
um deputado para quem levava carta de recomendação. "Fulano! exclamou o
chefe da quadrilha, rindo; conheço muito, é dos nossos."
Assim, pois, nem isto
é novo! Já existia há quarenta anos! A novidade está no mandado de prisão, se é
a primeira vez que ele se expede, ou se até agora os homens faziam um dos dois
ofícios discretamente. Fiquei triste. Eis aí, tornamos à velha divisão de
classes, que a terra de Homero podia destruir pela forma audaz de Talis. Aí volta
a monotonia das funções separadas, isto é, uma restrição à liberdade das
profissões. A própria poesia perde com isto; ninguém ignora que o salteador, na
arte, é um caráter generoso e nobre. Talis, se é assim que se lhe escreve o
nome, pode ser que tivesse ganho um par de sapatos a tiro de espingarda; mas
estou certo que proporia na câmara uma pensão à viúva da vítima. São duas
operações diversas, e a diversidade é o próprio espírito grego. Adeus, minha
ilusão de um instante! Tudo continua a ser velho: nihil sub sole novum.
Eu pediria o perdão de
Talis, se pudesse ser ouvido. Condenem os demais se querem, mas deixem um,
Talis ou outro qualquer, um funcionário duplo, que tire ao parlamento grego o
aspecto de uma instituição aborrecida. Que a Hélade deite os ministérios
abaixo, se lhe apraz, mas não atire às águas do Eurotas um elemento de aventura
e de poesia. Acabou com o turco, acabe com este modernismo, que é outro turco,
diferente do primeiro em não ser silencioso. Não esqueça que Byron, um dos seus
grandes amigos, deixou o parlamento britânico para fugir à discussão da
resposta à fala do trono. E repare que não há, entre os seus poemas, nenhum que
se chame O presidente do conselho, mas há um que se chama O Corsário.
in A Semana - Gazeta de Notícias - 26/11/1893.
Fonte: A Semana - Machado de Assis - W. M. Jackson
Inc. - 1946
Ortografia Atualizada.