Machado
de Assis
A
ESTÁTUA DE JOSÉ DE ALENCAR
Discurso proferido
na cerimônia do lançamento da primeira pedra da estátua de José de Alencar
Senhores,
Tenho
ainda presente a essa em que, por algumas horas últimas, pousou o corpo de
José de Alencar. Creio que jamais o espetáculo da morte me fez tão singular
impressão. Quando entrei na adolescência, fulgiam os primeiros raios daquele
grande engenho; vi-os depois em tanta cópia e com tal esplendor que eram já
um sol quando entrei na mocidade. Gonçalves Dias e os homens do seu tempo
estavam feitos; Álvares de Azevedo, cujo livro era a boa-nova dos poetas,
falecera antes de revelado ao mundo. Todos eles influíam profundamente no
ânimo juvenil que apenas balbuciava alguma coisa; mas a ação crescente de
Alencar dominava as outras. A sensação que recebi no primeiro encontro pessoal
com ele foi extraordinária; creio ainda agora que não lhe disse nada, contentando-me
de fitá-lo com os olhos assombrados do menino Heine ao ver passar Napoleão.
A fascinação não diminuiu com o trato do homem e do artista. Daí o espanto
da morte. Não podia crer que o autor de tanta vida estivesse ali, dentro de
um féretro, mudo e inábil por todos os tempos dos tempos. Mas o mistério e
a realidade impunham-se; não havia mais que enterrá-lo e ir conversá-lo em
seus livros.
Hoje,
senhores, assistimos ao início de outro monumento, este agora de vida,
destinado a dar à cidade, à pátria e ao mundo a imagem daquele que um dia
acompanhamos ao cemitério. Volveram anos; volveram coisas; mas a consciência
humana diz-nos que, no meio das obras e dos tempos fugidios, subsiste a flor da
poesia, ao passo que a consciência nacional nos mostra na pessoa do grande
escritor o robusto e vivaz representante da literatura brasileira.
Não
é aqui o lugar adequado à narração da carreira do autor de Iracema.
Todos vós sabeis que foi rápida, brilhante e cheia; podemos dizer que ele saiu
da Academia para a celebridade. Quem o lê agora, em dias e horas de escolha, e
nos livros que mais lhe aprazem, não tem idéia da fecundidade extraordinária
que revelou tão depressa entrou na vida. Desde logo pôs mãos à crônica, ao
romance, à crítica e ao teatro, dando a todas essas formas do pensamento um
cunho particular e desconhecido. No romance que foi a sua forma por excelência,
a primeira narrativa, curta e simples, mal se espaçou da segunda e da terceira.
Em três saltos estava o Guarani diante de nós; e daí veio a sucessão
crescente de força, de esplendor, de variedade. O espírito de Alencar percorreu
as diversas partes de nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o sertão, a mata
e o pampa, fixando-as em suas páginas, compondo assim com as diferenças da
vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional da sua obra.
Nenhum
escritor teve em mais alto grau a alma brasileira. E não é só porque houvesse
tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá a nota íntima da
nacionalidade, independente da face externa das coisas. O mais francês dos
trágicos franceses é Racine, que só fez falar a antigos. Schiller é sempre
alemão, quando recompõe Filipe II e Joana d'Arc. O nosso Alencar juntava a esse
dom a natureza dos assuntos tirados da vida ambiente e da história local.
Outros o fizeram também, mas a expressão do seu gênio era mais vigorosa e mais
íntima. A imaginação que sobrepujava nele o espírito de análise, dava a tudo o
calor dos trópicos e as galas viçosas de nossa terra. O talento descritivo, a
riqueza, o mimo e a originalidade do estilo completavam a sua fisionomia
literária.
Não
lembro aqui as letras políticas, os dias de governo e de tribuna. Toda essa
parte de Alencar fica para a biografia. A glória contenta-se da outra parte. A
política era incompatível com ele, alma solitária. A disciplina dos partidos e
a natural sujeição dos homens às necessidades e interesses comuns não podiam
ser aceitas a um espírito que em outra esfera dispunha da soberania e da
liberdade. Primeiro em Atenas, era-lhe difícil ser segundo ou terceiro em Roma.
Quando um ilustre homem de Estado respondendo a Alencar, já então apeado do
Governo, comparou a carreira política à do soldado, que tem de passar pelos
serviços ínfimos e ganhar os postos gradualmente, dando-se a si mesmo como
exemplo dessa lei, usou de uma imagem feliz e verdadeira, mas ininteligível
para o autor das Minas de Prata. Um ponto há que notar, entretanto,
naquele curto estádio político. O autor do Gaúcho carecia das qualidades
necessárias à tribuna, mas quis ser orador, e foi orador. Sabemos que se bateu
galhardamente com muitas das primeiras vozes do parlamento.
Desenganado
dos homens e das coisas, Alencar volveu de todo às suas queridas letras. As
letras são boas amigas; não lhe fizeram esquecer inteiramente as amarguras, é
certo; senti-lhe mais de uma vez a alma enojada e abatida. Mas a arte, que é a
liberdade, era a força medicatriz do seu espírito. Enquanto a imaginação
inventava, compunha e polia novas obras, a contemplação mental ia vencendo as
tristezas do coração, e o misantropo amava os homens.
Agora
que os anos vão passando sobre o óbito do escritor, é justo perpetuá-lo, pela
mão do nosso ilustre estatuário nacional. Concluindo o livro de Iracema,
escreveu Alencar esta palavra melancólica: "A jandaia cantava ainda no
olho do coqueiro, mas não repetia já o mavioso nome de Iracema. Tudo
passa sobre a terra". Senhores, a filosofia do livro não podia ser outra,
mas a posteridade é aquela nada que não deixa o coqueiro, e que ao contrário da
que emudeceu na novela, repete e repetirá o nome da linda tabajara e do seu
imortal autor. Nem tudo passa sobre a terra.
Fonte: Páginas Recolhidas - Machado de Assis - W.M.
Jackson Inc. Editores - 1946.
Ortografia atualizada.