OS RETIRANTES

 

José do Patrocínio

 

TERCEIRA PARTE

 

A CAPITAL

 

I

 

 

A cidade da Fortaleza está situada à beira do mar, sobre um extenso cômoro de ondulações tão suaves, que se disfarçam numa vasta planície.

 

As suas ruas se cruzam com a regularidade das carreiras de uma tábua de xadrez, e de quando em quando vão desembocar em praças espaçosas, elegantemente arborizadas por longas filas de árvores gigantescas.

 

As casas, edificadas quase todas por um só modelo, térreas, com largas janelas muito rasgadas, portas muito altas, as frentes pintadas por um verniz especial, dão-lhes uma singela monotonia, que torna aprazíveis e bonitas as ruas calçadas sem arte e algumas vezes deformadas por altas soleiras e passeios não nivelados.

 

Do denso da casaria ergue-se a catedral da província; as duas torres caleadas sobressaem à cobertura da nave, como dois braços perpendicularmente erguidos. Está colocada ao lado de uma praça, onde termina uma rua que por outra extremidade desemboca em uma grande área despovoada nas três faces, em uma das quais, em frente à rua, está o cemitério.

 

Na face norte de uma das faces desta praça, a oeste da cidade, ergue-se o grande prédio da estação, neste tempo ainda não acabado.

 

Eulália esperou aí durante longas horas o aparecimento de sua família. Fora vista por Chiquinha, e contava que d. Ana, sabendo da sua chegada à capital, viesse procurá-la.

 

- Elas virão - pensava ela. - Devem logo ver que eu não sairei da estação sem que elas cheguem. Daqui até lá é boa distância, e é por isso que se demoram.

 

Para atenuar o tédio da espera, Eulália reparava no que se passava em torno.

 

Desse lugar, onde cemitério e o abarracamento de crautá, composto de cabanas esparsas, falavam de morte e de miséria, entrevia-se o quadro medonho das conseqüências da seca.

 

Quando o trem chegara, e depois quando partira, Eulália avaliou por alto a quantidade de retirantes que existia na cidade. Mais de 2 mil pessoas entraram e cercaram a estação e dessas mais de quinhentas disputavam entre si o carreto das cargas do pequeno número de passageiros que havia chegado no trem.

 

Na maneira por que o faziam, no baixo preço que pediam, via-se claramente que era a extrema penúria que os aconselhava.

 

Isto ainda mais se evidenciava com a presença de um crescido número de mulheres e de crianças, que sobressaíam na multidão. As crianças estavam quase todas nuas, e as suas faces escaveiradas, as barrigas monstros, as pernas muito finas revelavam que a estada na capital não lhes havia melhorado a sorte. As mulheres estavam em tão completo estado de miséria, que algumas delas mal podiam guardar a compostura e defender o pudor.

 

Agora, que todos tinham se retirado da estação, novos espetáculos tinham vindo desenrolar-se ante seus olhos.

 

Na rua que atravessava a praça, a alguma distância da estação, não cessavam de passar indivíduos conduzindo redes na direção do cemitério.

 

- Muita gente morre por aqui - pensou Eulália. – É medonho isto.

 

Entretanto o movimento contínuo, tão diverso do que se dava em B. V., quieta, preguiçosa, só se reunindo para as festas, causava-lhe prazer, e como que a sepultava ainda mais na semi-inconsciência em que a deixara a dor da grande decepção que experimentara.

 

Só à tardinha resolveu-se a ir procurar com quem se entender para que obtivesse casa e fixasse morada até que se entendesse com a sua família ou encontrasse Irena e seu pai.

 

- Não vieram - dizia entre si, pensando na família por minha causa. Egoísta que eu sou, devia ter ido ter com elas e esperei que fossem elas que viessem. Amanhã, porém, resolveremos.

 

Caminhou até a rua por onde, ao longe, via, sem intervalo de cinco minutos, passarem redes umas após outras, e aí quase que deu em terra. Um quadro medonho lhe saíra ao encontro.

 

Amarrados pelos artelhos, pelo ventre e pela nuca, espichavam-se dois cadáveres ao longo de um caibro. Iam, demais disso, completamente nus e estavam cobertos de pastas de imundícia. Os homens que os conduziam, muito andrajosos conversavam indiferentes, fumando.

 

- Quantas caminhadas nos faltarão ainda?

 

- Temos dado nove; para dez falta ainda uma.

 

- É o diabo; é um serviço que eu não gosto de fazer de noite; prefiro limpar canavial com sol quente.

 

- A verdade é que é um pedacinho daqui à Pimenta e, com o sol, só à força de muita necessidade é que me faz trabalhar.

 

- Homem, agora ainda é pior para romper estas ruas; os diabos estão com fome canina, e só com um terror de força a gente faz com que eles abram caminho.

 

Eulália cambaleou ao ver o medonho quadro, e só com grande esforço pôde conservar-se de pé.

 

A desilusão que experimentava era tão pungente que excedia incomensuravelmente a extensão das suas perdidas esperanças. Julgou que estava sonhando, porque só um sonho poderia fazê-la ver um espetáculo tão vergonhoso no lugar em que o governo da província residia.

 

"Ai! quanto havemos de sofrer!" - pensou Eulália. -"Só imensos padecimentos na vida explicam tamanho desrespeito à morte."

 

A grosseria dos dois carregadores de cadáveres não a impediu de perguntar-lhes onde moravam os comissários.

 

- Por aí; entre por esta rua a fora, vá em frente sempre, mas olhando para a mão direita. Quando vir povaréu em qualquer lugar, abique.

 

- E como hei de saber qual é o comissário?

 

- Perguntando; quem tem boca vai a Roma.

 

Não era prudente dirigir mais uma pergunta, e Eulália, compreendendo-o, afastou-se agradecendo.

 

À medida que ia se aproximando da face da praça reparava no movimento extraordinário de povo que nela havia. Dir-se-ia que se passava naquela hora um acontecimento extraordinário que agitava a cidade inteira. A rua que desembocava em frente, estava quase cheia de homens que desfilavam a toda carreira, e de mulheres que, carregando no braço uma criança, puxavam outras pela mão.

 

Quando afinal pôde entrar na rua e ver de perto o enorme concurso, entristeceu-se ainda mais, se é possível, do que ao chegar à estação e ao ver o saimento dos retirantes. Grande parte das mulheres e dos homens recatava-se apenas por meio de um saco de linhagem amarrado à cintura e tinha o resto do corpo completamente nu.

 

Homens, que pelos seus trajos mostravam que habitavam na cidade, postados na calçada, a fumar e a gargalhar, dirigiam graçolas às mocinhas que passavam, e divertiam-se em levar desatenciosamente a mão aos corpos destas e das mulheres seminuas.

 

- Olhe, aqui estão dez tostões, uma fortuna; valem mais do que dez rações de carne velha - diziam eles. - Se querem, não façam cerimônia.

 

E algumas das mulheres os repeliam, porém outras, cedendo prontamente à solicitação, paravam a pequena distância, à espera de que o oferecimento fosse repetido, para que o aceitassem.

 

Eulália sentia que a sufocavam no meio daquele ambiente, que lhe arrancavam o coração e o espezinhavam.

 

Que sorte lhe esperava no meio de tanta depravação e de tanta crueldade? E suas irmãs, e sua tia, e Irena? Teriam elas coragem para lutar, para arcar com a miséria e afrontar resignadamente a morte?

 

A verdade era que a cena excedia a tudo quanto a imaginação podia cogitar de mais degradante; e, o que era pior, a alma dos desgraçados, aclimando-se naquele meio corruptor, afazia-se a ele, e como que não se doía de ver-se contaminar por ele.

 

A própria Eulália, depois da primeira impressão, vendo repetido o mesmo procedimento em toda rua, começou a tolerá-lo, ainda que ela também fosse alvo dele; e só se impressionou de novo vivamente à esquina da rua da Palma, onde a multidão se adensara de modo a impedir-lhe a passagem.

 

Realizava-se aí uma das mais tristes e inacreditáveis cenas da seca, a distribuição dos socorros.

 

O novo presidente, empossado da administração, encontrou a província entregue à improbidade. Entre o retirante e o Estado havia um sorvedouro - as comissões de socorros.

 

Cresciam de par as despesas, a mortalidade e a penúria, porque indivíduos desnaturados, abusando da boa fé do ex-presidente, aproveitavam-se da miséria do torrão natal para enriquecer.

 

O retirante desolado murmurava a sua frase irônica:

 

- A seca tem sido inverno para muita gente.

 

Tomada de indignação, a autoridade administrativa, que não podia avaliar precisamente as circunstâncias da província, desfechou nos ímprobos um golpe certeiro: a suspensão da remessa dos socorros. Infelizmente o golpe feriu mais fundo do que o honrado administrador desejava: traspassando as comissões, encontrou no fio a massa dos retirantes alevantada até ele por vingança da improbidade. Todas as comissões extintas impeliram para a capital a população adventícia das suas localidades e, dentro em alguns dias, a cidade via-se inundada por mais de 100 mil famintos e maltrapilhos.

 

Entrou com eles a confusão. Para acomodar essa enorme quantidade de homens, não havia senão um pequeno número de abarracamentos, e estes, já antes do imenso acréscimo de população, estavam completamente cheios.

 

Todos os vãos aproveitáveis em diversos edifícios foram logo convertidos em hospedarias, mas ainda assim nem a cima parte da aluvião pôde ser alojada. Mais de nove partes ficaram ao relento, tendo por único teto a copa meio desfolhada das árvores das praças.

 

A distribuição dos socorros, em tais condições, era de uma iniquidade compungente e inevitável. Por maior que fosse o esforço do velho presidente, que, em pessoa, percorria as praças e assistia muitas vezes às distribuições, era impossível impedir que milhares de pessoas ficassem privadas de socorros.

 

O que era ainda mais para lamentar era que o maior peso da iniqüidade caía sobre os fracos: as famílias das viúvas e os pequenitos a quem a epidemia e a fome deixavam ao desamparo.

 

Uma distribuição foi a cena que Eulália presenciou ao chegar à esquina da rua da Palma.

 

O povo apinhado sussurrava como um enxame de varejas sobre um animal putrefato, e a especulação, postada em cada esquina, explorava-lhe a miséria.

 

Era o mercado da fome.

 

Os retirantes que haviam recebido as suas rações iam trocar grandes pedaços de carne por um punhado de farinha, ou por uma xícara de arroz. As crianças, esfaimadas e nuas, tentando romper a aglomeração compacta, eram maltratadas e atropeladas; as mulheres, não podendo caminhar, choravam e maldiziam. Do meio desse pandemônio de lágrimas, de maldições, de ais doridos, sobressaíam de quando em quando gargalhadas estentóreas, assovios e gritos perseguindo ladrões.

 

Mas o que principalmente chamou a atenção de Eulália foi um grupo de indivíduos, que, pelos seus trajos, mostrava não ter sido vítima da calamidade.

 

Protegidos pelo crepúsculo e pela confusão que reinava entre o povo, esses homens divertiam-se em insultar a desgraça das famílias, oferecendo-lhes pão em troca do sacrifício da honestidade.

 

Tentando em vão continuar o caminho e lembrando-se da indicação dos homens, que encontrara carregando cadáveres, Eulália parou a olhar estupefata.

 

Uma mulher passava, levando nos braços uma criança.

 

- Pode me dizer onde moram os comissários? - perguntou Eulália. - Chego hoje e não conheço ninguém nesta cidade.

 

- Há 15 dias que aqui estou - respondeu a infeliz - e ainda não pude falar a um deles. É uma desgraça; vou a todos os pontos em que se dão esmola e nunca posso chegar a falar com os homens. Já tenho visto morrer dois filhos e este, veja!

 

A mulher levantou a cabeça da criancinha pendida sobre o seu ombro. Fazia chorar aquele indescritível semblante. Com os dedos metidos na boca, a mísera já sem forças tinha um olhar estagnado, que parecia a cristalização de uma súplica. Os ossos do rosto, muito salientes, faziam-na parecer uma caveira coberta por uma pele seca..

 

- Que doença tem ela? - perguntou Eulália, comovida.

 

- A mesma que matou os irmãos; a doença dos retirantes: fome! - soluçou a desventurada mãe.

 

Eulália, aturdida pela honrosa declaração, uniu as suas às lágrimas da mulher e levando a mão ao bolso:

 

- Eu também sou muito pobre, mas não deixarei morrer seu filho à míngua. Como eu, encontrará muitos que a socorram; tenha coragem, peça.

 

- Tenho pedido, minha senhora. Vê aquelas casas? Estão todas fechadas, e assim ficam sempre que para elas se dirige uma de nós. Deus a conserve, minha senhora, adeus!

 

As palavras da infeliz chamaram ainda mais a atenção de Eulália para a tremenda realidade que a cercava e se impunha aos seus olhares. Entretanto tamanha desgraça como que atenuava a sua e foi com um sobressalto que ouviu a despedida da mulher.

 

- A senhora não me conhece - exclamou Eulália -, mas pode avaliar que eu não sou uma perversa. Consente que fique por esta noite na sua casa?

 

A mulher sorriu tristemente e, meneando a cabeça, disse com uma entoação irônica:

 

- Na minha casa podem ficar todos: estamos nela agora, rua.

 

"É medonho, meu Deus, é incrível: o que terá sido feito de Irena, e que destino espera as minhas pobres irmãs?" - pensou Eulália. - Eu endoideço.

 

- Se quer vir comigo, terá um lugar junto a mim no lugar onde durmo. Terá ao menos uma amiga junto a si. Olhe, é ali.

 

O dedo da retirante assinalou a catedral, cujo corpo enorme se alevantava em frente, na extremidade da rua.

 

- Vê aquela igreja? Tem uma praça em frente; e daí vai uma rua para o mar, na qual está o quartel. Foi ali que eu pude arranjar meios para dar alguns dias comida aos meus filhos. Tomei amizade àquele lugar; é infame, mas sou mãe.

 

- Não; eu ficarei aqui mesmo.

 

A mulher retirou-se e Eulália acompanhou-a com a vista até que ela perdeu-se no meio da multidão.

 

- Desgraçada; quanta amargura nas suas palavras. E eu?!...

 

A interrogação como que lhe arrebatou os sentidos. Afigurou-lhe que o solo balançava, e as casas, inclinando-se e agitando-se com ele, iam bater umas de encontro às outras. A multidão começou a girar com a rapidez de um corrupio e fundir-se num único corpo, descarnado, nu, coroado por centenas de cabeças e ouriçado de milhares de braços.

 

Chamou em vão pela sua coragem, pelo seu sangue-frio. Não os tinha mais: as pernas fraquearam-lhe, enturvaram-se-lhe os olhos e, cambaleando, foi cair junto a uma das faces da rua.

 

- Estou perdida - exclamava ela dentro em si -, morro. Uma injúria pungentíssima, veio acabar de turbar-lhe inteiramente a razão e deprimir-lhe as forças. Um dos indivíduos do grupo que tanto impressionara Eulália, veio parar junto dela e, dando-lhe com a ponta da botina no quadril, exclamou:

 

- Olhem este diabo: está completamente bêbada.

 

 

II

 

Chiquinha, vendo a irmã no vagão, sentiu sublevar-se dentro em si a saudade, mas deliberara calar-se para não desgostar d. Ana, que se entristecia sempre que ouvia o simples nome de Eulália.

 

Muitas vezes a velha senhora tinha dito à caçula, de modo que impressionava às outras irmãs:

 

- Não fale nela, minha filhinha; não devemos estar a dizer sempre o nome dos mortos, porque fazemos com que eles penem mais.

 

A impressão de Chiquinha, porém, não podia no momento estreitar-se na deferência; precisava expandir-se, espanujar-se livremente, e a moça, chegando arquejante de uma longa corrida, exclamou a rir e a enxugar lágrimas:

 

- Sabem? Acabei de ver Eulália, de dizer-lhe adeus.

 

- Onde? - perguntaram todos, deixando-se arrastar pelo sentimento de Chiquinha.

 

- Na estrada de ferro; ia num carro para a cidade.

 

Houve um silêncio longo depois destas palavras, porque a fisionomia de d. Ana tinha feito uma rápida mudança.

 

Foi a velha senhora quem reatou a conversa.

 

- E por que não vem ela ter conosco?

 

Chiquinha expôs o incidente e demorou-se em justificar sua irmã aos olhos da tia. Não foi porque as desprezasse que não desceu; no momento em que se viram, o trem partia, e ainda assim Eulália quis descer.

 

- Então ela voltará a ter conosco - murmurou d. Ana; - antes da noite estaremos consigo, porque o trem volta de tarde.

 

- É exato; ela virá.

 

Absorta nesta esperança, a família como que olvidou o estado de penúria em que se achava. Só depois de algum tempo a caçula chamou-as à triste realidade, lembrando que tinha fome.

 

- Não pude conseguir coisa alguma; nem um vintém -ponderou Chiquinha. - Estava um mundo junto do trem; não pude chegar muito perto.

 

- Nós - acrescentou d. Ana - também nada conseguimos. Vamos correr as ruas; talvez tenham pena de nós.

 

A família, que estava reunida na estação, caminhou para o interior da linda povoação. Cada passo, porém, assinalava-lhes uma desilusão.

 

Havia dois dias que ali chegara, e no entanto não tinha encontrado um abrigo, a não ser um canto no abarracamento para suspenderem as redes. Foram debalde à comissão. Um dos empregados limitou-se a achar muito lindas as três mocinhas.

 

- Que flores ! São suas filhas? - disse ele. - Deixe estar que não lhes faltará nada. Venha amanhã; o comissário as atenderá.

 

O oferecimento, porém, longe de desvanecer a infeliz senhora, fizera-a estremecer e amedrontar-se, e no dia seguinte d. Ana, dirigindo-se à comissão, cometeu a imprudência de ir só.

 

O empregado reconheceu-a logo e, com um tom de familiaridade ofensiva, sorriu para a honrada senhora.

 

- Então vem só? Por que deixou as meninas? Fez mal; é preciso mostrá-las, senhora; tem nas mãos uma fortuna.

 

D. Ana respondeu a esta série de amabilidades grosseiras por uma pergunta seca:

 

- Poderei hoje falar ao comissário?

 

- Não esta aí agora, mas é o mesmo. Deixe-me ficar o seu nome e o das meninas.

 

D. Ana obedeceu quase a chorar de vergonha.

 

- Ora bem - ajuntou o empregado -, dentro de uma hora mande cá uma das meninas para que seja socorrida. Agora não posso dar-lhe nada; estou só, e, se vou dar-lhe alguma coisa, invadem-me isto. Dentro em uma hora mande hein? Será servida.

 

Indignada pela aviltante intenção que o empregado deixava transparecer nas suas palavras, d. Ana resolveu logo abrir mão dos socorros que pudesse obter.

 

O próprio empregado incumbiu-se de dar maior base à sua resolução. Quando d. Ana já ia saindo, ponderou-lhe ele:

 

- Escute; por que não deixa aqui o lugar onde está morando? Fica mais fácil, e demais a gente precisa de ir por lá ver as senhoras.

 

- Estou mesmo no abarracamento - respondeu d. Ana, e consigo acrescentou: - mas não estarei lá nem mais um quarto de hora.

 

De volta, ocupou-se logo em fazer a sua mudança de forasteira, para que não se visse nas condições em que já uma vez se achara. Mundica ensinara-lhe qual era o grau de prepotência dos comissários e a lição não tinha sido esquecida.

 

As circunstâncias da família eram portanto extremamente precárias, e a vinda de Eulália, que, pela aparência, podia modificá-las, devia alegrá-la.

 

Depois de correr a povoação, não tendo obtido mais do que o necessário para comprar uma bolacha para a mísera criança, a família Queiroz volveu de novo à estação, onde já começavam a reunir-se os esfaimados retirantes.

 

A honestidade, posta em feira, aleiloava-se ali como em todas as cidades do Ceará, e a depravação passeava sobranceira e ovante através da fome alucinada e cobarde.

 

A família inteira aconchegada, como que para defender-se do contágio da epidemia geral, esperava ansiosa, estranhando a lentidão do tempo.

 

De repente o silvo da locomotiva, quebrando o profundo silêncio em que se mergulhava a vasta extensão circunvizinha, lançou o alvoroço no meio da sussurrante massa que cercava a estação. De todos os lados do povoado correram mulheres e crianças precipitadamente, como se foram ao encontro de um remédio infalível para a sua desgraça.

 

A família Queiroz, colocada no meio dos trilhos, concertava o plano para que pudessem logo ser vistas por Eulália.

 

Quando o comboio parou e o alvoroço cresceu, as infelizes acercaram-se dos vagões a espioná-los atentamente.

 

- Não a vejo - ponderava d. Ana; - perdê-la-emos ainda de vista.

 

- Parece que não veio - advertiu Chiquinha; - se estivesse no trem, meu coração adivinhá-lo-ia.

 

O tempo de demora corria rápido, de um modo inqualificável. Já a sineta havia dado o sinal da partida e a locomotiva soltara um rouco bufo. Os chefes de trem trancavam as portinholas.

 

Chiquinha, perdendo a cabeça com a desilusão iminente, não hesitou mais, e, esquecendo-se da sua triste posição de retirante, ousou por o pé no estribo de um dos vagões.

 

- Para fora, estupor! - bradou o chefe do trem. - Vai-te para o diabo.

 

- É um instante só, meu senhor, para ver se a minha irmã veio.

 

- Safa-te; vamos.

 

- Não demoro, saio já, se ela não estiver; não custa nada...

 

A infeliz não teve tempo de completar a frase. O homem desnaturado, franzindo o sobrolho e levando aos lábios o apito, disse com uma acentuação de enfadado:

 

- Vejam o diabo como tenta; onde está o homem está o perigo: para fora, peste!...

 

As mãos do brutal empregado, acompanhando a rudeza das suas palavras, empurraram a pobre Chiquinha, que foi cair longe.

 

Um grito consternado rompeu do seio da infeliz, enquanto a maioria dos passageiros ria e a mó dos retirantes aplaudia com palmas a ação do miserável, que, de pé na plataforma do vagão, se movia rapidamente e agradecia tirando o boné.

 

Talvez instigada pelos cumprimentos, a mó impiedosa não se contentou com as chufas e com a assuada. Ao ver a pobre moça por terra, um rapazinho atirou-lhe um punhado de areia e os outros o imitaram. Para logo passarem deste desacato aos empurrões, e foi com grande dificuldade que a desditosa Chiquinha pôde caminhar, sempre perseguida pelos apupos.

 

D. Ana, que não tinha visto o incidente, esperava já a sobrinha no ponto combinado para o encontro: a face lateral da estação; e quando a viu assim perseguida, correu ao seu encontro enraivecida como leoa faminta. Mas a sua cólera impotente sopitou-se de pronto para dar lugar à humildade, e à defesa limitou-se a estreitar nos braços a moça desvairada pela afronta.

 

- Eulália? - perguntou d. Ana.  Não a pôde ver, minha filha?

 

- Não veio - soluçou Chiquinha; - e é por ela que sofro.

 

A assuada, que se havia amortecido um pouco, recresceu diante do quadro das infelizes que choravam abraçadas.

 

Ninguém é mais intolerante para com a desgraça do que um desgraçado. Os mendigos disputam-se até o último desforço a migalha que lhes afiram; não respeitam as lágrimas, não lhes reconhecem a majestade, porque estas lá se tomam sedição nos seus olhos.

 

- Olhem, a pequenota estava industriada pela velha. Eh! Cabras de força ...

 

- Não pegaram as bichas; toca a choramingar agora.

 

- Queriam lapear alguma coisa, mas não puderam.

 

- Fora, fora!

 

À medida que aumentava a grita, formava-se um círculo em torno de d. Ana e suas sobrinhas, e a garotada colocava-se de modo a empurrar as retirantes com a sofreguidão do jogo da peteca.

 

- Que mal lhes fizemos? - soluçou d. Ana. - A menina ia ver se a irmã tinha vindo no trem.

 

- Cala, cabra velha; fora!

 

Um homem rompeu sem dificuldade a grande massa, no meio da qual sacudia com violência um pau e impunha silêncio aos rapazolas mais exaltados. Era o empregado com quem d. Ana havia falado no abarracamento, e que vinha providencialmente ao seu encontro.

 

- Arreda para longe, canalha! - bradou ele, logo que se achou no meio do círculo. - Caluda! ou não terão esmola por dois dias.

 

A intimação peremptória produziu o efeito desejado, apesar de alguns protestos covardes, que mal podiam ser ouvidos.

 

Desde que se viu só com d. Ana, o empregado, esforçando-se por fingir condolência pelo desacato sofrido pelas infelizes, ponderou:

 

- A senhora é a única culpada do que acontece; não lhe disse eu que mandasse uma de suas meninas ao abarracamento? Porque não o fez? Para que há de se expor à perversidade dos brutos?

 

Semelhante compaixão insultava a velha senhora ainda mais pungentemente do que a assuada; mas a melindrosa situação inspirou à infeliz a prudência necessária para disfarçar a repulsa numa desculpa.

 

- Esperávamos no trem de hoje uma pessoa, que devia chegar do Ceará. Hoje mesmo partimos para lá.

 

- E quem é essa pessoa? Pode dizer quem é?

 

- Uma parenta nossa.

 

- Rica?

 

- Nós somos todos muito pobres.

 

O empregado deixou cair a máscara ao ouvir estas palavras; a hediondez da sua intenção esbateu-se na torpeza das suas palavras, e d. Ana, para evitar novo desgosto, disfarçou a impressão dolorosa que lhe causara ouvi-las.

 

- Venha comigo; eu lhe afianço que nada lhes faltará -exclamou ele por fim.

 

D. Ana prometeu fazer a vontade ao miserável, meio único para conseguir que ele se afastasse. Quando se viu só, porém, e percebeu no olhar de Chiquinha uma condenação ao que lhe acabava de ouvir:

 

- Infame! - resmoncou d. Ana. - Eis o que é a piedade deles.

 

- Oh! minha boa tia - exclamou Chiquinha -, perdoe-me a injustiça que lhe fiz. Tenha sempre coragem que Deus nos há de defender. Eulália está no Ceará, e nós reunidas poderemos ali trabalhar para viver.

 

- É exato, minha filha, poderemos viver honestas, mas para isto é preciso que todos que conosco vivam sejam honestos.

 

- E seremos; Eulália tem um coração generoso.

 

- Teve um coração generoso - murmurou d. Ana; - mas que respeito merecemos nós àqueles que souberem do erro de Eulália? Eu não consentirei que ela venha morar conosco; quase o tolerei num momento de fraqueza, mas felizmente a sua ingratidão salvou-nos desta vergonha.

 

- Perdoe-lhe, minha tia; ela talvez pensasse que nós fôssemos ao seu encontro.

 

- Pensou, decerto; nós as mais infelizes, tanto maior razão para não a querer conosco.

 

- Mas é cruel demais; ela não merece este castigo.

 

- É verdade, eu sou quem o merece talvez, Chiquinha; ainda agora acabei de ouvir oferecimento e, tendo fome, não o quis aceitar. Eu sou quem merece castigo.

 

Chiquinha respondeu com os soluços e as lágrimas à injustiça que a exaltação de d. Ana acabava de fazer-lhe, e apenas murmurou:

 

- Eu estou pronta para fazer o que me disser.

 

Não é possível descrever a grandeza de sentimentos, que neste instante se puseram em jogo no coração das duas mulheres, que não trocaram entre si mais que uma única frase:

 

- É preciso sair daqui hoje mesmo.

 

A noite já as veio encontrar longe de Arronches e nas circunvizinhanças da capital. Fazia um luar tropical, sereno como o desdém da natureza pelo orgulho do homem. Na intensa claridade destacava a massa seminua de grandes cajueiros, próximo aos quais ardiam fogueiras, deixando ver sórdidas redes suspensas sob a copa das árvores.

 

A estrada silenciosa, coleando pelas ondulações suaves do terreno, parecia a traça de um labirinto, ou melhor, o vestígio das indecisões, das incertezas que tumultuavam na alma das caminhantes.

 

A pouco e pouco o deserto como que se foi animando; as árvores como que se transformaram em habitações, e a família Queiroz percebeu que começava a pisar o solo da cidade.

 

Os grupos de retirantes abrigados sob as árvores aumentaram; já não era de distância em distância, sob os cajueiros Só, que se viam: estavam debaixo de todas as árvores, numa promiscuidade brutal.

 

- Quem sabe se não seria melhor ficarmos por aqui mesmo? - ponderou Chiquinha.

 

- Não; devemos entrar na cidade desde já; amanhã sofreremos menor impressão.

 

Caminharam até próximo da estação, onde resolveram pernoitar, porque Chiquinha pensava que na manhã seguinte Eulália viria aí encontrá-las.

 

- Se amanhã Eulália nos vier encontrar aqui, o que lhe dirá vosmecê, minha tia?

 

- Nada - respondeu d. Ana; - eu não tenho coisa alguma a dizer-lhe.

 

- Não a consentirá conosco?

 

- Não tenho direito sobre vocês; não é a mim que deve pesar mais a ingratidão.

 

 

III

 

A grosseria pela qual foi acompanhada Eulália na sua queda provocara a princípio ditos canalhas, mas não ecoou por muito tempo nos corações.

 

O corpo inerte, o olhar estatelado, as feições demudadas da moça, e principalmente a lividez mortuária que mascarou-lhe o semblante impuseram respeito.

 

- Parece que ela foi-se; para ser bebedeira é muito forte.

 

- Talvez seja algum mal de estupor ou ataque de cabeça.

 

- Se não a acudirem já, vai-se para ai à míngua como um cão.

 

A piedade substitui a indiferença e alguns dos circunstantes inclinaram-se sobre a mísera retirante.

 

- Não há dúvida; é mandar vir a rede e mandá-la para o cemitério; esta já não sofre mais.

 

A convicção geral foi de que Eulália havia morrido, e os mercadores ignóbeis da honra das famílias retirantes, impressionados e corridos pelo sucesso inesperado, começaram a retirar-se, fingindo uma impassibilidade que era desmentida pelo seu próprio semblante.

 

- Já está fria como gelo - disse um deles que pusera a mão sabre a testa de Eulália; - morta e bem morta.

 

A onda popular, como que afastada por mão invisível, recuou a pouco e pouco de junto de Eulália e voltou-lhe as costas para não vê-la mais. O aspecto da morte desanimava-a, porque era uma antevisão da sorte que a esperava dentro em alguns dias.

 

Toda a atenção voltou-se exclusivamente para a distribuição dos socorros; todo o esforço tendeu a ganhar distância a fim de se aproximarem dos empregados da comissão.

 

De repente uma grita atordoante ergueu-se na rua transversal a pequena distância do lugar onde Eulália havia caído.

 

- Nós temos fome; morremos à fome; salve-nos.

 

As vozes que assim clamavam eram pela mor parte de mulheres, e estas imprudentemente cercavam um homem de estatura média, magro, grisalho, vestido de sobrecasaca preta, e que fazia gestos acariciadores para todos os lados. Dois soldados, que o acompanhavam, resmungavam entre dentes:

 

- É preciso ter muita paciência para aturar esta ralé; fedem como animal podre.

 

- Bem, meus amigos, tenham paciência, isto vai melhorar muito; não hão de ter mais razões para queixas, eu lhes prometo.

 

- Mas veja vosmecê esta criança, meu senhor; está quase morta! Ah! Sr. presidente, vosmecê não sabe o que é a fome...

 

O homem, a quem todos se dirigiam e que era de feito o presidente da província, respondia com bonomia prometendo remediar tudo.

 

- Olhe, Vossa Mercê, veja: nós não estamos mentindo, Aqui mesmo caiu, não há nem uma hora, uma rapariga.

 

Pelo grito, parece que o que ela tem é fome. Está ali, veja. O presidente caminhou apressadamente até junto da infeliz e, com um arrebatamento filho da comiseração, tomou um dos pulsos.

 

- É exato; está quase a morrer, tem o pulso fraquíssimo.

 

- Como esta - ponderava o povo -, têm morrido dúzias e dúzias de pessoas.

 

- Eu mesma que estou aqui - acrescentava uma mulher - não tardo muito, se Vossa Mercê não vem em socorro da gente.

 

- Esta moça estava aqui sozinha?

 

- Parece...

 

- Não tem nenhum parente aqui, nem marido, nem qualquer pessoa que se interesse por si?

 

Ninguém respondeu ao apelo feito pela autoridade suprema da província.

 

- Chame aí dois homens - disse ele dirigindo-se a um dos soldados - e conduzam esta moça para a Santa Casa da Misericórdia; digam que vão da minha parte.

 

A especulação inspirada pela desgraça começou logo a fazer concorrência à desacordada Eulália. Várias mulheres, simulando desfalecimentos, caíram redondamente por terra, para ver se lhes era dado o mesmo destino.

 

O presidente, sorrindo com a sua triste experiência de iguais cenas, esperou até que Eulália fosse colocada nos braços de dois retirantes.

 

O honrado velho e a mísera moça seguiram direções opostas e, ao passo que o primeiro, subindo a rua, era importunado pela multidão, Eulália dentro em alguns minutos era entregue às Irmãs de Caridade no edifício da Misericórdia.

 

Uma febre violenta, que dava à pele uma secura de areal e ao mesmo tempo uma temperatura incomodativa, sucedera ao espasmo que a havia gelado.

 

- É uma retirante que o sr. presidente encontrou caída na rua; pede toda a atenção para ela.

 

A recomendação do camarada era inútil. As poucas irmãs, que faziam o serviço do hospital, eram verdadeiras sacerdotisas da caridade. Acostumadas à triste existência do recolhimento, como que os enfermos eram as suas únicas afeições. Tinham por eles cuidados maternais, e pensavam-nos com uma paciência evangélica.

 

Também como que a natureza se esforçava em compensar-lhes a dedicação e a humanidade: a mortalidade ficava numa desproporção extraordinária com o número dos enfermos.

 

Transportada para a enfermaria, Eulália conservou-se durante longas horas desacordada, e o médico, examinando-a, deu-a como um caso perdido.

 

A febre, ressequindo-lhe os lábios e escancarando-lhe de vez em quando os olhos, punha-lhe no corpo um tremor convulsivo, ao mesmo tempo que a fazia de espaço a espaço pronunciar frases soltas e algumas vezes de um sentido ininteligível para a irmã que velava à sua cabeceira:

 

- Adeus, adeus, não envergonharei os meus - dizia ela; - adeus.

 

E, contraindo os lábios, estalava beijos no ar, de certo beijando na imaginação conturbada a face de algum ente caro.

 

A estas palavras repassadas de dignidade e de mansidão, sucediam outras, enérgicas, ameaçadoras, que revelavam a meio a história íntima da retirante.

 

- É inútil, não quero, não matarei o meu filho; mate-me com ele se quiser, mas não lhe obedeço.

 

A irmã intervinha acalmando-a, assegurando-lhe que ninguém a queria violentar, mas essas palavras como que exacerbavam a febricitante e ela acrescentava:

 

- Faça-o, ameace-me quanto quiser; se matar o meu filho, eu denunciá-lo-ei e darei como testemunho a arma com que feriu Feitosa. Tem o seu nome.

 

Soluços abafados e gemidos de uma tristeza dolorosamente comunicativa seguiam a frase altiva e resoluta que se continuava por uma explosão sobranceira e ao mesmo tempo humilde.

 

- Treme agora; não tem coragem, queria ferir-me o coração. Ai meu desgraçado pai, como fostes feliz morrendo; se existísseis não resistiríeis à vergonha. O vigário, o vosso amigo...

 

A irmã inclinando-se sobre a doente para ouvir melhor as revelações do delírio, estremecia a cada palavra e, como que, ouvindo-a, abria simpaticamente o coração àquela desgraçada misteriosa que viera dar a costa no hospital.

 

Ainda em hora muito adiantada da noite a febre e o delírio continuavam com a mesma intensidade, e a irmã, firme no posto que lhe era indicado pela caridade, velava solicitamente pensando consigo:

 

- Esta moça foi vítima de uma grande infelicidade.

 

Pela madrugada a febre fez remissão quase completa, e a agitada sonolência foi substituída por algum repouso.

 

A irmã sentiu renascer a esperança de ver salva a recomendada do presidente, a quem estreitava-a não só a curiosidade, mas já poderosa simpatia. Naquele rosto sereno, onde a resignação e a cordialidade haviam conservado a frescura infantil, passava um reflexo de alegria íntima sobre a palidez da vigília.

 

De manhã, à hora da visita do médico, a irmã tinha um ar triunfante, e apressou-se em ir ao encontro do facultativo para dar-lhe a boa nova:

 

- A nossa doente de ontem à noite está quase sem febre.

 

- É um milagre, irmã; não esperava.

 

- Teve um mau delírio durante a noite, sofreu muito, mas está felizmente melhor.

 

As novas indicações do facultativo operaram sobre a doente um efeito eficaz, mas ainda assim a irmã não ficou de todo descansada. Eulália conservava-se inteiramente alheia ao que se passava em torno; nem por um gesto, nem por uma palavra deixava perceber a menor impressão.

 

- Está apatetada - dizia consigo a irmã; - quem sabe se não é uma idiota?

 

O olhar incerto, sonolento, os movimentos tardos e inconscientes, os gemidos meio abafados, tudo enfim fazia acentuar-se a suspeita da irmã, que felizmente convenceu-se do contrário, horas depois.

 

Eulália dormiu longamente; o anélito quente e fétido da febre foi substituído por uma respiração pausada, ampla, que denotava apenas um grande cansaço. Afinal o sono interrompeu-se de manso, e Eulália, abrindo e para logo esfregando os olhos, encarou para o que via diante de si. Como se esta só verificação não lhe bastasse, sentou-se de pronto no leito e alongou a vista por toda a enfermaria.

 

A irmã, ajoelhada a pequena distância do seu leito, orava em face de uma imagem da Senhora, que surgia de entre

 

festões de rosas brancas e rubras, entrelaçadas de modo a emoldurá-la. Reinava inteiro silêncio na enfermaria. As filas de leitos, estendidos ao longo do enorme salão, cobertos com lençóis de algodão, davam ao lugar o cunho adorável da ordem. Dentre o leve alaranjado dos lençóis surgiam as cabeças das enfermas magras e tristes, que olhavam quietas.

 

Seria meio-dia. O sol, quebrando os raios no calçamento e no areal das ruas, fazia com que se visse a evaporação do solo subir com uma vibração vítrea. O Passeio Público, em frente, farfalhava à viração da baía as poucas folhas que restavam ao seu arborizamento.

 

A canícula filtrava nos corpos uma quebreira invencível. Não se podia estar bem senão encurvado em uma rede violentamente agitada.

 

Eulália, sentada no leito, viu a imobilidade geral e, como não tivesse logo divisado a irmã, resolveu-se de novo a deitar-se.

 

A irmã, vendo o seu movimento, veio postar-se junto da sua cabeceira, e com uma voz de uma entoação maternal:

 

- Como está? Vai melhorzinha ?

 

- Muito melhor - respondeu voltando-se e, encarando com a irmã, acrescentou: - dei-lhe muito trabalho, minha senhora, não é verdade?

 

- Nenhum, minha filha, cumpri com o meu dever.

 

Houve uma pausa, durante a qual Eulália de quando em quando levantava os olhos para fitar a irmã, e esta, fingindo não perceber a curiosidade da moça, deixava observar-se e por sua vez observava. Via-se claramente que Eulália coligia recordações para saber qual era a posição social da mulher, tão esquisitamente vestida, que se conservava ao seu lado.

 

- Quem foi que me trouxe para aqui, pode dizer-me?

 

- Veio carregada por dois homens, por ordem do presidente.

 

- Mas eu não conheço o presidente.

 

- Não é preciso para que ele faça o bem. É um bom homem.

 

O silêncio interpôs-se de novo às duas vozes e só se rompeu de chofre com uma pergunta de Eulália.

 

- Mas diga-me onde estou, de quem é esta casa.

 

- É de todos os pobres: a Santa Casa da Misericórdia.

 

- Ah! - exclamou Eulália e, caiando-se, tentou esconder o rosto sob os lençóis.

 

- Sente-se mal, minha filha? - perguntou a irmã ocultando saber a causa do movimento de Eulália.

 

- Não é coisa séria, minha senhora; não se incomode.

 

A irmã tinha-se colocado em frente de Eulália e, assentando-se no leito, segurou-lhe em uma das mãos. Depois, inclinando-se muito sobre ela, murmurou:

 

- Vexou-se de achar-se aqui, não é verdade? A todos acontece assim, mas não têm razão. Esta casa é de infelizes, mas não rebaixa.

 

- Oh! minha senhora, eu nem podia querer melhor; se soubesse quanto eu tenho sofrido!...

 

- Imagino, minha filha; ouvi ontem quando delirava.

 

- Sim, eu delirava ontem? Nem vi quando me trouxeram para aqui.

 

- É filha da cidade ou do sertão?

 

- Do sertão.

 

- E a sua família sabe que veio para o hospital?

 

- Não - exclamou Eulália sentando-se; - não sabe, e a esta hora deve sofrer muito...

 

- Onde mora ela? Mandarei avisá-la.

 

- Não sei; ninguém pode dizer ao certo. Eu devia encontrar-me com ela hoje...

 

- Saiu então sem falar-lhe?

 

- Sim, eu sou muito desgraçada, minha senhora, muito desgraçada.

 

Em vão a irmã quis acalmar a sobreexcitação da doente; as lágrimas debulharam-se-lhe perenes e pôs-se a soluçar dolorosamente.

 

- Não se mortifique assim - observou a irmã. - Olhe; eu já sou sua amiga e não sairá daqui sem que esteja perfeitamente curada, e sairá somente para ver os seus parentes, porque eu lhe arranjarei um emprego aqui.

 

- Obrigada - murmurou Eulália -, mas não posso aceitar nada do que me oferece. Eu preciso sair hoje, já, agora mesmo.

 

- Não é possível, minha filha, só o médico lhe poderia fazer tal obséquio, e eu empenhar-me-ia com ele para que não o fizesse.

 

- Preciso - acrescentou Eulália; - quero salvar minhas irmãs.

 

- Não as salvará, porque irá recair e morrer.

 

- Ah! minha senhora - exclamou Eulália -, é porque não sabe quanto eu sou infeliz, não imagina que desgraça causa hoje a minha ausência; por isso opõe-se a deixar-me sair?

 

- Não está nas minhas mãos, filha; amanhã, só amanhã o médico lhe poderá dizer. A sua saída, porém, será a sua morte.

 

- Não posso, pois, sair?

 

- Não - respondeu a irmã ameigando a voz para tirar toda a aspereza da negativa. - Há de curar-se primeiro para então poder servir à sua família.

 

- Meu Deus, meu Deus, o que vão dizer elas de mim? Estou de uma vez para sempre condenada.

 

Eulália tinha razão quando assim pensava.

 

A tarde e a noite anteriores haviam gerado na imaginação de d. Ana as mais extravagantes idéias acerca do caráter da moça e do seu destino.

 

Um ponto estava de si para si definitivamente assentado: era que a sua sobrinha não passava de uma perdida. Tal era o motivo da repugnância que tinha do contato daquela, repugnância que não externava claramente para não ofender o pudor de Chiquinha.

 

Uma ponderação somente a fazia abrandar e dispor-se a ceder às solicitações da sobrinha, para que de novo se juntassem com Eulália. Não estaria esta arrependida do mau passo que dera? Ousaria ela querer enxovalhar a pobreza de suas irmãs? Não era possível que esta última hipótese fosse verdadeira; Eulália errou, mas não era uma perversa.

 

Entretanto, amanhecendo, d. Ana e suas sobrinhas foram colocar-se à porta da estação, junto ao bilheteiro, lugar em que não podiam deixar de ver todos os indivíduos que entravam para tomar o trem.

 

A caçula tinha fome, e tinha passado a noite a choramingar. O sono fê-la calar, mas, acordando, recomeçou as suas queixas e os seus pedidos.

 

- Não temos com que comprar comida; mas tua irmã, a tua mamãe, não tarda ai para dar-nos dinheiro - disse-lhe Chiquinha, afagando-a.

 

A criança consolou-se por algum tempo, mas não recomeçou o choro, desde que nos lábios da tia e das irmãs soaram palavras de esperança.

 

A locomotiva deu o primeiro, o segundo, o terceiro sinal; os circunstantes apertaram-se mais na plataforma; pessoas que vinham no largo puseram-se a correr.

 

As infelizes, com os olhos presos em quantas mulheres entravam, examinavam-nas de alto a baixo, como se temessem que a sobreexcitação em que estavam as fizesse não reconhecer logo Eulália.

 

O apito do condutor do trem anunciou a partida imediata, e a locomotiva, dando o primeiro arranco, fez soar o choque dos vagões uns contra os outros.

 

- Não veio - suspirou Chiquinha.

 

- Não veio - repetiu amargamente d. Ana, e acrescentou: - eu já esperava por isto.

 

- Foi por força de algum contratempo que sobreveio, titia; não pense mal de Eulália.

 

O choro da criança, ao ouvir o desengano cruel; a triste certeza de que a sua mamãe não viria, dobrando-se, fez com que o diálogo se interrompesse. A voz da coitadinha, chamando a família à realidade da sua posição, lembrou-a de que devia tratar de arranjar alguma coisa para comer.

 

Chiquinha, que tinha nos braços a caçula, foi postar-se em frente à família, e daí estendeu a mão aos transeuntes pedindo-lhes, em nome de Deus, uma esmola.

 

- Vá para a comissão - exclamavam uns. - Vá trabalhar. -exclamavam outros.

 

Mas no meio dessa indiferença marmórea pela desgraça alheia, algumas almas generosas depunham na mão da mocinha o óbolo, que ela abençoava fervorosamente.

 

Quando a multidão se dispersou, o bilheteiro, vendo a família e principalmente ouvindo algumas palavras dela, comiserou-se.

 

- Eu esperava por esta - dissera d. Ana; - e Eulália não se importa mais conosco.

 

- Pode ter-lhe acontecido algum desastre não é possível? - perguntou Chiquinha, amuada.

 

- É possível, mas era preciso muita infelicidade para nós.

 

- E duvida, minha tia? Alguém poderá acreditar no que nos tem acontecido?

 

D. Ana calara-se por algum tempo, mas afinal reatando a conversação exclamara:

 

- Seja como for, Chiquinha, eu não quero mais saber de Eulália. Perdeu-se, fique lá com o seu erro. Não quero comer à custa de um dinheiro que não chega honestamente às mãos dela. Quem lho dá? É um marido, é um irmão, é um parente? Não; quem lho dá é o causador da sua e da nossa desgraça. Eu não quero aproveitar-me de tal dinheiro.

 

Chiquinha pôs-se a soluçar e exclamou com a ingenuidade de seus 15 anos:

 

- Mas assim vamos morrer todas, porque no meio deste povaréu não há de haver meio de ganhar a vida.

 

- Melhor será morrer - ponderou severamente d. Ana; mas, notando na impressão que o seu tom causara à moça, ameigou a voz e acrescentou: - não morremos, não, minha filha; em toda parte há trabalho para os que se querem sujeitar. Demais, procuraremos o nosso velho amigo Rogério Monte, e quem sabe se não encontraremos por cá o sr. Augusto Feitosa? Tenhamos fé; antes sofrer honestamente do que receber socorros de mãos que não no-los devem dar.

 

Neste ponto da conversação, o bilheteiro veio parar em face de d. Ana, e, cumprimentando-a respeitosamente, fez-lhe algumas perguntas banais, com o intento de travar conversa.

 

- São de fora - disse ele por fim - e não conhecem aqui ninguém que lhes possa de pronto encaminhar, não é verdade?

 

D. Ana, a quem os oferecimentos espontâneos já eram suspeitos, olhou de soslaio para o interlocutor e entendeu que devia dissimular.

 

- É exato, mas nós como já estivemos aqui uma vez, conhecemos mais ou menos as ruas e podemos procurar alguns amigos que temos.

 

Chiquinha olhou para a velha tia e para o interlocutor de modo que este compreendeu que a honrada senhora buscava negar-se a segui-lo.

 

- Mas são parentes ou amigos que a senhora tem aqui? - perguntou o interlocutor. - Desculpe a minha importunação; sou daqui e sei que hoje é inútil procurar os amigos: não servem.

 

- Oh! os que eu vou procurar são sinceros.

 

- Não basta; é preciso que possam ser úteis agora.

 

- Trabalharemos.

 

- Mas em que hão de trabalhar?

 

- Serviços não faltam.

 

- Ouça, minha senhora; eu estava ali quando conversava e ouvi tudo. Sou pai de família, sei avaliar o quanto sofre, e que heroísmo é necessário para assim negar-se a ser protegida. Mas não deve desconfiar absolutamente de todos.

 

D. Ana abaixou a cabeça e Chiquinha, animada pelas palavras do desconhecido, perguntou-lhe:

 

- E o senhor pode dar-nos um lugar em que moremos?

 

- Posso recomendá-las num dos abarracamentos; serve?

 

- Muito - acudiu d. Ana; - já vejo que o senhor é um homem de bem.

 

- Deus há de agradecer-lhe o benefício - exclamou Chiquinha; - nós estávamos em termos de morrer.

 

Caminharam através do largo, diversas ruas e praças, até que o homem, parando em uma porta, deu à família um cartão em que escrevera algumas palavras.

 

- Esta é a casa do comissário; esperem por ele e filem-lhe; é o primeiro pedido que lhe faço e ele há de atender-me; se não o fizer, vão falar-me amanhã lá na estação.

 

 

IV

 

Pouco depois que d. Ana e suas sobrinhas passaram pela rua da Assembléia atravessavam-na também duas pessoas, cujo encontro era ansiosamente desejado pela família.

 

Uma dessas pessoas era uma rapariga loira, extremamente pálida e emagrecida, cujo trajo revelava mais do que pobreza - verdadeira miséria. Estava descalça, e no corpinho os cerzidos longos traíam uma preocupação de compostura e asseio pouco comum no grosso da população adventícia que enchia a capital.

 

Via-se num lance de olhos que a infeliz moça fora vítima de uma grande catástrofe; lembrava um pedaço de mármore esculpido no meio de um esterquilínio; tamanha era a diferença que havia entre ela e qualquer outra retirante.

 

Quem demorasse a contemplar aquele semblante tinha necessariamente por ele interesse compassivo. Da exagerada palidez ressaltavam dois olhos azuis, muito grandes e amortecidos, que pareciam diluir-se numa umidade luminosa, e o olhar que deles transudava trazia alguma coisa de sobrenatural. Duas tranças loiras, enroladas sobre o occipúcio, completavam-lhe a cabeça simpática.

 

Pela mão dessa rapariga caminhava tropegamente um velho, que apresentava mais idade do que a real. Os sofrimentos tinham-no acabrunhado de tal forma, que dar-se-lhe-ia mais de 60 anos.

 

Estes dois infelizes, caminhando através da soalheira das 11 horas da manhã, paravam de porta em porta, mas, em vez de pedirem esmolas, a moça oferecia rendas para vender.

 

Ordinariamente à oferta correspondia um movimento triste da moça, que suspirava, abaixando a cabeça.

 

- Tem paciência, minha filha - murmurava o velho; - acharemos adiante quem no-las compre.

 

- Não me incomodo, não, meu pai; já estou acostumada.

 

Mas, enquanto a voz se encarregava de dar este conforto ao velho, a infeliz não raras vezes levava a mão aos olhos para enxugar as lágrimas que neles marejavam; e, quando, depois de algumas passadas, ela parava em outra porta, era já receosamente que oferecia as suas rendas.

 

- O dia está hoje aziago, rainha filha - ponderou o velho, depois de ouvir várias recusas.

 

- Mas ainda é muito cedo; ainda podemos correr outra rua.

 

- És uma santa, minha Irena - murmurou o velho; - não desencorajas.

 

- O negócio é assim mesmo, meu pai; um dia bom, outro mau; não há, pois, que estranhar.

 

Um suspiro do velho Rogério Monte respondeu à frase que estereotipava a enorme valentia moral de Irena.

 

A tímida amiga de Eulália tinha-se de feito modificado radicalmente. O seu natural retraimento como que se transformara numa concentração de força de ânimo, de tal sorte que ela se mostrava heroicamente sobranceira a todas as desgraças.

 

Rogério muitas vezes desacoroçoava de todo e revoltava-se contra o destino cruel que o fustigava desapiedadamente, mas a voz de Irena achava tais argumentos na própria desventura, que para logo fazia voltar-lhe a calma e a resignação.

 

Houve dois dias de máxima provação para Rogério, depois das tremendas decepções que o perseguiram desde que se retirou da paróquia.

 

A primeira dessas foi a morte de um dos escravos, com a venda dos quais contava saldar inteiramente as suas dívidas e readquirir a boa vontade dos seus credores.

 

Por mais que o honrado velho documentasse a morte do escravo, não conseguiu autorizar a sua palavra.

 

- É um excelente subterfúgio - respondiam-lhe os credores; - mas infelizmente já não pegam as bichas.

 

Em Aracati, portanto, longe de encontrar quem o amparasse, Rogério só teve perseguidores, e foi obrigado a refugiar-se para que não tivesse de amargar na prisão dois crimes que lhe eram imputados com iguais fundamentos: a tentativa de assassinato contra Augusto Feitosa e a sonegação de um escravo, com o intuito de defraudar àqueles que haviam confiado em sua honra.

 

Todavia a sua vida não se repassou ali de todo o amargor, que lhe estava reservado; o honrado velho tinha ainda sorrisos para repartir com Irena, cujo coração reagia contra o infortúnio, para não dilacerar a última parte não ulcerada do de seu pai: aquela em que ele encerrava a consciência da amizade que ela lhe dedicava.

 

Breve, porém, a penúria, estreitando cada vez mais o círculo em torno dos dois náufragos da fortuna, impôs a Rogério como condição de salvar-se a retirada de Aracati. Foi então que, mudando de nome, resolveu partir para o Ceará.

 

Medonha recordação deixou-lhe tal viagem, e agora, cego, ainda mais se lhe avivava na memória.

 

Para iludir a vigilância, aliás pouco temível da polícia, agravara ainda mais as aparências das suas necessidades. Pôs-se descalço, e pediu a Irena que fizesse o mesmo e, carregando cabeça os poucos objetos que lhe restavam, foi dar o nome num abarracamento de retirantes.

 

Daí seguiu, no primeiro vapor, para a capital.

 

- Sabes em que estou pensando? - dizia às vezes o cego à sua filha.

 

- Aposto que está pensando em mim - respondia-lhe dando à voz uma entoação acariciadora; - não faz isto.

 

- Sim, penso em ti, mas naqueles dias da viagem.

 

E punha-se a recordar as cenas que via com essa vista do cego, que é três vezes mais perfeita do que a dos homens.

 

Vinha à proa e, como ele e a filha, vinham centenas de retirantes. Aquela aglomeração de farrapos e de enfermidades antecipava-lhe a amarga existência que o esperava na capital. Tinha visto o que podia haver de mais horroroso nas horrorosas cenas da seca.

 

A maior parte dos passageiros retirantes nem tinha lugar para estender as pernas. Entontecidos pelo enjôo, os infelizes juntavam ao mal-estar geral a imundícia, porque alagavam o convés com vômitos abundantes. Outras enfermidades sórdidas colaboravam nessa obra nauseabunda.

 

Irena padecera muito e Rogério chegou a perder a esperança de vê-la chegar à capital.

 

Durante uma dessas horas de angústia, mais uma porção de fel veio misturar-se ao muito que já amargurava o desgraçado. As trouxas que trouxera para bordo desapareceram, e entretanto dentro delas estava tudo que restava ao descendente de uma das mais fidalgas famílias da província.

 

Rogério, sempre que se lembrava do fato, deixava medir a extensão da cólera que experimentara.

 

- Tinha coragem de arrancar os olhos a quem me roubou.

 

O fato alucinou-o no momento e, apesar de ser expressamente proibida a passagem dos retirantes da proa para a ré, afrontou a ordem e foi ter com o comandante.

 

As providências tomadas foram tão fracas, que não foi possível descobrir o autor do roubo, e além disso em vez de consolo encontrou apenas escárnio e humilhação.

 

- Tu estavas fora de ti com o maldito enjôo e não viste o que se passou, Irena. Sabes apenas que a punição do comandante foi tamanha, que eu nunca a pediria aos céus.

 

E Rogério estremecendo referia o desastre, que, no seu entender, punira o pouco caso com que foi tratado pelo comandante.

 

Quando recebeu o triste desengano de que não era possível descobrir os objetos Rogério voltou à ré.

 

Sentados junto à borda do vapor, o comandante e a esposa conversavam, e entre os dois brincava uma criancinha, que teria, no máximo, quatro anos.

 

Embevecido na felicidade que lhes causava tão intimo conchego, o comandante respondeu às lamentações do velho com algumas palavras em que a indiferença repassava a piedade mal simulada.

 

- Bem viu que tomei logo providências, mas vá lá descobrir o homem da capa preta, entre centenas de indivíduos.

 

Rogério, por um grito da consciência, repeliu a suspeita que era lançada sobre os seus companheiros de infortúnio, e, com um tom grave, acrescentou:

 

- Fosse eu o comandante e o senhor a vitima e eu lhe mostraria como descobria em meia hora o autor do roubo.

 

- Pois dou-lhe poderes, vá descobrir.

 

- Descobrirei, mas hei de ter permissão para correr as caixas dos seus marinheiros.

 

- Meu velho - replicou o comandante -, eu perdôo-lhe, porém não repita o que disse. Está decidido, não tenho mais nada a fazer. Pode ir.

 

Monte retirou-se duplamente ferido pela repulsa do comandante e pela perda inestimável que acabava de sofrer.

 

Chegando junto de Irena e vendo-a profundamente abatida, todas as desgraças, que imaginou desde logo no futuro, assaltaram-no em tropel. A presença da filha torturava-o; quando ela, entontecida e desanimada, estendia-lhe os braços e rodeava-lhe com eles o pescoço, afigurava-se à imaginação alucinada de Rogério que apertavam-lhe com uma tenaz em brasa.

 

"O que vai ser de nós?" - pensava ele; - "que mundo de sofrimentos desabará sobre nós? Irena, Irena, melhor fora que morresses.”

 

O enjôo da moça reunido à falta de comodidades prostrou-a extraordinariamente. Depois da violência dos acessos caiu em um profundo torpor bem semelhante ao espasmo de um moribundo.

 

- Ela morre, santo Deus - suspirava Monte - e eu não posso ao menos cumprir com o meu dever de pai.

 

Olhava em vão em torno de si para pedir socorro: a sua desgraça só encarava com desgraçados.

 

- Não, não morrerás à mingua, minha filha, eu te salvarei.

 

Cambaleando, dirigiu-se de novo para a banda de ré. Marinheiros postados no passadiço impediram-lhe a passagem.

 

- Para lá, velho; basta de incomodar o comandante, basta.

 

- Mas eu sou pai, entendem? E vejo que a minha filha vai morrer.

 

- É o mesmo, não será o primeiro pai a perder um filho.

 

Rogério, vendo que inútil seria apelar para a força, não pôde mais conter as lágrimas e, com uma entoação compungente, exclamou:

 

- Veja, meu amigo, eu estou velho, só tenho aquela filha; se a perder, morrerei também.

 

- É exato, é - murmurou o marinheiro -, eu bem sei que dói, mas cumpro ordens.

 

- Esta ordem não pode se estender até um pai que tem a filha moribunda. Olhe, o comandante é pai também; veja-o, está ali contente a rir porque o seu filhinho brinca. Ele perdoará a falta que eu preciso cometer; deixe-me passar.

 

O marinheiro voltou os olhos para o lugar assinalado por Monte, e depois observou:

 

- Estou vendo, sim; ele está alegre com o filho, é feliz e não quererá que se dê aos outros a mesma alegria; coisas do mundo!

 

- Não pense isto; ninguém desdenha da dor de um pai, ninguém se zanga com outrem por saber que se compadeceu dos sofrimentos do seu semelhante. Veja como a criança brinca, e ele e a esposa sorriem?

 

Houve um instante de silêncio, durante o qual o marinheiro coçava a cabeça como que para afastar daí a idéia de desobedecer à ordem do comandante.

 

De repente, ambos exclamaram com uma entoação indefinível:

 

- Virgem!

 

Um ai que parecia trazer dentro de si pedaços de um coração ecoou em todo o navio, e a esposa do comandante caiu redondamente sobre o tombadilho.

 

- O que tens tu? - bradou o esposo, precipitando-se sobre ela.

 

Rogério e o marinheiro, estatelados, sem voz, olhavam-se, ao passo que os outros marinheiros e alguns dos passageiros de ré, correndo para junto do comandante, ajudavam-no a levantar o corpo desmaiado da senhora.

 

A confusão e o espanto causados pela cena inesperada cresciam, porque todos tratavam de inquirir a causa do desmaio da senhora e limitavam nela os seus cuidados.

 

Só depois de alguns minutos - longos como um século, porque eram medidos por uma enorme catástrofe - o marinheiro, cambaleando, veio por sua vez parar em face do comandante.

 

- A menina - disse ele com um acento gutural de enorme comoção - a menina...

 

O mísero pai atirou-se de encontro ao bordo do vapor com a prontidão de uma bala. Só então pôde medir a extensão do golpe que transpassara-lhe o coração e, levando as mãos à cabeça e contraindo-se como uma serpente no momento do bote, tentou atirar-se nas ondas.

 

Os braços possantes dos seus companheiros o detiveram, não sem um grande esforço, e ao mesmo tempo todos a uma voz bradaram:

 

- Escaler ao mar; para trás o vapor.

 

O velho Rogério parava então para resfolegar e concluía, enxugando lágrimas que marejavam-lhe impertinentemente dos olhos sem luz:

 

- Eu tinha pedido a Deus que te levasse, minha Irena; mas, ao ver a tremenda dor daqueles pais, fui abraçar-me contigo. Dormias à espera de futuros infortúnios.

 

Passando então a ocupar-se de Irena, Rogério acentuava as tristezas que vieram recebê-lo no desembarque.

 

Fora como todos os outros retirantes acomodar-se em um dos abarracamentos e aí, para fazer jus ao socorro do Estado, era obrigado a carregar pedras nas horas da canícula.

 

Uma noite, de volta do trabalho, chegou à mísera choupana em que morava, ardendo em febre.

 

Irena padeceu tanto como ele, porque a infeliz em cada gemido paterno ouvia os ecos dos próprios prantos de orfandade.

 

Rogério por sua vez sentia que a dor da filha agravava-lhe a enfermidade, mas por um dom do acaso veio o delírio roubar-lhe a consciência do infortúnio!

 

A febre, porém, declinou um pouco e ao romper da alva desapareceu de todo.

 

Rogério, acordando então, chamou pela filha.

 

- Diz-me, Irena, o que tive eu à noite?

 

- Uma febrezinha, mas passou.

 

- Sim, e onde estás tu? Por que não vens para o pé de mim?

 

Irena, que não lhe havia abandonado a cabeceira, respondeu a sorrir:

 

- Olhe para cá e verá que não estou longe.

 

- Estou a olhar, filha, repara; tenho os olhos abertos, e entretanto não te vejo.

 

Irena, inclinando-se sobre o rosto de Rogério, abriu os seus tanto quanto estavam abertos os olhos do pai, e fundiu em soluços:

 

- Somos bem desgraçados! - suspirou a desditosa.

 

- Muito, minha filha, muito!

 

Rogério Monte estava cego.

 

 

V

 

Desde então Irena deixou de ser a tímida menina da paróquia para ser a filha corajosa e dedicada. Como que as forças perdidas pelo velho Rogério tinham vindo abrigar-se dentro dela. Quando o infeliz desanimava, Irena, com uma energia piedosa, realentava-o, e era tamanha a sua dedicação, que mantinha a esperança no meio de tão grandes desilusões.

 

- Ainda nada, minha filha; voltas hoje para casa com as tuas rendas.

 

- Daqui até a noite ainda há muito tempo; verá como faço ainda um negocião.

 

Havia entrado no largo da Assembléia o qual estava agora convertido num abarracamento.

 

Reinava aí o grande sussurro que enche sempre as aglomerações populares.

 

Na parte media do largo, diversos vendedores estacionados apregoavam, acirrando a gula dos retirantes - arroz cozido e mel.

 

O velho Rogério Monte, ouvindo o pregão, sorriu, e murmurou:

 

- As tuas economias não chegam hoje para que possamos enganar a boca. Há entretanto 24 horas que não comemos!

 

- Um pouco de paciência mais, meu pai, e teremos fartura. Fiz quatro varas de renda, e hei de vendê-las a dois tostões...

 

- Se vendê-las, minha filha.

 

Deram mais algumas passadas, porém, chegados a uma esquina, Rogério, cuja fraqueza não podia resistir à soalheira, propôs a Irena esperá-la ai.

 

- És mais forte do que eu; vai ver se vendes as tuas rendas, e vem encontrar comigo aqui. Olha: eu não preciso do meu paletó, põe-no sobre a cabeça; abriga-te nele; faz um sol de rachar.

 

Irena obedeceu e, depois de fazer Rogério sentar-se em um portal, caminhou para o largo.

 

Pouco adiante estava reunido um grupo compacto em torno de um homem, cujo rosto Irena não pôde ver. O rebuliço das pessoas que estavam ao redor dele (as bênçãos que de todas as partes o cobriam, fazia ver que o homem dava esmolas.

 

Irena parou. A sua educação, os seus precedentes geravam-lhe uma repugnância quase invencível para esmolar. Poucas vezes se tinha visto forçada a lançar mão deste recurso para socorrer o seu velho pai, única razão por que pedia. Por si só, preferiria morrer de fome.

 

Hoje era um dos dias em que precisava urgentemente arranjar dinheiro, e por isso a necessidade de esmolar impunha-se-lhe, porque, apesar de ter discordado de Rogério quanto à impossibilidade de vender as rendas, estava convencida de que não as venderia.

 

Depois de longa hesitação, uma idéia lisonjeira veio ao espírito de Irena.

 

O homem que estava a distribuir esmolas, é porque tinha um coração generoso. Devia, pois, compreender que a sua oferta de rendas era o mesmo que um pedido de esmola, e atendê-la-ia.

 

Encorajada por esta idéia, aventurou-se aos encontrões e às grosserias do ajuntamento e, resistindo aos brutais vaivéns que lhe davam, chegou à distancia de poder se fazer ouvir pelo homem, cujo rosto entretanto não conseguia ver.

 

Ofereceu uma, duas, muitas vezes as suas rendas, sem que fosse atendida, e já começava a desanimar, quando o grupo que a encobria aos olhos do desconhecido deu-lhe passagem.

 

- Faça-me a esmola de comprar esta renda, meu senhor, murmurou Irena.

 

- Espera um pouquinho, filha - disse o homem sem voltar-se, mas colocando uma das mãos sobre Irena.

 

O som da sua voz, porém, produziu sobre a moça uma comoção tão violenta, como se ele a houvesse ofendido. Irena levantou os seus grandes olhos azuis, e, ao deparar com o rosto do desconhecido, baixou-os, reprimindo um grito.

 

O esmoler, em torno do qual se agrupava tanta gente, e em cuja porta paravam durante o dia centenas de retirantes, era Augusto Feitosa.

 

Agora, como sempre, ao dar a esmola, o moço, em cujo semblante estavam estampados os mais vivos vestígios de sofrimentos profundos, perguntava a cada socorrido o lugar da província onde anteriormente morava e concluía sempre por esta pergunta:

 

- Não conhece ninguém que tenha vindo de B. V., à margem do Jaguaribe?

 

Um não fatal respondia sempre à pergunta em que ele punha todo o interesse.

 

Irena, ao ouvir a insistência da pergunta, sentiu-se ainda mais perturbada. A comoção nem lhe dera espaço para uma furtiva alegria, por ter visto o escolhido do seu coração.

 

A piedade filial via apenas em Augusto Feitosa uma tremenda ameaça contra a liberdade de Rogério e contra a sua vida.

 

A calúnia que pesava sobre o seu pai, acusado de haver tentado assassinar Augusto, fazia-a desvairar. Estava na capital a vítima, queria informações de B. V., e estas provavelmente deviam ser pedidas com o intuito de descobrir o lugar em que Monte se refugiara.

 

- Entretanto eu - pensava Irena -, eu mesma venho servir de denunciante.

 

Quis ver se podia retirar-se sem ser percebida, mas Augusto, segurando-a pelo ombro, exclamou com um tom acariciador:

 

- Não vá embora, não; eu compro-lhe as rendas já. Quantas varas tem?

 

- Quatro - respondeu Irena disfarçando a voz, cujo timbre aliás não podia ser distinguido no meio do alvoroço.

 

- E a como as vende?

 

- Pelo que Vossa Mercê quiser pagar.

 

- Bem, aqui tem quanto eu lhe posso dar; mas guarde as rendas, para me entregar quando eu as exigir.

 

Augusto, tirando a mão de sobre o ombro de Irena, entregou-lhe uma nota do tesouro, e Irena, vendo-se livre da pressão com que a bondade desinteressada de Augusto a retinha, quis desde logo desaparecer dos olhos dele.

 

Um violento encontro que lhe foi dado pelos circunstantes que porfiavam em obter um lugar diante de Augusto, fez com que a moça cambaleasse, e o paletó, com que se mascarara aos olhos do amante, caísse.

 

As tranças loiras, as belas tranças que haviam colaborado na paixão intensa de Augusto, apareceram, e este, com um movimento brusco, tentou pôr a mão no braço de Irena. Em vão; a piedosa filha, tirando agilidade do perigo que julgava correr o pai, desviou-se e sumiu-se no meio da mó compacta e irrequieta.

 

Vendo-se finalmente livre do olhar de Augusto Feitosa, atravessou correndo a pequena distância que a separava de seu pai e foi parar arquejante diante dele.

 

- Vamos já, já, meu pai, não podemos ficar aqui nem mais um minuto.

 

- Infames! - resmoneou Rogério. - Achaste quem te insultasse, não?

 

- Ninguém, mas é preciso que saiamos já daqui, ou senão estamos perdidos.

 

- Mas o que fizeste tu? Vendeste as rendas? - perguntou precipitadamente Rogério com uma entoação em que transluzia o temor de que a filha houvesse cometido alguma ação vergonhosa.

 

- Vendi, sim, meu pai; não me pergunte mais nada, fujamos daqui porque eu acabo de ver uma pessoa de B. V., e se ela nos reconhecer.

 

Rogério Monte interrompeu a filha para concluir a frase que lhe explicava tanto temor e alvoroço:

 

- Estamos perdidos.

 

 

VI

 

Augusto Feitosa não teve forças para conter a comoção que a vista das tranças loiras da moça lhe causara.

 

O coração, lince que não se ilude, reconheceu prontamente aquela que tinha conseguido disfarçar-se aos olhos. Uma simples semelhança bastou-lhe para basear a indefectível certeza.

 

- Não pode deixar de ser ela, eu não me podia enganar, murmurou Augusto, que se esforçou desde logo para sair do círculo em que os retirantes o prendiam.

 

Não podia, porém, dar um passo. Dezenas de braços, dirigidos pela necessidade, estenderam-se para cercá-lo, e um coro de lamentações e de súplicas o atordoaram.

 

O egoísmo do amor opôs-se, não obstante, à compaixão da filantropia, e Augusto, tentando desviar-se bruscamente, exclamou:

 

- Deixem-me, isto excede a toda impertinência. - E, com uma entoação severa, acrescentou: - preciso sair.

 

Os importunos, porém, não o atenderam, não compreendiam que o moço tivesse direito de pospô-los aos seus interesses, e atropelavam-no e azoinavam-no.

 

- Deixem-me - repetiu Augusto; - deixem-me em nome de Deus; torturam-me.

 

Nestas palavras sentia-se ansiar a única esperança que suavizava a triste vida do moço; elas foram proferidas com um tom soturno, que traduzia o surdo rumor das profundas angústias que lhe torturavam a mocidade desventurada.

 

Ao ver aquele semblante, ainda há pouco sereno e carinhoso e agora sombrio e hostil, percebia-se que dentro daquela alma dava-se uma violenta sublevação de sentimentos. E assim era. Havia longos meses que o malsinado rapaz entregava-se a um lento suicídio. A princípio era o ódio que o impelia contra Rogério Monte, a quem atribuía o crime de que fora vítima, crime, cuja extensão Augusto Feitosa media menos pelos seus sofrimentos do que pela impressão que produzira sobre sua velha mãe.

 

Padecia muito; de um lado a prostração em que via sua mãe aconselhava-o, impelia-o a perseguir Rogério, de outro a imagem angélica de Irena, colocando-se como um véu diante do pai, suplicava-lhe o sacrifício da vingança ao amor. Assim, qualquer resolução que tomava constrangia-lhe o coração; a condolência desfechava golpes sobre sua velha mãe, a perseguição assassinava Irena.

 

Depois, deram-se os sucessos tristíssimos de B. V. Um documento importante, uma carta de Rogério Monte ao professor Queiroz e que fora rasgada pelo sacristão Marciano, veio cair-lhe nas mãos. Neste documento escrito com a despretensão da intimidade, com esse venerando perfume da lealdade, com que a mútua confiança da amizade repassa as revelações, a inocência de Monte estava evidentemente provada: nenhuma outra prova era preciso juntar.

 

Esse documento teve uma confirmação.

 

Como o próprio Rogério Monte, Feitosa, depois de convencer-se da inocência do honrado velho, perguntava e não sabia responder quem seria o autor do crime.

 

Antônia, a ex-cozinheira do vigário, veio, porém, trazer-lhe uma prova, com a revelação de que, na manhã seguinte à noite em que se dera o crime, a bacia do quarto de seu amo tinha amanhecido com água ensangüentada, e que lavara roupas de S. Revma. também manchadas de sangue.

 

Desde então o ódio contra Rogério transformou-se em desespero e remorso, por havê-lo perseguido.

 

Todos os dotes de Irena, extremando-se em sua imaginação, aumentavam-lhe o sofrer. Aos seus próprios olhos, Augusto viu-se como um réu que não devia, que não podia ser perdoado. Considerava-se duplamente assassino: de um lado, cruel, ferira a lealdade e a honra de um homem de bem, de outro pagara com a mais requintada ingratidão a confiança que nele depositara a tímida Irena.

 

Este pensamento, principalmente, tomava proporções sobrenaturais no seu imaginar. Que sinceridade não havia naquele coração, quão profundo não era aquele amor para irromper através de dois séculos de ódios e de vinganças, para corresponder heroicamente ao amor que ele lhe demonstrara?

 

- E, no entanto - exclamava Augusto nas suas horas de amargura -, eu paguei-lhe tudo isto caluniando e enxovalhando as honradas cãs de seu pai!

 

Comunicando à sua velha mãe a injustiça que havia praticado, obtivera imediatamente dela consentimento para oferecer a sua mão à Irena, como reparação do passado.

 

Mas intervieram logo os tremendos acontecimentos que deram em resultado o abandono da paróquia. A velha senhora, ameaçada na sua e na vida do filho, foi atacada por um acesso febril, que teve como resultado o idiotismo e a morte, vinte e tantos dias depois.

 

Durante todo o tempo da moléstia de sua mãe, Augusto nada pôde fazer a favor de Rogério Monte, a não ser contra-avisar a polícia.

 

Dirigindo-se em seguida ao Aracati, todas as suas pesquisas foram infelizmente infrutíferas. Rogério Monte havia trocado o nome e não se servia do que mandara para endereço das suas cartas.

 

A única notícia que obtivera serviu apenas para desanimá-lo mais. Soube, pelos correspondentes de Monte, que este havia desaparecido e algumas frases deixaram-lhe perceber que o velho devia ter tomado todas as providências para ocultar-se e para sempre.

 

Olhe, que saiu uma vasilha muito ordinária, aquele sujeito - disseram os correspondentes; - sonegou um dos escravos na impossibilidade de pregar-nos calote redondo.

 

- Mas é preciso que se expliquem bem - ponderou Augusto; - não se atribuiu nunca ao velho Rogério este defeito.

 

- A ocasião e que faz o ladrão: deu um dos escravos por morto.

 

- Ele que disse, é que é a verdade.

 

- Ah! - exclamou um dos correspondentes sorrindo. - O senhor também ainda acredita na probidade dele? Preparou bem o laço, e tão bem que nós ficamos no desembolso e ele continua a passar por homem honrado.

 

- Não é exato também isto, porque eu tenho negócios com Rogério Monte e autorização para pagar qualquer dívida sua.

 

Prestado este serviço à honra do nome de que usava a sua escolhida, Augusto empenhara-se ainda com maior dedicação na descoberta do esconderijo de Rogério, o que fez com que ele perdesse muito tempo em Aracati.

 

Cada dia que passava, em vez de diminuir-lhe a esperança pelo desânimo, aumentava-a pela consciência do dano que havia causado aos interesses e à boa fama de Monte, que, apesar de ser pelo próprio Feitosa proclamado vítima de engano quanto à autoria do crime, continuava a ser apontado como o autor.

 

- Pobre homem - soluçava Augusto; - nem ao menos lhe resta o recurso de suplicar entre os seus parentes proteção e agasalho. Estes, certos de que iriam incomodá-los, negar-lhe-iam o serviço.

 

Todos os recônditos da cidade, todos os arredores foram explorados e, no cabo das pesquisas estreitas, minuciosas e feitas, não só com os olhos mas com o coração, Augusto Feitosa só encontrou o desengano.

 

Um indicio vago apontou-lhe então para a Fortaleza: era quase certo que Rogério para lá se dirigira, e tanto bastou para que Augusto tomasse aquela direção.

 

Dias depois Feitosa chegava à Fortaleza.

 

O coração, comprimido pelas angústias tenazes que lhe causava a presunção dos sofrimentos de Monte, dilatou-se-lhe em face do estado da capital.

 

Era horrível o que via, mas sobre este horror pairava a esperança. A capital, imenso desaguadouro de todas as correntes da emigração provincial, era o enorme Cáspio, em que todas essas correntes despejavam sem achar saída. Podia-se, pois, pressupor que seriam ai encontrados todos aqueles que uma vez houvessem transposto o seu círculo, a menos que a morte os não arrebatasse.

 

Feitosa, na primeira noite, ocupou-se em reler a carta que, por um lance do acaso, lhe viera às mãos, e em que vira desde logo que a assinatura Antônio de Louredo mascarava Rogério Monte.

 

Nesta carta, em que, explicadas miudamente as desgraças que o haviam acabrunhado, vinha o roteiro do destino que Rogério pretendia tomar, tinha Feitosa o seu melhor guia.

 

Havia um trecho que lhe iluminava os passos a pesquisas eficazes. Dizia a carta:

 

"A calúnia fatal que manchou o meu nome, porque, amesquinhando a conta em que tenho as tradições de minha família, aponta-me como me tendo emboscado para atacar um Feitosa; a calúnia fatal impede-me de viver à luz. A minha honra não é tão eloqüente como o dinheiro do meu inimigo.

 

Confundir-me-ei, portanto, com a mais baixa camada do povo, até que possa obter de algum parente recursos para provar a minha inocência e levantar de novo o meu crédito".

 

Feitosa, pois, chegando à capital, dirigiu as vistas exclusivamente para a massa dos retirantes.

 

Dias e dias passou-os à porta de todas as comissões e circulando os abarracamentos; mas, no cabo desse trabalho, só colhia decepções, que lhe geravam no espírito sentimentos contraditórios com a sua índole.

 

Naturalmente compassivo e impressionado, Feitosa alegrava-se agora vendo com as horas aumentar o número dos retirantes.

 

- Quanto mais gente houver na cidade, tanto maior será a confiança de Rogério Monte em não ser reconhecido -pensava ele; - sairá com mais franqueza à rua.

 

Para dobrar a certeza de seus cálculos e facilitar o encontro, Feitosa dirigiu-se a alguns dos seus parentes, que residiam na capital, e sendo por eles apresentado aos comissários, procurou em todos os recenseamentos anarquicamente escriturados por estes o nome de Antônio de Louredo.

 

Foi tempo gasto em pura perda, e a reflexão mostrou-lhe depois que Rogério Monte, ocultando-se da polícia, não havia de servir-se do mesmo nome que dera à família Queiroz para endereço de suas cartas.

 

O resultado das pesquisas foi, portanto, o desânimo. Aqueles a quem procurava parecia que tinham a impalpabilidade das larvas: não ocupavam lugar.

 

- Morreriam? - perguntou um dia a si mesmo o desalentado moço. - Terei eu de acusar-me ainda desta tremenda responsabilidade?

 

Esta suspeita, pela sua própria natureza cruciante, foi acossada pela paixão, cada vez mais ardente, que ele sentia pela mísera Irena; e Feitosa voltara à sua peregrinação através do povo, em quem indenizava as lágrimas que fazia derramar aos dois foragidos.

 

Imagine-se, pois, que profunda comoção lhe causou a semelhança das loiras tranças da vendedora de rendas, e qual seria o seu despeito, vendo-se impedido de seguir ao encalço da moça!

 

Repetindo, pela segunda vez, o pedido para que o deixassem passar, Augusto Feitosa sacudiu impetuosamente aqueles que o seguravam e abriu caminho.

 

O seu esforço, porém, não produziu resultado. Na imensa rua, completamente cheia de povo, espécie de formigueiro de homens, não era possível descobrir largo horizonte; a vista era circunscrita a um pequeno raio pelo povaréu, e qualquer pessoa, para evadir-se, não precisava dar 20 passos.

 

A visão das tranças loiras desapareceu inteiramente, deixando apenas a claridade da esperança, brilhante via-láctea em que se deviam abotoar sonhos ridentes de felicidade para Augusto.

 

O moço, desvairado e impaciente, dirigiu-se a todas as pessoas que se achavam próximas, perguntando se não tinham visto passar a sua protegida. Não colheu um único indício certo, e levado por informações erradas foi parar justamente no lado da praça oposto ao em que Irena reunira-se ao seu velho pai.

 

- É horrível, é horrível, meu Deus; esteve junto a mim e no entanto eu não a reconheci logo.

 

E pela imaginação exaltada de Augusto começaram a atravessar, tristes como um saimento, as idéias que naturalmente surgiriam no pensamento.

 

"Hás de pensar que eu já não te amo, e tens razão; que me importa a mim que outros sofram? Por que hei de esquecer-me de meu amor, quando os outros se lastimam? A minha vida, a minha felicidade és somente tu, Irena, e eu cheguei a desconhecer-te na mesma hora em que pensava em ti."

 

O golpe cruel alquebrou-o profundamente; sentiu que ia desfalecer, e a passos lentos e vacilantes dirigiu-se para o hotel que fica em uma das faces da praça.

 

Naquela casa, onde só se hospedavam aqueles que não tinham enfrentado em luta com a indescritível calamidade que assolava a província, reinava a alegria. Vários hóspedes, sentados em volta de uma grande mesa, conversavam, esvaziando lentamente copos de refrescos.

 

Um dos hóspedes, sentado a alguma distância, lia atentamente um periódico, e parecia completamente alheio à conversação dos outros.

 

Um caixeiro, porém, vindo abrir junto dele uma soda, fê-lo de modo tão desastrado, que lhe molhou completamente a folha.

 

- Bem se diz que os capengas não formam - disse o leitor contrariado.

 

O caixeiro, que coxeava de uma perna, abriu um riso alvar e retirou-se, enquanto os outros hóspedes, intervindo nos comentários do insignificante incidente e aplaudindo o dono do hotel, que, deixando a cadeira em que estava sentado, acompanhou o caixeiro repreendendo-o, observaram ao patrão:

 

- Não se apresse; os coxos apanham-se sem dificuldade.

 

- Custa menos ainda a apanhar um mentiroso.

 

- Nem sempre.

 

- Haja vista a folha que o senhor acaba de ler a respeito do tal vigário de B. V.

 

- Como assim?

 

- Não repararam na notícia que dá da chegada dele a esta cidade? Pois vejam.

 

O interlocutor tomou o periódico e leu:

 

"Acha-se entre nós o Revmo. vigário de B. V. Foi um tipo de caridade na sua paróquia, e durante a horrível calamidade que a tem afligido prestou os maiores serviços, os quais só cessaram depois que a extrema miséria violentou-o a retirar-se daquela localidade com a maioria da população".

 

- Seguem-se congratulações com a capital pela aquisição de mais um digno continuador da obra de Cristo.

- É pessimista demais, doutor; não há nada nesta notícia que autorize a julgá-la mentirosa. Um homem, por ser padre, não deixa de ser homem.

 

- Eu conheço bem a história dos padres do interior; sei quais os seus serviços nesta seca.

 

- Então não há exceções?

 

- Não duvido, mas basta olhar para o procedimento que eles têm aqui na capital: estão a comer descansadamente as côngruas e nem ao menos se prestam a levar os sacramentos aos retirantes. Estes vão moribundos à Sé, onde a maior parte expira.

 

- É exato, mas daí não se conclui que o vigário de B. V. não seja um homem virtuoso.

 

- Pois eu, julgando o tal padre pela sua classe, digo-lhe que o seu elogio não me fará ver nele uma exceção.

 

- Não penso do mesmo modo; há aqui pessoas que têm andado pelo interior, conhecem o vigário, e não tratam de desmentir a notícia.

 

- Terão suas razões - interveio Feitosa pedindo desculpa; - mas eu, que estive na localidade, sei muito bem que o padre Paula é um malvado.

 

- Está com certeza cônego em pouco tempo - sorriu o doutor; - isto é assim mesmo, quanto pior, mais depressa chega.

 

Feitosa, que havia asserenado um pouco, despediu-se e saiu pensando consigo:

 

- Não te poderei talvez salvar, minha querida Irena; mas tomarei contra o nosso algoz a mais cruel vingança.

 

 

VII

 

No dia a que se referia a notícia da folha cuja leitura Feitosa acabava de ouvir, um homem, com a barba e os cabelos descurados, vestido de couro, e trazendo na mão um chapelão de sertanejo, entrou pela Sé com passo vagaroso e medido.

 

Ajoelhou-se em frente ao altar-mor e, inclinando-se profundamente, demorou-se por largo tempo a rezar.

 

A igreja apresentava um aspecto tristonho. A claridade da tarde, que iluminava grande parte da nave e punha em relevo as suas decorações, não tinha a mesma intensidade na capela-mor e deixava-a meio mergulhada na penumbra.

 

O coro e um avarandado próximo, mobiliados de cadeiras cômodas e numeradas corno num teatro, ostentavam à claridade crepuscular uma preocupação hierárquica no domínio da igualdade cristã. Sob eles jaziam, estendidos em cima de redes sórdidas, moribundos que a demasia da anasarca ou o emagrecimento devido ao relaxamento intestinal tornavam deformes.

 

Junto a um confessionário sucediam-se um a um estes fiéis, que vinham buscar na voz do sacerdote a última esperança.

 

O homem, depois de concluir a oração, dirigindo-se a um indivíduo que estava encostado a uma das portas laterais da capela-mor, perguntou-lhe quando poderia falar ao bispo.

 

- S. Ex.a tem estado incomodado e não recebe ninguém.

 

- Está de cama?

 

- Não; mas não pode receber ninguém.

 

- Ele há de falar-me, tenho certeza.

 

- Pode ser; porém outros e de colarinho lavado o têm procurado e ele não os tem recebido.

 

- Talvez o senhor não esteja bem informado; é impossível o que me diz.

 

- Falo porque, sendo sacristão daqui, dou-me com pessoas da casa, e estas, que têm olhos, vêem o que eu lhe disse. Fale com o senhor padre, que ali está, e saiba, ao certo.

 

- É o que já havia resolvido.

 

Estas palavras foram proferidas com uma entoação de altivez tal, que o sacristão olhou atentamente para o desconhecido. Mediu-o de alto a baixo e, sorrindo desdenhosamente, murmurou:

 

- Está bem arranjado; tenho muito de que me rir hoje.

 

O sacerdote, que estava no confessionário, levantou-se por fim e, erguendo a voz, perguntou se não havia mais ninguém para confessar-se.

 

- Se está algum dormindo, acordem-no, porque, em saindo daqui, não estou mais para aturar maçada.

 

Ninguém respondendo ao apelo, o padre fez um sinal para o sacristão, que enfiou pelo corredor da sacristia, enquanto sua reverendíssima caminhava para a porta em que ele se achava.

 

Quando o padre, depois da genuflexão diante do altar-mor, ia entrar no mesmo corredor em que o sacristão havia desaparecido, o homem desabusado tomou-lhe o passo:

 

- V. Revma. pode dar-me uma palavra?

 

O padre, reparando no indivíduo que o interrompera, parou bruscamente e interrogou:

 

- Há quanto tempo está à minha espera?

 

- Há quase uma hora.

 

- E não me ouviu perguntar se faltava mais alguém para confessar?

 

- Mas eu não quero positivamente confessar-me.

 

- Pois eu não posso também conversar agora; tenho de dar sacramento a toda esta súcia que ali está.

 

O padre apontou para as redes e, dirigindo-se ao sacristão, que acudira todo risonho logo que lhe ouviu a voz, acrescentou:

 

- Creio que as hóstias não chegam.

 

- Eu enchi hoje a âmbula; temos hóstias a dar com um pau.

 

O desconhecido, cruzando os braços e meneando a cabeça, reparou por sua vez no padre e no sacristão e ficou a sorrir.

 

"Isto por aqui não difere muito do resto da província, os costumes não mudaram" - pensou Paula.

 

O sacerdote e o sacristão voltaram pouco depois, revestidos, para dar o sacramento, e um tilintar prolongado de campainhas encheu o recinto.

 

Quando terminou a cerimônia, o desconhecido acercou-se de novo do sacerdote, logo que ele começou a desrevestir-se:

 

- Diga-me, V. Revma.: os sacerdotes do sertão não merecem nem uma palavra dos que moram na praça?

 

O sacerdote parou e encarou com o seu interlocutor. Havia no seu olhar espanto e confusão; na sua mente de tingido do Senhor não passava a simples hipótese de que fosse possível a um indivíduo da sua classe chegar a tão mísero estado. O voto de pobreza para si não passava de uma vã formalidade.

 

- Nunca nos negamos a manter boas relações com os colegas - disse ele.

 

- Então leia - replicou o desconhecido, que tinha levado a mão ao bolso e, tirando dele um papel, apresentou-o ao sacerdote.

 

- Tenho, pois, a satisfação de falar com o reverendo vigário de B. V. - murmurou o sacerdote, estendendo a mão ao recém-chegado.

 

Paula correspondeu ao cumprimento e, com seu sorriso irônico e incômodo, respondeu:

 

- Agradeço muito a bondade de V. Revma.

 

- Já vejo que não andam bons os negócios lá pela sua paróquia.

 

- Pela minha ex-paróquia; lá não há mais talvez viva alma, porque, se houvesse, não arredaria um passo do meu posto.

 

- É desta forma que se deve desempenhar a nossa santa missão, se bem que outros não entendam do mesmo modo.

 

- Ah! eu tenho muitos exemplos disto...

 

- Estamos com a capital cheia de vigários que abandonaram as suas paróquias.

 

- É que hoje não se pode habitar o sertão; não se ganha para o prato.

 

- Do mesmo, pouco mais ou menos nos queixamos nós; vive-se, porém muito apertadamente.

 

- Numa cidade como esta?!

 

- A cidade já deu muito, mas com a afluência de padres não toca uma rua a cada um.

 

- É mau isto, homem!

 

- É o diabo, Deus me perdoe; estamos quase retirantes.

 

Paula esperou em vão que o seu colega lhe oferecesse a casa; mas, vendo que a conversação estendia-se, e que ficaria sem pousada, formulou a pergunta já feita ao sacristão:

 

- Será possível falar ao sr. bispo?

 

- Pois não! Vindo comigo terá entrada; se quiser, estou às ordens.

 

Atravessaram a igreja e, saindo pela porta principal, Paula chamou a atenção do colega para o grande cruzeiro levantado em frente à igreja, logo ao descer do átrio.

 

- Muitas saudades me causa este lenho.

 

- Dos tempos de estudante, naturalmente?...

 

- E dos primeiros tempos da minha carreira sacerdotal.

 

- Não há quem não as tenha.

 

- As missas de madrugada, as festas da semana santa. Estas eram então feitas com muito aparato e muito recolhimento.

 

- Hoje o aparato é maior.

 

- Mas o recolhimento acabou-se, hein?

 

- O número de devotos tem diminuído muito.

 

- Mas nem por isso o respeito pela religião se perdeu de todo.

 

- Já não se pode fazer tudo; o padre já não é o anjo do Senhor.

 

A medida que iam falando, os dois padres dirigiam-se para o palácio episcopal, ao lado da igreja, e cuja porta principal estava sempre fechada.

 

Paula, reparando nesta circunstância, ponderou ao colega:

 

- Creio que perdemos os passos.

 

- Não; a porta conserva-se fechada para que S. Ex.a não seja incomodado pelos retirantes. Se ele não tomasse esta providência, nem todo o dinheiro da mitra chegaria para dar esmolas a essa corja. Vai ver como abrem já.

 

Tinham parado em frente à porta, e o padre bateu três pancadas fortes por duas vezes, e depois uma isolada.

 

A porta abriu-se e os dois padres subiram as escadas do palácio.

 

O bispo, muito amável para o sacerdote, apenas inclinou a cabeça diante do vigário.

 

- Venho apresentar-lhe o sr. vigário de B. V., que chega entre nós neste miserável estado.

 

- Oh! - exclamou o bispo entendendo a mão a Paula - muito sinto as suas infelicidades e me congratulo com a nossa santa religião, pela coragem que sabe dar aos apóstolos.

 

- O mais humilde, o ínfimo dos servos de V. Ex.a Revma. - respondeu Paula - e o mais indigno dos ministros do Senhor.

 

- Fez toda a viagem a pé, não é verdade? Deve estar cheio de fadiga; esta casa fica desde já ao seu dispor.

 

- Eu contava com a grande caridade do meu digno prelado e, como estou em extrema necessidade, aceito a esmola.

 

O bispo, deveras penalizado com o estado em que via o vigário, apressou-se em alargar o seu obséquio, dando logo ordens para que todos os cuidados da hospedagem lhe fossem dados.

 

- Eu calculo quanto sofreu V. Revma.

 

- A imaginação de V. Exa. pode imaginar o que quiser, mas nunca chegará à verdade.

 

- O cansaço da viagem...

 

- Nada é diante das afrontas que sofri...

 

- As privações cruéis durante as jornadas...

 

- Foram muitas, mas nada valem, comparadas com a dor das ingratidões com que me amarguraram os últimos dias que passei na minha pobre B. V.

 

- Foram, pois, sofrimentos físicos e morais, torturas da alma e do corpo.

 

- Não me aterraram, porque os suportei para maior glória de Deus.

 

Paula passou logo a satisfazer a curiosidade do prelado acerca dos negócios da paróquia.

 

A causa das suas perseguições foi um desastre acontecido na família de um seu finado amigo, a quem ele prestou o serviço de amparar.

 

O semblante de Paula estava tão artisticamente perturbado, que fazia realmente acreditar na verdade das palavras, que eram pausadamente ditas.

 

Prosseguindo na narração, acrescentou:

 

- Havia na família uma rapariga de 20 anos, a qual criei nos meus joelhos. Era formosa, chamavam-na rainha do lugar.

 

Fez uma pausa, como se pela mente se lhe erguesse o retrato primitivo de Eulália, com o seu corpo direito e cheio como os estolhos novos do mandacaru; os olhos grandes, negros, de um brilho seco, olhos que se destacavam muito sob as curtas pestanas das pálpebras finas.

 

- Dir-se-ia a estátua do pecado - concluiu Paula.

 

- E esta rapariga perdeu-se? - perguntou o sacerdote.

 

- É exato.

 

- E o que é feito hoje dela?

 

- Não sei; porém sobre mim pesa a responsabilidade do seu destino no entender dos paroquianos, que me constituíram seu sedutor.

 

Duas lágrimas tardas e grossas, espremidas com grande esforço, rolaram pelas faces queimadas de Paula.

 

- A impiedade vai penetrando até os nossos sertões murmurou o bispo, comovido pela hipocrisia do vigário.

 

- Já os ministros de Deus não podem sequer professar a caridade - ajuntou o sacerdote; - V. Exa. não se lembra da acusação que me fizeram, a respeito daquela família da rua da Palma?

 

O bispo meneou a cabeça, e Paula, com a finura que tanto o engrandecera na paróquia, ponderou:

 

- Já V. Revma. sabe quanto semelhantes injustiças doem; é preciso muita fé na remuneração da inocência por Nosso Senhor Jesus Cristo, para que se vençam as sugestões da ira.

 

- O sr. vigário foi prudente?

 

- Tanto quanto se pode ser, apesar da perseguição. A calúnia fez eco, na hora da missa; quando eu recolhia o meu espírito para implorar da misericórdia divina perdão para os meus e para os pecados dos meus paroquianos, estes prorromperam em insultos.

 

- Dentro da casa do Senhor?

 

- Dentro da casa do Senhor - repetiu Paula, em cujos olhos as lágrimas continuaram a brotar. - Romperam até ameaças de morte, e tão tremendas, que me vi constrangido a esconder-me na mesma hora.

 

- E não houve na paróquia quem tomasse o partido de V. Revma.?

 

- Antes não houvesse; o meu coração não teria um luto perpétuo, luto que só a morte dissipará.

 

- Houve então conflito?

 

- Os retirantes, esses desgraçados que são órfãos em toda parte, haviam encontrado em mim um defensor natural. Graças à boa vontade que só a nossa eterna fé sabe inspirar para com os que padecem, eu velava por eles na qualidade de membro da comissão de socorros. Como os tratava, pode dizer a vingança bárbara que tomaram espontaneamente. Na mesma noite da injúria a paróquia era acometida alta noite pelos agradecidos retirantes e a casa do outro comissário, do sacristão da paróquia e de um dos potentados do lugar eram assaltadas. Os dois primeiros pagaram com a vida a leviandade de terem tomado parte nas manifestações injustas que me foram feitas.

 

- Foi então uma calamidade pública?

 

- Não pude evitar. Sentindo-me traído pelo meu sacristão, abandonado, resolvi ocultar-me na sacristia e aí permaneci o dia inteiro. Só consegui sair, quando o clamor do povoado advertiu-me da sua iminente ruína. Então, empunhando um crucifixo, saí e contive ainda os ímpetos dos assaltantes, que se desvairavam cada vez mais com a resistência que encontravam nos paroquianos.

 

- É um fato singular - murmurou o sacerdote pensativo -, muito singular.

 

O bispo agitou afirmativamente a cabeça e Paula prosseguiu:

 

- Mais lhe admirará a outra circunstância. Um dos poderosos da terra, moço completamente perdido, soberbo, ímpio, tinha amores clandestinos com uma rapariga da paróquia. Ele era Feitosa e ela, Monte.

 

- O final há de ser por força uma tragédia.

 

- Não chegou a tanto, mas uma noite o rapaz, ao sair da entrevista, foi surpreendido e apunhalado em um dos ombros, ferida que não lhe causou a morte.

 

- Não podia ser outro o fim de tais amores.

 

- Pois bem; apesar de ser conhecida a rivalidade secular entre Montes e Feitosas, o ódio vivo que eles se permutam, querem saber quem foi o acusado de haver tentado perpetrar crime?

 

- V. Revma? - perguntaram os dois, admirados.

 

- Eu - respondeu submissamente o vigário -, eu que não tinha relações íntimas com nenhum dos dois e que fui o primeiro a apontar o Monte como o criminoso.

 

- Era então uma paróquia de doidos?!

 

- De caluniadores e perversos - observou Paula - que me odiavam fingindo estimar-me, que me perseguiam, enfim,  porque nunca fui condescendente com as suas torpezas e os seus roubos.

 

- Tem na minha casa um abrigo; é a casa de um seu afeiçoado.

 

Paula foi, pouco depois, acompanhado pelo sacerdote, conduzido para os aposentos que lhe eram destinados.

 

- Então a rapariga era uma formosura, hein, seu maganão? E você foi acusado injustamente - disse o sacerdote sorrindo.

 

- Falte-me a luz neste ponto - disse Paula ajoelhando-se diante de um crucifixo - se eu por acaso tento desculpar-me de um crime por mim cometido.

 

- Oh! diabo - pensou o sacerdote -, este não é dos nossos, toma as coisas ao pé da letra; mas afinal há de se dar bem com o sistema..."

 

 

VIII

 

Eulália demorou-se mais de 15 dias no hospital, e só com grande esforço pôde conseguir da irmã a alta, por muitas vezes pedidas.

 

- Vai expor-se a grandes sofrimentos e sem necessidade, minha filha - ponderou-lhe a irmã; - Deus queira que se não arrependa.

 

- É o meu dever que me chama, irmã; não quero que me  chamem ingrata.

 

O sol queimava; o sussurro da multidão derramada pelas ruas e praças chamava a atenção, para logo infundir terror com a miséria dos que falavam.

 

Eulália caminhava silenciosa e vagarosamente, olhando para todos os lados com a minuciosidade de quem observa por um microscópio.

 

De repente foi obrigada a parar.

 

Passava uma fila de carroças sobre as quais eram transportados grandes tonéis de mel.

 

O líquido, vazando pelas frestas das toscas vasilhas, deixava na calçada um rastilho negro.

 

Após as carroças precipitava-se uma multidão de crianças, nuas, sórdidas, que apanhavam com os dedos os fios de mel, ou deitavam-se sobre a calçada quente da soalheira para lambê-lo, não sem medonhos conflitos.

 

"Como devem ter fome estes pequeninos para que lhes consintam fazer semelhante coisa" - pensava Eulália, que aproveitava a parada involuntária para observar à vontade os transeuntes.

 

Quando o ajuntamento dissolveu-se, Eulália seguiu o seu caminho em direção ao palácio da presidência, o qual é avistado da praça da Assembléia, de que dista apenas alguns passos.

 

- Disse-me a irmã que o presidente é um bom homem; ele dar-me-á meios de encontrar com a minha família.

 

A lisonjeira esperança, que apressava e impacientava a moça, não tardou, porém, a desvanecer-se; a ordenança do presidente, com algumas palavras rudemente proferidas, transformou-a logo em desengano.

 

- Espere lá fora; S. Exa. sairá de tarde. Vamos, desentupa o beco, isto aqui não é comissão.

 

Eulália não se atreveu a insistir e voltou consternada para a praça, onde havia presenciado o tristíssimo espetáculo dado pelas crianças esfaimadas.

 

A aglomeração de povo não lhe permitiu andar muito e a moça parou junto da linha de tabuleiros estendida em uma das faces da praça.

 

As indiretas dos mercadores, as brutalidades de alguns transeuntes começaram desde logo a incomodá-la e Eulália já se dispunha a afastar-se, quando uma nova cena de miséria obrigou-a a demorar-se.

 

Uma vozeria enorme, atordoadora levantou-se do meio da massa popular. Apitos prolongados e freqüentes sibilavam de todos os lados e de par com eles agudos assovios e estrepitosas assuadas.

 

- Pega ladrão! - repetiram por muitas vezes centenas de vozes, que eram em parte abafadas pelo barulho da multidão.

 

Grupos e grupos atropelando-se, enlearam em si a moça, que foi, malgrado seu, transportada para o passeio da praça e para um ponto em que não podia ver a ocorrência; mas logo que o barulho serenou, Eulália pôde saber do que se tratava.

 

- Ora, é uma velha idiota, coitada, não se pode levar em conta o que ela fez - disse um transeunte.

 

- Boa desculpa, com o pé de gira ela vai fazendo das suas e comendo a fartar.

 

- E no entanto ela passa às vezes o dia inteiro a catar no cisco bagaços de cana para chupar. Não está má a fartura.

 

- Recebe ração.

 

- Que outros furtam, ou que ela, por não ter onde cozinhar, faz como todos: vende quilos de carne velha por dois vinténs.

 

- E bebe o dinheiro que apura.

 

- Ela não sabe o que faz.

 

- Eu cá se fosse polícia não estava com autos de perguntas: agarrava-a e metia-a na cadeia.

 

Os interlocutores deste rápido diálogo, que haviam parado junto a Eulália, interromperam-no neste ponto e exclamaram ambos:

 

- Lá vem a pobre idiota.

 

- Lá vem a ladra.

 

Uma mulher de cerca de 50 anos, com os cabelos desgrenhados e tendo por única vestimenta um saco de lona furado para deixar-lhe passar a cabeça e os braços aproximava-se, seguida de uma nuvem de crianças. Os retirantes abriam caminho para deixá-la passar e a infeliz, bamboleando-se, estalando castanholas e cantarolando, marchava como que desapercebida de si mesma.

 

- Repare - disse o interlocutor que defendia a infeliz; - os seus olhos mostram bem que ela não tem nem pinga de juízo.

 

- Ora, não há nada que não se possa fingir neste mundo.

 

A mulher que havia chegado em frente ao grupo formado por Eulália e pelos dois interlocutores parou e, fazendo uma profunda mesura ao que a acusava, perguntou-lhe com uma entoação tristíssima:

 

- Não conhece o Augusto Feitosa?

 

Uma gargalhada estrepitosa respondeu à interrogação simplíssima. Só Eulália comoveu-se profundamente e não pôde conter-se.

 

- Coitada da tia Antônia, como está desgraçada - murmurou ela - já nem conhece a gente.

 

- Não o viu passar por aqui? - interrogou a idiota. - Há muito tempo que eu o procuro para que ele me dê o conto de réis.

 

- Pois procure - resmungou o indivíduo a quem ela se dirigia; - há de procurar por muito tempo.

 

- Eu quero contar-lhe como foi o caso da paróquia. Eu vi o vigário sujo de sangue, e sou capaz de jurar que foi ele e não o Monte quem o quis matar. Ouve? Se vir por ai o Feitosa, diga-lhe que venha falar comigo.

 

- É a cisma da infeliz - ponderou o outro indivíduo; - não sei o que será isto.

 

- Um conto de réis - acentuou a idiota - nestas mãos, que festa não farei! Havemos de comer, de pagodear, de cantar, de dançar.

 

Dizendo estas palavras a velha recomeçou as castanholas e o cantarolado e prosseguiu na sua marcha bamboleada.

 

Eulália, que tinha custado a dominar o desejo que teve de dar-se a conhecer à velha, ficou como que petrificada.

 

As palavras da ex-cozinheira de Paula vibraram-lhe um golpe profundo, porque, embora não tivesse mais pelo seu sedutor a paixão de outrora, todavia não pudera desencravar do coração a sua imagem.

 

A acusação formulada pela idiota comoveu-a. Tinha consigo as provas do crime de Paula e além disso tinha a sua própria confissão. Sabia mais que tal acusação feita ao vigário, este não resistiria embora a levantasse uma idiota.

 

Demais a velha Antônia procurava Feitosa e era bem provável que este, depois do desbarato da paróquia, tivesse vindo também para a capital e era, portanto, fácil um encontro entre eles.

 

Se tal acontecesse, qual seria o destino de Paula? Aquele que tanto pânico lhe causava: a vergonha, a infâmia, e agora inevitavelmente, porque havia uma prova fatal, a voz daquela velha que irrompia através da noite de seu espírito.

 

Perturbada e perplexa diante do futuro horroroso que se desdobrava no horizonte de Paula, Eulália sentiu erguer-se no seu espírito uma pergunta pungente:

 

- Paula já terá vindo para a capital?

 

Abaixou a cabeça contristada e, quando a levantou, viu passar em frente a si dois sacerdotes conversando alegremente.

 

Um deles era Paula.

 

Tinha readquirido o semblante dos bons tempos da paróquia, o ar acessivo ainda que severo, o passo cadenciado e firme e sobretudo o seu olhar feito de sarcasmos e de altivez.

 

Eulália, ao reconhecê-lo, sentiu-se duplamente impressionada: pedia-lhe o coração que o avisasse, que o fizesse medir a extensão do perigo que corria; a dignidade ofendida impunha-lhe silêncio e indiferença para com o principal responsável das desgraças de sua família e de seus amigos.

 

O coração porém venceu, e Eulália, arrastada por uma força invencível, seguiu por algum tempo os dois sacerdotes através da multidão e foi depois colocar-se em lugar em que pudesse ser vista por Paula.

 

- Quero saber se o amor perdura ou se a sua perversidade chegará até desprezar-me. Vejamos.

 

Paula aproximou-se em pouco tempo e, impassível, conservando nos lábios o sorriso condescendente com que ouvia o colega, passou olhando friamente para Eulália.

 

- No fim de contas, é preciso que você saiba a sociedade em que está; é preciso conhecer o mundo - ponderou o companheiro.

 

- Eu conheço bem os seus enganos e as suas desilusões - respondeu Paula; - a felicidade não foi partilha da terra.

 

- Miserável - pensou Eulália -, fingiu não me conhecer.

 

- Com que então há muito a aprender cá neste mundo da capital?

 

- Muito, mas muito, meu vigário, e quem não souber viver aqui não faz nada.

 

- Sobre que versam os conhecimentos? Há de ser por força sobre perversidades, porque do que já lhe ouvi sobre o caso da família sua protegida, a virtude aqui não é muito respeitada.

 

- Meu vigário - disse o sacerdote parando -, atenda bem para esta verdade: a voz do povo é mais vezes voz de Deus do que voz do diabo.

 

- Como assim?

 

- Eu tenho experiência própria. Freqüenta-se uma casa; maridos, pais, irmãos, todos, enfim, estão na mais inteira boa fé, ninguém suspeita coisa alguma. O povo, porém, começa a murmurar e, no fundo, há sempre verdade.

 

- Então o padre confessa que no seu caso houve...

 

- E crê você que é alguma novidade? Antes de mim, já muitos tinham feito o mesmo.

 

Paula sorriu olhando de través para o companheiro e acrescentou:

 

- E nem por isso a igreja deu em terra; a fé continuou o que era.

 

- Portanto façamos todos o mesmo - acentuou Paula ironicamente.

 

O companheiro percebeu a intenção do vigário, mas julgou conveniente dissimular.

 

- Não digo tanto, mas quando se é acusado de haver por sugestões da paixão lançado a desonra no seio de uma família, de haver tentado contra a vida do seu semelhante, de haver atirado uma aluvião de famintos sobre uma povoação pacífica, parece-me de bom conselho não querer ser exceção entre os outros.

 

- Mesmo se todas estas acusações não passam de calúnias.

 

- Mesmo assim, porque os jornais têm as suas colunas para receber o que se escreve e não tratam de saber se é exato ou não.

 

- Isto é uma ameaça formal?

 

- Não, longe de mim pensar em tal, mas o meu vigário conseguiu as boas graças do senhor bispo, em menos de 15 dias tornou-se já influência junto dele, e o meu vigário, ouvindo uma declaração minha na intimidade, pôs-se a rir de mim.

 

O sacerdote havia insensivelmente erguido a voz de modo que as suas palavras podiam ser distintamente ouvidas por Eulália, que de novo tinha ido colocar-se na passagem de Paula.

 

- Foi um engano do meu colega - sorriu o vigário - e para prová-lo peço-lhe que tome os fatos da paróquia do modo que entender.

 

- Mudemos de conversa - disse o sacerdote e, assinalando Eulália, ajuntou - está ali uma bonita morena. Repare.

 

- Não é feia, não - respondeu Paula estremecendo involuntariamente - é bonita.

 

- E é retirante, isto é, não dá trabalhos.

 

Paula não respondeu. As palavras do companheiro traspassavam-no como punhais buídos e faziam com que o remorso sangrasse-lhe o coração.

 

De relance passou-lhe pelo espírito uma suspeita. Não teria o despeito levado Eulália a acusá-lo? Os excessos a que ele se entregava na casa das perdidas de Quixadá era uma grave ofensa a qualquer mulher, quanto mais a Eulália que lhe havia dado as primícias do seu amor, toda a abundância de sentimentos que ela entesourara durante 20 anos de virgindade? Era possível que a generosidade daquela alma chegasse ao ponto de perdoar tamanha afronta?

 

A dúvida ficou irrespondida, e deu como resultado a fraqueza e o terror. Paula, ao passar por Eulália não teve mais coragem de encará-la, estava deveras humilhado e arrependido.

 

- Oh! vigário - resmungou o companheiro -, a rapariga vem seguindo-nos ao que parece.

 

- Talvez não, o que quererá ela de nós?

 

- Talvez esmola... As retirantes gostam muito de pedir esmola aos padres. Sabem que, em regra geral, são sempre atendidas.

 

- Mas há retirantes e retirantes. Nem todas se sujeitam a pedir.

 

- Conhece você esta rapariga?

 

- Não... nunca a vi, mas parece-me, pela cara, ser uma rapariga digna.

 

- Ai! que você tem saído só de palácio - exclamou o sacerdote; - está com tanto zelo!

 

Paula sorriu-se a princípio, mas de chofre, sendo avassalado pela dúvida de que o sacerdote, sabedor dos sucessos da paróquia e do papel que neles Eulália representava, o quisesse experimentar, ponderou com uma acentuação severa:

 

- Está enganado, colega; eu nunca vi aquela moça, e se tem alguma suspeita dissipe-a.

 

O padre olhou de través para o semblante de Paula, que não podia dominar-se mais e deixava patente a sua impressão.

 

“É singular" - pensou o sacerdote, notando a comoção de Paula e ao mesmo tempo que Eulália acompanhava-os sempre; - há de haver sucessivamente algum mistério aqui."

 

Deram mais alguns passos e o sacerdote, parando de chofre, disse para o vigário:

 

- Tenho urgente necessidade de ir hoje ao palácio; desculpa-me, não, colega?

 

- Oh! - respondeu Paula, a quem a despedida do padre livrava de um pungente incômodo - eu não quero interrompê-lo nos seus negócios.

 

O padre afastou-se lentamente, observando, sem que fosse percebido, a confusão do vigário em face da moça.

 

- O que haverá entre eles? - interrogava a curiosidade do sacerdote.

 

Paula, voltando sobre os seus passos, caminhou na direção oposta àquela em que estava Eulália, que parou por algum tempo, olhando para o sacerdote; que se viu constrangido a dobrar a primeira esquina.

 

Eulália percebeu que a intenção de Paula era evitá-la e hesitou em segui-lo.

 

- Deixá-lo ir, há de parar diante da sua própria ingratidão.

 

Mas o despeito da mulher desprezada veio eivar a altivez do coração. nobre e generoso. Já não era o mesmo impulso, que a levaria a seguir os dois padres por tanto tempo, o que lhe dirigiu os passos no encalço de Paula, que, fingindo-se indiferente, tomou a rua que passa pela frente do palácio para a praça do paço episcopal.

 

Na esquina de uma das ruas transversais, que desembocam naquela pela qual seguiam os dois, uma aparição, medonha aos olhos de Paula, como um espectro, fê-lo estatelar.

 

Era a mísera tia Antônia. A criançada acompanhava-a, dando-lhe puxões e assovios, prorrompendo em gargalhadas cada vez que a infeliz cambaleava.

 

Eulália aproximou-se então de Paula e com um sorriso, que lhe pertransiu o coração, segredou-lhe:

 

- Não a conhece também, sr. vigário?

 

Paula não respondeu, mas, como se fosse bruscamente despertado de um letargo, tentou voltar.

 

- É a tia Antônia - acrescentou Eulália; - o seu idiotismo tem origem no crime da paróquia, e ela procura o autor dele.

 

Perturbado e vacilante, o vigário, esforçando-se para libertar-se ao mesmo tempo da multidão que o envolvia e das palavras de Eulália que o torturavam, deu um passo, mas no mesmo instante a mó dos meninos empurrando a idiota violentamente, esta veio bater de encontro ao vigário, em cujos ombros segurou para amparar-se na queda.

 

- Veja como me fazem mal estas crianças e eu não lhes fiz mal nenhum - murmurou a desventurada.

 

Paula, calado e trêmulo, encolheu bruscamente os ombros para tirar-se da compressão incomoda que o detinha, mas foi inútil: a idiota, segurando-o com mais força, ajuntou:

 

- Eu não o deixarei mais... Irei consigo para fugir deles. Vê? Estão já quietos.

 

De feito as crianças, educadas no brutal fetichismo das massas pobres da província, ficaram interditas diante do sacerdote. A assuada parou como por encanto, e grande parte dos meninos voltou correndo para a praça da Assembléia, enquanto a outra imobilizara-se em face de Paula.

 

- Sim, eu a protegerei - disse Paula desnaturando a habitual entoação - mas é preciso que não me impeça de andar; acompanhe-me.

 

- Está perdido - pensou Eulália -; a velha Antônia o reconhecerá desde que o encare.

 

Eulália enganou-se; a idiota, ouvindo a voz do vigário, correu a mão pela testa, como que para despertar uma reminiscência; depois encurvou a mão em torno da orelha, fitou longa e minuciosamente o rosto de Paula, e perguntou-lhe:

 

- Vossa Mercê é padre, não?

 

Paula, chamando a si todo o sangue-frio, respondeu tranqüilamente.

 

- Você bem vê, filha; não tenha medo, venha comigo, ninguém lhe fará mal.

 

Levantou em seguida a voz com a inflexão autoritária do sacerdote respeitado e exclamou:

 

- Deixem em paz a mulher, vamos, deixem-na em paz, ou os farei espalhar pela polícia.

 

- Bom padre - murmurou a idiota - eles me faziam mal, e eu não lhes fiz mal nenhum.

 

- Vamos, filha - tornou Paula com meiguice; - eles são uns malvados.

 

A velha Antônia, deu alguns passos silenciosa, mas, parando de improviso e colocando as mãos no peito de Paula, exclamou:

 

- Conhece o Augusto Feitosa?

 

O semblante de Paula transtornou-se visivelmente, e a velha prosseguiu:

 

- Ele está aqui, deve dar-me o conto de réis, porque eu sei quem o quis matar. Na mesma noite do crime o vigário entrou em casa com a roupa ensangüentada.

 

- Cala-te, infame - disse o vigário com uma voz surda e gutural; - quem quis matar o Feitosa tem mãos ainda.

 

E apertou brutalmente o braço da idiota, a quem em seguida empurrou para longe de si.

 

A tia Antônia olhou assombrada para o vigário e de novo passou a mão pela fronte; depois murmurou, meneando-a:

 

- Não, não é ele, eu o conheço bem.

 

- Não me reconhece - pensou Paula - estou salvo.

 

Apertou o passo e seguiu precipitadamente.

 

Eulália aproximou-se então da idiota e perguntou-lhe, sacudindo-a por ambos os punhos:

 

- Não me conhece, tia Antônia?

 

- Não - respondeu a idiota, encarando-a fixamente com o seu olhar estúpido -, não sei.

 

- Sou Eulália; não se lembra da filha do professor de B. V.?

 

- Não - repetiu a idiota -, não sei.

 

- Oh, Santo Deus, como os malvados são felizes - pensou Eulália.

 

Ficou por algum tempo pensativa olhando ora para a velha, ora para o vigário. O cálculo falho abatia-a e fazia com que a razão se lhe perturbasse, vendo que Paula teria a impunidade absoluta, enquanto ela e as outras vitimas ficariam condenadas à dor e à miséria.

 

- Diga-me, tia Antônia, não conheceu também aquele padre? - perguntou-lhe Eulália repentinamente.

 

- Não - repetiu a idiota -, não sei.

 

- Pois é ele o vigário Paula!

 

Eulália contava que esta revelação produzisse grande abalo à idiota, mas, ao contrário da sua expectativa, a tia Antônia continuou impassível e limitou-se a responder como sempre:

 

- Não, eu não sei.

 

Vendo definitivamente perdida a ocasião de tomar a desforra do seu sedutor, mordida pelo desprezo esmagador que ele agora ostentava por si, a moça correu na trilha de Paula, que já entrava no largo do Palácio.

 

Dentro em pouco tempo, malgrado os esforços do vigário para não se deixar alcançar por ela, Eulália colocara-se-lhe diante.

 

- O que fiz eu para merecer o seu desprezo? - perguntou arquejando.

 

- As peripécias da viagem fizeram-na tomar hábitos maus, mulher - ponderou Paula; - eu não quero passar pelo desgosto de a mandar meter na cadeia.

 

- Eu quero saber o que fiz para merecer o seu desprezo - repetiu Eulália pondo-se-lhe diante e impedindo-o de caminhar.

 

- O tempo da loucura passou; a senhora não era uma criança; amava-a, correspondeu-me, o erro foi recíproco. Por minha parte, eu hoje apenas quero esquecê-lo.

 

- Eu tenho um meio de lembrá-lo sempre.

 

- Não me acobarda; não é muito que uma mulher que ia a minha casa, que foi minha amante pudesse furtar um punhal meu para com ele armar contra mim inimigos.

 

Eulália, medindo a força do argumento de Paula e ao mesmo tempo sentindo reaparecer naqueles olhos o brilho magnético que lhe dava tanta superioridade, abaixou os olhos confusa e murmurou:

 

- É um castigo horrível, meu Deus; em paga do meu amor, só tenho a vergonha e a miséria.

 

Paula sorriu triunfante. as dificuldades, que ele teve a fraqueza de supor lhe seriam criadas por Eulália, desapareciam de chofre, e em vez delas aparecia-lhe o futuro desassombrado. Quis ganhar ainda maior prestigio, esmagar mais uma vez Eulália e, metendo a mão no bolso, atirou aos pés da moça algumas moedas em cobre.

 

- Tem razão - disse ele -, eu não lhe paguei os meses do nosso amor; leve isto por, conta.

 

E afastou-se tranqüilamente, deixando Eulália imóvel de indignação.

 

 

IX

 

Enquanto a adversidade desfechava golpes violentos no coração de Eulália,. não poupava também a sua família.

 

Levadas pelo bilheteiro da estrada de ferro à casa do comissário do abarracamento T..., d. Ana e suas sobrinhas foram por ele bondosa e compassivamente recebidas. Receberam logo uma guia para serem acomodadas e, o que as desvaneceu muito, uma recomendação especial.

 

D. Ana, a quem as freqüentes decepções tinham tornado suspeitosa em extremo, saiu da casa do comissário abençoando-o sinceramente.

 

- Santo homem! Iguais a ele é que deviam ser todos os comissários.

 

De feito, julgado pelas aparências, o comissário inspirava a maior confiança a quantos se aproximavam de si. Era chefe de uma família numerosa, a quem mostrava adorar. Sempre que falava aos retirantes, chamava para a sala os filhos menores, e, afagando-os, beijando-os muito, espremendo lágrimas dos seus 40 anos, expunha fases tristes de sua vida.

 

- Conte com um amigo. No meu abarracamento não há retirantes e comissário, há somente amigos e irmãos.

 

Profundamente beato, o comissário misturava às suas frases consoladoras as mais comoventes máximas do catolicismo, de modo que toda a gente acreditava que nele se ocultava o arcabouço de um futuro santo.

 

- Eu, minhas senhoras, entendo que só há um caminho para a felicidade neste mundo: é compreender bem os mandamentos da Santa Madre Igreja: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Tudo o que não for isto é vão e falso.

 

E, abaixando a cabeça pequena, sarapintada de cabelos brancos, aquele homem de estatura mediana, de carnação parca, de olhar terno e humilde, acrescentava:

 

- Quando eu me casei, aos 18 anos, ninguém se lembrou de tais verdades para comigo. Não nutri ódios, porém, resignei-me, trabalhei e consegui.. Sei hoje quanto custa o infortúnio e o preço da felicidade.

 

D. Ana saiu verdadeiramente tranqüila da casa de tão profundo moralista e chegada ao abarracamento foi aí recebida atenciosamente.

 

O administrador, um rapaz de vinte e poucos anos, robusto, de maneiras delicadas e semblante que insinuava, esmerou-se em obsequiá-la, a ponto de causar estranheza aos próprios companheiros.

 

Não havia para hospedar as recém-chegadas lugar nenhum decente. O abarracamento tinha capacidade para mais de uma dezena de milhar em vastíssimos telheiros, sob os quais viviam os retirantes numa promiscuidade de animais. O lanço, que era formado por pequenas casas, estava todo ocupado, e não era possível de momento arranjar aí morada para a família.

 

- As senhoras hão de ter notado quais as casas em que moram os retirantes. Por ora é o que se tem podido fazer.

 

D. Ana, receando ser posta em contato com a massa repelente dos seus iguais em desventura, abaixou tristemente a cabeça.

 

- De pronto não é possível arranjar-lhe uma casa, portanto, à vista da recomendação especial do comissário, as senhoras ficam hospedadas aqui até segunda ordem. Venha comigo.

 

O administrador atravessou uma pequena sala em que estavam apinhadas as sacas de farinha e as mantas fétidas de carne.

 

Entre este compartimento e o outro em que devia ficar hospedada a família, havia dois outros: um era a rouparia, e outro um quarto pobre, mas decentemente mobiliado, em que, segundo a frase do administrador, "o comissário descansava e ouvia as queixas particulares de retirantes de uma certa ordem".

 

- Ah! é um santo homem, o comissário - repetiu o administrador mostrando à família a parte central do abarracamento; nenhum trata os retirantes com tanto carinho.

 

E o preposto chamou a atenção da senhora principalmente para uma prateleira que havia na rouparia, e que tinha em cima um grande letreiro: Dietas. O aspecto, e a qualidade dos gêneros confirmavam a afirmação do administrador.

 

- Eis aqui a sua casa - disse ele por fim; - aqui estão um quarto e uma sala. Não é um bom cômodo, mas serve. As senhoras dormem aqui, e podem fazer a sua cozinha lá fora; eis aqui a porta para sair.

 

D. Ana e as sobrinhas ficaram maravilhadas; tanta bondade afigurou-se-lhes por momento interessada, mas ao mesmo tempo o desinteresse do homem que as recomendara ao comissário, a figura simpática deste, que era um pai de família afastaram a mais leve suspeita acerca das intenções com que tudo era feito.

 

- O mundo não é felizmente composto de malvados somente, ainda há homens dignos no meio dos perversos - ponderou d. Ana à Chiquinha.

 

- Parece, pelo menos - respondeu esta cujos olhos tinham por vezes encontrado com os do administrador.

 

- Agora - disse o jovial preposto - quero mostrar-lhes que, apesar de toda a bondade do comissário, aqui temos meios de manter a ordem. Vejam as senhoras.

 

Tinham saído e haviam, depois de alguns passos, parado diante de uma casa de paredes fortes. O administrador tirou do bolso uma chave e abriu a única porta, que dava para fora e deixava ver uma pequena sala, completamente nua.

 

- Esta casa tem seis compartimentos. Serve para castigar os retirantes de uma certa ordem.

 

- É medonha - disse Chiquinha sorrindo: - não tem janelas? Não entra luz aí?

 

- Não. Foi feita de propósito para o caso de delitos graves.

 

- E aí tem estado muita gente presa?

 

- Nem por isso, felizmente. A maior parte das vezes basta só a ameaça.

 

Quando o administrador voltou com a família, diversos empregados tinham vindo espreitar, e sorriam maliciosamente.

 

- Olhem o Neco como se apresenta... Querem ver que ele está fingindo de comissário ~...

 

- A rapariguinha mais velha é bem bonita.

 

- Felizardos... o melhor guardam para si.

 

O administrador, deixando a família, que não reparara no ar dos curiosos, veio a esfregar as mãos e a rir.

 

- Com que então, seu Neco, você é quem pode.

 

- Mais baixo; parecem muito ariscas, fidalgas da roça.

 

- É por isso que começam com este tratamento?

 

- Coisas do comissário.

 

- O que vale é que isso não dura muito, é só enquanto as pequenas engordam.

 

- Mais baixo, cambada, a velha é desconfiada, se ouve falatórios já, é capaz de arrepiar carreira.

 

- Grande perda, tão boas ou melhores não faltam por aí, é pegar com os olhos fechados.

 

- Mas o grande caso é que vocês têm água na boca.

 

O empregados rindo e chacoteando com o administrador afastaram-se finalmente e deixaram-no só com o fiel do armazém.

 

- É esquisito este procedimento do comissário; nunca se fez isto aqui.

 

- Ele não me recomendou que procedesse assim, mas como disse na carta - recomendo-lhe tratamento especial -, entendi que devia tomar esta resolução.

 

- E se ele não concordar?

 

- Ele há de alegrar-se até.

 

O administrador tinha razão quando afirmava que o comissário alegrar-se-ia com o seu procedimento.

 

Quando à tardinha veio ao abarracamento, o comissário ainda a cavalo, perguntou pelas suas recomendadas e, apeando-se, acrescentou falando à puridade com o administrador:

 

- Então, que tais as meninas?

 

- Bonitinhas, mas estão multo desfeitas.

 

- Com uns 15 dias de bom tratamento refazem-se e ficam ai fortes e de se verem.

 

- Se alguma febre não as lapear de um trago...

 

- Não agoure; você já está com inveja das minhas moreninhas.

 

Desfazendo-se em jovialidade, foi logo visitar d. Ana e presenteá-la com o melhor que havia na despensa das dietas.

 

- Não está tão bem como na sua paróquia, mas não lhe faltará nada, minha senhora - disse o comissário; - o pedido do meu amigo é como se fosse o de um pai. Devo muito, devo tudo aquele homem. O tempo lhe demonstrará quanto vale para mim a recomendação que a senhora trouxe...

 

De feito, nos dias subseqüentes, o comissário esforçou-se por se tornar cada vez mais amável e acessível. Distribuiu roupa pela família, e contemplou-a na lista das viúvas que recebiam pensão semanal.

 

D. Ana não sabia até onde estender a sua gratidão e; não sabendo também como demonstrá-la de modo a corresponder a cordialidade do comissário, entendeu que o melhor meio era trabalhar para limitar o mais possível a esmola de que tinha necessidade.

 

Doze dias passaram-se assim; d. Ana durante todo este tempo não pedira coisa alguma ao comissário que era o primeiro a obsequiá-la.

 

Em uma das suas visitas diárias, o comissário, que se apeava à porta de d. Ana, pediu-lhe vinho.

 

- Já não o temos - respondeu a senhora abaixando os olhos de acanhada -, mas se vossa mercê não estranha...

 

- Pelo amor de Deus, minha senhora, tenha a bondade de mandar uma de suas sobrinhas buscar. Eu vou já à despensa.

 

Chiquinha foi mandada pela velha senhora e acompanhou o comissário até a despensa.

 

Caiu então a máscara' ao hipócrita. Às suas primeiras palavras revoltou-se o pudor de Chiquinha, que se limitou a defender-se com as lágrimas e uma queixa inofensiva.

 

- Minha tia tem Vossa Mercê como um homem de honra.

 

O comissário, vendo que a sofreguidão podia prejudicar ou pelo menos dificultar os seus cálculos, conteve-se e, sorrindo, ponderou à moça:

 

- Ah! eu logo vi que você havia de ofender-se; quis experimentá-la. Agora vejo que trato com gente séria.

 

Chiquinha sorriu contente e agradecida e levantou para o comissário os seus olhos negros arrebatadores.

 

- Não é preciso que a titia saiba do que se deu não é verdade? Ficamos amigos, sim?

 

A moça meneou afirmativamente a cabeça e saindo apressadamente, ao chegar à casa, longe de deixar pairar a menor suspeita sobre o caráter do comissário, fez dissipar se uma tácita interrogação que lhe fazia o olhar de d Ana.

 

O comissário, porém, não tardou a desmenti-la. Não compreendera a profundeza das poucas palavras de Chiquinha; pelo contrário, inferiu da sua brandura que não haveria dificuldade séria aos seus planos. Resolveu dirigir-se jeitosamente à d. Ana e no dia seguinte convidou a velha senhora para correr o abarracamento.

 

- Vê a senhora? - disse o comissário mostrando as grandes barracas onde os retirantes viviam em brutal promiscuidade. - Dói-me o coração, mas não me é dado fazer mais. Gomo isto é horrível, hein?

 

- É exato.

 

De feito, o comissário e d. Ana estavam em face de um espetáculo comovente. Mulheres, homens e crianças, todos esfarrapados e sórdidos, levantavam-se como que desvairados e vinham-lhes ao encontro, erguendo súplicas e prorrompendo em soluços. Tinham fome, viam os parentes moribundos e sem amparo, queriam algum socorro.

 

O comissário respondia com uma série de consolações banais e esperanças vãs e, convidando d. Ana, fê-la penetrar no casarão emparedado apenas em três das suas faces.

 

Haviam apenas dado alguns passos, quando o comissário julgou que devia chamar de novo a atenção de d. Ana.

 

- Vê a senhora quanta miséria eu não posso evitar?

 

D. Ana não pôde conter as lágrimas, em face do quadro que se lhe oferecia às vistas.

 

Sobre o chão estava estendido um cadáver.

 

Era uma vítima da anasarca; a inchação o deformava e tornava-o repelente. Largas fendas nas pernas dessoravam, desafiando a gula de um mosqueiro, que esvoejava e pousava sobre o corpo, ora sugando-o nos lagrimais, ora nos beiços roxos, de que escorria um ló de escuma, ora penetrando nas fendas fétidas. O cadáver tinha como sudário uma tanga feita com um pedaço imundo de lona.

 

A pequena distância do morto estava deitada uma mulher ainda moça e que devia ter sido linda. Uma palidez mortal revestia-lhe as feições, a tristeza embaciava-lhe os olhos e imobilizava-lhe o olhar de modo que a desventurada parecia estar morta também.

 

- Olá - disse o comissário chamando o inspetor do abarracamento; - por que deixou ficar aqui este homem?

 

- A mulher pediu-me que o deixasse ficar ao menos até logo à noite.

 

- Estas vontades não se fazem - resmungou o comissário - remova-me isto daqui.

 

Dizendo estas palavras, o comissário olhou de través para d. Ana, para medir o efeito que este rasgo de brutalidade lhe causara. Ficou satisfeito: d. Ana estava perplexa a olhá-lo.

 

- E quanto a esta mulher, é preciso dar-lhe alguma coisa; ela já comeu hoje?

 

- Não se distribuíram rações hoje. As rações são dadas nas segundas, quartas e sextas, hoje é domingo.

 

- E na sexta-feira deram-lhe ração?

 

- Ela trocou a ração por uma dieta de carne fresca para o marido.

 

- Que estúpida  - exclamou o comissário. - Vão ver que está para morrer de fome.

 

- Ela é muito soberba, quer se fazer de boa.

 

- Bom, amanhã não se esqueça de dar-lhe alguma coisa, caso ela não morra hoje como parece.

 

A mísera mulher, de quem o comissário se ocupava, volveu para ele os seus belos olhos cearenses, onde como que já se projetava a sombra do túmulo, e sorriu.

 

- Bonitos olhos, não acha, d. Ana? - perguntou o comissário que ostentava perversidade para intimidar a senhora.

 

- É pena que a terra não demore nada a comê-los...

 

D. Ana não pôde mais conter os soluços e as lágrimas, e o comissário com um suspiro fingido exclamou:

 

- Pensa a senhora que a minha alma não se penaliza com isto? Não a quero ver sofrer tanto, vou infringir as minhas ordens e socorrer esta infeliz. O sr. inspetor, leve já a mulher para o hospital.

 

- Obrigada, mil vezes obrigada - soluçou d. Ana; - eu lhe agradeço em nome dos céus.

 

A moribunda levantou para d. Ana os olhos em que bailavam duas grossas lágrimas, e o inspetor, coçando a cabeça, levantou a infeliz, que entregou a dois serventes para que se cumprisse a ordem do comissário.

 

- A senhora tem realmente um coração de anjo - disse o comissário. - Veja agora também quanto tenho me esforçado para ser-lhe útil e minorar-lhe os sofrimentos. Imagine o triste caso de não ter vindo com a recomendação de um amigo meu, ou, o que nunca há de acontecer, a desgraça de não me ser mais possível protegê-la. Quanta miséria, não é verdade?

 

D. Ana meneou a cabeça afirmativamente.

 

- Pode perguntar aos retirantes, um por um, se o meu não é o abarracamento em que eles encontram melhor tratamento e, entretanto, é isto: calcule agora o que serão os outros.

 

- Que horror! - exclamou a boa senhora. - Eu creio porque vejo.

 

As palavras de d. Ana demonstravam comoção mais profunda do que o comissário visara obter da, incômoda visita ao abarracamento.

 

De si para si o hipócrita julgou seguro o êxito da sua baixa e criminosa empresa: conseguir pelo terror a desonra da família Queiroz.

 

Decidiu-se, pois, a terminar a prova a que submetera a honrada senhora, e voltou para a casa da administração.

 

- Até logo, d. Ana - disse ele ao entrar.

 

- O mais certo é até amanhã; é quase noite.

 

- Não, é até logo.    -.

 

- Dá-nos muito prazer.

 

Separaram-se e com eles o sol despediu-se também do abarracamento, sobre o qual ficaram, apenas pairando as tristes claridades do crepúsculo e os ais dos que sofriam.

 

Não há cores que descrevam a vizinhança da noite longe dos céus sob os quais temos as nossas afeições, as nossas intimidades, todas as reminiscências, do passado e os escombros de todos os sonhos do futuro. Há, então no pungir da saudade um incitamento invencível às lágrimas. Da funda depressão que ela nos deixa no espírito, a imaginação tristonha levanta visões comoventes, que nos endoidecem abeberando-nos de angústias.

 

O crepúsculo parece um rosto carrancudo que nos censura a vida, dir-se-ia que ele, com os últimos clarões do dia, arrasta-nos o porvir: tamanho é o vazio que nos fica no coração.

 

Sob a luz mortiça de semelhante tarde recolhiam-se ao abarracamento os trabalhadores, os miseráveis que debaixo da soalheira do meio-dia, queimando os pés no areal ardente, torturando-se com as gritas e as ameaças dos inspetores, tinham ido conquistar uma ração minguada para a mulher e os filhos andrajosos.

 

Para recebê-los, havia, entretanto, sorrisos, e que sorrisos - vitórias contra a fome, derrotas da morte.

 

Como que todo o abarracamento se animava: aquele monturo ganhava uma alma.

 

O comissário, à janela, vendo as moças retirantes que passavam correndo, e colhendo os andrajos para guardar a compostura, dizia obscenidades a rir com o administrador:

 

- Olhe você, eu quero estabelecer aqui o banho obrigatório e em comum.

 

- É quase impossível, não temos local.

 

- É difícil, sim, e por isso mesmo tenho demorado.

 

- Há um meio de as ter asseadas; é negar ração aos pais.

 

- Porém isto não evita que várias: vezes tomemos gatos por lebres.

 

- Isto é verdade; e ainda agora creio que o senhor cai numa dessas, com as vizinhas.

 

- Não, eu já lhes dei os contras; estão seguras.

 

- Eu lhes vejo assim um certo ar.

 

- Querem vender o peixe caro, mas afinal vendem-no pelo preço das outras.

 

- Pode ser.,. mas eu quero ver.

 

- Pois chame-me lá, a Chiquinha... Já se sabe diga à velha, que a mandei chamar.

 

O administrador, cumprida a ordem, entrou, a convite do comissário, para a rouparia.

 

Chiquinha acompanhada, pela caçula apareceu dentro um pouco e veio falar com o comissário.

 

- Aqui estou - disse ela sorrindo -, às suas ordens.

 

- A titia disse-lhe que eu ia logo lá, não? Vou com efeito e para isto a mandei chamar, para que leve algumas bolachas e café para a nossa ceia. Entre.

 

Chiquinha, olhando de soslaio para o comissário, entrou tomando nos braços a caçula.

 

O comissário, que a veio esperar na passagem, fechou a porta sobre si e, antes que a surpresa da moça desse tempo à esquivança, depôs-lhe nas faces um beijo.

 

- Infame - exclamou Chiquinha -, deixe-me sair.

 

Uma risada cínica respondeu à interjeição nobre da moça.

 

- Eu estou cansado da comédia, cheguemos já ao desfecho, ou atiro-as na rua com a ponta do pé.

 

- Faça-o, não lhe pedimos o que o senhor nos tem feito; faça-o quando quiser. Deixe-me sair, porque assim evita o incômodo; nós nos mudaremos hoje mesmo.

 

- Tem graça, minha atrevidinha, tem graça, mas saiba que sou eu quem governa aqui.

 

- Socorro! - bradou Chiquinha e, correndo para a janela, repetiu por três vezes - socorro!

 

Enquanto gritava, quis galgar a janela, depois de ter posto fora a pequenita, que chorava e chamava por d. Ana, mas foi detida pelo comissário, que resmungava furioso:

 

- Cale-se, desgraçada, eu tenho poder até para mandá-la matar.

 

O clamor da moça, porém, produziu o efeito que ela esperava. Embora os retirantes que passavam nem ousassem olhar para a casa da administração, d. Ana acudiu resolutamente e, transpondo a janela, colocou-se em face do comissário, que gritara pelo administrador.

 

- Chame os inspetores e guardas - bradou o comissário; - é preciso que estas miseráveis paguem o crime de desobediência que acabam de praticar.

 

Um assovio do administrador fez com que num lance de olhos as duas mulheres se vissem completamente cercadas.

 

- Meta-as na prisão até segunda ordem - sorriu o comissário e, voltando-se para d. Ana, disse com um ar disfarçado - com teu amo não jogues as pêras.

 

D. Ana e Chiquinha olharam-se perplexas. Estavam definitivamente perdidas; a resistência não só era inútil como fatal, porque deixava as três outras meninas expostas à crueldade do comissário e dos seus agentes.

 

O amargor do transe, a sua imprevisão fulminante deixavam atônitas as duas mulheres; o olhar de Chiquinha perguntava já a d. Ana se ela devia resignar-se.

 

- Uma palavra só, sr. comissário - suplicou humildemente d. Ana.

 

- Esperem - bradou o monstro, que já contava com o arrependimento das duas indefesas mulheres; - ouçamos.

 

- Em particular.

 

Foram postar-se em um recanto, e d. Ana, com um sangue-frio inesperado, murmurou:

 

- Para que faz vossa mercê esforços por esta rapariga, que já foi amante de um padre?

 

- Ah! - exclamou o comissário - que hipócrita!

 

Chiquinha ao ouvir a exclamação, percebendo que d. Ana para salvá-la havia lançado mão de alguma inverdade, fundiu em lágrimas.

 

- Se Vossa Mercê houvesse logo falado comigo, esta cena não se passaria.

 

- Vejo que procedi mal, é exato. Retirem-se todos - bradou o comissário, não é preciso mais.

 

D. Ana resfolegou e com um olhar mandou que Chiquinha se afastasse.

 

- Eu - continuou d. Ana, não sou tão ingrata como o sr. comissário me faz. A menina do meio chegou muito cansada da viagem. Demais... - Inclinou-se no ouvido do comissário, disse-lhe algumas palavras, e depois em voz alta:

 

- Dentro em três dias, pois, eu mesma me comprometo.

 

- A senhora é muito mais razoável - disse ele batendo no ombro de d. Ana sem atender para a transformação que se havia operado no semblante da senhora; ficamos amigos.

 

- Conte.

 

D. Ana retirou-se e o administrador veio encontrar-se com o comissário, que trouxera a senhora até a porta:

 

- Chegaram a acordo?

 

- Com a meã, a mais velha é uma comborça.

 

- E quando?

 

- Dentro de três dias.

 

O comissário retirou-se com a esperança, mas por alta noite a família Queiroz deixava o abarracamento.

 

 

X

 

Uma semana depois dos sucessos que deixamos narrados uma grande modificação havia-se operado na infeliz Eulália.

 

A família Queiroz, deixando o abarracamento, ficara completamente desamparada e reduzida a morar como tantas outras sob os cajueiros das vizinhanças dos abarracamentos.

 

Tinha entrado o ano de 1878, e uma reviravolta política, mudando no governo as idéias políticas, dera em resultado na administração da seca os mais funestos resultados. O presidente da província havia pedido a sua exoneração porque não tinha confiança nem podia inspirar confiança ao novo governo.

 

Tinha razão de sobra para fazê-lo. O partido que acabava de subir amargurara indescritivelmente na província a alma do honrado ex-administrador, que se viu atassalhado nos pontos os mais sensíveis do seu melindre particular e público.

 

Pedida a exoneração, o presidente limitou-se a conservar o que já havia feito, mas não se julgou autorizado a continuar no trabalho de organização do serviço, a qual exigia que a autoridade central emprestasse à provincial toda a força.

 

Esta parada causou males incalculáveis. A mortandade atingiu a um número fabuloso, expressado talvez pela metade, se tanto, nas estatísticas oficiais.

 

Multiplicaram-se os quadros horrorosos que formaram a feição predominante nesta fase histórica da província. Debaixo das árvores, onde o arbítrio dos abarracamentos havia transbordado os infelizes, desdobravam-se cenas as mais compungentes. A morte era a menos horrorosa de todas elas.

 

O leilão da honra tornou-se um fato comezinho entre os desgraçados. Os maridos, os irmãos, os pais acossados pela fome entregavam esposas, irmãs e filhas à libertinagem a mais desenfreada, para dela tirarem a subsistência. A prostituição, esta nódoa que outrora não se lavava nunca mais aos olhos do povo sertanejo, tomou-se uma coisa comezinha, a respeito da qual não se discutia.

 

No meio da onda geral de perdidas que inundava a cidade, aparecia agora a mísera Eulália.

 

Depois do insulto cruciante de Paula, ela voltara a correr como doida após a sombra da sua família, perdida no meio da espessa mó que atulhava a capital.

 

Felizmente para a desventurada, d. Ana, impelida pelo temor de que o comissário, para tomar vingança, a perseguisse, fora parar na extremidade da cidade, oposta àquela em que estava o abarracamento T...

 

O lugar em que d. Ana parara, vizinho ao abarracamento de M., ficava justamente do lado em que está situado o palácio do bispo, em frente ao qual Eulália se achava quando pôde medir toda a extensão da perversidade do padre Paula.

 

O primeiro pensamento que ocorrera a Eulália foi atirar-se ao mar: a morte apareceu-lhe como o último desforço, porque dela sobreviria a Paula o remorso.

 

Caminhou, portanto, para o lado do mar, porém em meio caminho lembrou-se da caçula, do estado precário de d. Ana e das outras suas irmãs, e arrependeu-se.

 

Quis viver para elas e para a sua vingança. Tinha certeza de que as havia de encontrar e esperava que Feitosa tomaria sobre o vigário uma desforra exemplar.

 

Caminhou direito ao abarracamento de M., guiada por um pressentimento inexplicável; aí se encontrou com o administrador, um velho a quem a seca arrebatara a maior parte da família e da fortuna, mas em cujo coração deixara, para compensar, um sentimento profundo de compaixão pela desventura alheia.

 

Neste abarracamento, regularmente montado e dirigido por um engenheiro e um médico, cujos nomes a Província do Ceará há de saber lembrar e honrar, Eulália achou uma indicação mais ou menos exata acerca de d. Ana, indicação que o espírito dedicado da moça prontamente completou.

 

Duas horas depois da sua chegada ao abarracamento, sob um cajueiro, Eulália abraçava Chiquinha e suas irmãs, e podia desafogar as lágrimas que por tanto tempo entesourara para aquele encontro.

 

D. Ana, porém, recebeu-a friamente e com um escrúpulo visível.

 

- Bem - disse Eulália -, agora, reunidas todas, podemos ganhar para viver e procurar descobrir Irena e seu velho pai.

 

O Feitosa deve estar também na cidade.

 

D. Ana desfez logo o sonho dourado de Eulália. Chamou-lhe a atenção para o estado precário de Chiquinha e das outras meninas e depois de lançar em rosto a Eulália o seu bem-estar relativo, respondeu friamente:

 

- Vocês podem ficar aqui todas juntas; é mesmo mais razoável, porque Eulália já sabe os meios de ganhar dinheiro sem trabalho. Eu, porém, estou velha, não viverei muito, não quero torturá-las; retiro-me para bem longe.

 

Em vão Eulália, ferida pelas palavras severas de d. Ana, procurou inspirar-lhe confiança afirmando-lhe que só viveria do seu trabalho; d. Ana não se demoveu.

 

- Eu não posso ficar no mesmo lugar em que estiver a filha que desonrou o nome de meu irmão. Ou você ou eu.

 

Diante do dilema fatal, o bom senso de Eulália resignou-se a retirar-se e deixar as irmãs sob a vigilância da honrada senhora.

 

De resto das suas extremas economias, a carteira que lhe fora dada por Virgulino conservava ainda vinte e tantos mil-réis, de cinco dos quais ela serviu-se para arranjar um casebre para a família, a título de oferecimento de umas vizinhas.

 

Dentro em poucos dias a carteira esgotara-se pelas dádivas clandestinas de Eulália à família que hospedava d. Ana.

 

A velha senhora, Chiquinha e as irmãs trabalhavam corajosamente, mas o resultado do trabalho de uma semana mal dava para alimentarem-se três dias. Eulália, reduzida à mais extrema penúria, dormia ao relento, e já começava a sentir os bárbaros efeitos da miséria.

 

Um dia dirigindo-se à família com quem tratara a hospedagem das parentas, ouviu uma tremenda ameaça.

 

- Há duas semanas já que a senhora diz sempre que trará alguma coisa e nunca nos traz nada; deste modo não é possível continuar a estar aqui a sua gente. Esperamos mais oito dias, se neste prazo não nos pagar tudo..

 

- Não acabe - exclamou Eulália soluçando -, eu sei já.

 

- É o último recurso. Olhe, não tenha medo, as suas duas irmãs são bonitas e viverão bem.

 

Eulália saiu como alucinada. Tudo quanto possuía era a ração da comissão de prontos socorros, que conseguira para os seus, e que só podia receber incertamente. Este recurso portanto não bastava para garantir a vida e a honra de suas irmãs e estas ver-se-iam necessariamente obrigadas à perdição.

 

Batida por esta previsão medonha, Eulália vagou o dia inteiro e à noite ainda se achava em uma das ruas da cidade. Prendia-a às calçadas um pensamento mau - a perdição; entregar-se ao primeiro que passasse em troca da honra de suas irmãs, e quando a consciência lhe bradava que não, o amor a aconselhava que fosse por diante, que não temesse o sacrifício.

 

Extenuada de cansaço, faminta e sedenta, sentou-se a uma porta, na qual havia batido pedindo um pouco de água.

 

Uma mulher abriu e apresentando-lhe o copo convidou-a a entrar depois de fitá-la atentamente.

 

- Entre, minha filha, entre, deve estar muito cansada, e é bom descansar um pouco.

 

A amabilidade educada da mulher surpreendeu agradavelmente a extenuada Eulália. Estava acostumada ao contrário. Levada na vaga das outras retirantes, havia por vezes parado diante dos hotéis, onde em mesa lauta os pensionistas almoçavam à farta. Às vezes via aqueles cruzarem os talheres sobre os pratos, tendo apenas tocado nas comidas. Os retirantes levantavam a voz pedindo-lhes os restos e por única resposta tinham os gestos brutais dos criados, que vinham fechar grosseiramente as persianas. Em um desses hotéis dois cães enormes, acorrentados na área, comiam em grandes tinas, e a fartar, esses restos tão cobiçados.

 

Bebido, pois, o copo de água, Eulália fitou agradecida o rosto da sua hóspede e arrancou um íntimo obrigada.

 

- Sente-se agora um bocadinho para descansar - disse-lhe a mulher: - está a pôr a alma pela boca.

 

Nessas palavras transpirava um agasalho maternal e o semblante prazenteiro, desnublado da hóspede o secundava com uma bondade evangélica.

 

Eulália, sentando-se, pôs-se a reparar no todo da mulher, trintona de ar nobremente altivo, vestida com o esmero provinciano, com um olhar quebrado, transbordando de umas pálpebras túmidas e roxeadas; os lábios tinham um sorriso permanente.

 

Em seguida a observação caiu sobre a sala, cuja mobília, sem denotar riqueza, tinha a decência suficiente para mascarar a pobreza.

 

- Vejo que não é daqui da capital...

 

- Não, minha senhora, sou do sertão e acho-me aqui trazida pela calamidade que o afligiu.

 

- E não tem família ...

 

- Tenho e é ela quem me faz sofrer mais...

 

- Santo Deus ! Então leva uma vida de torturas...

 

- É verdade, minha senhora; uma vida cruel, porque não encontro trabalho.

 

- É dificílimo agora; não obstante ainda há meios de se viver decentemente...

 

- Eu não o tenho achado...

 

- É que não encontrou ainda proteção. A senhora é moça, bonita, simpática...

 

Eulália sorriu, com essa espontaneidade que é natural na mulher, quando elogiada, e replicou:

 

- Mesmo que fosse assim, nada disto dá o sustento.

 

- Conforme...

 

A conversação suspendeu-se temporariamente neste ponto, para recomeçar depois de maneira mais clara e decisiva.

 

- É obrigada a dormir com a sua família, não? - perguntou a mulher.

 

- Posso ficar fora, têm confiança em mim.

 

- Quando se está em épocas como a de hoje, tem-se confiança em todos - sorriu a mulher e acrescentou: - portanto, pode pousar esta noite aqui.

 

- Quanta bondade, minha senhora; eu não sei como lhe agradecer.

 

- Olhe que está nas suas mãos se quer pagá-lo; é não me deixar nunca mais. É bonita, pode servir-me muito..

 

Eulália, corando modestamente, perguntou com a ingenuidade de quem não percebe:

 

- E em que a minha boniteza pode servir-lhe?

 

A mulher riu muito, mas percebia-se na sua risada o constrangimento da hesitação que lhe causava a naturalidade da pergunta. Por fim ponderou jovialmente:

 

- Isto é querer ir muito depressa; havemos de ir devagar.

 

Continuou a rir fazendo da pergunta de Eulália tema de comentários repetidos, até que afinal perguntou por sua vez:

 

- Nunca teve o seu namoradozinho lá no sertão? - E como Eulália ficasse enleada: - são perguntas que não se fazem, não é verdade? Não há 15 anos sem amor.

 

Eulália sorriu tristemente.

 

- E ficou-lhe viva a saudade deste tempo - acrescentou a mulher. - Eu fui o mesmo: a primeira vez que ri para outro, como se levantou diante de mim a imagem do meu primeiro amor. A senhora não é casada ...

 

A moça meneou a cabeça, ainda com maior tristeza.

 

- Eu também não sou, e afinal não me dei mal com isto, pelo contrário tenho vivido feliz.

 

- É que tem pais que a estimem e protejam.

 

- Também não; vivo sobre mim...

 

- Ah! - exclamou Eulália surpreendida.

 

- Custou-me a princípio, mas acostumei-me.

 

Metade da simpatia de Eulália pela sua hóspede dissipou-se como por encanto, e, em vez da boa vontade com que se deixava ficar, apareceu-lhe incômodo visível.

 

Esta mudança não passou despercebida ao olhar perspicaz da mulher, que foi logo direito ao ponto a que visava.

 

- Já me disse que sua família tem-lhe feito sofrer muito. Decerto tem irmãs e seus pais são velhos.

 

- Já não tenho pai nem mãe.

 

- Nem irmãos?

 

Eulália meneou a cabeça afirmativamente.

 

- Daí o medo de que aconteça alguma desgraça às suas irmãs.

 

Eulália olhou fixamente para a sua interlocutora.

 

- Desgraça inevitável aqui, principalmente se elas são bonitas como a senhora, que já é livre, e pode dispor de si.. Eu - continuou a mulher - não sei por que me interessei por si e não duvido oferecer-lhe na minha casa meios de poder decentemente velar pelos seus. Dou-lhe quanto precisar para poder aparecer. Assim terá de que viver, e evitar que depois de fomes, de tormentos de toda a sorte, as suas irmãs venham a sofrer o mal que tanto parece temer.

 

Eulália ficou boquiaberta diante da mulher que ousava fazer-lhe tão aviltante proposta, mas longe de indignar-se ficou imóvel e muda a encará-la.

 

- Está fazendo mau juízo de mim, eu percebo-o - observou a mulher -, mas pense algum tempo e verá que eu não lhe proponho senão o que todos lhe proporão. A diferença é que eu não a degradarei como os homens o farão. Pense.

 

Eulália, resistindo a todos os esforços feitos pela mulher para detê-la, levantou-se e saiu.

 

Começaram desde logo a redemoinhar-lhe no cérebro as mais extravagantes e as mais horrorosas idéias. A imagem de Paula, sobrenadando a todas elas, impunha-lhe terror e ao mesmo tempo impelia-a ao cogitar alucinado.

 

Chegada ao abarracamento, não pôde dormir. O cajueiro, sob o qual pousava, parecia-lhe animado, os seus ramos e folhagem convertidos em asas, e os balanços da rede afiguravam-se-lhe vôos enormes, colossais, que a arrebatavam às mais vertiginosas alturas para depois despenhá-la nos mais profundos e negros abismos, e nesses vôos, quando a infeliz ascendia, pensava nos primeiros tempos do seu amor por Paula, e, quando despenhava-se, ouvia a voz agasalhadora da mulher.

 

Quando a claridade triunfal do dia desacastelou-lhe do espírito os medonhos pesadelos, Eulália apressou-se em correr à casa em que estava hospedada a sua família, e aí encontrar Chiquinha.

 

- A caçula morre, Eulália; ela não pode resistir a esta vida; não tivemos ontem um grão de farinha e provavelmente hoje será o mesmo.

 

- Então não lhes deram nada?

 

- Você já não lhes paga...

 

- Sim, já não tenho com que pagar a essas malvadas.

 

- Elas prometeram já nos pôr fora daqui.

 

- Sim, prometeram, ameaçaram-me com isto, mas não o farão. Adeus, eu juro que elas não o farão.

 

Afastou-se quase a correr, e, com os olhos baixos, as feições demudadas, dirigiu-se à rua em que habitava a mulher, que lhe oferecera casa e meio de vida.

 

- Estou aqui pronta - disse ela entrando; - diga-me o que devo fazer, mas antes eu preciso de dinheiro para levar aos meus.

 

- Bravo; teve juízo - respondeu a mulher; - eu a porei mestra em poucos dias; descanse em mim, não lhe faltará nada.

 

 

 

 

 

XI

 

 

 

Feitosa não abandonou mais o pensamento de tomar no vigário Paula a vingança a que o aconselhavam os longos meses de tormentos.

 

A própria sofreguidão, porém, fazia-o emaranhar-se em um labirinto de combinações, que não resistiam a mínima reflexão.

 

Não podia formular contra o vigário uma denúncia; não tinha uma prova só que pudesse fundamentar a acusação. Tudo quanto sabia não passaria de um fugitivo indício para todos; só o seu coração torturado podia extrair uma certeza das palavras de Antônia e dos fatos que se deram na paróquia.

 

O único meio que se lhe apresentou como realizável e eficaz foi a difamação anônima, a qual prepararia o caminho para que mais tarde fosse possível a denúncia formal.

 

Um periódico da capital publicou alguns dias depois um artigo narrando amiudadamente os inacreditáveis acontecimentos de B. V.

 

O retrato de Paula era aí habilmente feito e de tal modo que só a cegueira não o podia reconhecer.

 

Feitosa visitou neste dia todos os seus parentes e amigos para medir a impressão que haviam produzido as suas palavras.

 

Falava-se no artigo, mas a indignação que ele julgava ter produzido no espírito público não realizou: todos se limitavam a simplicíssimos comentários.

 

- Um padre como os outros.

 

- Isto de padres, é uma canalha.

 

- Que jeito, se é verdade o que diz o artigo; valem-se bem da rivalidade das famílias.

 

Perguntavam a Feitosa se o conhecia, e então o moço carregava as cores ao quadro que ele mesmo havia desenhado com o auxílio de um amigo íntimo.

 

A manifestação pública, porém, não passou destas frivolidades e Feitosa entendeu que devia insistir nos artigos.

 

Quando julgou que a notícia já devia ter passado as portas, sempre fechadas, do palácio do bispo, dirigiu-se até lá, disposto a apresentar verbalmente a queixa ao prelado.

 

A entrada lhe foi vedada e o porteiro, por um mero ato de deferência para com os modos polidos e a boa fama de Feitosa, enviou-o ao sacerdote que apresentara ao bispo o vigário Paula e gozava da estima de S. Exa.

 

- É como falar a S. Exa. Revma; o que o sr. padre resolver...

 

- É o que se fará, não?

 

- Pouco mais ou menos; eu não digo que seja tudo, tudo; mas alguma coisa; um bocado mais para lá, outro mais para cá.

 

- E onde o encontrarei eu?

 

- Na igreja, de manhã e à tarde.

 

Feitosa dirigiu-se imediatamente ao templo.

 

O sacerdote lá estava empregado no seu mister de confessor, com o semblante carregado em sinal de uma austeridade de comédia e enfado pelo trabalho a que era obrigado.

 

Quando se desocupou e veio falar a Augusto Feitosa, começou logo por afetar uma urgência, que não passava de um assomo de grosseria.

 

- Viu o senhor em que tenho estado ocupado. Confessei vinte e tanto retirantes moribundos. Ora, eles sãos causam nojo, imagine o que serão nesse estado.

 

- Entretanto eu me veio obrigado a demorar vossa reverendíssima.

 

- E com quem estou falando, posso saber?

 

- Com Augusto Feitosa de...

 

- Da grande família dos Feitosas...

 

- É exato e ultimamente morador de B. V., onde residiu, também o vigário Paula, recentemente chegado a esta cidade.

 

Augusto Feitosa cravou o olhar no rosto do sacerdote para acompanhar-lhe os movimentos da fisionomia. O sacerdote, porém, impassível, afetando com uma naturalidade indescritível desconhecer completamente a pessoa de quem se tratava, respondeu:

 

- Não sabia que o vigário de B. V. estava na capital.

 

- Então, V. Revma. não leu as publicações que têm saído a respeito deste vigário?

 

- Sobre que versam elas?

 

- Eu vou apresentá-las a V. Revma., que as poderá ver e julgar.

 

Augusto Feitosa tirou do bolso alguns números do periódico e passou-os às mãos do sacerdote, que se limitou a ler-lhe o nome.

 

- Ah! é isto?!... Eu não leio este pasquim, e V. Sa. só acredita no que diz isto por não morar nesta capital.

 

- Perdão - exclamou Augusto; - eu não acreditaria nos fatos aqui narrados se os não tivesse presenciado e não tivesse neles um tristíssimo lugar.

 

- V. Sa. vem então denunciar-me o padre Paula?

 

- Venho comunicar à autoridade eclesiástica fatos praticados por esse vigário e que infamam a classe inteira.

 

- Bem, eu o estou ouvindo, pode expor.

 

Augusto Feitosa percebeu logo a má vontade do sacerdote, mas, acreditando na sua declaração de que não havia lido os artigos, passou a expor minuciosamente os acontecimentos da paróquia.

 

- O que eu concluo é que o vigário Paula e o sr. Augusto Feitosa - disse por fim o sacerdote - foram vítimas de uma tremenda perseguição de um inimigo clandestino!

 

- Como? - perguntou Feitosa perplexo. - Não vê V. Revma. que ninguém, a não ser o vigário Paula, podia praticar semelhante crime?

 

- E por que não será o próprio Monte? E por que não seria o velho Queiroz ofendido por ver Irena preferida à sua filha?

 

- Porque diz-me o coração que não, porque nenhum deles tinha a alma torpe de Paula e nenhum podia urdir nas trevas semelhante trama.

 

- E eu lhe digo que nada é difícil no mundo, e nada é mais fácil do que iludir.

 

- Em suma - exclamou Augusto Feitosa irritado -, eu devo contar com a impunidade do vigário Paula, não é assim?

 

- Não apresentou provas que baseiem a sua acusação. Ouça o senhor: eu também já fui vítima de uma história semelhante.

 

E, zombando da exaltação de Feitosa, o sacerdote, com uma entoação calma e desdenhosa, desfiou com todos os seus pormenores a história a que ele já se referira falando ao bispo.

 

- À vista de semelhante experiência - exclamou ele -, compreende o senhor que eu não posso dar crédito a qualquer denúncia.

 

Feitosa levantou-se precipitadamente, e, sem despedir-se do sacerdote, tomou o corredor da sacristia.

 

O sacerdote acompanhou-o até a porta, sem mostrar-se ofendido e, quando Feitosa punha o pé fora do limiar da igreja, exclamou mansamente:

 

- Se arranjar provas, não faça cerimônia, venha ter comigo.

 

Quando o moço desapareceu o sacerdote despegou uma risada prolongada, e chamando o sacristão:

 

- Viu sair daqui aquele rapaz? É uma boa alma. Se vir por aí o padre Paula, diga-lhe que preciso muito lhe falar. Olhe, vá lá ao palácio e chame-o para chegar até cá.

 

E continuou a rir, com grande surpresa do sacristão, que abria bajulatoriamente um riso alvar para secundar sua reverendíssima.

 

- Tenho mais este na rede - murmurou o sacerdote quando ficou só. - Feitas as contas, eu sou o melhor deles todos, não vou às últimas.

 

Foi sentar-se na sacristia, onde um Cristo amarelado pelo tempo abria os braços numa inconsciência igualitária à hipocrisia de sua reverendíssima, do mesmo modo que a mais acrisolada virtude. Ria-lhe no olhar a tranqüilidade que lhe vinha da certeza de conservar o seu prestígio junto ao bispo e os proventos que dele tirava.

 

Momentos depois, no assoalho da catedral soaram os passos cadenciados do vigário Paula. O silêncio, passageiramente roto, readquiriu a sua integridade solene.

 

- Pode ir cuidar da vida - disse o sacerdote para o sacristão que acompanhara Paula; - não é preciso cá.

 

O sacristão obedeceu e, fazendo uma profunda reverência, saiu a resmungar:

 

- Muito amigos são estes dois; boa bisca é um deles, conheço-o; o outro para fazer liga há de ser igual. Tramam com certeza alguma trapaça.

 

Os dois podres uma vez sós olharam-se, ambos sorrindo benevolamente.

 

- Vigário, não posso explicar a razão por que me interesso por si...

 

Paula sorriu maliciosamente e respondeu com uma inflexão escarninha:

 

- É de certo pelos meus lindos olhos.

 

- Quando, outro dia, aquela mulher nos seguia e você se mostrava incomodado...

 

- Ah! conte-me esta novidade, porque não tinha ainda reparado nisto.

 

- Tive desejos de pedir-lhe então uma confidência explícita, de bom amigo que visa a garantir aqui a sua posição.

 

- Cáspite!

 

- Não me julguei, porém, com direito a ela, e hoje também não peço senão explicação sobre alguns fatos.

 

- E quais são eles?

 

- Em primeiro lugar, devo dizer-lhe que ainda não há meia hora travei relações com Augusto Feitosa.

 

Paula perturbou-se momentaneamente, porém, fazendo um esforço supremo, conseguiu ostentar o mesmo aparente sangue-frio.

 

- Dou-lhe os parabéns - respondeu; - é uma excelente relação.

 

- O vigário pode falar assim, porque o conhece bem; pode deixar à boca render esta homenagem a Feitosa, uma vez que a sua consciência lha nega.

 

- Não é tanto assim...

 

- É o que se infere da tentativa de assassinato contra ele.

 

- Que é uma verdade tão provada como a sedução da rua da Palma.

 

- Eu estou por isto. Disse-lho logo depois das suas lamúrias ao bispo; houve porém uma diferença entre a minha revelação naquela hora e a sua neste momento: é que eu então pensei que o sr. vigário Paula era realmente inocente.

 

- E agora?

 

- Penso justamente o contrário, e não admito comparação entre mim e o sr. vigário. Eu seduzi, mas não tentei matar.

 

Paula, vendo-se de todo descoberto aos olhos do confidente do bispo, buscou por um lance de ousadia subjugar a sua argumentação vitoriosa, e levantando-se solenemente aproximou-se do Cristo e, colocando-lhe a mão sobre as chagas, exclamou:

 

- Pela última vez, juro diante de Deus que nos vê e que nos ouve: não tentei contra a vida de Augusto, nem seduzi a filha de Queiroz. Creiam-me ou não, se quiserem, mas não me torturem hipocritamente.

 

O sacerdote levantou-se também, e pondo as mãos nas ilhargas, demorou-se numa gargalhada soluçada; e meneando a cabeça, caminhou até junto de Paula:

 

- Eu juro também, pelo Deus que me ouve, e que me vê: nunca seduzi ninguém.

 

E riu de novo estrepitosamente.

 

Paula abaixou a cabeça envergonhado. Reconheceu que não podia representar bem a sua comédia de vítima, diante daquele homem frio, que sem necessidade, por um mero gracejo, profanava a imagem do Cristo, de quem ele se dizia ministro.

 

- Neste mesmo lugar e em hora muito mais solene, ao cair da noite, quando a escuridão já invadia este recinto, estive eu, uma alta dignidade do clero, a minha vítima e a sua mãe lacrimosas, que me lançavam em rosto o meu crime. A minha vítima estava grávida e a velha mãe, para obrigar-me a confessar o meu delito, convidou-me a pedir a Deus que se fosse verdade o meu crime, por mim tão negado, a criança nascesse cega e paralítica. Eu disse que sim.

 

- Peça-o com a sua mão sobre o Cristo - disse a velha mãe.

 

- A minha vítima estremeceu; cobriu-lhe um palor mortal as faces avermelhadas pela vergonha e pelo pranto; eu porém caminhei sereno, sem hesitar, sem pestanejar ao menos, abracei-me com o crucifixo, apertei-o de encontro ao peito e disse com voz clara:

 

- Juro que sou inocente e se não sou recaia sobre mim e sobre o fruto do meu suposto crime o mais tremendo castigo. A mísera moça - continuou o padre -, havendo-se levantado talvez para impedir-me que jurasse, ao ouvir as minhas primeiras palavras, deu um grito e caiu por terra desmaiada. Corri para ela e levantando-a tranqüilamente disse à autoridade que me ouvia:

 

- Note V. Exa.; buscaram todos os meios de perder-me, de perturbar-me, porém a justiça divina começa a justificar-me; não é sobre mim que pesa a mão de Deus é sobre elas. Já vê, meu padre, que eu conheço bem estas coisas: não valem nada para mim estes juramentos.

 

Paula veio muito perturbado sentar-se, e olhando súplice para o padre murmurou:

 

- Não sei por que razão a palavra de um desconhecido há de valer mais no seu conceito do que a de um seu colega.

 

- Não é a palavra; o que vale mais é a prova, o testemunho de várias pessoas. Ousará ainda você negar?

 

Paula olhou humildemente para o sacerdote.

 

- Cala-se, é, pois, verdade, e no entanto, ingênuo que eu sou, deixei-me imbair por si; julguei-o um exemplo de piedade sacerdotal.

 

O vigário continuou calado e cabisbaixo; a sua sorte estava definitivamente nas mãos do sacerdote, que podia desde então salvá-lo ou perdê-lo, e certo disto o hipócrita não ousava sequer erguer os olhos.

 

Da sua resposta, séria e verdadeira, depende a sua sorte. Feitosa veio comunicar-me que iria denunciá-lo, se a autoridade eclesiástica não o expulsasse da cidade; responda para o nosso governo: praticou o crime?

 

- Sim - respondeu Paula altivamente; - mas se não obtiver proteção, denunciá-lo-ei também. Não estava aqui, e, portanto, contando os pormenores do caso da rua da Palma, como revelação sua, posso perdê-lo.

 

O padre riu de novo prolongadamente, e batendo no ombro do vigário:

 

- É muito criança ainda; previna-se ou virá a perder-se. Eu só queria ouvir-lhe a confissão; não quero persegui-lo, mas avisá-lo de que estará perdido se por acaso Feitosa puder entrar no palácio. Quem tem inimigos desembaraça-se deles de qualquer modo. É preciso tomar cuidado ou está perdido.

 

- Eu o procurarei...

 

- Não basta, é preciso esmagar aqueles que o servem, a todos que podem prejudicá-lo, meu padre.

 

- Sim, sim, eu os encontrarei e a minha vingança será completa.

 

- Faz um calor diabólico...

 

- E esta farsa que você fez-me representar fatigou-me extraordinariamente.

 

- Queria ensaiá-lo.

 

Riram-se e afastaram-se vagarosamente da sacristia, onde o Cristo ficava com o mesmo aspecto piedoso.

 

O sacristão que estava no átrio esperando murmurou ao vê-los:

 

- Felizardos, sabem passar a vida.

 

 

 

 

 

XII

 

 

 

Apesar da dificuldade imensa que surgiu diante de Eulália, a infeliz não perdeu a esperança de vingar-se de Paula.

 

A sua nova posição, degradando-a aos seus próprios olhos, mais do que diante da sociedade que a tolerava e até a favoneava, fazia-lhe vir continuamente à imaginação a imagem do seu sedutor.

 

Quando pela primeira vez teve de entregar nos lábios os beijos comprados e deixar que olhares libertinos devassassem-lhe as formas, pensou que ia morrer. Passou a noite a deliberar, febricitada por um pensamento monstruoso.

 

Mão invisível impelia-a para junto do vigário, não para pedir-lhe, mas para indenizar-se no seu sangue do aviltamento a que se via forçada.

 

Acordando, tirou da cintura o punhal, que nunca mais abandonara, afagou-o com o olhar como que lhe pedindo uma inspiração. Assomou-lhe então um plano monstruoso. Iria à igreja, confessar-se-ia para pedir o perdão a Deus do seu crime, e depois esperaria que o vigário viesse celebrar. Quando ele estivesse mais absorto, quando viesse descuidoso e tranqüilo distribuir a hóstia consagrada aos penitentes, ela cravar-lhe-ia o punhal uma, duas, mil vezes e no meio da geral estupefação suicidar-se-ia heroicamente.

 

Este pensamento dava-lhe um suave bem-estar ao espírito; o vapor de sangue, refrescava-lhe os lábios secos e despertava-lhe ardente apetite de vida, mas de vida sobrenatural, de lágrimas ou de sorrisos, de torturas ou de bem-aventurança, não importava, porque via nos golpes do punhal unificados o seu e o destino de Paula.

 

Começou a vestir-se absorta nesta resolução, mas, ao apertar o vestido que lhe fora dado pela dona da casa, como enguiço à lascívia dos transeuntes, o esforço como que lhe rompeu a inércia da consciência. Lembrou-se da família, e das irmãs.

 

A imagem de Chiquinha apareceu-lhe colocada na posição tristíssima de perdida, macilenta, mascarando com sorrisos o desespero. E, mais desgraçadas do que ela, via as irmãs menores, sendo exigidas pela libertinagem na hora em que as graças da irmã mais velha se houvessem dissolvido nas vigílias crapulosas.

 

Recuando espavorida diante das larvas que ela própria evocara, soluçou a infeliz:

 

- Não, eu não as condenarei a tal sorte; serei infame para lhes salvar a vida.

 

Saiu, entretanto, mas em vez de dirigir-se à catedral, encaminhou-se para a vizinhança de Meireles e aí pagou com o prêmio da perdição a tranqüilidade da família.

 

Uma satisfação dolorosa compensou-lhe o sacrifício da noite, e a desventurada, resignando-se à crueldade do seu fadário, resolveu-se a aceitar a sua nova posição.

 

- Voltou mais alegre - ponderou-lhe a companheira de casa; - lá vê que o diabo não é tão feio como se pinta.

 

- Já paguei a casa para a minha família e tenho fé que nunca mais lhe há de faltar nada.

 

- Conservando-se aqui. O nosso contrato é despesas por

 

minha conta e lucro dividido em três partes, duas para mim e uma para si, o mais razoável que poderia encontrar, não é verdade?

 

Eulália meneou afirmativamente a cabeça.

 

- Ora, você, mantendo-se num certo pé, pode ter pelo menos 10 mil-réis por dia, e, com os três que lhe ficam, a sua família passa um vidão.

 

Eulália abaixou a cabeça para esconder as lágrimas, que lhe vieram involuntariamente aos olhos.

 

- Depois ainda há os presentes; as noites de pândega, passageiros que não conhecem a terra. Está com a fortuna feita, se tiver juízo!

 

Nos dias que se seguiram, esta última exclamação da companheira repetiu-se por diversas vezes. Eulália conquistou uma série de admiradores, que lhe disputavam os sorrisos e os afagos. Tornou-se uma celebridade.

 

- Eu quando a convidei não foi em vão, conheço o povo com quem lido - sorria a perdida, quando Eulália vinha fielmente dividir consigo o preço da sua degradação.

 

Ao contrário da alegria da companheira, Eulália não se alegrava com os seus triunfos.

 

Só um dia na semana viam-na sorrir. Era às quintas-feiras, quando voltava do abarracamento de M., onde ia levar à honestidade da sua família o socorro que ela, chorando de vergonha, tirava à perdição.

 

- Você é uma doida - observava-lhe diariamente a dona da casa; - leva a torturar-se. Isto pode vir a fazer-lhe mal. Nesta vida quer-se cara alegre e coração à larga, e você pode tê-los porque é feliz.

 

- Parece - respondeu-lhe um dia Eulália; - mas estou certa de que nem aqui serei por muito tempo feliz.

 

Tinha neste dia amanhecido mais sombria do que de costume e evitava toda conversação. Alta noite fora acordada pela companheira, e estava a chorar sem saber a causa. Tinha-a afligido um pesadelo, mas nem ao menos lhe ficara dele a reminiscência; sabia apenas que sofria tanto, que não pudera conter o pranto.

 

- Há de ser alguma asneira, alguma dessas criançadas em que você passa os dias pensando, e que não têm valor nenhum.

 

- Deve ser; eu hei de distrair-me.

 

A promessa era apenas uma evasiva para furtar-se às consolações impudicas da companheira. Esta voz a incomodava, porque a aviltava extremamente, uma vez que não a considerava senão uma fábrica de adquirir dinheiro.

 

À noitinha, porém, a angústia atormentando-a demasiadamente, mergulhando-a na indiferença que muitas vezes lhe embotava de todo os movimentos nobres do coração, foi colocar-se à janela.

 

- Não se faça fraca, hein, Eulália! veja bem a quem manda entrar; sentido com os peraltas; siga sempre o meu exemplo - disse a companheira quase automaticamente, pelo hábito em que estava de fazer tal recomendação.

 

Eulália sorriu tristemente. Aquela mulher baixa, metalizada, tinha diante de si um grande prestígio: dera-lhe um meio, ignóbil mas eficaz, para salvar a honra de suas irmãs e a vida inestimável de d. Ana.

 

A frescura da tarde encantava-a. Uma viração forte, escapando-se do mar, vinha de esfuziada pela rua, levantando redemoinhos; a poeira, que não tinha tempo de fugir do abraço do vento, limitava-se a cabriolar, a estorcer-se, a descer e a subir, com os movimentos de uma briga de crianças.

 

Absorta no silêncio da rua, o olhar de Eulália ora descansava no de algum transeunte decente que a encarava insinuantemente, ora envolvia os grupos silenciosos e cabisbaixos de retirantes que passavam, levando sobre o chapeirão de couro as rações de carne do Rio Grande, branquicentas da salga, cheirando mal.

 

A pouco e pouco as feições da moça foram desanuviando e readquirindo o acento de resignação que nelas predominava.

 

A companheira veio postar-se a seu lado, elogiando-a.

 

- Assim é que eu gosto de vê-la, minha santa; é preciso fazer pela vida.

 

Eulália conservou por muito tempo o semblante calmo; a companheira tranqüila foi sentar-se na rede ao fundo e abandonou-se a longos balouços.

 

- Vamos ter uma boa noite.

 

- Parece - respondeu Eulália; - promete.

 

Houve um curto silêncio, durante o qual só se ouvia o ranger das cordas nos armadores da rede. Mas, de repente, Eulália, levando as mãos aos olhos e entrando precipitadamente, soltou um ai agudo, penetrante e desolador.

 

- O que sucedeu, meu bem, o que tem? - exclamou a companheira correndo em auxílio de Eulália.

 

A moça trêmula, tiritante, com o olhar esgarado, nada respondeu, e a companheira intrigada pelo imprevisto do incidente, correu até a janela.

 

Nada viu que lhe chamasse a atenção, e, voltando para dentro, exclamou com uma entoação maternal:

 

- Você está hoje com muitos nervos; não há nada de extraordinário na rua. Distraia-se; eu vou buscar água.

 

Quando a companheira afastou-se correndo, ouviu-se no silêncio da sala estas palavras que vinham da rua:

 

- Estás muito por cima, comborça.

 

O eco de tais palavras aumentou ainda mais a perturbação de Eulália. Sabia que elas eram apenas o prólogo de uma página violenta, e quem sabe se fatal à sua vida!

 

Quando a companheira voltou, Eulália estava tão trêmula que não podia levar aos lábios o copo de água.

 

- Feche os postigos - disse Eulália; - não quero ouvi-la nem vê-la.

 

A companheira dirigiu-se à rótula.

 

Começavam a acender o gás, e o acendedor afastava-se neste momento de junto do lampião, que ficava a poucos passos da casa.

 

Uma claridade viva dissipou o lusco-fusco que ensombrava o lugar e a companheira pôde ver, sob o lampião, uma mulher que olhava fixamente para a casa. Vestia uma porção de andrajos; cobriam-lhe a cabeça uns farrapos de toalha pardos de sujo, e pelos rasgões do corpinho viam-se-lhe os seios tufando uma camisa encardida. De uma estatura nobre, direita, a mulher parecia uma aparição vingadora, vomitada pela miséria.

 

A companheira, ao vê-la, sentiu-se por sua vez perturbada, e, vindo assustada sentar-se junto de Eulália, perguntou:

 

- É da tua família aquela mulher? Pelo seu olhar parece estar fervendo em ódio.

 

- Não me fale nela - respondeu Eulália -, deixe-a, é a minha asa negra; persegue-me, e eu tenho-lhe medo e ódio.

 

- Tem má catadura, é medonha, apesar de não ser feia. O que ela quererá contigo?

 

- É a Mundica - respondeu Eulália -, é ela!...

 

- Ah! - exclamou a companheira a quem Eulália havia narrado os sucessos da paróquia.

 

Foi fechar melhor os postigos e veio para junto de Eulália, que continuava agitada e amedrontada, e buscou distraí-la.

 

- Eu não lhe disse que nem mesmo nesta vida eu podia ter felicidade?

 

- Qual, filha, isto passa; não vale a pena pensar em coisa tão pequena.

 

- Até outra vista, comborça - soou lá fora a voz de Mundica -, lembranças ao vigário; nós nos havemos de tornar a ver.

 

Eulália resfolegou; estava livre por hoje, e o adiamento, concedido por Mundica à tortura que devia infligir-lhe, pareceu-lhe o aliviar de um peso enorme.

 

- Foi-se, com efeito - disse a companheira que tinha ido espreitar no xadrez da rótula; - estamos livres dela.

 

Eulália, porém, não chegou a acalmar-se a ponto de ficar inteiramente desassombrada. Tinha certeza de que Mundica viria provocá-la, dar lugar a alguma cena de que resultasse algum escândalo. Passou a noite a cogitar dos meios de evitar semelhante desastre e no outro dia ponderou à companheira:

 

- Não seria melhor que mudássemos de casa? Esta rua faz-me agora medo.

 

- Mudemo-nos; ainda que possamos perder alguma coisa com isto. Enquanto se guarda de cor o número da casa, vai tempo.

 

- Eu creio que maior transtorno será ficarmos aqui; aquela mulher...

 

- É urgente que nos mudemos; uma desgraça agora que íamos indo tão bem.

 

A mudança foi no momento resolvida. Aconselhava-a o interesse, a boa fama da casa, fama conseguida pela habilidade com que a companheira tinha conseguido viver até agora, coonestando a sua baixeza. Na vizinhança ignoravam ou fingiam ignorar qual a posição real das duas mulheres; sabiam apenas que elas não eram casadas, mas nem por isso as consideravam perdidas. As mais recatadas senhoras do quarteirão as cumprimentavam e algumas delas, em dias de necessidade, mandavam pedir-lhes dinheiro emprestado.

 

Mundica viria, pois, causar um grande dano à reputação das duas mulheres e cumpria à fina força evitá-lo.

 

Vestiram-se e saíram, com o trajo e o andar de gente honesta, cumprimentando discretamente os conhecidos, deitando esmolas nas mãos sujas dos pequenitos, que lhes vinham ao encontro, e fazendo inveja às moças que vinham espiá-las.

 

- Vão bem vestidas.

 

- E sérias.

 

- Parece boa gente.

 

- Mas não levam homem consigo.

 

- Talvez seja gente de fora; mulheres dos engenheiros que têm chegado.

 

- Têm ar.

 

No meio dessas aclamações da curiosidade, correram toda a rua em que moravam e dobraram afinal tomando o lado beira-mar da cidade, entrando em diversas casas, examinando-as detidamente. Sentiam-se ambas dispostas a prolongar o passeio, apesar do sol que já queimava e ser ainda manhã.

 

Chegadas, porém, perto do largo em frente à Sé, Eulália não quis seguir na mesma direção. Ficava muito perto do lugar em que morava a sua família, não queria vexá-la, e, mais do que isso, condená-la a amargos sofrimentos, caso d. Ana a visse.

 

- Minha tia já anda desconfiada da proteção que tem na casa e, se me visse assim, com certeza recusaria o pouco que dou a minhas irmãs - ponderou Eulália; - busquemos outra rua.

 

Tomaram a rua em frente ao palácio da presidência e seguiram por ela.

 

- Há de haver na rua que passa por detrás do palácio alguma casa; vamos passar por lá.

 

Tomaram essa direção.

 

Em frente ao palácio havia um grande ajuntamento de mulheres. Partia daí um sussurro intenso, e afinal alevantou-se uma vozeria enorme.

 

- Temos fome - gritavam , matam-nos à fome, os nossos filhos morrem de fome. Socorro!

 

Eulália e a companheira tentaram voltar, mas não tiveram tempo de fazê-lo. Uma mulher que estava sentada em uma das portas, levantou-se, e, correndo para elas, travou brutalmente do braço de Eulália.

 

- Onde está o vigário, coisa à-toa? Onde está o teu amante? Queria que ele me visse.

 

Mundica, que era quem falava, sacudia grosseiramente a infeliz moça, que interdita, com os olhos estatelados, nem se esforçava para libertar-se da incômoda pressão.

 

Tinha as faces quase sangrando. A perdição não lhe havia calejado ainda a delicadeza dos sentimentos, nem os extremos da educação; passara-lhe sobre o coração como o lodo do brejo sobre as asas das aves aquáticas, cujo verniz não as deixa manchar de todo, e basta um movimento da plumagem para tomarem à limpeza. Não havia, como Mundica, mineirado no cinismo frases obscenas e gestos canalhas, não podia, pois, responder-lhe.

 

Mundica, aproveitando da confusão de Eulália, levantou a mão e espalmou-a sobre as espáduas da moça, que pôde a tempo livrar as faces. Uma revolta da dignidade fez com que Eulália tentasse repelir a afronta.

 

Os transeuntes pararam então, formando circulo, chacoteando da luta, em que Mundica tinha superioridade. Vieram em seguida os apupos, a assuada e afinal os apitos, a galhofa e a prisão das duas contendoras, enquanto a companheira de Eulália fugia para não ser envolvida na questão e nas suas conseqüências.

 

- Eu não fui a provocadora, passava quieta, foi esta mulher quem me veio insultar - soluçou Eulália ao ver-se agarrada por um soldado.

 

- Silêncio - respondeu o agente; - se resiste à prisão, eu a levarei por mal.

 

À tarde ainda Eulália achava-se detida na cadeia, misturada com a escória depravada de mulheres avilanadas pela mais extremada miséria, e só à noitinha foi mandada embora.

 

A pouca distância da cadeia, esperava-a a companheira que se lhe dirigiu friamente.

 

- Eu gosto muito de si, Eulália, mas não posso continuar a morar consigo. A sua inimiga há de continuar a persegui-la, e isto é vergonha e descrédito. Procure, pois, casa para si desde amanhã.

 

- Desde já - respondeu Eulália - não dormirei mais na sua.

 

 

XIII

 

A decepção de Feitosa, ao ver levantar-se uma barreira invencível diante da sua esperança de desforra do vigário Paula, assumiu as proporções de uma alucinação.

 

Foi aos periódicos da capital, mas em vão; fechou-os a própria natureza da questão e sobretudo a má fama daquele em que tinham saído os primeiros artigos. Diante da autoridade civil a dificuldade foi ainda maior, reputou-se mesmo impossível qualquer procedimento legal.

 

O moço, convencido de que era justa a punição de Paula, não obstante os óbices legais que diante dela se levantavam, resolveu a princípio matá-lo. Era fácil. A fome fizera do homem do povo uma fera. Este já havia esquecido todas as noções e perdido todos os nobres traços morais que elevam o cearense ao grau de povo essencialmente digno. Ele já não hesitava diante das questões de honra; vendia esposa, filhas e irmãs ao primeiro preço, alijando-as depois com a facilidade com que náufragos lançam ao mar os designados pela sorte. Uma quantia avultada, pois, armaria não só um, mas cem, mil braços se tantos fossem necessários para a vingança contra Paula.

 

Mas uma reflexão sensata sobreveio. Sabia-se na capital qual a extensão do seu ódio contra o vigário; sabia-se mais qual a influência dos padres sobre o espírito crédulo dos sertanejos cearenses. Para que um destes levantasse mão criminosa contra um ministro de Cristo, seria necessária uma pressão invencível feita sobre o seu espírito. Embora o assassino se evadisse, era facílimo descobrir o mandante do crime.

 

Esta idéia fez abortar imediatamente o plano. Augusto sentia que a sua vida dependia de Irena, que não poderia viver sem ela, que não tinha mesmo o direito de torturar-se mais, sem que houvesse adquirido a certeza de que Irena não existia.

 

- Não te perdoarei, padre miserável, embora eu saiba ter a condenação eterna. Espaceio, mas não cedo a minha vingança.

 

Volveu ao seu primeiro empenho, trabalho em que viu perdidos meses, e ainda agora já em fins de março não dava o fruto ambicionado.

 

Uma tarde abriu-se-lhe a imaginação a uma grande esperança. Circulou pela cidade um boato, que, embora não tivesse grande alcance aos olhos de Augusto, produziu sobre si uma agradável impressão. Propalou-se que o enorme cruzeiro da praça da Sé estava a marejar água.

 

A nova, entrando pelas casas da cidade, pelo palácio, pelos abarracamentos, produziu, principalmente nestes, um grande alvoroço. Semelhante acontecimento não podia ser senão a profecia de que em breve estaria acabada a seca, e para os desgraçados não podia haver sobre a terra nenhum anúncio mais grato.

 

Este rebate dado por um milagre tão estupendo ao coração dos retirantes, esta evocação sobre-humana das suas mortas esperanças fizeram com que a população inteira dos abarracamentos se entornasse sobre a cidade. Todos queriam verificar o milagre, sentir diante dele o coração desvairar de contentamento, alucinar-se numa alegria tal, que só se poderia comparar à de um leproso que visse de repente me cair a crosta repelente, e aparecer-lhe o corpo são e robusto, o sangue a querer irromper da epiderma nova e finíssima.

 

Augusto, que havia calculado semelhante efeito do boato sobre os retirantes, saiu logo para tomar lugar diante do cruzeiro, ante o qual devia desfilar todo o mar desses desgraçados.

 

Chegando à praça, viu realizado o seu cálculo. Desdobrou-se-lhe um espetáculo de cenas indescritíveis. A fé e a sofreguidão davam ao ajuntamento enorme a voz das cascatas em época de enchente; saía dela um ruído que azoinava. Soavam cânticos em toda a praça, onde a multidão se conservava de joelhos; reinava a confusão em todas as ruas que desembocam no largo.

 

Mas o que chamava mais a atenção era o número incalculável de redes que passavam através da multidão, por entre alas que esta lhes abria, como se quisesse dar aos enfermos esta última consolação.

 

A credulidade mantinha a exaltação geral; formavam-se grupos onde havia sempre quem afirmasse que tinha visto, que era perfeitamente exato o milagre: o cruzeiro marejava água, e isto depois de tantos meses de soalheira assassina; era por força aviso do céu.

 

Os próprios moradores da capital mostravam-se impressionados, sem poderem explicar o acontecimento.

 

- É quase inacreditável...

 

- Mas diante do fato...

 

- Sim, diante de fato não há contestação possível.

 

- Entretanto - interveio finalmente um incrédulo que ouvia um grupo formado junto a Feitosa - um sacristão pode ser o autor do milagre.

 

- Como?

 

- Deitando água no madeiro gretado do cruzeiro; este, embebido...

 

Não o deixaram acabar a frase; expeliram-no a empurrões, chamando-o emissário de satanás, satanás em pessoa.

 

E clamavam em voz alta:

 

- Perdão, perdão, Senhor Deus, não vos desafronteis em vosso povo da heresia do demônio.

 

E cada vez mais amotinado, o grupo repetia em voz alta, com gesticulação exaltada, com soluços, com lágrimas a heresia, que foi logo, com uma rapidez elétrica, sabida por toda a gente.

 

Começou então uma cena apaixonada de desagravo. Todos queriam ao mesmo tempo oferecer a Deus a sua prova de fé, e ricos e mendigos principiaram a atirar ao supedâneo do cruzeiro todo o dinheiro que traziam.

 

Planejou-se logo uma solenidade estrepitosa de missas cantadas e de procissões em toda a cidade, durante dias, para que o Ser, que tudo sabe e sé faz o bem e o justo, se amerceasse da contrição daqueles que nada tinham dito.

 

A noite caiu sobre este imenso fervor religioso para que o luar desse-lhe ainda maior majestade e exaltação.

 

Feitosa, de pé, olhando, com uma atenção de fera esfaimada, para as pessoas que saíam da praça por uma única rua, providência que dera a polícia para evitar distúrbios, não perdia as feições de nenhuma das que passavam.

 

- Ela virá, decerto; eu os encontrarei ainda hoje; vou ver, felizmente, acabado o meu tormento.

 

Mas as horas foram passando sem que a sua esperança tivesse o menor indício de se ver realizada; e o moço começava já a desanimar. Para agravar mais o mal-estar que ele já sentia, começou a diminuir o número dos que saíam pela rua. Feitosa soube então que o povo tinha conseguido zombar das sentinelas e sair por todas as ruas.

 

- Oh! desgraçado que eu sou - exclamou Feitosa que, sem se poder conservar de pé, foi encostar-se a uma parede próxima.

 

Um retirante corpulento, vestido decentemente, com a camisa de algodão sobreposta a fralda às ceroulas do mesmo pano, estava havia mais de uma hora, em frente a Feitosa, a olhá-lo, a acompanhar-lhe todos os movimentos da fisionomia.

 

Quando Feitosa cambaleou e foi recostar-se à parede, este homem deu um salto para ampará-lo, mas logo afastou-se e veio ficar de novo em frente ao moço, a quem continuava a encarar com um olhar em que se lia a hesitação.

 

Feitosa cansou de observar e com o coração torturado, afogueado de desespero, pôs-se em caminho com o povo que se espalhava.

 

O retirante, que não o perdia de vista, coçou a cabeça como quem hesita e afinal acompanhou-o até junto de um lampião, sob cuja luz pôs-se diante de Feitosa.

 

- Vossa Mercê dá-me uma palavra? - disse o retirante.

 

Feitosa parou e esperou que o interlocutor se aproximasse.

 

- Eu sou o comboeiro Estevão, de B. V., e queria pedir a Vossa Mercê...

 

Ao ouvir o nome da paróquia, Augusto Feitosa desanuviou imediatamente o semblante, porque o coração readquiriu a esperança de encontrar Irena.

 

- Conheceu lá então o velho Monte e sua filha? - perguntou ele precipitadamente.

 

- Lá e aqui, meu senhor, e é por eles que eu venho pedir a Vossa Mercê...

 

- Fale, fale - exclamou Feitosa -, diga-me onde eles se acham.

 

A maneira brusca por que estas palavras foram proferidas, fizeram estremecer Estevão, que interrompeu Feitosa com uma entoação suplicante.

 

- Morrem à fome; o velho cego e inchado da anasarca, a filha reduzida a esqueleto, sofrem muito.

 

- Sim, eu imagino, tenho certeza de que devem ter sofrido muito; diga-me onde estão eles.

 

- Eu não venho denunciar, meu senhor, eu venho pedir perdão para os dois infelizes. Toda a gente na paróquia soube, por fim, que não foi o velho Monte quem cometeu o crime contra Vossa Mercê e não é justo que seja ele o perseguido. Perdão, meu senhor, perdão para os desgraçados!

 

Feitosa estava como doido. A noticia, que lhe trazia finalmente a paz ao espírito, lançava-o num estado de exaltação, que não lhe dava palavras para exprimir o que sentia. Não respondeu à suplica de Estevão; fez-lhe por sua vez o pedido que lhe pairava, havia longos meses, sobre os lábios.

 

- Vamos vê-los, meu amigo; já, depressa.

 

- E perdoá-los, não?

 

- E pedir-lhes perdão, - exclamou afinal Augusto Feitosa; - tenho-os torturado muito.

 

Estevão, que conservava na mão o chapéu, desde que se dirigira a Feitosa, enterrou-o na cabeça e disse triunfantemente:

 

- É por aqui, estamos lá dentro em meia hora.

 

- Minha santa Irena - murmurou Feitosa -, ainda tenho tempo para salvar-te.

 

- Decerto, há de salvá-la. Eu por um acaso fui empregado como guarda do abarracamento, há 15 dias, e encontrei-os sob um cajueiro: Irena com febre, o pai inchado pela anasarca. Corri ao abarracamento, o da Pimenta, e lá contei o que eles eram e o que padeciam. O administrador teve dó deles e mandou recolhê-los ao hospital. O velho estava a morrer e d. Irena...

 

- Não me diga nada sobre o seu estado - interrompeu-o Feitosa; - vamos vê-la.

 

Em menos de meia hora, atravessando a cidade, os dois

 

homens chegavam ao alto da Pimenta e aborreciam-se com o embaraço que lhes causava, ao caminhar apressado, o longo areal. Permearam, finalmente, as ruas de casas de palha e o cercado em que eram distribuídas as rações, distante apenas alguns passos do hospital.

 

Por comum acordo, Feitosa parou, enquanto Estevão ia ao hospital chamar Irena, para que fosse menos violento o abalo do encontro e se lhe dissipasse o temor da vingança de Augusto.

 

Estevão, tomando uma vela na administração, penetrou no hospital; uma sala de 40 palmos de comprimento sobre 20 de largo e em que se viam uns trinta e tantos leitos miseráveis, feitos com quatro forquilhas e envarados de bambus, sobre os quais, cobertos apenas por um cobertor de algodão escuro, jaziam os doentes.

 

Quando a claridade da vela alumiou o recinto fétido e asqueroso, Estevão deparou com um quadro comovente.

 

Numa das extremidades da sala em que estava o leito de Rogério Monte, estava estendida sobre o chão frio e imundo a mísera Irena; e, sobre o leito, estatelado, inerte, o corpo de Rogério. Estevão salvou correndo a pequena distância e inclinou-se sobre o fazendeiro.

 

- Morto, já está morto! - exclamou ele, que balançava o cadáver. - Infeliz velho, infeliz gente; quem sabe se ainda é tempo de salvar a filha?

 

Dizendo tais palavras, tomou nos braços o corpo de Irena e saiu com ele para o lugar em que deixara Feitosa.

 

- Está aqui ela; o pai é morto.

 

- Irena, minha santa amiga, perdoe-me, perdoe-me -soluçou Feitosa; - nunca mais nos separaremos.

 

Irena não respondeu. Queimava-a a febre intensa que lhe arrebatava os sentidos e a deixava completamente indiferente a tudo. O seu semblante, muito demudado, parecia já mascarado pela morte.

 

- Não há de morrer, não, minha amiga; viverá, viveremos para o nosso amor - murmurava Feitosa, cobrindo de beijos as faces da enferma; - vamos já daqui.

 

Poucos minutos depois, entrava pela cidade Irena, conduzida em uma rede, e ao lado dela Feitosa e Estevão.

 

O resto da noite passou sobre as maiores torturas e as mais doridas lágrimas que podem sofrer e derramar um coração humano. Feitosa, completamente desvairado, impaciente, febril, não deixava o médico um só momento.

 

Queria-o de contínuo à cabeceira de Irena e que lhe fizesse desaparecer a febre. Dar-lhe-ia o que lhe pedisse; a vida de Irena era mais que a sua vida. era a sua honra.

 

Ao romper do dia o médico veio comunicar a Augusto que a doente parecia estar salva; a febre fazia remissão e a fisionomia era lisonjeira.

 

De feito, pelas oito horas da manhã, quando Augusto, lembrado por Estevão, mandava este tratar do enterro de Rogério Monte, a fim de que o honrado fazendeiro não fosse atirado à vala comum, como os demais retirantes, o moço esteve a ponto de endoidecer.

 

De dentro do seu quarto vinha o eco das vozes do médico e de Irena, que lhe perguntava:

 

- Não estou então delirando? É verdade que eu estou acordada e que me vejo assim?

 

- É, minha senhora, e é preciso acalmar-se, dormir um pouco.

 

- E meu pai? - perguntou ela precipitadamente.

 

- Melhor; a moléstia é muito grave; foi necessário retirá-lo daqui para a serra... Está com o beribéri.

 

- Pois eu era capaz de jurar que ele...

 

Um soluço compungente sufocou-lhe o resto da frase e o doutor, intervindo sem hesitação, exclamou:

 

- Também eu pensei, mas felizmente foi apenas um acesso violento que passou... Acalme-se a senhora, porque bem sabe que seu pai não resistiria à sua perda.

 

Irena, com a sua docilidade natural, obedeceu ao médico e calou-se. Estava nesse estado inconsciente em que as febres violentas deixam o enfermo, estado em que parece que há uma dormência no espírito, proibindo que as sensações e os sentimentos tomem corpo e se arraiguem.

 

Com os olhos amortecidos, os lábios muitos secos, as faces escaveiradas, Irena ficou a olhar por muito tempo reparando na decoração singela, mas confortável, do quarto e, afinal, perguntou com interesse:

 

- Quem é que nos socorre?

 

O doutor, calmo e prevenido para responder à pergunta, disse carinhosamente:

 

- Pergunte ao coração se não há ninguém que os possa socorrer; que se orgulhe em servi-los.

 

Irena olhou admirada para o doutor, cuja fisionomia de qüinquagenário se iluminava por um sorriso acariciador.

 

- Temos vivido tão sós e tão abandonados, que eu não julguei poder encontrar alguém que nos socorresse.

 

- Eu guardarei o segredo; será o seu presente de convalescença, que deve ser breve para encontrar-se com o seu velho pai.

 

Irena cerrou as pálpebras depois de algum tempo, durante o qual ficou absorta a olhar para o doutor. Parecia ter adormecido, mas, de repente, levantando-se no leito, exclamou trêmula e ofegante:

 

- Adivinhei o seu segredo, doutor, adivinhei, e o senhor vai confirmar-mo.

 

O doutor sorriu benevolamente e respondeu:

 

- Não é possível.

 

- Disse-mo o coração, e disse-me mais que o meu desgraçado pai está perdido. O meu protetor é Augusto Feitosa!...

 

O doutor perturbou-se e não soube como responder. Irena, aproveitando a confusão, buscou sair precipitadamente, mas à porta do quarto Augusto deteve-a, exclamando de joelhos:

 

- Sou eu, sim, quem vem merecer de ti o perdão que não pude obter de teu pai!...

 

Irena recuou espavorida e foi sentar-se automaticamente no leito, muda, boquiaberta, a fitar com os olhos esgazeados o amante. Lia-se-lhe no semblante o terror profundo e invencível que a dominava e deixava-a quase inteiramente alheia ao que se passava.

 

- Não acreditas, não é assim? Também eu ontem pensei que sonhava ao encontrar-te, tamanhas foram a minha ventura e dor, mas a tua presença, hoje e aqui neste momento, convence-me de que não me enganei. Não me encares assim como para um fantasma dos teus delírios; olha-me bem, serenamente, sou eu, o teu amigo que te pede perdão!...

 

Os lábios descorados do moço tentaram beijar as mãos de Irena, mas um movimento delicado e rápido da moça furtou-as ao beijo apaixonado.

 

- Tens razão - soluçou Augusto -, eu lá não mereço uma caricia tua, e nem a posso pedir. O meu amor foi a tua

 

desgraça: as humilhações, as afrontas, a penúria em que por longo tempo viveste, foi tudo obra minha. Sei, não devia afoitamente encarar contigo, Irena! Porém julguei-me castigado pelos meus remorsos e esperei que a sinceridade do meu sofrimento fosse um título à tua piedade...

 

Houve uma longa pausa em que ressoaram mais alto os soluços de Augusto.

 

O médico saiu do quarto, cabisbaixo e comovido, e, cruzando os braços sobre os rins, pôs-se a andar de um para outro lado da sala. De quando em quando na quietação do aposento ouviam-se o retinir das ferraduras dos animais no calçamento da rua e palavras destacadas de conversas de transeuntes. Um retirante, que estava ao serviço de Feitosa, ressonava sentado no corredor.

 

O médico parou afinal junto de uma janela que tinha as vidraças descidas e as cortinas corridas. Duas mulheres conversavam sobre um espetáculo a que tinham assistido na praia.

 

- Era de cortar o coração; pobre gente! Que dor que ela sofria!

 

- E a família que só tinha mulheres? O que vai a pobre fazer lá no Pará? Esperanças.

 

- Por muito mau, sempre é melhor do que aqui; à fome não se há de morrer. Eu e o meu marido já resolvemos ir para o Rio de Janeiro; dizem que lá é um céu aberto.

 

- Basta estar perto do imperador; lá não hão de fazer muamba, o graúdo está vendo.

 

- No Pará é que não nos apanham; sei lá o que é aquilo? Ninguém fala, e depois só mandam para lá barcos velhos.

 

- Este de hoje e assim.

 

- Uns homens que estavam ali conversando disseram que o barco vai ao fundo mais dias menos dias; que não dá conta da viagem.

 

- Tudo desgraça...

 

- É a vontade de Deus.

 

As duas mulheres calaram-se, e o doutor voltou ao seu passeio maquinal, que para logo interrompeu indo parar à porta do quarto.

 

Augusto conservava-se de joelhos, com a cabeça pendida sobre a beirada do leito, e arquejando continuava a soluçar.

 

Irena, por sua vez, conservava-se muda, mas, ainda que na mesma posição, havia escondido nas mãos as faces, que se orvalharam de lágrimas silenciosamente.

 

A sua cabeleira louro-clara, muito seca e descurada agora, caía-lhe sobre os ombros, exagerando ainda mais a palidez romântica da sua epiderma. Aparecia-lhe por sob o vestido velho de chita o pé, pequeno, fino, escurecido pela poeira, mas ainda assim deixando ver as longas estrias azuis das veias. Do seu todo de mendiga exalava-se um perfume celestial de honestidade heróica, que enchia todo o aposento de um extremo recato virginal.

 

O médico passeou por largo tempo o olhar sobre os dois mártires. Sua alma, acostumada com as grandes dores, calejada já pelos espetáculos comoventes, acostumada a ouvir prantos desolados de orfandade e viuvez de envolta com os últimos suspiros, com o derradeiro resfolegar de pais e de esposas, vibrou não obstante com uma sensibilidade ampla e comunicativa.

 

- Eis o que é ser desgraçado - pensou ele; - amam-se, querem-se, e no entanto cada um teme lançar-se nos braços do outro.

 

Em bicos de pés avizinhou-se de Augusto, e, pondo-lhe a mão sobre o ombro, imprimiu-lhe um movimento delicado; e como Augusto levantasse para si o rosto banhado em pranto o médico mostrou-lhe com o indicador as lágrimas e a atitude de Irena.

 

- Eu contava com o teu perdão - exclamou Augusto, levantando-se e beijando precipitada e gulosamente as mãos da moça; - fui menos cruel que desgraçado.

 

Os crebros soluços de ambos concluíram a reconciliação de tão vivo quanto sincero amor.

 

À tarde Estevão veio comunicar a Augusto Feitosa que tudo estava pronto para o enterro do velho Rogério. O bom do comboeiro ria e chorava ao mesmo tempo. Estava contente de si porque, na sua qualidade de guarda do abarracamento esforçara-se sempre em socorrer o velho Monte e Irena; mas, quando expunha aos seus companheiros que os dois pertenciam à grandes famílias dos Montes, aqueles riam e chasqueavam, atribuindo as suas atenções a causas vis.

 

Hoje tinha-lhes demonstrado que não mentia, que tinha sido verdadeiro quando recomendou o velho ao respeito de todos. Isto o alegrava.

 

- Está muito bonito o velho com a sua roupa toda preta, a barba feita, no caixão de belbutina com galões de ouro. Tomou outra vez o seu ar fidalgo.

 

Mas isto mesmo causava tristeza a Estevão, porque pensava que devia ser vestido assim, com aquele ar grave e respeitoso, que o velho devia ir acompanhar Augusto e Irena como noivos e abençoá-los diante de Deus. Entretanto, no dia em que os dois se encontravam, o pobre velho baixava à terra para não mais se levantar.

 

Augusto depois de ouvir Estevão foi consultar com o médico sobre o que deveria fazer: se ocultar a Irena o saimento paterno ou dar ocasião a que ela o visse.

 

O doutor opinou que se deixasse ao acaso resolver.

 

À tardinha ouviram-se na rua os compassos retardados e a entoação tristíssima de uma marcha fúnebre.

 

Irena, que havia adormecido, acordou sobressaltada e, arregalando os seus grandes olhos azuis, cheios ainda das sombras do sono, perguntou a Augusto o que era aquilo.

 

O doutor, convidando Irena a levantar-se, conduziu-a até junto da janela e levantando a cortina das vidraças mostrou-lhe a triste cena que a marcha fúnebre anunciava.

 

Alguns homens vestidos de preto seguravam nas alças do caixão, e um bando de mulheres e de crianças acompanhavam-no. Logo por trás do modesto féretro caminhava Estevão, que conduzia dois mochos, que serviam de eça, em que de quando em quando o caixão era depositado.

 

Irena, ao dar com o rosto comovido de Estevão, exclamou com um entono indefinível de dor:

 

- Meu pai, meu desgraçado pai!

 

- Irena - soluçou Augusto -, é diante do cadáver de teu pai que eu venho pedir-te com o perdão, a reparação do crime. Perdoas-me?

 

Irena deixou-se cair sem forças nos braços de Augusto. pálida como um cadáver, e, enquanto o moço, esquecendo no egoísmo da ventura a grande dor da moça, beijava-lhe as faces arrebatadamente, lá da extremidade da rua vinham encher o silêncio da sala os compassos da marcha fúnebre.

 

 

XIV

 

Deixando a casa da companheira a sorte de Eulália tornou-se mais cruel e insuportável.

 

A princípio a infâmia da perdição compensava-se com a certeza do bem-estar da sua família vendia-se aos que passavam para comprar assim a tranqüila honestidade de suas irmãs. Havia alegria naquela miséria; aquele lodo brilhava com os reflexos da boa ação, como o brejo com as irradiações do luar.

 

Mundica veio mudar tal situação. Avilanada desde os tempos da paróquia, a rapariga havia na capital descido ao mais baixo e sórdido da perdição. Fazia parte da concorrência infame da vizinhança dos quartéis e aí, aguardentada, fumando, vozeando e lutando, arrastava miseravelmente a vida, passando as semanas parte na cadeia e parte na mais assombrosa dissolução. Especulando com a virgindade e a frescura das irmãs, Mundica desde logo as converteu em instrumento de ganho. Amelinha passou a andar com a recua de meninas que pediam esmolas, especialmente nos hotéis e às reuniões dos rapazes.

 

Tendo descido a tanta baixeza, Mundica, não tendo mais nada a perder, decidiu causar a ruína de Eulália. Aquela perversidade tinha o faro dos cães; não perdia a pista da moça; onde quer que esta se recolhesse, lá a encontrava.

 

Eulália foi constrangida a deixar de morar nas ruas em que podia decerto modo desmascarar a sua vergonha, e a habitar naquelas em que as palavras obscenas, as injúrias horrorosas de Mundica pudessem ser ouvidas sem escândalo dos vizinhos.

 

Nesta mudança a infeliz viu partido o degrau dourado da perdição. Passou de ser uma mulher recatada para ser uma coisa à-toa, conhecida da cadeia como desordeira.

 

Desde então o dinheiro começou a escassear-lhe, à medida que as violências à sua educação e ao seu pudor aumentavam.

 

A princípio freqüentavam-lhe a casa uns homens que a obrigavam a fumar, que exigiam dela risadas e frases canalhas.

 

Eulália obedeceu a esta nova exigência do seu aviltamento. Aprendeu a falar torpezas com o cigarro ao canto da boca, rompendo em explosões de uma lubricidade caprina.

 

Mas nem todos os exageros bestiais bastavam para atrair a concorrência da baixa libertinagem. Eulália tinha de sair à rua, de ir lá enguiçar com as cores desbotadas do enxoval de perdida, que lhe dera a companheira - a sua sagaz introdutora no mundo do lodo e da humilhação -, a lascívia saciada dos d. Juans reles.

 

Passaram assim semanas, em que dia a dia a desgraçada sentia a beleza desaparecer, o corpo emagrecer, o espírito conturbar-se-lhe, e a sede de dinheiro tornar-se vesana e insaciável à medida que as férias diminuíam.

 

Um dia acordou com febre; sentia os lábios secos e o hálito quente como o ar próximo a uma forja. Uma quebreira irresistível arrastava-a para o leito; disse-lhe uma vizinha com uma risada, chasqueando da sua ingenuidade:

 

- Você chegou à primavera; vai dar flores.

 

O coração torturado de Eulália sangrou; estas poucas palavras eram a sentença fatal que de uma vez para sempre a condenava. Nem mais a sórdida profissão lhe podia valer, estava definitivamente perdida.

 

A desolação do seu espírito começou então a agigantar-lhe mais as proporções do seu infortúnio. Não se pervertera por si, mas por suas irmãs; contava que o tempo viesse em socorro delas, que a calamidade cessasse e que lhes fosse possível a elas volverem para a terra do berço puras e imaculadas. Mas a seca, em vez de desaparecer, dobrou de intensidade, o mau estado da província longe de melhorar agravou-se. O que seria, pois, de Chiquinha e das outras?

 

Veio-lhe então à dolorosa meditação uma idéia. A retirada para fora da província era enorme agora. Para todas as províncias do Império retiravam-se cearenses. Iria, pois, falar com Chiquinha. expor-lhe-ia o segredo da sua existência, a origem da comodidade de que elas gozavam e aconselhá-la-ia a insistir com d. Ana para que emigrassem.

 

Assentada esta resolução, Eulália lançou logo mão de todos os recursos. Foi ter com a família que era a protetora aparente de d. Ana e pediu-lhe que mostrasse a esta desejos de a ver retirar-se de sua casa.

 

- Eu dentro em muito tempo, talvez, não possa mais pagar a pensão; estou doente, vou tratar-me e, se lhes hei de dar prejuízo, previno.

 

Não era preciso mais para que os supostos protetores pusessem em campo toda a sua atividade junto de d. Ana, convencendo-a de que devia partir.

 

Todos os boatos, que então circulavam a respeito do destino que esperava os emigrantes, foram repetidos e exagerados.

 

Era como sair de um inferno para entrar num paraíso. Os retirantes, ao chegar, eram recolhidos em casas de ótimas acomodações e delas só saíam empregados e ainda protegidos pelo governo. Enquanto não tinham emprego, conservavam-se nessas casas, sustentados pelo imperador, que era para a crédula gente o que nós outros chamamos o governo.

 

- Todos os que têm ido para fora escrevem e dão boas notícias; pelo menos lá não há fome, nem a gente tem necessidade de vender o que tem de mais santo.

 

- São terras de muita fartura - acrescentavam; - dizem que lá para o sul chove quase todos os dias.

 

D. Ana relutou por alguns dias. Era verdadeiramente cearense e sertaneja; amava com sinceridade a terra em que nasceu. A própria desgraça a que a via hoje reduzida ligava-a mais a si, estreitava-lhe a solidariedade com o seu destino. Parecia que o seu lugar era aí no meio dos horrores, dos acontecimentos descomunais que tanto já haviam pungido e que tão diretamente ameaçavam-lhe o futuro. A filha carinhosa, ao ver a mãe afetada de uma moléstia contagiosa, procede assim. Ao passo que todos evitam-lhe o hálito, fogem-lhe do contato, ela, que sente a piedade filial manter-lhe a gratidão vivaz, respira nos beijos, afronta nos apertos de mão e nos abraços estreitos o mal de que os outros se arreceiam.

 

Afinal d. Ana viu-se obrigada a ceder. Eulália, tendo adoecido gravemente, continuava a manter a família com o produto das suas economias, que eram poucas e, portanto, não davam à moça a confiança necessária para condescender com a sua velha tia. Insistia, portanto, junto dos supostos protetores e estes junto de d. Ana, que afinal se resignou a abandonar a província.

 

Era urgente que saíssem o mais depressa possível, e a velha senhora portanto não escolheu o lugar para onde ir. Pediu passagem no primeiro navio que partisse; pouco lhe importava o destino; em qualquer lugar viveriam do seu trabalho e seriam mais felizes do que então.

 

Eulália, que esperava ansiosa por esta resolução, foi encontrar-se com Chiquinha.

 

- Coragem, minha irmã - disse-lhe ela -, vão porque irei brevemente encontrá-las.

 

Depositou nas mãos da irmã a pequena soma que lhe restava e que devia servir para as primeiras necessidades da família na província em que chegasse.

 

Sentiu-se então desafogada, melhor; a honra de suas irmãs estava salva. Se por ela tinha caído sobre a memória de seu pai uma sombria mancha, esta mancha evitara outra maior.

 

E a mísera Eulália, voltando para o seu casebre, abençoava a sua infâmia. Passou alegremente os dias que decorreram, e só a viram triste na tarde em que Chiquinha, abraçando-a, disse-lhe em soluços.

 

- Amanhã partiremos; está decidida a viagem.

 

Pelas 11 horas da manhã, uma onda de retirantes desdobrava-se sobre a vastidão da praia afogada em sol.

 

Vinha dos navios ancorados uma triste melopéia cantada pelos marinheiros, que marinhavam mastros ou mantinham-se a cavalo nas vergas. Um bando de jangadas, com as velas muito bojadas, voava muito inclinado e com a velocidade dos pássaros pescadores quando se despenham sobre as presas. Misturava-se no espaço, como notas de um uníssono, o sussurro do povo, o murmúrio das ondas, o farfalhar longínquo do coqueiral a leste.

 

Apesar da claridade do dia e da multidão, pairava sobre a praia uma pesada atmosfera de tristeza, que exalava do lugar e das fisionomias.

 

O cômoro do Croatá ao lado como que diluía-se na vivíssima luz meridiana. As suas choupanas de tetos havana-escuro, muito baixas, quase roçando o solo, pareciam um cardume de socós enrufando as asas para voarem. Do outro lado a ponta do Mucuripe, entrando prolongadamente pelo mar, dava ao lugar uma aparência de deserto; tão árido é o aspecto da sua extensão pedregosa, que enruga o chão como as pústulas de um lázaro.

 

No meio da multidão, que tinha o mau cheiro de um monturo, ou de um grande acúmulo de andrajos, apareceu Eulália, com os vestidos sovados e já barrados pela poeira das ruas.

 

Junto dela veio logo postar-se uma roda de libertinos provincianos, que não faltavam a nenhuma reunião para farejar na miséria as coroas virginais esquecidas pela fome.

 

- É bonita - conversavam eles olhando para Eulália; -bonito porte.

 

- O olhar é prometedor, muito meigo, cearense.

 

- Mas já lhe estão a surgir através das faces...

 

- Se lhe parece. Queria-a como quando nasceu? Era o supra.

 

Eulália ouviu e desvaneceu-se a princípio com a conversa. Talvez aqueles elogios lhe dessem ocasião de pôr de parte alguma economia, e esta representava a junção em breve com as irmãs e a velha tia, cuja separação tanto lhe custava.

 

A palestra, porém, mudou de assunto. Tinha havido um grande movimento no seio da multidão, que se desagregou em uma porção de grupos que corriam para a grande ponte de embarque, a qual buscavam flanquear.

 

O grupo dos peralvilhos moveu-se também acompanhando Eulália.

 

No meio das alas abertas pelo ajuntamento começou a desfilar o grupo dos emigrantes, sobre o qual a própria repulsão da miséria fazia convergirem os olhares.

 

- E embarcam sempre naquele navio os desgraçados? - disse um dos peralvilhos.

 

- Pudera; a melhor política é mandá-los andar; desentupir a nossa cidade de semelhante peste.

 

- Não está mau modo.

 

- É o único; entrouxá-los e marchar.

 

- Mesmo porque, se houver um naufrágio, ninguém sente, e com razão, porque tanto faz que eles morram de fome como afogados; no fim é sempre morrer.

 

- Bravos à piedade; vem a tempo.

 

- Não é piedade, é indignação. Não há quem não saiba aqui o estado em que está aquele navio. Estava já para ser vendido como lenha.

 

- Então aquele é o patacho ...

 

- Ele mesmo, e, como já não prestava para nada, o governo fretou-o e responsabilizou-se por qualquer desastre que sobrevenha.

 

- Ah! sim, o dono é do partido que está em cima...

 

- E para servir um amigo mata-se mais de 200 pessoas.

 

- Isto é pessimismo exagerado.

 

- Eu aposto a cabeça em como o navio não torna ao Ceará, nem chega ao seu destino; ele não agüenta o vento que lá vai fora.

 

- Eu estou quase arriscando 20 mil-réis.

 

- Aceito-os contra 200.

 

- Feito.

 

- Feito - respondeu convencidamente o interlocutor.

 

Semelhante segurança não podia deixar de impressionar Eulália. A princípio buscou disfarçar a desagradável impressão que experimentou, mas, quando viu a família no meio dos emigrantes, lacrimosa, desolada, Eulália sentiu que a profecia do conversador era verdadeira e que ela estava condenada a perder para sempre as carícias da caçula e a amizade das irmãs. Esforçou-se para romper as linhas de povo colocadas diante de si, mas a massa fria, impiedosa, repeliu-a, apesar dos motivos com que ela legitimava a sua insistência em passar.

 

- Para fora; não empeste a gente - resmungavam-lhe; - não se encoste.

 

- Piedade - soluçava Eulália -, vão ali minhas irmãs e eu sei que o navio vai perder-se.

 

- Para trás, já lhe disse; gente como você não tem família. Perdida tem você a vergonha.

 

Torturada, insultada, a infeliz buscou sair. Se corresse pela praia, se tomasse uma jangada chegaria a bordo a tempo de encontrar-se com a família e poderia ainda demovê-la. Mas a saída também lhe foi por longo tempo vedada e só pôde efetuá-la quando a multidão debandou-se. Correu então pelo areal, fixando o solo movediço com a sua violenta resolução. O vento, colaborando com os seus bruscos movimentos, desdeu-lhe os nós das tranças e a sua cabeleira negra, soltando-se do sincipúcio, desgrenhou-se-lhe como um véu negro, como um pedaço das trevas da morte que começasse de envolvê-la.

 

Arquejante, alucinada, chegou à beira-mar e gritou para uns jangadeiros, que, muito calmos, sentados sobre os paus flutuantes da sua embarcação, comiam a rir.

 

- Levem-me a bordo.

 

- Estamos almoçando agora; só por bom preço.

 

- Levem-me.

 

- Paga cinco mil-réis?

 

- Chegue - exclamou Eulália -, chegue e depressa.

 

Meteu a mão no bolso do vestido e, desamarrando um lenço, pôs-se a contar o dinheiro. Tinha apenas oito mil-réis.

 

- Ainda sobram-me três - murmurou a desventurada; - bastam-me.

 

A jangada partiu rápida com o nado certeiro de uma cobra através da correnteza. As ondas, afofando-se em espessa espumarada, tinham o ruído semelhante ao da lâmina de aço de encontro à pedra do rebolo vertiginosamente movida.

 

Mas a celeridade da jangada não conseguiu compensar o tempo perdido. Quando Eulália aproximou-se do navio, já as escotilhas estavam fechadas; os saveiros, em que os retirantes tinham ido, voltavam vagarosamente, e à proa do patacho, os marinheiros, com o seu coro tristonho, que parece uma lamentação partida do mar, coro que sintetizava todas as dores da despedida, inclinavam-se e levantavam-se, em vaivéns ritmados, suspendendo a âncora.

 

- Pode-se falar a uma família que aí está embarcada? - perguntou Eulália, trêmula e impaciente.

 

- É muito tarde já; estão levantadas as escadas.

 

- Mas é para que ela não vá, porque não precisa ir.

 

- Traz ordem da comissão? - perguntou de bordo, depois de uma pequena demora, um indivíduo que parecia ser o comandante.

 

Eulália despenhou em soluços e o homem de bordo acrescentou.

 

- Sem eu nada posso fazer.

 

O patrão da jangada disse friamente para os companheiros:

 

- Aproveitemos o vento, toca para a terra.

 

A jangada partiu com a sua vela bojada, sussurrando extraordinariamente, e sobre os soluços de Eulália desdobrou-se, como um acompanhamento do oceano, o coro triste dos marinheiros levantando a âncora:

- Oi...i! oi...i! arriba, oi...i!

 

 

XV

 

De volta da excursão precipitada, Eulália trazia, de mistura com o desespero, a recaída da moléstia de que, havia alguns dias, fora atacada.

 

O sol influía-lhe no organismo com a energia de um veneno. Batiam-lhe as têmporas violenta e dolorosamente como o latejar de um tumor; tinha os lábios empergaminhados, ressaibando travor bilioso. Um relaxamento geral dos músculos dificultava-lhe os movimentos.

 

Quando a jangada varou na praia cuspindo-a de espumarada alvadia, o patrão, indo tomar Eulália nos braços para desembarcá-la, viu-lhe os pés completamente molhados, e, como a fitasse para pedir-lhe desculpa, exclamou assustado:

 

- Vossa Mercê está muito desfigurada; o mar fez-lhe mal.

 

Eulália não respondeu; levou silenciosamente a mão ao bolso para tirar o dinheiro e pagar. O patrão fitou de novo o seu semblante, em que as pálpebras entrecerradas punham um tom de tristeza indefinível.

 

- Vá com Deus, moça - disse o velho homem do mar -, guarde o seu dinheiro; mais perdeu Vossa Mercê. Não paga nada.

 

Eulália olhou admirada para o velho patrão, significou-lhe o seu agradecimento por um estreito aperto de mão e pôs-se a caminho pelo areal a fora, sob o ardor inclemente do sol.

 

Chegando à casa, pensou que ia morrer. As conversas, o arrastar dos chinelos das suas companheiras, o menor ruído, enfim, tomava nos seus ouvidos um volume descomunal, que a alucinava. Tinha desejos brutais de se atirar de encontro às paredes, de rolar pelo chão, gritar e dilacerar as roupas. Sentia sob as pálpebras arder-lhe uma forja inextinguível, que irradiava uma temperatura incômoda. Pôs-se a beber água com a demasia de um dromedário, e depois, desvairada, deitou-se numa rede a cantar.

 

- Foi forte o mar de ontem, Eulália; - exclamaram as companheiras; - a ressaca de hoje é forte.

 

E ela ria, sem ouvir, automaticamente, por uma ação reflexa, acompanhando a gargalhada alvar das outras.

 

Mas, em breve, a moléstia avassalou-a; tomou-a nas garras e imobilizou-a. Vieram-lhe bruscos calafrios, que a faziam tiritar, e a sua garrulice de doida extinguiu-se, dando lugar a um silêncio profundo, só perturbado pelo resfolegar arquejado.

 

Passou assim horas. As companheiras de casa, sentadas à janela, tirando de cigarros e cachimbos longas e fartas baforadas, não se impressionaram; esqueceram-na para ali com um frase vil:

 

- Está cozinhando.

 

À noite, porém, ela continuou no mesmo resfolegar de enferma, no mesmo bruto letargo; e uma das mulheres, aproximando-se da rede, teve um sobressalto.

 

- Credo! Parece que a Eulália aprontou-se de mais; venham vê-la.

 

A desgraçada ardia numa febre violenta, que a escaldava e tolhia-lhe os movimentos do corpo e da razão. Ao chamarem por ela, respondeu inconscientemente:

 

- Vim pedir minhas irmãs, não quero que elas partam para morrer; o navio vai ao fundo.

 

As outras olharam-se perplexas. A salda do navio carregado de retirantes e as palavras de Eulália explicavam a causa da moléstia. Aquelas palavras denunciavam também sentimentos que eram uma justificação do procedimento de Eulália. Embora se entregasse, como as outras, e emparceirasse com elas na prática das mais aviltantes baixezas, Eulália, durante certas horas, ficava intratável, fechava-se no seu cubículo e daí apenas saía nas horas do ganho, e então um círculo roxo marcava-lhe nas pálpebras o vestígio das lágrimas.

 

- Isto vai ser um inferno - disse uma das perdidas; - ela não se levanta daí tão cedo.

 

- É botica e dieta - ponderou outra.

 

- E o trato, e tudo de que um doente precisa - acrescentou a terceira; - nós não podemos com eles.

 

Houve um largo silêncio, durante o qual as três mulheres se olhavam como se cada uma tentasse ver na fisionomia da outra a resolução que todos hesitavam em manifestar:

 

- Acho melhor esperarmos até amanhã, talvez ela espaireça.

 

- Talvez.

 

- Mas pode piorar.

 

De novo a dificuldade de resolver surgiu diante das três mulheres, cada uma das quais como que temia revelar à outra a perversidade de que todas eram capazes.

 

- Eu por mim deixava-a ficar aqui; sempre é nossa companheira e nenhuma de nós está livre de uma igual.

 

- Este é que é o bom caminho; mas você bem sabe que há morrer e viver.

 

- Mas não se morre assim como um cão, sem mais nem menos.

 

Faltava decididamente coragem a todas para dizer qual a medida que deviam tomar, medida que logo apareceu ao juízo comum. As pausas explicavam-no suficientemente; é que nenhuma queria parecer aos olhos da outra a mais desnaturada, para que, em caso semelhante, não fosse o seu conselho de agora um argumento imperioso.

 

- A morte não marca tempo - disse uma delas; - vem e leva aquele cuja hora é chegada.

 

- E se ela morrer aqui...

 

- Sem médico...

 

- É um incômodo para a gente; fala-se tanto.

 

- Mas por isso não havemos de pôr na rua uma companheira que arde em febre.

 

Esta última reflexão fez com que as outras duas perdidas abaixassem os olhos, como se lhe tivessem surpreendido para refutar de chofre uma resolução prestes a ser emitida.

 

- Se ela morrer aqui - disse uma delas -, nós temos de mudar-nos; ninguém mais entrará em nossa casa; é como se fosse amaldiçoada.

 

- E para fazer a mudança é preciso achar quem nos queira alugar casa - disse a outra.

 

- Se ela morrer aqui, por causa de uma, podemos contar que vamos as três para a rua. Não havendo dinheiro, não há casa.

 

Este último argumento decidiu a sorte de Eulália. Ficou vencido que a infeliz enferma não podia continuar na casa. Somente faltava a cada uma das companheiras a coragem de ser a primeira em segurar em Eulália para deitá-la à rua.

 

Um incidente demorou por mais algum tempo o alvitre. Um grupo de homens havia parado à porta e dirigia daí frases obscenas às perdidas, e estas, correspondendo ao apelo, distraíram-se algum tempo.

 

Quando, porém, ficaram de novo sós, voltaram ao projeto. Eulália estava cada vez mais grave; tinha no semblante a máscara da morte e a febre parecia ter-lhe estagnado o sangue numa pasta incandescente que lhe avermelhava extraordinariamente o rosto.

 

- É preciso decidir - disse uma das mulheres - este despotismo de febre mata-a por força.

 

Olharam-se as três hesitantes, mas de repente, como se temessem arrepender-se da ação que iam praticar, exclamaram ao mesmo tempo:

 

- Vamos deixá-la à porta da Misericórdia.

 

As três mulheres começaram logo a pôr em prática a sua resolução. Duas delas, trançando os braços em cadeirinha, colocaram sobre eles a enferma, envolvida em um lençol enxovalhado e sustentada pela terceira, que a segurava pelas costas.

 

Puseram-se a caminho; deram um grande avanço, mas a distância a vencer era considerável e o peso que carregavam, enorme para aqueles organismos depauperados pela fome e pelas noitadas lascivas. Demais disso, o corpo de Eulália escaldava, e como o incômodo da posição e fizesse debater-se, era preciso grande esforço para contê-la.

 

Não obstante, as mulheres caminhavam sempre, e só paravam para revezar e descansar. Vindo de perto do largo dos Voluntários, haviam atravessado já metade da praça da Assembléia, e aí pararam um pouco, sob um lampião, a tomar fôlego.

 

- Tenho os braços mortos - disse uma delas.

 

- Eu tenho os meus que parecem uma sopa, de tão moles - disse outra.

 

- Mau, mau - exclamou a terceira; - se querem dar parte de fracas, não chegaremos lá.

 

- Não, havemos de chegar, nem que seja de madrugada.

 

- Descansemos bem.

 

Sentaram-se as três e puseram-se a fumar.

 

A praça rumorejava o farfalho das suas enormes árvores, lembrando um grande ajuntamento a cochichar. Era o único ruído que quebrava o silêncio profundo da cidade, mergulhada em sono. A luz dos lampiões projetava uma claridade mortiça na extensão do largo, onde aqui e ali, junto dos velhos troncos, viam-se grandes manchas negras ou amareladas. Eram retirantes que dormiam ou que, paralisados pela fome, esperavam ali a hora do perpétuo descanso.

 

As três mulheres continuavam a fumar indiferentes ao quadro que tinham diante dos olhos. Estavam acostumadas a ele como figuras que dele se haviam destacado e que mais tarde deviam volver a ele, como que buscavam evitá-lo.

 

Uma delas, porém, dirigiu o olhar para o centro do largo, fitou-o por largo tempo e depois de levar a mão aos supercílios e dobrar de atenção no observar, disse para as companheiras:

 

- Vamos talvez ter alhada, olhem para acolá.

 

As duas mulheres, depois de repararem atentamente, murmuraram com uma expressão de assombro indefinível:

 

- É a patrulha, não?

 

- Parece-me - respondeu a primeira -, e não seria mau que nos fôssemos escapando.

 

As três levantaram-se, mas, antes que tivessem tempo para dar um passo, a patrulha saía do largo e caminhava sobre elas.

 

- Nem mais um passo - disse uma das mulheres -, sangue-frio.

 

Os três rondantes pararam junto delas e o comandante informou-se miudamente do que faziam. Depois verificou se era exata a causa dada e, pondo a mão sobre a testa de Eulália, disse para os companheiros:

 

- Esta lá está arranjada, é uma brasa. Enquanto falava, o chefe trocava com os dois companheiros de patrulha olhares significativos e cada um deles fazia minucioso exame da fisionomia das perdidas.

 

Afastando-se delas, perguntou o chefe:

 

- Que me dizem das três? Bonitinhas, não acham?

 

- Uma delas é quera.

 

- Mas nós estamos em serviço, ponderou o chefe hesitando...

 

- Maldito serviço.

 

Deram mais alguns passos e as mulheres começaram a aprontar-se para seguir.

 

Um ruído de saias veio desafiar o respeito à disciplina manifestado pela patrulha, que sem querer estacou.

 

O chefe tirou a barretina e coçou a cabeça brutalmente; depois levou as mãos às ilhargas e, olhando para os outros, que sorriam, resmungou:

 

- Vocês vêm o que é um precipício? E assim que se perde a divisa de anspeçada.

 

- Quando se é visto - ponderou um dos camaradas.

 

- E a esta hora.

 

- Sim, a esta hora não é costume passar ninguém por aqui, mas por infelicidade...

 

- Eu não tinha medo, aqui é impossível darem por isto.

 

- Deveras?

 

- O meio do largo é escuro e, se formos para lá, veremos um gato que passe por aqui e daqui ninguém nos distinguirá lá. Vêem vocês quem está deitado sob aquela árvore? Descobre-se um vulto e nada mais.

 

- Coração à larga e marchar - sorriu o chefe. Voltaram a ter com as três mulheres, que já havendo endireitado Eulália sobre os braços, principiavam a caminhar. O quadro infundiu respeito à patrulha, que acompanhou-as por algum tempo silenciosa, mas afinal a animalidade dos três instrumentos do arbítrio venceu a momentânea piedade.

 

- Oh! lá, vocês erraram de caminho, toca para a outra banda.

 

- Nós vamos para a Misericórdia...

 

- Qual Misericórdia, nem o diabo! vocês vão é deixar essa mulher ali sob uma árvore e provar que nada fizeram.

 

As três a um tempo começaram a defender-se submissamente, apelando para o exame que o chefe tinha acabado de fazer. Havia nas suas vozes o eco do temor que lhes causava a prisão e do respeito de toda a província à autoridade.

 

O chefe lançou uma olhadela de inteligência aos camaradas, para assegurar-lhes a vitória.

 

- Não sei lá dessas coisas; os doutores é que, à vista da doente, poderão dizer se vocês fizeram-lhe ou não alguma coisa.

 

- Mas o que é que nós havíamos de fazer-lhe?

 

- Diante do delegado vocês provarão que nada lhe fizeram, ou se verá o que vocês fizeram. Eu o que não quero é réplicas; caminhem para acolá! - exclamou, apontando o largo.

 

As perdidas não ousaram arriscar a mais leve desculpa e, dando vaivéns no corpo dormente de Eulália, atravessaram a rua e penetraram na parte ensombrada da praça.

 

- Bem - disse o chefe -, depois que elas se desembaraçaram da carga, acompanhem-nos.

 

Penetraram mais no escuro do largo e aí o chefe renovou as suas perguntas, porém, com uma acentuação tão diferente, que não passou desapercebida nem ao temor das perdidas.

 

A ameaça tremenda para as mulheres mudou-se em uma cordialidade extrema e daí a pouco, em vez da autoridade que julgava necessário o inquérito e as suspeitas das que lhe deviam responder, no meio do crepúsculo da praça conversavam vozes amigas e condescendentes.

 

- E nós que não tínhamos dado pela astúcia.

 

- Caluda, que pode vir alguém.

 

Correu assim mais de uma hora; afinal as mulheres quiseram retirar-se para seguir.

 

- Ora, adeus - observou o chefe da patrulha; - tanto faz que ela passe a noite aqui como na porta da Santa Casa. Amanhã hão de dar-lhe alguma volta.

 

- É verdade - disseram os camaradas; - deixem-na estar Se ela não tiver de morrer, levanta-se fina amanhã; o ar é bom remédio.

 

As perdidas concordaram, e, acendendo os cigarros, despediram-se familiarmente dos soldados, dizendo-lhes a casa em que moravam.

 

Quanto a Eulália, ainda ao amanhecer, ardia com a febre intensa que a prostrava, no mesmo lugar em que as companheiras a haviam deixado. Estava de bruços e os vestidos, arregaçados em parte pelos movimentos bruscos, deixavam-lhe ver as meias enxovalhadas e as botinas já fortemente cambadas.

 

A praça, desde madrugada, enchendo-se de vozes de homens, começou a espalhar sobre a desventurada o sussurro de um mosqueiro esfaimado. Dezenas, centenas de homens passaram junto dela; alguns pararam, formaram roda e comentaram:

 

- Isto caiu de fome; é dessas que vivem ao deus dará - disse um.

 

Um mercador de café e bolachas, o qual trazia sobre a cabeça o tabuleiro e na mão direita uma lanterna apagada, parou, e, por temor de que lhe pedissem alguma coisa, contestou a causa.

 

- Qual fome! Gente desta tem sempre o que comer, nem que seja ração de soldado...

 

- Enquanto prestam.

 

- Mas quando já não prestam, não vestem assim; vendem os luxos às conhecidas da mesma roda. Cá para mim, isto é mona grossa.

 

- Também pode ser - concordou o interlocutor.

 

O grupo dissolveu-se, sem que ao menos um dos indivíduos se houvesse abaixado para observar as feições da infeliz.

 

Pelas oito horas da manhã apareceram no largo uma dezena de guardas dos abarracamentos, que, por entre baforadas de cigarro, perguntavam se não havia algum morto na praça.

 

A mó de retirantes indicava friamente de um e de outro lado, e os urubus como os chamavam, lá iam amarrar nos compridos paus os sórdidos cadáveres.

 

Dois dos urubus pararam junto a Eulália e desenlearam as cordas com que deviam amarrá-la, mas, ao tocarem-na, sentiram-na quente e repararam então que ela respirava.

 

- Esta ainda está aprontando o mocó; demos tempo.

 

Os circunstantes intervieram logo, pensando que os urubus queriam conduzir a desgraçada.

 

- Deixem-na, esta apenas apanhou um pifão.

 

- Cozinhe à vontade - disseram os urubus, que se afastaram.

 

Desde então Eulália ficou completamente abandonada; os transeuntes não se demoravam junto dela mais do que junto de um cão, que se debatesse envenenado.

 

Toda a gente que enchia o largo ficara convencida de que ali estava uma bêbada e riam do sono pesado e da imobilidade da mísera enferma.

 

Pelas nove horas da manhã, passando uma banda de música pela rua lateral, o povo que enchia o largo correu tumultuariamente para ver o que era. Diversas pessoas tropeçaram no corpo inerte e um retirante, dando-lhe um pontapé nas coxas, exclamou enraivecido:

 

- Leve-te o diabo, besta! cais aqui para atrapalhar a gente?

 

A banda de música passou tocando uma polca de compassos alegres. Após ela ia um pequeno caixão, dentro do qual estava um corpo de criança, um anjo, vestido de branco, com grandes laços azuis; a cabeça cingida por uma capela de flores artificiais. Acompanhando uma porção de homens e meninos de calças brancas, velas de cera acesas e os rostos dilatados de alegria.

 

O povo que havia corrido, embasbacado ainda diante do esplendor do saimento, comentava-o com frases piedosas:

 

- Vai em muito boa idade; não sofre mais.

 

- Não passará o que temos passado.

 

E outros acrescentavam ingenuamente:

 

- Morre tanta gente, só os comissários não.

 

- Estão embalsamados em carne velha e farinha podre.

 

A onda de povo separou-se em duas alas e todos começaram a descobrir-se respeitosamente. As mulheres e as crianças saindo das alas, vinham para a clareira sofregamente e beijavam a mão de dois sacerdotes que passavam conversando e que nem se demoravam em olhar para elas, enquanto desses lábios de fiéis partiam súplicas em coro:

 

- Peça a Deus por nós nas suas missas, santo padre; peça inverno nas suas orações.

 

Os homens, aplaudindo a prova de respeito, davam as razões.

 

Aqueles dois padres eram os que confessavam os moribundos; um deles, o mais moço, era mesmo um santo. Passava horas e horas na Sé e quando era preciso não se enfadava de ir até os abarracamentos, coisa que nenhum outro fazia.

 

- Santo homem - exclamavam em uníssono -, não há de durar muito.

 

Os padres caminhavam sempre, sem se deterem.

 

Ao dobrar a esquina, quando já o povo não os estreitava tanto, um deles perguntou ao outro:

 

- Então, Paula, tens-te dado mal com os meus conselhos?

 

- Você é mestre.

 

- Olha que nem o bispo é capaz de ter assim tão espontâneas saudações. Estás sendo tido por santo.

 

- E, nessa fama sem proveito, eu como o osso da caridade e vocês a carne da fé.

 

- Não sejas sôfrego; eu já te disse que te arranjava a vigararia para a cidade de... Espera mais alguns dias e continua na tua obra. Aquilo dá uns 300, livres de despesa.

 

- Mas a sua porcentagem?

 

- Afora esta, talvez; a coisa é saber levar os bichos; não olham depois a preço.

 

Sumiram-se, enquanto o povo, por sua vez, recolhia-se ao largo alvoroçadamente, fitando os tabuleiros gulosamente e regateavam com os mercadores as custosas migalhas.

 

 

XVI

 

Estava marcado para este dia, uma quinta-feira, o casamento de Irena e Feitosa.

 

A noiva conservara-se fria e triste durante toda a manhã. Faltava-lhe um complemento à sua felicidade: o conchego daqueles que lhe haviam enchido de carícias os primeiros anos da infância; os conselhos austeros de seu pai e os últimos beijos de Eulália no seu rosto virgem.

 

Quanto a seu pai, ela resiguava-se; não vinha porque a morte o proibia. Mas Eulália devia viver, devia rolar envolvida na túmida vaga da desgraça, que ululava horrores pela capital.

 

Feitosa fora mais agradável a Irena se tivesse adiado as núpcias para quando encontrasse a infeliz ou obtivesse plena certeza de que ela não vivia mais. A resignação diante do impossível seria então fácil, porém, assim com a dúvida, era amarga.

 

- Tenho eu direito de ser feliz, quando a minha desventurada amiga sofre? - perguntava a si mesma.

 

E acusava-se como cansa ao erro de Eulália com o vigário. Deixara-se vencer por ele, porque viu quanto a paixão desse monstro fora a princípio veemente. Se não tivesse tido tamanha prova, talvez resistisse e acabasse por vencer-se. Mas a fatal noite da horta alucinou-a, e alucinou-a porque Eulália, expondo a própria reputação, consentia em que Augusto penetrasse furtivamente dentro da residência paterna.

 

Cerca do meio dia Augusto entrou risonho e expansivo, e sentando-se junto de Irena pegou-lhe da mão, e, retendo-a nas suas, ficou a olhá-la absorto.

 

Irena baixou os olhos tristemente corando e. exalou um longo suspiro.

 

A modesta mobília da sala, única testemunha desta cena de amor, lembrava uma criada grave, discreta, protegendo a paixão clandestina de uma nobre castelã. Havia no recinto um recolhimento pudico, um perfume de casta segurança, um venerando acento de pudor.

 

- Suspiras, Irena - balbuciou Augusto; - estás triste? Duas lágrimas preguiçosas responderam à carinhosa interpelação.

 

- Choras?! - perguntou ele admirado. - Nem ao menos hoje colocas diante das tuas tristes recordações a imagem do nosso amor? Olha, eu também perdi minha mãe, perdi amigos, e tenho entretanto risos para ti, e hoje me sinto deveras feliz.

 

- Não posso - soluçou Irena; - hoje, mais do que nunca, sinto diante de mim alevantar-se a figura de Eulália para acusar-me de ingrata.

 

- Tu, ingrata? E ela, que, sabendo talvez qual o verdadeiro autor do crime, deixou que a desonra pairasse por tanto tempo sobre a cabeça de teu pai, ela o que será?

 

- Já lhe pedi que não a acuse; demais não sabemos de nada ao certo. Quanto a mim, sinto que ela não esteja aqui, para dividir consigo um pouco da minha felicidade.

 

Calaram-se ambos por algum tempo, ambos cabisbaixo e tristonhos. Irena, porém, ao ver demudadas as feições de Augusto, sacudiu gentilmente a sua cabeleira loura e, fitando no noivo os olhos azuis de que enxugara as lágrimas, disse-lhe sorrindo:

 

- Você há de procurá-la e há de encontrá-la, não é verdade? Posso descansar em si....

 

- Juro-te, e bem sabes que não deixei de o fazer. Se não a tens hoje aqui, é que a fatalidade impediu-me o encontrá-la.

 

- Quero pedir mais um favor antes de deixar o meu luto; mas você há de prometer-me já que o fará.

 

- Pede - disse Augusto sorrindo; - estou pronto a fazê-lo.

 

- O padre Paula foi um homem perverso para conosco...

 

Augusto estremeceu, teve ímpetos de retirar a promessa antes que Irena concluísse. Mas a acentuação da voz da moça era tão suave, o seu coração sofria tanto, que Feitosa não teve coragem de interrompê-la.

 

- Ofendeu-nos nas pessoas que nós mais amávamos. Matou sua mãe, Augusto, com os barulhos da paróquia; matou meu pai pelos horrores da vida que passamos.

 

- É um monstro - exclamou Feitosa.

 

- Descarregou sobre si, Augusto, um golpe traiçoeiro, e a mim feriu duas vezes roubando a honrada minha amiga e dando causa a que eu amargasse todos os rigores da miséria.

 

- Não há castigo bastante para tal monstro.

 

- Há - assentiu convencidamente a moça - Olhe, quando corrida de susto por havê-lo encontrado, eu retrai-me com meu pai e, escondida nas capoeiras da Pimenta, vigiava dia e noite para não ser vista por si; quando depois vi meu pai lançado naquele hospital imundo onde só tínhamos a proteção do bom Estevão, acudia-me de contínuo a lembrança de Paula, cuja história Estevão havia-me contado. Não tinha coragem para refletir sobre os atos de semelhante homem; a sua perversidade entontecia-me. Proferia então contra ele uma única sentença.

 

- E qual era ela? - perguntou precipitadamente Augusto, cujas narinas tinham a dilatação da vingança e cujo olhar brilhava com um fulgor de relâmpago.

 

- O perdão! - murmurou Irena; - deixá-lo para que o remorso o tome de assalto na hora de morrer.

 

- Não é em almas semelhantes que o remorso pode doer.

 

- Não importa, Augusto; parece-me que não seríamos felizes se ao ajoelhar-mo-nos diante de Deus levássemos na consciência a mancha da vingança. Perdoa-o por mim, pelos nossos próprios tormentos. Que seria de nós se após tantos sofrimentos ficasse-me um temor pelo futuro? O perdão daquele perverso será o meu descanso.

 

Augusto Feitosa ficou silencioso. A idéia da vingança contra Paula era uma parte da sua felicidade: cedê-la era como que mutilar a sua alegria.

 

- Perdoa-o, Augusto? - perguntou timidamente Irena.

 

Augusto Feitosa fitou os seus nos olhos azuis de Irena. A profunda melancolia que lhes amortecia o brilho tornava irresistível a súplica que neles pairava. Nunca a natureza angélica de Irena se lhe pronunciara tanto. Pareceu-lhe estar diante de uma aparição sobrenatural, de uma força invencível que, de modesta, como que se envergonhava de seu próprio poder, e procurava revogar o seu direito de impor com a humildade do pedido.

 

O moço deliu todo o seu ódio naquele olhar súplice. Todo o passado desapareceu diante desse instante que o amor dilatava por todo um futuro de compensação dos terminados martírios.

 

Apesar de tantos meses de atribulação e miséria, aquele simples olhar bastara para suprimir da memória de Augusto as grandes dores que o acabrunharam.

 

As maiores angústias que o haviam torturado não tinham o amargor suficiente para deixar o mais leve ressaibo na felicidade deste momento.

 

Apertou nas suas estreitamente as mãos de Irena e proferiu dissimulando a heroicidade do sacrifício na intenção de desassombrar o espírito da moça:

 

- Tu assim o queres, seja feito. Os sofrimentos que me couberam em partilha não foram tamanhos como os teus, e tu o perdoas.

 

No semblante de Irena assomou um clarão vivo de alegria; como que aquela alma ressuscitou inteira então para o amor e para a ventura. Todavia teve ainda uma frase sentida:

 

- Como seria eu feliz se pudesse hoje ver Eulália!

 

 

 

Pelas cinco horas da tarde o préstito do casamento passava pela frente do palácio.

 

Uma banda de música militar tocava uma valsa e sentados sob as janelas da casa presidencial os músicos faziam movimentos de cabeça e trocavam-se olhares marcando o compasso.

 

Em uma das janelas laterais estava o novo presidente, fumando um charuto a espaciar as baforadas. Dois amigos, aos lados, conversavam com gestos de uma intimidade respeitosa, de inferior para superior, de uma bajulação insinuante. Descobria-se facilmente no rosto de ambos a intenção de se fazerem notar dos transeuntes, de provar-lhes que privavam com o governo no menu e no dessert, e trocavam com ele toques de taça.

 

O rosto do presidente, que de vez em quando passava a mão pela barba negra, tinha o desanuviamento da alegria, do homem que vê as coisas friamente e que tem em torno de si um coro continuo a louvá-lo.

 

Os noivos passaram acanhados e cabisbaixos, Irena pelo braço do padrinho, Feitosa de braço dado com a madrinha; alguns convidados, vestidos de preto, formavam uma linha curva em torno deles; um bando de curiosos ia-lhes no encalço.

 

- Noivado - ponderou o presidente olhando para o grupo; - ainda há quem case com um tempo destes!

 

- E tenha sonhos de felicidade - observou um dos comensais.

 

- Mal seria do homem se não houvesse a esperança -reflexionou o outro.

 

- É o melhor dom do céu - disse o presidente tomando uma baforada longa e soprando-a no ar morosamente.

 

- Os conservadores, por exemplo, morreriam de despeito se não tivessem esperança de galgar breve o governo - disse um dos comensais.

 

- Ah! o imperador é o chefe do partido e eles contam justamente com a sua proteção.

 

O presidente teve um pigarro a expectorar adrede, porém os comensais não o entenderam.

 

- Mas agora eu creio que tão cedo Sua Majestade não se atreverá a mudar a face da política.

 

- Ora não! tudo é possível hoje, e a prova é que ainda não foram dissolvidas as câmaras.

 

O presidente consertou de novo a garganta.

 

- Isto não prova nada.

 

- Prova o poder pessoal, é o que prova; está governando o partido liberal quando a representação nacional é conservadora. Mas a fraqueza dos nossos homens...

 

- Está a fazer hipóteses vãs, doutor - interveio o presidente. - As coisas são como são e não como parecem. A contradição, que o senhor vê, prova a favor de Sua Majestade. Mais do que às câmaras feitas como nós sabemos, Sua Majestade considera os reclamos da opinião pela eleição direta. Eis aí explicada a mudança. O poder pessoal é um tutu de que o ministério, eu e todos quantos trabalhamos na imprensa oposicionista nos servimos; a verdade única na política de nossa terra é que Sua Majestade só quer o bem do país. Verá; não entra um conservador para a nova câmara...

 

Os dois comensais, que se conservavam numa curva respeitosa diante de S. Exa., resfolegaram.

 

- Deus o permita - disse o doutor.

 

- Não descreia; convença-se. O doutor não parece que há de fazer grande carreira, é muito oposicionista...

 

O outro comensal teve um riso de quem aprova e se alegra por ver esmagado um competidor.

 

- Perdão - murmurou o doutor -, eu apenas repito o que dizíamos na oposição.

 

- Pois eu nem me lembro de que algum dia estivéssemos em oposição ao governo de Sua Majestade.

 

E o presidente voltando-se de todo para fora continuou a fumar.

 

A banda militar acabara de tocar a valsa. Ouviam-se agora distintamente o eco das vozerias do largo da Assembléia, o trilo dos apitos e os prolongados assovios, S. Exa. parecia deleitar-se com tudo isto, com o silêncio da banda militar, dos dois comensais e o barulho da praça.

 

De repente, havendo relanceado o olhar para o lado da igrejinha ao fundo do palácio viu por terra uma criança.

 

- Que diabo fará ali aquela criança? - perguntou S. Exa.; é um povo muito mal educado este nosso.

 

- Uma canalha, esses retirantes. Morriam de fome no tempo dos nossos adversários, hoje morrem justamente por uma razão diametralmeate oposta.

 

- Mas é preciso regularizar o serviço, cumprir as minhas instruções.

 

- Mas o que se há de fazer? Eles pedem e não se dão por satisfeitos senão quando não podem mais andar de tão empanturrados.

 

- É necessário todo o cuidado - observou o presidente soltando uma baforada; - vamos muito melhor, é verdade, mas tudo quanto se puder fazer faça-se. Eu estou contente com o que se tem feito, é bom; porém, se for possível mais, não é mau.

 

A música passou a tocar uma polca.

 

Os interlocutores puseram-se a conversar sobre fornecimentos de gêneros e a utilidade em comprá-los na província para agradar o comércio...

 

Completamente alheios a tudo quanto viam em torno de si, os noivos tinham entrado na Sé e lá recebido das mãos do vigário da capital as bênçãos, e sentiam-se tão extraordinariamente felizes que misturavam os sorrisos e as lágrimas.

 

Quando saíram da igreja em direção à casa, Augusto perguntou à noiva se estava ainda triste...

 

- Dir-se-ia que já não me amavas esta manhã.

 

- Eu? - perguntou ela; e depois, abaixando muito a voz.

 

- Já disse que desejava ver hoje Eulália entre nós.

 

Voltaram pela praça da Assembléia, porque na superstição popular não devem os noivos voltar pelo caminho que foram ao templo; é sempre um agouro.

 

Logo que penetraram na praça, como que um véu correu-se sobre as fisionomias dos noivos. Custavam a caminhar, porque de toda a parte os assaltavam pedidos importunos de esmola. Afinal foram constrangidos a parar.

 

Um grande ajuntamento impedia o trânsito e, ao contrário do que se dava sempre que havia reunião de retirantes, mantinha-se um grande silêncio entre o grupo. O padrinho tomou a frente dos noivos para abrir-lhes passagem, mas quando atravessando o círculo de povo chegou ao centro, voltou de chofre para impedir que os noivos se adiantassem.

 

- Acho melhor tomarmos outro caminho - disse ele.

 

- Não - disseram, já agora vamos por aqui...

 

- Mas é que aí está um cadáver...

 

- Não faz mal, passemos.

 

Deram alguns passos. Dois homens haviam já amarrado os braços e pernas de um cadáver de mulher em torno de um pau e agora apertavam-lhe também o corpo. O vestuário da mulher, porém, não era o de uma retirante e por isso mesmo chamava a atenção.

 

Feitosa desembocara da ala mesmo em frente ao cadáver e não pôde furtar-se a lançar-lhe um olhar furtivo. Teve então um calafrio violento e tornou a olhar.

 

- É um sonho, por força - bradou ele; Eulália!

 

Irena precipitou-se sobre o cadáver e ajoelhando segurou-lhe com as mãos no rosto empastado de areia. Quis falar, mas a voz embargou-se-lhe na garganta e a infeliz caiu sem sentidos nos braços de Augusto.

 

Era de feito o cadáver de Eulália, que havia morrido abandonada no largo a alguns passos do palácio do governo e aos sons da música que todas as quintas e domingos ia acompanhar a digestão da presidência. A desventurada comparecia desta sorte aos esponsais de Irena.

 

Quando, em casa de Augusto Feitosa, despiram o cadáver, encontraram-lhe amarrado à cintura um canivete-punhal.

 

Feitosa abriu-o e viu na folha mordida pela ferrugem as iniciais de Paula. Tornou a fechá-lo, deitou-o no caixão de Eulália e na tarde seguinte a terra guardava para sempre todas as provas do crime do vigário Paula.

 

 

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As folhas públicas desse dia traziam logo em seguida à cena dada na volta do préstito do casamento de Feitosa uma longa local em que se noticiava a nomeação do vigário Paula para a cidade de... e a local concluía assim:

 

"A cidade de... recebe no seu novo vigário um digno apóstolo da religião do Calvário. Prouvera a Deus que sempre a nossa fé tivesse como órgãos homens iguais: a moralidade e a caridade reinariam eternamente sobre o mundo."