OS RETIRANTES
A CAPITAL
A cidade da Fortaleza está situada à beira do
mar, sobre um extenso cômoro de ondulações tão suaves, que se disfarçam numa
vasta planície.
As suas ruas se cruzam com a regularidade das
carreiras de uma tábua de xadrez, e de quando em quando vão desembocar em praças
espaçosas, elegantemente arborizadas por longas filas de árvores gigantescas.
As casas, edificadas quase todas por um só
modelo, térreas, com largas janelas muito rasgadas, portas muito altas, as
frentes pintadas por um verniz especial, dão-lhes uma singela monotonia, que
torna aprazíveis e bonitas as ruas calçadas sem arte e algumas vezes deformadas
por altas soleiras e passeios não nivelados.
Do denso da casaria ergue-se a catedral da
província; as duas torres caleadas sobressaem à cobertura da nave, como dois
braços perpendicularmente erguidos. Está colocada ao lado de uma praça, onde
termina uma rua que por outra extremidade desemboca em uma grande área
despovoada nas três faces, em uma das quais, em frente à rua, está o cemitério.
Na face norte de uma das faces desta praça, a
oeste da cidade, ergue-se o grande prédio da estação, neste tempo ainda não
acabado.
Eulália esperou aí durante longas horas o
aparecimento de sua família. Fora vista por Chiquinha, e contava que d. Ana,
sabendo da sua chegada à capital, viesse procurá-la.
- Elas virão - pensava ela. - Devem logo ver
que eu não sairei da estação sem que elas cheguem. Daqui até lá é boa
distância, e é por isso que se demoram.
Para atenuar o tédio da espera, Eulália
reparava no que se passava em torno.
Desse lugar, onde cemitério e o abarracamento
de crautá, composto de cabanas esparsas, falavam de morte e de miséria,
entrevia-se o quadro medonho das conseqüências da seca.
Quando o trem chegara, e depois quando
partira, Eulália avaliou por alto a quantidade de retirantes que existia na
cidade. Mais de 2 mil pessoas entraram e cercaram a estação e dessas mais de
quinhentas disputavam entre si o carreto das cargas do pequeno número de
passageiros que havia chegado no trem.
Na maneira por que o faziam, no baixo preço
que pediam, via-se claramente que era a extrema penúria que os aconselhava.
Isto ainda mais se evidenciava com a presença
de um crescido número de mulheres e de crianças, que sobressaíam na multidão.
As crianças estavam quase todas nuas, e as suas faces escaveiradas, as barrigas
monstros, as pernas muito finas revelavam que a estada na capital não lhes
havia melhorado a sorte. As mulheres estavam em tão completo estado de miséria,
que algumas delas mal podiam guardar a compostura e defender o pudor.
Agora, que todos tinham se retirado da
estação, novos espetáculos tinham vindo desenrolar-se ante seus olhos.
Na rua que atravessava a praça, a alguma
distância da estação, não cessavam de passar indivíduos conduzindo redes na
direção do cemitério.
- Muita gente morre por aqui - pensou Eulália.
– É medonho isto.
Entretanto o movimento contínuo, tão diverso
do que se dava em B. V., quieta, preguiçosa, só se reunindo para as
festas, causava-lhe prazer, e como que a sepultava ainda mais na
semi-inconsciência em que a deixara a dor da grande decepção que experimentara.
Só à tardinha resolveu-se a ir procurar com
quem se entender para que obtivesse casa e fixasse morada até que se entendesse
com a sua família ou encontrasse Irena e seu pai.
- Não vieram - dizia entre si, pensando na
família por minha causa. Egoísta que eu sou, devia ter ido ter com elas e
esperei que fossem elas que viessem. Amanhã, porém, resolveremos.
Caminhou até a rua por onde, ao longe, via,
sem intervalo de cinco minutos, passarem redes umas após outras, e aí quase que
deu em terra. Um quadro medonho lhe saíra ao encontro.
Amarrados pelos artelhos, pelo ventre e pela
nuca, espichavam-se dois cadáveres ao longo de um caibro. Iam, demais disso,
completamente nus e estavam cobertos de pastas de imundícia. Os homens que os
conduziam, muito andrajosos conversavam indiferentes, fumando.
- Quantas caminhadas nos faltarão ainda?
- Temos dado nove; para dez falta ainda uma.
- É o diabo; é um serviço que eu não gosto de
fazer de noite; prefiro limpar canavial com sol quente.
- A verdade é que é um pedacinho daqui à
Pimenta e, com o sol, só à força de muita necessidade é que me faz trabalhar.
- Homem, agora ainda é pior para romper estas
ruas; os diabos estão com fome canina, e só com um terror de força a gente faz
com que eles abram caminho.
Eulália cambaleou ao ver o medonho quadro, e
só com grande esforço pôde conservar-se de pé.
A desilusão que experimentava era tão pungente
que excedia incomensuravelmente a extensão das suas perdidas esperanças. Julgou
que estava sonhando, porque só um sonho poderia fazê-la ver um espetáculo tão
vergonhoso no lugar em que o governo da província residia.
"Ai! quanto havemos de sofrer!" -
pensou Eulália. -"Só imensos padecimentos na vida explicam tamanho
desrespeito à morte."
A grosseria dos dois carregadores de cadáveres
não a impediu de perguntar-lhes onde moravam os comissários.
- Por aí; entre por esta rua a fora, vá em
frente sempre, mas olhando para a mão direita. Quando vir povaréu em qualquer
lugar, abique.
- E como hei de saber qual é o comissário?
- Perguntando; quem tem boca vai a Roma.
Não era prudente dirigir mais uma pergunta, e
Eulália, compreendendo-o, afastou-se agradecendo.
À medida que ia se aproximando da face da
praça reparava no movimento extraordinário de povo que nela havia. Dir-se-ia
que se passava naquela hora um acontecimento extraordinário que agitava a
cidade inteira. A rua que desembocava em frente, estava quase cheia de homens
que desfilavam a toda carreira, e de mulheres que, carregando no braço uma
criança, puxavam outras pela mão.
Quando afinal pôde entrar na rua e ver de
perto o enorme concurso, entristeceu-se ainda mais, se é possível, do que ao
chegar à estação e ao ver o saimento dos retirantes. Grande parte das mulheres
e dos homens recatava-se apenas por meio de um saco de linhagem amarrado à
cintura e tinha o resto do corpo completamente nu.
Homens, que pelos seus trajos mostravam que
habitavam na cidade, postados na calçada, a fumar e a gargalhar, dirigiam
graçolas às mocinhas que passavam, e divertiam-se em levar desatenciosamente a
mão aos corpos destas e das mulheres seminuas.
- Olhe, aqui estão dez tostões, uma fortuna;
valem mais do que dez rações de carne velha - diziam eles. - Se querem, não
façam cerimônia.
E algumas das mulheres os repeliam, porém
outras, cedendo prontamente à solicitação, paravam a pequena distância, à
espera de que o oferecimento fosse repetido, para que o aceitassem.
Eulália sentia que a sufocavam no meio daquele
ambiente, que lhe arrancavam o coração e o espezinhavam.
Que sorte lhe esperava no meio de tanta
depravação e de tanta crueldade? E suas irmãs, e sua tia, e Irena? Teriam elas
coragem para lutar, para arcar com a miséria e afrontar resignadamente a morte?
A verdade era que a cena excedia a tudo quanto
a imaginação podia cogitar de mais degradante; e, o que era pior, a alma dos
desgraçados, aclimando-se naquele meio corruptor, afazia-se a ele, e como que
não se doía de ver-se contaminar por ele.
A própria Eulália, depois da primeira
impressão, vendo repetido o mesmo procedimento em toda rua, começou a
tolerá-lo, ainda que ela também fosse alvo dele; e só se impressionou de novo
vivamente à esquina da rua da Palma, onde a multidão se adensara de modo a impedir-lhe
a passagem.
Realizava-se aí uma das mais tristes e
inacreditáveis cenas da seca, a distribuição dos socorros.
O novo presidente, empossado da administração,
encontrou a província entregue à improbidade. Entre o retirante e o Estado
havia um sorvedouro - as comissões de socorros.
Cresciam de par as despesas, a mortalidade e a
penúria, porque indivíduos desnaturados, abusando da boa fé do ex-presidente,
aproveitavam-se da miséria do torrão natal para enriquecer.
O retirante desolado murmurava a sua frase
irônica:
- A seca tem sido inverno para muita gente.
Tomada de indignação, a autoridade
administrativa, que não podia avaliar precisamente as circunstâncias da
província, desfechou nos ímprobos um golpe certeiro: a suspensão da remessa dos
socorros. Infelizmente o golpe feriu mais fundo do que o honrado administrador
desejava: traspassando as comissões, encontrou no fio a massa dos retirantes
alevantada até ele por vingança da improbidade. Todas as comissões extintas
impeliram para a capital a população adventícia das suas localidades e, dentro
em alguns dias, a cidade via-se inundada por mais de 100 mil famintos e
maltrapilhos.
Entrou com eles a confusão. Para acomodar essa
enorme quantidade de homens, não havia senão um pequeno número de abarracamentos,
e estes, já antes do imenso acréscimo de população, estavam completamente
cheios.
Todos os vãos aproveitáveis em diversos
edifícios foram logo convertidos em hospedarias, mas ainda assim nem a cima
parte da aluvião pôde ser alojada. Mais de nove partes ficaram ao relento,
tendo por único teto a copa meio desfolhada das árvores das praças.
A distribuição dos socorros, em tais
condições, era de uma iniquidade compungente e inevitável. Por maior que fosse
o esforço do velho presidente, que, em pessoa, percorria as praças e assistia
muitas vezes às distribuições, era impossível impedir que milhares de pessoas
ficassem privadas de socorros.
O que era ainda mais para lamentar era que o
maior peso da iniqüidade caía sobre os fracos: as famílias das viúvas e os
pequenitos a quem a epidemia e a fome deixavam ao desamparo.
Uma distribuição foi a cena que Eulália
presenciou ao chegar à esquina da rua da Palma.
O povo apinhado sussurrava como um enxame de
varejas sobre um animal putrefato, e a especulação, postada em cada esquina,
explorava-lhe a miséria.
Era o mercado da fome.
Os retirantes que haviam recebido as suas
rações iam trocar grandes pedaços de carne por um punhado de farinha, ou por
uma xícara de arroz. As crianças, esfaimadas e nuas, tentando romper a
aglomeração compacta, eram maltratadas e atropeladas; as mulheres, não podendo
caminhar, choravam e maldiziam. Do meio desse pandemônio de lágrimas, de
maldições, de ais doridos, sobressaíam de quando em quando gargalhadas
estentóreas, assovios e gritos perseguindo ladrões.
Mas o que principalmente chamou a atenção de
Eulália foi um grupo de indivíduos, que, pelos seus trajos, mostrava não ter
sido vítima da calamidade.
Protegidos pelo crepúsculo e pela confusão que
reinava entre o povo, esses homens divertiam-se em insultar a desgraça das
famílias, oferecendo-lhes pão em troca do sacrifício da honestidade.
Tentando em vão continuar o caminho e
lembrando-se da indicação dos homens, que encontrara carregando cadáveres,
Eulália parou a olhar estupefata.
Uma mulher passava, levando nos braços uma
criança.
- Pode me dizer onde moram os comissários? -
perguntou Eulália. - Chego hoje e não conheço ninguém nesta cidade.
- Há 15 dias que aqui estou - respondeu a
infeliz - e ainda não pude falar a um deles. É uma desgraça; vou a todos os
pontos em que se dão esmola e nunca posso chegar a falar com os homens. Já
tenho visto morrer dois filhos e este, veja!
A mulher levantou a cabeça da criancinha
pendida sobre o seu ombro. Fazia chorar aquele indescritível semblante. Com os
dedos metidos na boca, a mísera já sem forças tinha um olhar estagnado, que
parecia a cristalização de uma súplica. Os ossos do rosto, muito salientes,
faziam-na parecer uma caveira coberta por uma pele seca..
- Que doença tem ela? - perguntou Eulália,
comovida.
- A mesma que matou os irmãos; a doença dos
retirantes: fome! - soluçou a desventurada mãe.
Eulália, aturdida pela honrosa declaração,
uniu as suas às lágrimas da mulher e levando a mão ao bolso:
- Eu também sou muito pobre, mas não deixarei
morrer seu filho à míngua. Como eu, encontrará muitos que a socorram; tenha
coragem, peça.
- Tenho pedido, minha senhora. Vê aquelas
casas? Estão todas fechadas, e assim ficam sempre que para elas se dirige uma
de nós. Deus a conserve, minha senhora, adeus!
As palavras da infeliz chamaram ainda mais a
atenção de Eulália para a tremenda realidade que a cercava e se impunha aos
seus olhares. Entretanto tamanha desgraça como que atenuava a sua e foi com um
sobressalto que ouviu a despedida da mulher.
- A senhora não me conhece - exclamou Eulália
-, mas pode avaliar que eu não sou uma perversa. Consente que fique por esta
noite na sua casa?
A mulher sorriu tristemente e, meneando a
cabeça, disse com uma entoação irônica:
- Na minha casa podem ficar todos: estamos
nela agora, rua.
"É medonho, meu Deus, é incrível: o que
terá sido feito de Irena, e que destino espera as minhas pobres irmãs?" -
pensou Eulália. - Eu endoideço.
- Se quer vir comigo, terá um lugar junto a
mim no lugar onde durmo. Terá ao menos uma amiga junto a si. Olhe, é ali.
O dedo da retirante assinalou a catedral, cujo
corpo enorme se alevantava em frente, na extremidade da rua.
- Vê aquela igreja? Tem uma praça em frente; e
daí vai uma rua para o mar, na qual está o quartel. Foi ali que eu pude
arranjar meios para dar alguns dias comida aos meus filhos. Tomei amizade
àquele lugar; é infame, mas sou mãe.
- Não; eu ficarei aqui mesmo.
A mulher retirou-se e Eulália acompanhou-a com
a vista até que ela perdeu-se no meio da multidão.
- Desgraçada; quanta amargura nas suas
palavras. E eu?!...
A interrogação como que lhe arrebatou os
sentidos. Afigurou-lhe que o solo balançava, e as casas, inclinando-se e
agitando-se com ele, iam bater umas de encontro às outras. A multidão começou a
girar com a rapidez de um corrupio e fundir-se num único corpo, descarnado, nu,
coroado por centenas de cabeças e ouriçado de milhares de braços.
Chamou em vão pela sua coragem, pelo seu
sangue-frio. Não os tinha mais: as pernas fraquearam-lhe, enturvaram-se-lhe os
olhos e, cambaleando, foi cair junto a uma das faces da rua.
- Estou perdida - exclamava ela dentro em si
-, morro. Uma injúria pungentíssima, veio acabar de turbar-lhe inteiramente a
razão e deprimir-lhe as forças. Um dos indivíduos do grupo que tanto
impressionara Eulália, veio parar junto dela e, dando-lhe com a ponta da botina
no quadril, exclamou:
- Olhem este diabo: está completamente bêbada.
Chiquinha,
vendo a irmã no vagão, sentiu sublevar-se dentro em si a saudade, mas deliberara
calar-se para não desgostar d. Ana, que se entristecia sempre que ouvia o
simples nome de Eulália.
Muitas vezes a velha senhora tinha dito à
caçula, de modo que impressionava às outras irmãs:
- Não fale nela, minha filhinha; não devemos
estar a dizer sempre o nome dos mortos, porque fazemos com que eles penem mais.
A impressão de Chiquinha, porém, não podia no
momento estreitar-se na deferência; precisava expandir-se, espanujar-se
livremente, e a moça, chegando arquejante de uma longa corrida, exclamou a rir
e a enxugar lágrimas:
- Sabem? Acabei de ver Eulália, de dizer-lhe
adeus.
- Onde? - perguntaram todos, deixando-se
arrastar pelo sentimento de Chiquinha.
- Na estrada de ferro; ia num carro para a
cidade.
Houve um silêncio longo depois destas
palavras, porque a fisionomia de d. Ana tinha feito uma rápida mudança.
Foi a velha senhora quem reatou a conversa.
- E por que não vem ela ter conosco?
Chiquinha expôs o incidente e demorou-se em
justificar sua irmã aos olhos da tia. Não foi porque as desprezasse que não
desceu; no momento em que se viram, o trem partia, e ainda assim Eulália quis
descer.
- Então ela voltará a ter conosco - murmurou
d. Ana; - antes da noite estaremos consigo, porque o trem volta de tarde.
- É exato; ela virá.
Absorta nesta esperança, a família como que
olvidou o estado de penúria em que se achava. Só depois de algum tempo a caçula
chamou-as à triste realidade, lembrando que tinha fome.
- Não pude conseguir coisa alguma; nem um
vintém -ponderou Chiquinha. - Estava um mundo junto do trem; não pude chegar
muito perto.
- Nós - acrescentou d. Ana - também nada
conseguimos. Vamos correr as ruas; talvez tenham pena de nós.
A família, que estava reunida na estação,
caminhou para o interior da linda povoação. Cada passo, porém, assinalava-lhes
uma desilusão.
Havia dois dias que ali chegara, e no entanto
não tinha encontrado um abrigo, a não ser um canto no abarracamento para
suspenderem as redes. Foram debalde à comissão. Um dos empregados limitou-se a
achar muito lindas as três mocinhas.
- Que flores ! São suas filhas? - disse ele. -
Deixe estar que não lhes faltará nada. Venha amanhã; o comissário as atenderá.
O oferecimento, porém, longe de desvanecer a
infeliz senhora, fizera-a estremecer e amedrontar-se, e no dia seguinte d. Ana,
dirigindo-se à comissão, cometeu a imprudência de ir só.
O empregado reconheceu-a logo e, com um tom de
familiaridade ofensiva, sorriu para a honrada senhora.
- Então vem só? Por que deixou as meninas? Fez
mal; é preciso mostrá-las, senhora; tem nas mãos uma fortuna.
D. Ana respondeu a esta série de amabilidades
grosseiras por uma pergunta seca:
- Poderei hoje falar ao comissário?
- Não esta aí agora, mas é o mesmo. Deixe-me
ficar o seu nome e o das meninas.
D. Ana obedeceu quase a chorar de vergonha.
- Ora bem - ajuntou o empregado -, dentro de
uma hora mande cá uma das meninas para que seja socorrida. Agora não posso
dar-lhe nada; estou só, e, se vou dar-lhe alguma coisa, invadem-me isto. Dentro
em uma hora mande hein? Será servida.
Indignada pela aviltante intenção que o
empregado deixava transparecer nas suas palavras, d. Ana resolveu logo abrir
mão dos socorros que pudesse obter.
O próprio empregado incumbiu-se de dar maior
base à sua resolução. Quando d. Ana já ia saindo, ponderou-lhe ele:
- Escute; por que não deixa aqui o lugar onde
está morando? Fica mais fácil, e demais a gente precisa de ir por lá ver as
senhoras.
- Estou mesmo no abarracamento - respondeu d.
Ana, e consigo acrescentou: - mas não estarei lá nem mais um quarto de hora.
De volta, ocupou-se logo em fazer a sua
mudança de forasteira, para que não se visse nas condições em que já uma vez se
achara. Mundica ensinara-lhe qual era o grau de prepotência dos comissários e a
lição não tinha sido esquecida.
As circunstâncias da família eram portanto
extremamente precárias, e a vinda de Eulália, que, pela aparência, podia
modificá-las, devia alegrá-la.
Depois de correr a povoação, não tendo obtido
mais do que o necessário para comprar uma bolacha para a mísera criança, a
família Queiroz volveu de novo à estação, onde já começavam a reunir-se os
esfaimados retirantes.
A honestidade, posta em feira, aleiloava-se
ali como em todas as cidades do Ceará, e a depravação passeava sobranceira e
ovante através da fome alucinada e cobarde.
A família inteira aconchegada, como que para
defender-se do contágio da epidemia geral, esperava ansiosa, estranhando a
lentidão do tempo.
De repente o silvo da locomotiva, quebrando o
profundo silêncio em que se mergulhava a vasta extensão circunvizinha, lançou o
alvoroço no meio da sussurrante massa que cercava a estação. De todos os lados
do povoado correram mulheres e crianças precipitadamente, como se foram ao
encontro de um remédio infalível para a sua desgraça.
A família Queiroz, colocada no meio dos
trilhos, concertava o plano para que pudessem logo ser vistas por Eulália.
Quando o comboio parou e o alvoroço cresceu,
as infelizes acercaram-se dos vagões a espioná-los atentamente.
- Não a vejo - ponderava d. Ana; -
perdê-la-emos ainda de vista.
- Parece que não veio - advertiu Chiquinha; -
se estivesse no trem, meu coração adivinhá-lo-ia.
O tempo de demora corria rápido, de um modo
inqualificável. Já a sineta havia dado o sinal da partida e a locomotiva
soltara um rouco bufo. Os chefes de trem trancavam as portinholas.
Chiquinha, perdendo a cabeça com a desilusão
iminente, não hesitou mais, e, esquecendo-se da sua triste posição de
retirante, ousou por o pé no estribo de um dos vagões.
- Para fora, estupor! - bradou o chefe do trem.
- Vai-te para o diabo.
- É um instante só, meu senhor, para ver se a
minha irmã veio.
- Safa-te; vamos.
- Não demoro, saio já, se ela não estiver; não
custa nada...
A infeliz não teve tempo de completar a frase.
O homem desnaturado, franzindo o sobrolho e levando aos lábios o apito, disse
com uma acentuação de enfadado:
- Vejam o diabo como tenta; onde está o homem
está o perigo: para fora, peste!...
As mãos do brutal empregado, acompanhando a
rudeza das suas palavras, empurraram a pobre Chiquinha, que foi cair longe.
Um grito consternado rompeu do seio
da infeliz, enquanto a maioria dos passageiros ria e a mó dos retirantes
aplaudia com palmas a ação do miserável, que, de pé na plataforma do vagão, se
movia rapidamente e agradecia tirando o boné.
Talvez instigada pelos cumprimentos, a mó
impiedosa não se contentou com as chufas e com a assuada. Ao ver a pobre moça
por terra, um rapazinho atirou-lhe um punhado de areia e os outros o imitaram.
Para logo passarem deste desacato aos empurrões, e foi com grande dificuldade
que a desditosa Chiquinha pôde caminhar, sempre perseguida pelos apupos.
D. Ana, que não tinha visto o incidente,
esperava já a sobrinha no ponto combinado para o encontro: a face lateral da
estação; e quando a viu assim perseguida, correu ao seu encontro enraivecida
como leoa faminta. Mas a sua cólera impotente sopitou-se de pronto para dar
lugar à humildade, e à defesa limitou-se a estreitar nos braços a moça
desvairada pela afronta.
- Eulália? - perguntou d. Ana. Não a pôde ver, minha filha?
- Não veio - soluçou Chiquinha; - e é por ela
que sofro.
A assuada, que se havia amortecido um pouco,
recresceu diante do quadro das infelizes que choravam abraçadas.
Ninguém é mais intolerante para com a desgraça
do que um desgraçado. Os mendigos disputam-se até o último desforço a migalha
que lhes afiram; não respeitam as lágrimas, não lhes reconhecem a majestade,
porque estas lá se tomam sedição nos seus olhos.
- Olhem, a pequenota estava industriada pela
velha. Eh! Cabras de força ...
- Não pegaram as bichas; toca a choramingar
agora.
- Queriam lapear alguma coisa, mas não
puderam.
- Fora, fora!
À medida que aumentava a grita, formava-se um
círculo em torno de d. Ana e suas sobrinhas, e a garotada colocava-se de modo a
empurrar as retirantes com a sofreguidão do jogo da peteca.
- Que mal lhes fizemos? - soluçou d. Ana. - A
menina ia ver se a irmã tinha vindo no trem.
- Cala, cabra velha; fora!
Um homem rompeu sem dificuldade a grande
massa, no meio da qual sacudia com violência um pau e impunha silêncio aos
rapazolas mais exaltados. Era o empregado com quem d. Ana havia falado no
abarracamento, e que vinha providencialmente ao seu encontro.
- Arreda para longe, canalha! - bradou ele,
logo que se achou no meio do círculo. - Caluda! ou não terão esmola por dois
dias.
A intimação peremptória produziu o efeito
desejado, apesar de alguns protestos covardes, que mal podiam ser ouvidos.
Desde que se viu só com d. Ana, o empregado,
esforçando-se por fingir condolência pelo desacato sofrido pelas infelizes,
ponderou:
- A senhora é a única culpada do que acontece;
não lhe disse eu que mandasse uma de suas meninas ao abarracamento? Porque não
o fez? Para que há de se expor à perversidade dos brutos?
Semelhante compaixão insultava a velha senhora
ainda mais pungentemente do que a assuada; mas a melindrosa situação inspirou à
infeliz a prudência necessária para disfarçar a repulsa numa desculpa.
- Esperávamos no trem de hoje uma pessoa, que
devia chegar do Ceará. Hoje mesmo partimos para lá.
- E quem é essa pessoa? Pode dizer quem é?
- Uma parenta nossa.
- Rica?
- Nós somos todos muito pobres.
O empregado deixou cair a máscara ao ouvir
estas palavras; a hediondez da sua intenção esbateu-se na torpeza das suas
palavras, e d. Ana, para evitar novo desgosto, disfarçou a impressão dolorosa
que lhe causara ouvi-las.
- Venha comigo; eu lhe afianço que nada lhes
faltará -exclamou ele por fim.
D. Ana prometeu fazer a vontade ao miserável,
meio único para conseguir que ele se afastasse. Quando se viu só, porém, e
percebeu no olhar de Chiquinha uma condenação ao que lhe acabava de ouvir:
- Infame! - resmoncou d. Ana. - Eis o que é a
piedade deles.
- Oh! minha boa tia - exclamou Chiquinha -,
perdoe-me a injustiça que lhe fiz. Tenha sempre coragem que Deus nos há de
defender. Eulália está no Ceará, e nós reunidas poderemos ali trabalhar para
viver.
- É exato, minha filha, poderemos viver
honestas, mas para isto é preciso que todos que conosco vivam sejam honestos.
- E seremos; Eulália tem um coração generoso.
- Teve um coração generoso - murmurou d. Ana;
- mas que respeito merecemos nós àqueles que souberem do erro de Eulália? Eu
não consentirei que ela venha morar conosco; quase o tolerei num momento de
fraqueza, mas felizmente a sua ingratidão salvou-nos desta vergonha.
- Perdoe-lhe, minha tia; ela talvez pensasse
que nós fôssemos ao seu encontro.
- Pensou, decerto; nós as mais infelizes,
tanto maior razão para não a querer conosco.
- Mas é cruel demais; ela não merece este
castigo.
- É verdade, eu sou quem o merece talvez,
Chiquinha; ainda agora acabei de ouvir oferecimento e, tendo fome, não o quis
aceitar. Eu sou quem merece castigo.
Chiquinha respondeu com os soluços e as
lágrimas à injustiça que a exaltação de d. Ana acabava de fazer-lhe, e apenas
murmurou:
- Eu estou pronta para fazer o que me disser.
Não é possível descrever a grandeza de
sentimentos, que neste instante se puseram em jogo no coração das duas
mulheres, que não trocaram entre si mais que uma única frase:
- É preciso sair daqui hoje mesmo.
A noite já as veio encontrar longe de
Arronches e nas circunvizinhanças da capital. Fazia um luar tropical, sereno
como o desdém da natureza pelo orgulho do homem. Na intensa claridade destacava
a massa seminua de grandes cajueiros, próximo aos quais ardiam fogueiras,
deixando ver sórdidas redes suspensas sob a copa das árvores.
A estrada silenciosa, coleando pelas
ondulações suaves do terreno, parecia a traça de um labirinto, ou melhor, o
vestígio das indecisões, das incertezas que tumultuavam na alma das
caminhantes.
A pouco e pouco o deserto como que se foi
animando; as árvores como que se transformaram em habitações, e a família
Queiroz percebeu que começava a pisar o solo da cidade.
Os grupos de retirantes abrigados sob as árvores
aumentaram; já não era de distância em distância, sob os cajueiros Só, que se
viam: estavam debaixo de todas as árvores, numa promiscuidade brutal.
- Quem sabe se não seria melhor ficarmos por
aqui mesmo? - ponderou Chiquinha.
- Não; devemos entrar na cidade desde já;
amanhã sofreremos menor impressão.
Caminharam até próximo da estação, onde
resolveram pernoitar, porque Chiquinha pensava que na manhã seguinte Eulália
viria aí encontrá-las.
- Se amanhã Eulália nos vier encontrar aqui, o
que lhe dirá vosmecê, minha tia?
- Nada - respondeu d. Ana; - eu não tenho
coisa alguma a dizer-lhe.
- Não a consentirá conosco?
- Não tenho direito sobre vocês; não é a mim
que deve pesar mais a ingratidão.
A grosseria pela qual foi acompanhada Eulália
na sua queda provocara a princípio ditos canalhas, mas não ecoou por muito
tempo nos corações.
O corpo inerte, o olhar estatelado, as feições
demudadas da moça, e principalmente a lividez mortuária que mascarou-lhe o
semblante impuseram respeito.
- Parece que ela foi-se; para ser bebedeira é
muito forte.
- Talvez seja algum mal de estupor ou ataque
de cabeça.
- Se não a acudirem já, vai-se para ai à
míngua como um cão.
A piedade substitui a indiferença e alguns dos
circunstantes inclinaram-se sobre a mísera retirante.
- Não há dúvida; é mandar vir a rede e
mandá-la para o cemitério; esta já não sofre mais.
A convicção geral foi de que Eulália havia
morrido, e os mercadores ignóbeis da honra das famílias retirantes,
impressionados e corridos pelo sucesso inesperado, começaram a retirar-se,
fingindo uma impassibilidade que era desmentida pelo seu próprio semblante.
- Já está fria como gelo - disse um deles que
pusera a mão sabre a testa de Eulália; - morta e bem morta.
A onda popular, como que afastada por mão
invisível, recuou a pouco e pouco de junto de Eulália e voltou-lhe as costas
para não vê-la mais. O aspecto da morte desanimava-a, porque era uma antevisão
da sorte que a esperava dentro em alguns dias.
Toda a atenção voltou-se exclusivamente para a
distribuição dos socorros; todo o esforço tendeu a ganhar distância a fim de se
aproximarem dos empregados da comissão.
De repente uma grita atordoante ergueu-se na
rua transversal a pequena distância do lugar onde Eulália havia caído.
- Nós temos fome; morremos à fome; salve-nos.
As vozes que assim clamavam eram pela mor
parte de mulheres, e estas imprudentemente cercavam um homem de estatura média,
magro, grisalho, vestido de sobrecasaca preta, e que fazia gestos acariciadores
para todos os lados. Dois soldados, que o acompanhavam, resmungavam entre
dentes:
- É preciso ter muita paciência para aturar
esta ralé; fedem como animal podre.
- Bem, meus amigos, tenham paciência, isto vai
melhorar muito; não hão de ter mais razões para queixas, eu lhes prometo.
- Mas veja vosmecê esta criança, meu senhor;
está quase morta! Ah! Sr. presidente, vosmecê não sabe o que é a fome...
O homem, a quem todos se dirigiam e que era de
feito o presidente da província, respondia com bonomia prometendo remediar
tudo.
- Olhe, Vossa Mercê, veja: nós não estamos
mentindo, Aqui mesmo caiu, não há nem uma hora, uma rapariga.
Pelo grito, parece que o que ela tem é fome.
Está ali, veja. O presidente caminhou apressadamente até junto da infeliz e,
com um arrebatamento filho da comiseração, tomou um dos pulsos.
- É exato; está quase a morrer, tem o pulso
fraquíssimo.
- Como esta - ponderava o povo -, têm morrido
dúzias e dúzias de pessoas.
- Eu mesma que estou aqui - acrescentava uma
mulher - não tardo muito, se Vossa Mercê não vem em socorro da gente.
- Esta moça estava aqui sozinha?
- Parece...
- Não tem nenhum parente aqui, nem marido, nem
qualquer pessoa que se interesse por si?
Ninguém respondeu ao apelo feito pela
autoridade suprema da província.
- Chame aí dois homens - disse ele
dirigindo-se a um dos soldados - e conduzam esta moça para a Santa Casa da
Misericórdia; digam que vão da minha parte.
A especulação inspirada pela desgraça começou
logo a fazer concorrência à desacordada Eulália. Várias mulheres, simulando desfalecimentos,
caíram redondamente por terra, para ver se lhes era dado o mesmo destino.
O presidente, sorrindo com a sua triste
experiência de iguais cenas, esperou até que Eulália fosse colocada nos braços
de dois retirantes.
O honrado velho e a mísera moça seguiram
direções opostas e, ao passo que o primeiro, subindo a rua, era importunado
pela multidão, Eulália dentro em alguns minutos era entregue às Irmãs de
Caridade no edifício da Misericórdia.
Uma febre violenta, que dava à pele uma secura
de areal e ao mesmo tempo uma temperatura incomodativa, sucedera ao espasmo que
a havia gelado.
- É uma retirante que o sr. presidente
encontrou caída na rua; pede toda a atenção para ela.
A recomendação do camarada era inútil. As
poucas irmãs, que faziam o serviço do hospital, eram verdadeiras sacerdotisas
da caridade. Acostumadas à triste existência do recolhimento, como que os
enfermos eram as suas únicas afeições. Tinham por eles cuidados maternais, e
pensavam-nos com uma paciência evangélica.
Também como que a natureza se esforçava em
compensar-lhes a dedicação e a humanidade: a mortalidade ficava numa
desproporção extraordinária com o número dos enfermos.
Transportada para a enfermaria, Eulália
conservou-se durante longas horas desacordada, e o médico, examinando-a, deu-a
como um caso perdido.
A febre, ressequindo-lhe os lábios e
escancarando-lhe de vez em quando os olhos, punha-lhe no corpo um tremor
convulsivo, ao mesmo tempo que a fazia de espaço a espaço pronunciar frases
soltas e algumas vezes de um sentido ininteligível para a irmã que velava à sua
cabeceira:
- Adeus, adeus, não envergonharei os meus -
dizia ela; - adeus.
E, contraindo os lábios, estalava beijos no
ar, de certo beijando na imaginação conturbada a face de algum ente caro.
A estas palavras repassadas de dignidade e de
mansidão, sucediam outras, enérgicas, ameaçadoras, que revelavam a meio a
história íntima da retirante.
- É inútil, não quero, não matarei o meu
filho; mate-me com ele se quiser, mas não lhe obedeço.
A irmã intervinha acalmando-a, assegurando-lhe
que ninguém a queria violentar, mas essas palavras como que exacerbavam a
febricitante e ela acrescentava:
- Faça-o, ameace-me quanto quiser; se matar o
meu filho, eu denunciá-lo-ei e darei como testemunho a arma com que feriu
Feitosa. Tem o seu nome.
Soluços abafados e gemidos de uma tristeza
dolorosamente comunicativa seguiam a frase altiva e resoluta que se continuava
por uma explosão sobranceira e ao mesmo tempo humilde.
- Treme agora; não tem coragem, queria
ferir-me o coração. Ai meu desgraçado pai, como fostes feliz morrendo; se
existísseis não resistiríeis à vergonha. O vigário, o vosso amigo...
A irmã inclinando-se sobre a doente para ouvir
melhor as revelações do delírio, estremecia a cada palavra e, como que, ouvindo-a,
abria simpaticamente o coração àquela desgraçada misteriosa que viera dar a
costa no hospital.
Ainda em hora muito adiantada da noite a febre
e o delírio continuavam com a mesma intensidade, e a irmã, firme no posto que
lhe era indicado pela caridade, velava solicitamente pensando consigo:
- Esta moça foi vítima de uma grande
infelicidade.
Pela madrugada a febre fez remissão quase
completa, e a agitada sonolência foi substituída por algum repouso.
A irmã sentiu renascer a esperança de ver salva
a recomendada do presidente, a quem estreitava-a não só a curiosidade, mas já
poderosa simpatia. Naquele rosto sereno, onde a resignação e a cordialidade
haviam conservado a frescura infantil, passava um reflexo de alegria íntima
sobre a palidez da vigília.
De manhã, à hora da visita do médico, a irmã
tinha um ar triunfante, e apressou-se em ir ao encontro do facultativo para
dar-lhe a boa nova:
- A nossa doente de ontem à noite está quase
sem febre.
- É um milagre, irmã; não esperava.
- Teve um mau delírio durante a noite, sofreu
muito, mas está felizmente melhor.
As novas indicações do facultativo operaram
sobre a doente um efeito eficaz, mas ainda assim a irmã não ficou de todo
descansada. Eulália conservava-se inteiramente alheia ao que se passava em
torno; nem por um gesto, nem por uma palavra deixava perceber a menor
impressão.
- Está apatetada - dizia consigo a irmã; -
quem sabe se não é uma idiota?
O olhar incerto, sonolento, os movimentos
tardos e inconscientes, os gemidos meio abafados, tudo enfim fazia acentuar-se
a suspeita da irmã, que felizmente convenceu-se do contrário, horas depois.
Eulália dormiu longamente; o anélito quente e
fétido da febre foi substituído por uma respiração pausada, ampla, que denotava
apenas um grande cansaço. Afinal o sono interrompeu-se de manso, e Eulália,
abrindo e para logo esfregando os olhos, encarou para o que via diante de si.
Como se esta só verificação não lhe bastasse, sentou-se de pronto no leito e
alongou a vista por toda a enfermaria.
A irmã, ajoelhada a pequena distância do seu
leito, orava em face de uma imagem da Senhora, que surgia de entre
festões de rosas brancas e rubras,
entrelaçadas de modo a emoldurá-la. Reinava inteiro silêncio na enfermaria. As
filas de leitos, estendidos ao longo do enorme salão, cobertos com lençóis de
algodão, davam ao lugar o cunho adorável da ordem. Dentre o leve alaranjado dos
lençóis surgiam as cabeças das enfermas magras e tristes, que olhavam quietas.
Seria meio-dia. O sol, quebrando os raios no
calçamento e no areal das ruas, fazia com que se visse a evaporação do solo
subir com uma vibração vítrea. O Passeio Público, em frente, farfalhava à
viração da baía as poucas folhas que restavam ao seu arborizamento.
A canícula filtrava nos corpos uma quebreira
invencível. Não se podia estar bem senão encurvado em uma rede violentamente
agitada.
Eulália, sentada no leito, viu a imobilidade
geral e, como não tivesse logo divisado a irmã, resolveu-se de novo a
deitar-se.
A irmã, vendo o seu movimento, veio postar-se
junto da sua cabeceira, e com uma voz de uma entoação maternal:
- Como está? Vai melhorzinha ?
- Muito melhor - respondeu voltando-se e,
encarando com a irmã, acrescentou: - dei-lhe muito trabalho, minha senhora, não
é verdade?
- Nenhum, minha filha, cumpri com o meu dever.
Houve uma pausa, durante a qual Eulália de
quando em quando levantava os olhos para fitar a irmã, e esta, fingindo não
perceber a curiosidade da moça, deixava observar-se e por sua vez observava.
Via-se claramente que Eulália coligia recordações para saber qual era a posição
social da mulher, tão esquisitamente vestida, que se conservava ao seu lado.
- Quem foi que me trouxe para aqui, pode
dizer-me?
- Veio carregada por dois homens, por ordem do
presidente.
- Mas eu não conheço o presidente.
- Não é preciso para que ele faça o bem. É um
bom homem.
O silêncio interpôs-se de novo às duas vozes e
só se rompeu de chofre com uma pergunta de Eulália.
- Mas diga-me onde estou, de quem é esta casa.
- É de todos os pobres: a Santa Casa da
Misericórdia.
- Ah! - exclamou Eulália e, caiando-se, tentou
esconder o rosto sob os lençóis.
- Sente-se mal, minha filha? - perguntou a
irmã ocultando saber a causa do movimento de Eulália.
- Não é coisa séria, minha senhora; não se
incomode.
A irmã tinha-se colocado em frente de Eulália
e, assentando-se no leito, segurou-lhe em uma das mãos. Depois, inclinando-se
muito sobre ela, murmurou:
- Vexou-se de achar-se aqui, não é verdade? A
todos acontece assim, mas não têm razão. Esta casa é de infelizes, mas não
rebaixa.
- Oh! minha senhora, eu nem podia querer
melhor; se soubesse quanto eu tenho sofrido!...
- Imagino, minha filha; ouvi ontem quando
delirava.
- Sim, eu delirava ontem? Nem vi quando me
trouxeram para aqui.
- É filha da cidade ou do sertão?
- Do sertão.
- E a sua família sabe que veio para o
hospital?
- Não - exclamou Eulália sentando-se; - não
sabe, e a esta hora deve sofrer muito...
- Onde mora ela? Mandarei avisá-la.
- Não sei; ninguém pode dizer ao certo. Eu
devia encontrar-me com ela hoje...
- Saiu então sem falar-lhe?
- Sim, eu sou muito desgraçada, minha senhora,
muito desgraçada.
Em vão a irmã quis acalmar a sobreexcitação da
doente; as lágrimas debulharam-se-lhe perenes e pôs-se a soluçar dolorosamente.
- Não se mortifique assim - observou a irmã. -
Olhe; eu já sou sua amiga e não sairá daqui sem que esteja perfeitamente
curada, e sairá somente para ver os seus parentes, porque eu lhe arranjarei um
emprego aqui.
- Obrigada - murmurou Eulália -, mas não posso
aceitar nada do que me oferece. Eu preciso sair hoje, já, agora mesmo.
- Não é possível, minha filha, só o médico lhe
poderia fazer tal obséquio, e eu empenhar-me-ia com ele para que não o fizesse.
- Preciso - acrescentou Eulália; - quero
salvar minhas irmãs.
- Não as salvará, porque irá recair e morrer.
- Ah! minha senhora - exclamou Eulália -, é
porque não sabe quanto eu sou infeliz, não imagina que desgraça causa hoje a
minha ausência; por isso opõe-se a deixar-me sair?
- Não está nas minhas mãos, filha; amanhã, só
amanhã o médico lhe poderá dizer. A sua saída, porém, será a sua morte.
- Não posso, pois, sair?
- Não - respondeu a irmã ameigando a voz para
tirar toda a aspereza da negativa. - Há de curar-se primeiro para então poder
servir à sua família.
- Meu Deus, meu Deus, o que vão dizer elas de
mim? Estou de uma vez para sempre condenada.
Eulália tinha razão quando assim pensava.
A tarde e a noite anteriores haviam gerado na
imaginação de d. Ana as mais extravagantes idéias acerca do caráter da moça e
do seu destino.
Um ponto estava de si para si definitivamente
assentado: era que a sua sobrinha não passava de uma perdida. Tal era o motivo
da repugnância que tinha do contato daquela, repugnância que não externava
claramente para não ofender o pudor de Chiquinha.
Uma ponderação somente a fazia abrandar e
dispor-se a ceder às solicitações da sobrinha, para que de novo se juntassem
com Eulália. Não estaria esta arrependida do mau passo que dera? Ousaria ela
querer enxovalhar a pobreza de suas irmãs? Não era possível que esta última
hipótese fosse verdadeira; Eulália errou, mas não era uma perversa.
Entretanto, amanhecendo, d. Ana e suas
sobrinhas foram colocar-se à porta da estação, junto ao bilheteiro, lugar em
que não podiam deixar de ver todos os indivíduos que entravam para tomar o
trem.
A caçula tinha fome, e tinha passado a noite a
choramingar. O sono fê-la calar, mas, acordando, recomeçou as suas queixas e os
seus pedidos.
- Não temos com que comprar comida; mas tua
irmã, a tua mamãe, não tarda ai para dar-nos dinheiro - disse-lhe Chiquinha,
afagando-a.
A criança consolou-se por algum tempo, mas não
recomeçou o choro, desde que nos lábios da tia e das irmãs soaram palavras de
esperança.
A locomotiva deu o primeiro, o segundo, o
terceiro sinal; os circunstantes apertaram-se mais na plataforma; pessoas que
vinham no largo puseram-se a correr.
As infelizes, com os olhos presos em quantas
mulheres entravam, examinavam-nas de alto a baixo, como se temessem que a
sobreexcitação em que estavam as fizesse não reconhecer logo Eulália.
O apito do condutor do trem anunciou a partida
imediata, e a locomotiva, dando o primeiro arranco, fez soar o choque dos
vagões uns contra os outros.
- Não veio - suspirou Chiquinha.
- Não veio - repetiu amargamente d. Ana, e
acrescentou: - eu já esperava por isto.
- Foi por força de algum contratempo que
sobreveio, titia; não pense mal de Eulália.
O choro da criança, ao ouvir o desengano
cruel; a triste certeza de que a sua mamãe não viria, dobrando-se, fez com que
o diálogo se interrompesse. A voz da coitadinha, chamando a família à realidade
da sua posição, lembrou-a de que devia tratar de arranjar alguma coisa para
comer.
Chiquinha, que tinha nos braços a caçula, foi
postar-se em frente à família, e daí estendeu a mão aos transeuntes
pedindo-lhes, em nome de Deus, uma esmola.
- Vá para a comissão - exclamavam uns. - Vá
trabalhar. -exclamavam outros.
Mas no meio dessa indiferença marmórea pela
desgraça alheia, algumas almas generosas depunham na mão da mocinha o óbolo,
que ela abençoava fervorosamente.
Quando a multidão se dispersou, o bilheteiro,
vendo a família e principalmente ouvindo algumas palavras dela, comiserou-se.
- Eu esperava por esta - dissera d. Ana; - e
Eulália não se importa mais conosco.
- Pode ter-lhe acontecido algum desastre não é
possível? - perguntou Chiquinha, amuada.
- É possível, mas era preciso muita
infelicidade para nós.
- E duvida, minha tia? Alguém poderá acreditar
no que nos tem acontecido?
D. Ana calara-se por algum tempo, mas afinal
reatando a conversação exclamara:
- Seja como for, Chiquinha, eu não quero mais
saber de Eulália. Perdeu-se, fique lá com o seu erro. Não quero comer à custa
de um dinheiro que não chega honestamente às mãos dela. Quem lho dá? É um
marido, é um irmão, é um parente? Não; quem lho dá é o causador da sua e da
nossa desgraça. Eu não quero aproveitar-me de tal dinheiro.
Chiquinha pôs-se a soluçar e exclamou com a
ingenuidade de seus 15 anos:
- Mas assim vamos morrer todas, porque no meio
deste povaréu não há de haver meio de ganhar a vida.
- Melhor será morrer - ponderou severamente d.
Ana; mas, notando na impressão que o seu tom causara à moça, ameigou a voz e
acrescentou: - não morremos, não, minha filha; em toda parte há trabalho para
os que se querem sujeitar. Demais, procuraremos o nosso velho amigo Rogério
Monte, e quem sabe se não encontraremos por cá o sr. Augusto Feitosa? Tenhamos
fé; antes sofrer honestamente do que receber socorros de mãos que não no-los
devem dar.
Neste ponto da conversação, o bilheteiro veio
parar em face de d. Ana, e, cumprimentando-a respeitosamente, fez-lhe algumas
perguntas banais, com o intento de travar conversa.
- São de fora - disse ele por fim - e não
conhecem aqui ninguém que lhes possa de pronto encaminhar, não é verdade?
D. Ana, a quem os oferecimentos espontâneos já
eram suspeitos, olhou de soslaio para o interlocutor e entendeu que devia
dissimular.
- É exato, mas nós como já estivemos aqui uma
vez, conhecemos mais ou menos as ruas e podemos procurar alguns amigos que
temos.
Chiquinha olhou para a velha tia e para o
interlocutor de modo que este compreendeu que a honrada senhora buscava
negar-se a segui-lo.
- Mas são parentes ou amigos que a senhora tem
aqui? - perguntou o interlocutor. - Desculpe a minha importunação; sou daqui e
sei que hoje é inútil procurar os amigos: não servem.
- Oh! os que eu vou procurar são sinceros.
- Não basta; é preciso que possam ser úteis
agora.
- Trabalharemos.
- Mas em que hão de trabalhar?
- Serviços não faltam.
- Ouça, minha senhora; eu estava ali quando
conversava e ouvi tudo. Sou pai de família, sei avaliar o quanto sofre, e que
heroísmo é necessário para assim negar-se a ser protegida. Mas não deve
desconfiar absolutamente de todos.
D. Ana abaixou a cabeça e Chiquinha, animada
pelas palavras do desconhecido, perguntou-lhe:
- E o senhor pode dar-nos um lugar em que
moremos?
- Posso recomendá-las num dos abarracamentos;
serve?
- Muito - acudiu d. Ana; - já vejo que o
senhor é um homem de bem.
- Deus há de agradecer-lhe o benefício -
exclamou Chiquinha; - nós estávamos em termos de morrer.
Caminharam através do largo, diversas ruas e
praças, até que o homem, parando em uma porta, deu à família um cartão em que
escrevera algumas palavras.
- Esta é a casa do comissário; esperem por ele
e filem-lhe; é o primeiro pedido que lhe faço e ele há de atender-me; se não o
fizer, vão falar-me amanhã lá na estação.
Pouco depois que d. Ana e suas sobrinhas
passaram pela rua da Assembléia atravessavam-na também duas pessoas, cujo
encontro era ansiosamente desejado pela família.
Uma dessas pessoas era uma rapariga loira,
extremamente pálida e emagrecida, cujo trajo revelava mais do que pobreza -
verdadeira miséria. Estava descalça, e no corpinho os cerzidos longos traíam
uma preocupação de compostura e asseio pouco comum no grosso da população
adventícia que enchia a capital.
Via-se num lance de olhos que a infeliz moça
fora vítima de uma grande catástrofe; lembrava um pedaço de mármore esculpido
no meio de um esterquilínio; tamanha era a diferença que havia entre ela e
qualquer outra retirante.
Quem demorasse a contemplar aquele semblante
tinha necessariamente por ele interesse compassivo. Da exagerada palidez
ressaltavam dois olhos azuis, muito grandes e amortecidos, que pareciam
diluir-se numa umidade luminosa, e o olhar que deles transudava trazia alguma
coisa de sobrenatural. Duas tranças loiras, enroladas sobre o occipúcio,
completavam-lhe a cabeça simpática.
Pela mão dessa rapariga caminhava tropegamente
um velho, que apresentava mais idade do que a real. Os sofrimentos tinham-no
acabrunhado de tal forma, que dar-se-lhe-ia mais de 60 anos.
Estes dois infelizes, caminhando através da
soalheira das 11 horas da manhã, paravam de porta em porta, mas, em vez de
pedirem esmolas, a moça oferecia rendas para vender.
Ordinariamente à oferta correspondia um
movimento triste da moça, que suspirava, abaixando a cabeça.
- Tem paciência, minha filha - murmurava o velho; - acharemos adiante quem no-las compre.
- Não me incomodo, não, meu pai; já estou
acostumada.
Mas, enquanto a voz se encarregava de dar este
conforto ao velho, a infeliz não raras vezes levava a mão aos olhos para
enxugar as lágrimas que neles marejavam; e, quando, depois de algumas passadas,
ela parava em outra porta, era já receosamente que oferecia as suas rendas.
- O dia está hoje aziago, rainha filha -
ponderou o velho, depois de ouvir várias recusas.
- Mas ainda é muito cedo; ainda podemos correr
outra rua.
- És uma santa, minha Irena - murmurou o
velho; - não desencorajas.
- O negócio é assim mesmo, meu pai; um dia
bom, outro mau; não há, pois, que estranhar.
Um suspiro do velho Rogério Monte respondeu à
frase que estereotipava a enorme valentia moral de Irena.
A tímida amiga de Eulália tinha-se de feito modificado
radicalmente. O seu natural retraimento como que se transformara numa
concentração de força de ânimo, de tal sorte que ela se mostrava heroicamente
sobranceira a todas as desgraças.
Rogério muitas vezes desacoroçoava de todo e
revoltava-se contra o destino cruel que o fustigava desapiedadamente, mas a voz
de Irena achava tais argumentos na própria desventura, que para logo fazia
voltar-lhe a calma e a resignação.
Houve dois dias de máxima provação para
Rogério, depois das tremendas decepções que o perseguiram desde que se retirou
da paróquia.
A primeira dessas foi a morte de um dos
escravos, com a venda dos quais contava saldar inteiramente as suas dívidas e
readquirir a boa vontade dos seus credores.
Por mais que o honrado velho documentasse a morte
do escravo, não conseguiu autorizar a sua palavra.
- É um excelente subterfúgio - respondiam-lhe
os credores; - mas infelizmente já não pegam as bichas.
Em Aracati, portanto, longe de encontrar quem
o amparasse, Rogério só teve perseguidores, e foi obrigado a refugiar-se para
que não tivesse de amargar na prisão dois crimes que lhe eram imputados com
iguais fundamentos: a tentativa de assassinato contra Augusto Feitosa e a
sonegação de um escravo, com o intuito de defraudar àqueles que haviam confiado
em sua honra.
Todavia a sua vida não se repassou ali de todo
o amargor, que lhe estava reservado; o honrado velho tinha ainda sorrisos para
repartir com Irena, cujo coração reagia contra o infortúnio, para não dilacerar
a última parte não ulcerada do de seu pai: aquela em que ele encerrava a
consciência da amizade que ela lhe dedicava.
Breve, porém, a penúria, estreitando cada vez
mais o círculo em torno dos dois náufragos da fortuna, impôs a Rogério como
condição de salvar-se a retirada de Aracati. Foi então que, mudando de nome,
resolveu partir para o Ceará.
Medonha recordação deixou-lhe tal viagem, e
agora, cego, ainda mais se lhe avivava na memória.
Para iludir a vigilância, aliás pouco temível
da polícia, agravara ainda mais as aparências das suas necessidades. Pôs-se
descalço, e pediu a Irena que fizesse o mesmo e, carregando cabeça os poucos
objetos que lhe restavam, foi dar o nome num abarracamento de retirantes.
Daí seguiu, no primeiro vapor, para a capital.
- Sabes em que estou pensando? - dizia às
vezes o cego à sua filha.
- Aposto que está pensando em mim -
respondia-lhe dando à voz uma entoação acariciadora; - não faz isto.
- Sim, penso em ti, mas naqueles dias da
viagem.
E punha-se a recordar as cenas que via com
essa vista do cego, que é três vezes mais perfeita do que a dos homens.
Vinha à proa e, como ele e a filha, vinham
centenas de retirantes. Aquela aglomeração de farrapos e de enfermidades
antecipava-lhe a amarga existência que o esperava na capital. Tinha visto o que
podia haver de mais horroroso nas horrorosas cenas da seca.
A maior parte dos passageiros retirantes nem
tinha lugar para estender as pernas. Entontecidos pelo enjôo, os infelizes
juntavam ao mal-estar geral a imundícia, porque alagavam o convés com vômitos
abundantes. Outras enfermidades sórdidas colaboravam nessa obra nauseabunda.
Irena padecera muito e Rogério chegou a perder
a esperança de vê-la chegar à capital.
Durante uma dessas horas de angústia, mais uma
porção de fel veio misturar-se ao muito que já amargurava o desgraçado. As
trouxas que trouxera para bordo desapareceram, e entretanto dentro delas estava
tudo que restava ao descendente de uma das mais fidalgas famílias da província.
Rogério, sempre que se lembrava do fato,
deixava medir a extensão da cólera que experimentara.
- Tinha coragem de arrancar os olhos a quem me
roubou.
O fato alucinou-o no momento e, apesar de ser
expressamente proibida a passagem dos retirantes da proa para a ré, afrontou a
ordem e foi ter com o comandante.
As providências tomadas foram tão fracas, que
não foi possível descobrir o autor do roubo, e além disso em vez de consolo
encontrou apenas escárnio e humilhação.
- Tu estavas fora de ti com o maldito enjôo e
não viste o que se passou, Irena. Sabes apenas que a punição do comandante foi
tamanha, que eu nunca a pediria aos céus.
E Rogério estremecendo referia o desastre,
que, no seu entender, punira o pouco caso com que foi tratado pelo comandante.
Quando recebeu o triste desengano de que não
era possível descobrir os objetos Rogério voltou à ré.
Sentados junto à borda do vapor, o comandante
e a esposa conversavam, e entre os dois brincava uma criancinha, que teria, no
máximo, quatro anos.
Embevecido na felicidade que lhes causava tão
intimo conchego, o comandante respondeu às lamentações do velho com algumas
palavras em que a indiferença repassava a piedade mal simulada.
- Bem viu que tomei logo providências, mas vá
lá descobrir o homem da capa preta, entre centenas de indivíduos.
Rogério, por um grito da consciência, repeliu
a suspeita que era lançada sobre os seus companheiros de infortúnio, e, com um
tom grave, acrescentou:
- Fosse eu o comandante e o senhor a vitima e
eu lhe mostraria como descobria em meia hora o autor do roubo.
- Pois dou-lhe poderes, vá descobrir.
- Descobrirei, mas hei de ter permissão para
correr as caixas dos seus marinheiros.
- Meu velho - replicou o comandante -, eu
perdôo-lhe, porém não repita o que disse. Está decidido, não tenho mais nada a
fazer. Pode ir.
Monte retirou-se duplamente ferido pela
repulsa do comandante e pela perda inestimável que acabava de sofrer.
Chegando junto de Irena e vendo-a
profundamente abatida, todas as desgraças, que imaginou desde logo no futuro,
assaltaram-no em tropel. A presença da filha torturava-o; quando ela,
entontecida e desanimada, estendia-lhe os braços e rodeava-lhe com eles o
pescoço, afigurava-se à imaginação alucinada de Rogério que apertavam-lhe com
uma tenaz em brasa.
"O que vai ser de nós?" - pensava
ele; - "que mundo de sofrimentos desabará sobre nós? Irena, Irena, melhor
fora que morresses.”
O enjôo da moça reunido à falta de comodidades
prostrou-a extraordinariamente. Depois da violência dos acessos caiu em um
profundo torpor bem semelhante ao espasmo de um moribundo.
- Ela morre, santo Deus - suspirava Monte - e
eu não posso ao menos cumprir com o meu dever de pai.
Olhava em vão em torno de si para pedir
socorro: a sua desgraça só encarava com desgraçados.
- Não, não morrerás à mingua, minha filha, eu
te salvarei.
Cambaleando, dirigiu-se de novo para a banda
de ré. Marinheiros postados no passadiço impediram-lhe a passagem.
- Para lá, velho; basta de incomodar o
comandante, basta.
- Mas eu sou pai, entendem? E vejo que a minha
filha vai morrer.
- É o mesmo, não será o primeiro pai a perder
um filho.
Rogério, vendo que inútil seria apelar para a
força, não pôde mais conter as lágrimas e, com uma entoação compungente,
exclamou:
- Veja, meu amigo, eu estou velho, só tenho
aquela filha; se a perder, morrerei também.
- É exato, é - murmurou o marinheiro -, eu bem
sei que dói, mas cumpro ordens.
- Esta ordem não pode se estender até um pai
que tem a filha moribunda. Olhe, o comandante é pai também; veja-o, está ali
contente a rir porque o seu filhinho brinca. Ele perdoará a falta que eu
preciso cometer; deixe-me passar.
O marinheiro voltou os olhos para o lugar
assinalado por Monte, e depois observou:
- Estou vendo, sim; ele está alegre com o
filho, é feliz e não quererá que se dê aos outros a mesma alegria; coisas do
mundo!
- Não pense isto; ninguém desdenha da dor de
um pai, ninguém se zanga com outrem por saber que se compadeceu dos sofrimentos
do seu semelhante. Veja como a criança brinca, e ele e a esposa sorriem?
Houve um instante de silêncio, durante o qual
o marinheiro coçava a cabeça como que para afastar daí a idéia de desobedecer à
ordem do comandante.
De repente, ambos exclamaram com uma entoação
indefinível:
- Virgem!
Um ai que parecia trazer dentro de si pedaços
de um coração ecoou em todo o navio, e a esposa do comandante caiu redondamente
sobre o tombadilho.
- O que tens tu? - bradou o esposo,
precipitando-se sobre ela.
Rogério e o marinheiro, estatelados, sem voz,
olhavam-se, ao passo que os outros marinheiros e alguns dos passageiros de ré,
correndo para junto do comandante, ajudavam-no a levantar o corpo desmaiado da
senhora.
A confusão e o espanto causados pela cena
inesperada cresciam, porque todos tratavam de inquirir a causa do desmaio da
senhora e limitavam nela os seus cuidados.
Só depois de alguns minutos - longos como um
século, porque eram medidos por uma enorme catástrofe - o marinheiro,
cambaleando, veio por sua vez parar em face do comandante.
- A menina - disse ele com um acento gutural
de enorme comoção - a menina...
O mísero pai atirou-se de encontro ao bordo do
vapor com a prontidão de uma bala. Só então pôde medir a extensão do golpe que
transpassara-lhe o coração e, levando as mãos à cabeça e contraindo-se como uma
serpente no momento do bote, tentou atirar-se nas ondas.
Os braços possantes dos seus companheiros o
detiveram, não sem um grande esforço, e ao mesmo tempo todos a uma voz
bradaram:
- Escaler ao mar; para trás o vapor.
O velho Rogério parava então para resfolegar e
concluía, enxugando lágrimas que marejavam-lhe impertinentemente dos olhos sem
luz:
- Eu tinha pedido a Deus que te levasse, minha
Irena; mas, ao ver a tremenda dor daqueles pais, fui abraçar-me contigo.
Dormias à espera de futuros infortúnios.
Passando então a ocupar-se de Irena, Rogério
acentuava as tristezas que vieram recebê-lo no desembarque.
Fora como todos os outros retirantes
acomodar-se em um dos abarracamentos e aí, para fazer jus ao socorro do Estado,
era obrigado a carregar pedras nas horas da canícula.
Uma noite, de volta do trabalho, chegou à
mísera choupana em que morava, ardendo em febre.
Irena padeceu tanto como ele, porque a infeliz
em cada gemido paterno ouvia os ecos dos próprios prantos de orfandade.
Rogério por sua vez sentia que a dor da filha
agravava-lhe a enfermidade, mas por um dom do acaso veio o delírio roubar-lhe a
consciência do infortúnio!
A febre, porém, declinou um pouco e ao romper
da alva desapareceu de todo.
Rogério, acordando então, chamou pela filha.
- Diz-me, Irena, o que tive eu à noite?
- Uma febrezinha, mas passou.
- Sim, e onde estás tu? Por que não vens para
o pé de mim?
Irena, que não lhe havia abandonado a
cabeceira, respondeu a sorrir:
- Olhe para cá e verá que não estou longe.
- Estou a olhar, filha, repara; tenho os olhos
abertos, e entretanto não te vejo.
Irena, inclinando-se sobre o rosto de Rogério,
abriu os seus tanto quanto estavam abertos os olhos do pai, e fundiu em
soluços:
- Somos bem desgraçados! - suspirou a
desditosa.
- Muito, minha filha, muito!
Rogério Monte estava cego.
Desde então Irena deixou de ser a tímida
menina da paróquia para ser a filha corajosa e dedicada. Como que as forças
perdidas pelo velho Rogério tinham vindo abrigar-se dentro dela. Quando o
infeliz desanimava, Irena, com uma energia piedosa, realentava-o, e era tamanha
a sua dedicação, que mantinha a esperança no meio de tão grandes desilusões.
- Ainda nada, minha filha; voltas hoje para
casa com as tuas rendas.
- Daqui até a noite ainda há muito tempo; verá
como faço ainda um negocião.
Havia entrado no largo da Assembléia o qual
estava agora convertido num abarracamento.
Reinava aí o grande sussurro que enche sempre
as aglomerações populares.
Na parte media do largo, diversos vendedores
estacionados apregoavam, acirrando a gula dos retirantes - arroz cozido e mel.
O velho Rogério Monte, ouvindo o pregão,
sorriu, e murmurou:
- As tuas economias não chegam hoje para que
possamos enganar a boca. Há entretanto 24 horas que não comemos!
- Um pouco de paciência mais, meu pai, e
teremos fartura. Fiz quatro varas de renda, e hei de vendê-las a dois
tostões...
- Se vendê-las, minha filha.
Deram mais algumas passadas, porém, chegados a
uma esquina, Rogério, cuja fraqueza não podia resistir à soalheira, propôs a
Irena esperá-la ai.
- És mais forte do que eu; vai ver se vendes
as tuas rendas, e vem encontrar comigo aqui. Olha: eu não preciso do meu
paletó, põe-no sobre a cabeça; abriga-te nele; faz um sol de rachar.
Irena obedeceu e, depois de fazer Rogério
sentar-se em um portal, caminhou para o largo.
Pouco adiante estava reunido um grupo compacto
em torno de um homem, cujo rosto Irena não pôde ver. O rebuliço das pessoas que
estavam ao redor dele (as bênçãos que de todas as partes o cobriam, fazia ver
que o homem dava esmolas.
Irena parou. A sua educação, os seus precedentes
geravam-lhe uma repugnância quase invencível para esmolar. Poucas vezes se
tinha visto forçada a lançar mão deste recurso para socorrer o seu velho pai,
única razão por que pedia. Por si só, preferiria morrer de fome.
Hoje era um dos dias em que precisava
urgentemente arranjar dinheiro, e por isso a necessidade de esmolar
impunha-se-lhe, porque, apesar de ter discordado de Rogério quanto à
impossibilidade de vender as rendas, estava convencida de que não as venderia.
Depois de longa hesitação, uma idéia
lisonjeira veio ao espírito de Irena.
O homem que estava a distribuir esmolas, é
porque tinha um coração generoso. Devia, pois, compreender que a sua oferta de
rendas era o mesmo que um pedido de esmola, e atendê-la-ia.
Encorajada por esta idéia, aventurou-se aos
encontrões e às grosserias do ajuntamento e, resistindo aos brutais vaivéns que
lhe davam, chegou à distancia de poder se fazer ouvir pelo homem, cujo rosto
entretanto não conseguia ver.
Ofereceu uma, duas, muitas vezes as suas
rendas, sem que fosse atendida, e já começava a desanimar, quando o grupo que a
encobria aos olhos do desconhecido deu-lhe passagem.
- Faça-me a esmola de comprar esta renda, meu
senhor, murmurou Irena.
- Espera um pouquinho, filha - disse o homem
sem voltar-se, mas colocando uma das mãos sobre Irena.
O som da sua voz, porém, produziu sobre a moça
uma comoção tão violenta, como se ele a houvesse ofendido. Irena levantou os
seus grandes olhos azuis, e, ao deparar com o rosto do desconhecido, baixou-os,
reprimindo um grito.
O esmoler, em torno do qual se agrupava tanta
gente, e em cuja porta paravam durante o dia centenas de retirantes, era
Augusto Feitosa.
Agora, como sempre, ao dar a esmola, o moço,
em cujo semblante estavam estampados os mais vivos vestígios de sofrimentos
profundos, perguntava a cada socorrido o lugar da província onde anteriormente
morava e concluía sempre por esta pergunta:
- Não conhece ninguém que tenha vindo de B. V.,
à margem do Jaguaribe?
Um não fatal respondia sempre à pergunta em
que ele punha todo o interesse.
Irena, ao ouvir a insistência da pergunta,
sentiu-se ainda mais perturbada. A comoção nem lhe dera espaço para uma furtiva
alegria, por ter visto o escolhido do seu coração.
A piedade filial via apenas em Augusto Feitosa
uma tremenda ameaça contra a liberdade de Rogério e contra a sua vida.
A calúnia que pesava sobre o seu pai, acusado
de haver tentado assassinar Augusto, fazia-a desvairar. Estava na capital a
vítima, queria informações de B. V., e estas provavelmente deviam ser pedidas
com o intuito de descobrir o lugar em que Monte se refugiara.
- Entretanto eu - pensava Irena -, eu mesma
venho servir de denunciante.
Quis ver se podia retirar-se sem ser
percebida, mas Augusto, segurando-a pelo ombro, exclamou com um tom acariciador:
- Não vá embora, não; eu compro-lhe as rendas
já. Quantas varas tem?
- Quatro - respondeu Irena disfarçando a voz,
cujo timbre aliás não podia ser distinguido no meio do alvoroço.
- E a como as vende?
- Pelo que Vossa Mercê quiser pagar.
- Bem, aqui tem quanto eu lhe posso dar; mas
guarde as rendas, para me entregar quando eu as exigir.
Augusto, tirando a mão de sobre o ombro de
Irena, entregou-lhe uma nota do tesouro, e Irena, vendo-se livre da pressão com
que a bondade desinteressada de Augusto a retinha, quis desde logo desaparecer
dos olhos dele.
Um violento encontro que lhe foi dado pelos
circunstantes que porfiavam em obter um lugar diante de Augusto, fez com que a
moça cambaleasse, e o paletó, com que se mascarara aos olhos do amante, caísse.
As tranças loiras, as belas tranças que haviam
colaborado na paixão intensa de Augusto, apareceram, e este, com um movimento
brusco, tentou pôr a mão no braço de Irena. Em vão; a piedosa filha, tirando
agilidade do perigo que julgava correr o pai, desviou-se e sumiu-se no meio da
mó compacta e irrequieta.
Vendo-se finalmente livre do olhar de Augusto
Feitosa, atravessou correndo a pequena distância que a separava de seu pai e
foi parar arquejante diante dele.
- Vamos já, já, meu pai, não podemos ficar
aqui nem mais um minuto.
- Infames! - resmoneou Rogério. - Achaste quem
te insultasse, não?
- Ninguém, mas é preciso que saiamos já daqui,
ou senão estamos perdidos.
- Mas o que fizeste tu? Vendeste as rendas? -
perguntou precipitadamente Rogério com uma entoação em que transluzia o temor
de que a filha houvesse cometido alguma ação vergonhosa.
- Vendi, sim, meu pai; não me pergunte mais
nada, fujamos daqui porque eu acabo de ver uma pessoa de B. V., e se ela
nos reconhecer.
Rogério Monte interrompeu a filha para
concluir a frase que lhe explicava tanto temor e alvoroço:
- Estamos perdidos.
Augusto Feitosa não teve forças para conter a
comoção que a vista das tranças loiras da moça lhe causara.
O coração, lince que não se ilude, reconheceu
prontamente aquela que tinha conseguido disfarçar-se aos olhos. Uma simples
semelhança bastou-lhe para basear a indefectível certeza.
- Não pode deixar de ser ela, eu não me podia
enganar, murmurou Augusto, que se esforçou desde logo para sair do círculo em
que os retirantes o prendiam.
Não podia, porém, dar um passo. Dezenas de
braços, dirigidos pela necessidade, estenderam-se para cercá-lo, e um coro de
lamentações e de súplicas o atordoaram.
O egoísmo do amor opôs-se, não obstante, à
compaixão da filantropia, e Augusto, tentando desviar-se bruscamente, exclamou:
- Deixem-me, isto excede a toda impertinência.
- E, com uma entoação severa, acrescentou: - preciso sair.
Os importunos, porém, não o atenderam, não
compreendiam que o moço tivesse direito de pospô-los aos seus interesses, e
atropelavam-no e azoinavam-no.
- Deixem-me - repetiu Augusto; - deixem-me em
nome de Deus; torturam-me.
Nestas palavras sentia-se ansiar a única
esperança que suavizava a triste vida do moço; elas foram proferidas com um tom
soturno, que traduzia o surdo rumor das profundas angústias que lhe torturavam
a mocidade desventurada.
Ao ver aquele semblante, ainda há pouco sereno
e carinhoso e agora sombrio e hostil, percebia-se que dentro daquela alma
dava-se uma violenta sublevação de sentimentos. E assim era. Havia longos meses
que o malsinado rapaz entregava-se a um lento suicídio. A princípio era o ódio
que o impelia contra Rogério Monte, a quem atribuía o crime de que fora vítima,
crime, cuja extensão Augusto Feitosa media menos pelos seus sofrimentos do que
pela impressão que produzira sobre sua velha mãe.
Padecia muito; de um lado a prostração em que
via sua mãe aconselhava-o, impelia-o a perseguir Rogério, de outro a imagem
angélica de Irena, colocando-se como um véu diante do pai, suplicava-lhe o
sacrifício da vingança ao amor. Assim, qualquer resolução que tomava
constrangia-lhe o coração; a condolência desfechava golpes sobre sua velha mãe,
a perseguição assassinava Irena.
Depois, deram-se os sucessos tristíssimos de B.
V. Um documento importante, uma carta de Rogério Monte ao professor
Queiroz e que fora rasgada pelo sacristão Marciano, veio cair-lhe nas mãos.
Neste documento escrito com a despretensão da intimidade, com esse venerando
perfume da lealdade, com que a mútua confiança da amizade repassa as
revelações, a inocência de Monte estava evidentemente provada: nenhuma outra
prova era preciso juntar.
Esse documento teve uma confirmação.
Como o próprio Rogério Monte, Feitosa, depois
de convencer-se da inocência do honrado velho, perguntava e não sabia responder
quem seria o autor do crime.
Antônia, a ex-cozinheira do vigário, veio,
porém, trazer-lhe uma prova, com a revelação de que, na manhã seguinte à noite
em que se dera o crime, a bacia do quarto de seu amo tinha amanhecido com água
ensangüentada, e que lavara roupas de S. Revma. também manchadas de sangue.
Desde então o ódio contra Rogério
transformou-se em desespero e remorso, por havê-lo perseguido.
Todos os dotes de Irena, extremando-se em sua
imaginação, aumentavam-lhe o sofrer. Aos seus próprios olhos, Augusto viu-se
como um réu que não devia, que não podia ser perdoado. Considerava-se
duplamente assassino: de um lado, cruel, ferira a lealdade e a honra de um
homem de bem, de outro pagara com a mais requintada ingratidão a confiança que
nele depositara a tímida Irena.
Este pensamento, principalmente, tomava
proporções sobrenaturais no seu imaginar. Que sinceridade não havia naquele
coração, quão profundo não era aquele amor para irromper através de dois séculos
de ódios e de vinganças, para corresponder heroicamente ao amor que ele lhe
demonstrara?
- E, no entanto - exclamava Augusto nas suas
horas de amargura -, eu paguei-lhe tudo isto caluniando e enxovalhando as
honradas cãs de seu pai!
Comunicando à sua velha mãe a injustiça que
havia praticado, obtivera imediatamente dela consentimento para oferecer a sua
mão à Irena, como reparação do passado.
Mas intervieram logo os tremendos
acontecimentos que deram em resultado o abandono da paróquia. A velha senhora,
ameaçada na sua e na vida do filho, foi atacada por um acesso febril, que teve
como resultado o idiotismo e a morte, vinte e tantos dias depois.
Durante todo o tempo da moléstia de sua mãe,
Augusto nada pôde fazer a favor de Rogério Monte, a não ser contra-avisar a
polícia.
Dirigindo-se em seguida ao Aracati, todas as
suas pesquisas foram infelizmente infrutíferas. Rogério Monte havia trocado o
nome e não se servia do que mandara para endereço das suas cartas.
A única notícia que obtivera serviu apenas
para desanimá-lo mais. Soube, pelos correspondentes de Monte, que este havia
desaparecido e algumas frases deixaram-lhe perceber que o velho devia ter
tomado todas as providências para ocultar-se e para sempre.
Olhe, que saiu uma vasilha muito ordinária,
aquele sujeito - disseram os correspondentes; - sonegou um dos escravos na
impossibilidade de pregar-nos calote redondo.
- Mas é preciso que se expliquem bem -
ponderou Augusto; - não se atribuiu nunca ao velho Rogério este defeito.
- A ocasião e que faz o ladrão: deu um dos
escravos por morto.
- Ele que disse, é que é a verdade.
- Ah! - exclamou um dos correspondentes
sorrindo. - O senhor também ainda acredita na probidade dele? Preparou bem o
laço, e tão bem que nós ficamos no desembolso e ele continua a passar por homem
honrado.
- Não é exato também isto, porque eu tenho
negócios com Rogério Monte e autorização para pagar qualquer dívida sua.
Prestado este serviço à honra do nome de que
usava a sua escolhida, Augusto empenhara-se ainda com maior dedicação na
descoberta do esconderijo de Rogério, o que fez com que ele perdesse muito
tempo em Aracati.
Cada dia que passava, em vez de diminuir-lhe a
esperança pelo desânimo, aumentava-a pela consciência do dano que havia causado
aos interesses e à boa fama de Monte, que, apesar de ser pelo próprio Feitosa
proclamado vítima de engano quanto à autoria do crime, continuava a ser
apontado como o autor.
- Pobre homem - soluçava Augusto; - nem ao
menos lhe resta o recurso de suplicar entre os seus parentes proteção e
agasalho. Estes, certos de que iriam incomodá-los, negar-lhe-iam o serviço.
Todos os recônditos da cidade, todos os
arredores foram explorados e, no cabo das pesquisas estreitas, minuciosas e
feitas, não só com os olhos mas com o coração, Augusto Feitosa só encontrou o
desengano.
Um indicio vago apontou-lhe então para a
Fortaleza: era quase certo que Rogério para lá se dirigira, e tanto bastou para
que Augusto tomasse aquela direção.
Dias depois Feitosa chegava à Fortaleza.
O coração, comprimido pelas angústias tenazes
que lhe causava a presunção dos sofrimentos de Monte, dilatou-se-lhe em face do
estado da capital.
Era horrível o que via, mas sobre este horror
pairava a esperança. A capital, imenso desaguadouro de todas as correntes da emigração
provincial, era o enorme Cáspio, em que todas essas correntes despejavam sem
achar saída. Podia-se, pois, pressupor que seriam ai encontrados todos aqueles
que uma vez houvessem transposto o seu círculo, a menos que a morte os não
arrebatasse.
Feitosa, na primeira noite, ocupou-se em reler
a carta que, por um lance do acaso, lhe viera às mãos, e em que vira desde logo
que a assinatura Antônio de Louredo mascarava Rogério Monte.
Nesta carta, em que, explicadas miudamente as
desgraças que o haviam acabrunhado, vinha o roteiro do destino que Rogério
pretendia tomar, tinha Feitosa o seu melhor guia.
Havia um trecho que lhe iluminava os passos a
pesquisas eficazes. Dizia a carta:
"A calúnia fatal que manchou o meu nome,
porque, amesquinhando a conta em que tenho as tradições de minha família,
aponta-me como me tendo emboscado para atacar um Feitosa; a calúnia fatal
impede-me de viver à luz. A minha honra não é tão eloqüente como o dinheiro do
meu inimigo.
Confundir-me-ei, portanto, com a mais baixa camada
do povo, até que possa obter de algum parente recursos para provar a minha
inocência e levantar de novo o meu crédito".
Feitosa, pois, chegando à capital, dirigiu as
vistas exclusivamente para a massa dos retirantes.
Dias e dias passou-os à porta de todas as
comissões e circulando os abarracamentos; mas, no cabo desse trabalho, só
colhia decepções, que lhe geravam no espírito sentimentos contraditórios com a
sua índole.
Naturalmente compassivo e impressionado,
Feitosa alegrava-se agora vendo com as horas aumentar o número dos retirantes.
- Quanto mais gente houver na cidade, tanto
maior será a confiança de Rogério Monte em não ser reconhecido -pensava ele; -
sairá com mais franqueza à rua.
Para dobrar a certeza de seus cálculos e
facilitar o encontro, Feitosa dirigiu-se a alguns dos seus parentes, que
residiam na capital, e sendo por eles apresentado aos comissários, procurou em
todos os recenseamentos anarquicamente escriturados por estes o nome de Antônio
de Louredo.
Foi tempo gasto em pura perda, e a reflexão
mostrou-lhe depois que Rogério Monte, ocultando-se da polícia, não havia de
servir-se do mesmo nome que dera à família Queiroz para endereço de suas
cartas.
O resultado das pesquisas foi, portanto, o
desânimo. Aqueles a quem procurava parecia que tinham a impalpabilidade das
larvas: não ocupavam lugar.
- Morreriam? - perguntou um dia a si mesmo o
desalentado moço. - Terei eu de acusar-me ainda desta tremenda
responsabilidade?
Esta suspeita, pela sua própria natureza
cruciante, foi acossada pela paixão, cada vez mais ardente, que ele sentia pela
mísera Irena; e Feitosa voltara à sua peregrinação através do povo, em quem
indenizava as lágrimas que fazia derramar aos dois foragidos.
Imagine-se, pois, que profunda comoção lhe
causou a semelhança das loiras tranças da vendedora de rendas, e qual seria o
seu despeito, vendo-se impedido de seguir ao encalço da moça!
Repetindo, pela segunda vez, o pedido para que
o deixassem passar, Augusto Feitosa sacudiu impetuosamente aqueles que o
seguravam e abriu caminho.
O seu esforço, porém, não produziu resultado.
Na imensa rua, completamente cheia de povo, espécie de formigueiro de homens,
não era possível descobrir largo horizonte; a vista era circunscrita a um
pequeno raio pelo povaréu, e qualquer pessoa, para evadir-se, não precisava dar
20 passos.
A visão das tranças loiras desapareceu
inteiramente, deixando apenas a claridade da esperança, brilhante via-láctea em
que se deviam abotoar sonhos ridentes de felicidade para Augusto.
O moço, desvairado e impaciente, dirigiu-se a
todas as pessoas que se achavam próximas, perguntando se não tinham visto
passar a sua protegida. Não colheu um único indício certo, e levado por
informações erradas foi parar justamente no lado da praça oposto ao em que
Irena reunira-se ao seu velho pai.
- É horrível, é horrível, meu Deus; esteve
junto a mim e no entanto eu não a reconheci logo.
E pela imaginação exaltada de Augusto
começaram a atravessar, tristes como um saimento, as idéias que naturalmente
surgiriam no pensamento.
"Hás de pensar que eu já não te amo, e
tens razão; que me importa a mim que outros sofram? Por que hei de esquecer-me
de meu amor, quando os outros se lastimam? A minha vida, a minha felicidade és
somente tu, Irena, e eu cheguei a desconhecer-te na mesma hora em que pensava
em ti."
O golpe cruel alquebrou-o profundamente;
sentiu que ia desfalecer, e a passos lentos e vacilantes dirigiu-se para o
hotel que fica em uma das faces da praça.
Naquela casa, onde só se hospedavam aqueles
que não tinham enfrentado em luta com a indescritível calamidade que assolava a
província, reinava a alegria. Vários hóspedes, sentados em volta de uma grande
mesa, conversavam, esvaziando lentamente copos de refrescos.
Um dos hóspedes, sentado a alguma distância,
lia atentamente um periódico, e parecia completamente alheio à conversação dos
outros.
Um caixeiro, porém, vindo abrir junto dele uma
soda, fê-lo de modo tão desastrado, que lhe molhou completamente a folha.
- Bem se diz que os capengas não formam -
disse o leitor contrariado.
O caixeiro, que coxeava de uma perna, abriu um
riso alvar e retirou-se, enquanto os outros hóspedes, intervindo nos
comentários do insignificante incidente e aplaudindo o dono do hotel, que,
deixando a cadeira em que estava sentado, acompanhou o caixeiro repreendendo-o,
observaram ao patrão:
- Não se apresse; os coxos apanham-se sem
dificuldade.
- Custa menos ainda a apanhar um mentiroso.
- Nem sempre.
- Haja vista a folha que o senhor acaba de ler
a respeito do tal vigário de B. V.
- Como assim?
- Não repararam na notícia que dá da chegada
dele a esta cidade? Pois vejam.
O interlocutor tomou o periódico e leu:
"Acha-se entre nós o Revmo. vigário de B.
V. Foi um tipo de caridade na sua paróquia, e durante a horrível
calamidade que a tem afligido prestou os maiores serviços, os quais só cessaram
depois que a extrema miséria violentou-o a retirar-se daquela localidade com a
maioria da população".
- Seguem-se congratulações com a capital pela aquisição de mais um digno continuador da obra de Cristo.
- É pessimista demais, doutor; não há nada
nesta notícia que autorize a julgá-la mentirosa. Um homem, por ser padre, não
deixa de ser homem.
- Eu conheço bem a história dos padres do
interior; sei quais os seus serviços nesta seca.
- Então não há exceções?
- Não duvido, mas basta olhar para o
procedimento que eles têm aqui na capital: estão a comer descansadamente as
côngruas e nem ao menos se prestam a levar os sacramentos aos retirantes. Estes
vão moribundos à Sé, onde a maior parte expira.
- É exato, mas daí não se conclui que o
vigário de B. V. não seja um homem virtuoso.
- Pois eu, julgando o tal padre pela sua
classe, digo-lhe que o seu elogio não me fará ver nele uma exceção.
- Não penso do mesmo modo; há aqui pessoas que
têm andado pelo interior, conhecem o vigário, e não tratam de desmentir a
notícia.
- Terão suas razões - interveio Feitosa
pedindo desculpa; - mas eu, que estive na localidade, sei muito bem que o padre
Paula é um malvado.
- Está com certeza cônego em pouco tempo -
sorriu o doutor; - isto é assim mesmo, quanto pior, mais depressa chega.
Feitosa, que havia asserenado um pouco,
despediu-se e saiu pensando consigo:
- Não te poderei talvez salvar, minha querida
Irena; mas tomarei contra o nosso algoz a mais cruel vingança.
No dia a que se referia a notícia da folha
cuja leitura Feitosa acabava de ouvir, um homem, com a barba e os cabelos
descurados, vestido de couro, e trazendo na mão um chapelão de sertanejo,
entrou pela Sé com passo vagaroso e medido.
Ajoelhou-se em frente ao altar-mor e,
inclinando-se profundamente, demorou-se por largo tempo a rezar.
A igreja apresentava um aspecto tristonho. A
claridade da tarde, que iluminava grande parte da nave e punha em relevo as
suas decorações, não tinha a mesma intensidade na capela-mor e deixava-a meio
mergulhada na penumbra.
O coro e um avarandado próximo, mobiliados de
cadeiras cômodas e numeradas corno num teatro, ostentavam à claridade
crepuscular uma preocupação hierárquica no domínio da igualdade cristã. Sob
eles jaziam, estendidos em cima de redes sórdidas, moribundos que a demasia da
anasarca ou o emagrecimento devido ao relaxamento intestinal tornavam deformes.
Junto a um confessionário sucediam-se um a um
estes fiéis, que vinham buscar na voz do sacerdote a última esperança.
O homem, depois de concluir a oração,
dirigindo-se a um indivíduo que estava encostado a uma das portas laterais da
capela-mor, perguntou-lhe quando poderia falar ao bispo.
- S. Ex.a tem estado incomodado e não recebe
ninguém.
- Está de cama?
- Não; mas não pode receber ninguém.
- Ele há de falar-me, tenho certeza.
- Pode ser; porém outros e de colarinho lavado
o têm procurado e ele não os tem recebido.
- Talvez o senhor não esteja bem informado; é
impossível o que me diz.
- Falo porque, sendo sacristão daqui, dou-me
com pessoas da casa, e estas, que têm olhos, vêem o que eu lhe disse. Fale com
o senhor padre, que ali está, e saiba, ao certo.
- É o que já havia resolvido.
Estas palavras foram proferidas com uma
entoação de altivez tal, que o sacristão olhou atentamente para o desconhecido.
Mediu-o de alto a baixo e, sorrindo desdenhosamente, murmurou:
- Está bem arranjado; tenho muito de que me
rir hoje.
O sacerdote, que estava no confessionário,
levantou-se por fim e, erguendo a voz, perguntou se não havia mais ninguém para
confessar-se.
- Se está algum dormindo, acordem-no, porque,
em saindo daqui, não estou mais para aturar maçada.
Ninguém respondendo ao apelo, o padre fez um
sinal para o sacristão, que enfiou pelo corredor da sacristia, enquanto sua
reverendíssima caminhava para a porta em que ele se achava.
Quando o padre, depois da genuflexão diante do
altar-mor, ia entrar no mesmo corredor em que o sacristão havia desaparecido, o
homem desabusado tomou-lhe o passo:
- V. Revma. pode dar-me uma palavra?
O padre, reparando no indivíduo que o
interrompera, parou bruscamente e interrogou:
- Há quanto tempo está à minha espera?
- Há quase uma hora.
- E não me ouviu perguntar se faltava mais
alguém para confessar?
- Mas eu não quero positivamente confessar-me.
- Pois eu não posso também conversar agora;
tenho de dar sacramento a toda esta súcia que ali está.
O padre apontou para as redes e, dirigindo-se
ao sacristão, que acudira todo risonho logo que lhe ouviu a voz, acrescentou:
- Creio que as hóstias não chegam.
- Eu enchi hoje a âmbula; temos hóstias a dar
com um pau.
O desconhecido, cruzando os braços e meneando
a cabeça, reparou por sua vez no padre e no sacristão e ficou a sorrir.
"Isto por aqui não difere muito do resto
da província, os costumes não mudaram" - pensou Paula.
O sacerdote e o sacristão voltaram pouco
depois, revestidos, para dar o sacramento, e um tilintar prolongado de
campainhas encheu o recinto.
Quando terminou a cerimônia, o desconhecido
acercou-se de novo do sacerdote, logo que ele começou a desrevestir-se:
- Diga-me, V. Revma.: os sacerdotes do sertão
não merecem nem uma palavra dos que moram na praça?
O sacerdote parou e encarou com o seu
interlocutor. Havia no seu olhar espanto e confusão; na sua mente de tingido do
Senhor não passava a simples hipótese de que fosse possível a um indivíduo da
sua classe chegar a tão mísero estado. O voto de pobreza para si não passava de
uma vã formalidade.
- Nunca nos negamos a manter boas relações com
os colegas - disse ele.
- Então leia - replicou o desconhecido, que
tinha levado a mão ao bolso e, tirando dele um papel, apresentou-o ao
sacerdote.
- Tenho, pois, a satisfação de falar com o
reverendo vigário de B. V. - murmurou o sacerdote, estendendo a mão ao
recém-chegado.
Paula correspondeu ao cumprimento e, com seu
sorriso irônico e incômodo, respondeu:
- Agradeço muito a bondade de V. Revma.
- Já vejo que não andam bons os negócios lá
pela sua paróquia.
- Pela minha ex-paróquia; lá não há mais
talvez viva alma, porque, se houvesse, não arredaria um passo do meu posto.
- É desta forma que se deve desempenhar a
nossa santa missão, se bem que outros não entendam do mesmo modo.
- Ah! eu tenho muitos exemplos disto...
- Estamos com a capital cheia de vigários que
abandonaram as suas paróquias.
- É que hoje não se pode habitar o sertão; não
se ganha para o prato.
- Do mesmo, pouco mais ou menos nos queixamos
nós; vive-se, porém muito apertadamente.
- Numa cidade como esta?!
- A cidade já deu muito, mas com a afluência
de padres não toca uma rua a cada um.
- É mau isto, homem!
- É o diabo, Deus me perdoe; estamos quase
retirantes.
Paula esperou em vão que o seu colega lhe
oferecesse a casa; mas, vendo que a conversação estendia-se, e que ficaria sem
pousada, formulou a pergunta já feita ao sacristão:
- Será possível falar ao sr. bispo?
- Pois não! Vindo comigo terá entrada; se
quiser, estou às ordens.
Atravessaram a igreja e, saindo pela porta
principal, Paula chamou a atenção do colega para o grande cruzeiro levantado em
frente à igreja, logo ao descer do átrio.
- Muitas saudades me causa este lenho.
- Dos tempos de estudante, naturalmente?...
- E dos primeiros tempos da minha carreira
sacerdotal.
- Não há quem não as tenha.
- As missas de madrugada, as festas da semana
santa. Estas eram então feitas com muito aparato e muito recolhimento.
- Hoje o aparato é maior.
- Mas o recolhimento acabou-se, hein?
- O número de devotos tem diminuído muito.
- Mas nem por isso o respeito pela religião se
perdeu de todo.
- Já não se pode fazer tudo; o padre já não é
o anjo do Senhor.
A medida que iam falando, os dois padres
dirigiam-se para o palácio episcopal, ao lado da igreja, e cuja porta principal
estava sempre fechada.
Paula, reparando nesta circunstância, ponderou
ao colega:
- Creio que perdemos os passos.
- Não; a porta conserva-se fechada para que S.
Ex.a não seja incomodado pelos retirantes. Se ele não tomasse esta providência,
nem todo o dinheiro da mitra chegaria para dar esmolas a essa corja. Vai ver
como abrem já.
Tinham parado em frente à porta, e o padre
bateu três pancadas fortes por duas vezes, e depois uma isolada.
A porta abriu-se e os dois padres subiram as
escadas do palácio.
O bispo, muito amável para o sacerdote, apenas
inclinou a cabeça diante do vigário.
- Venho apresentar-lhe o sr. vigário de B.
V., que chega entre nós neste miserável estado.
- Oh! - exclamou o bispo entendendo a mão a
Paula - muito sinto as suas infelicidades e me congratulo com a nossa santa religião,
pela coragem que sabe dar aos apóstolos.
- O mais humilde, o ínfimo dos servos de V.
Ex.a Revma. - respondeu Paula - e o mais indigno dos ministros do Senhor.
- Fez toda a viagem a pé, não é verdade? Deve
estar cheio de fadiga; esta casa fica desde já ao seu dispor.
- Eu contava com a grande caridade do meu
digno prelado e, como estou em extrema necessidade, aceito a esmola.
O bispo, deveras penalizado com o estado em
que via o vigário, apressou-se em alargar o seu obséquio, dando logo ordens para
que todos os cuidados da hospedagem lhe fossem dados.
- Eu calculo quanto sofreu V. Revma.
- A imaginação de V. Exa. pode imaginar o que
quiser, mas nunca chegará à verdade.
- O cansaço da viagem...
- Nada é diante das afrontas que sofri...
- As privações cruéis durante as jornadas...
- Foram muitas, mas nada valem, comparadas com
a dor das ingratidões com que me amarguraram os últimos dias que passei na
minha pobre B. V.
- Foram, pois, sofrimentos físicos e morais,
torturas da alma e do corpo.
- Não me aterraram, porque os suportei para
maior glória de Deus.
Paula passou logo a satisfazer a curiosidade
do prelado acerca dos negócios da paróquia.
A causa das suas perseguições foi um desastre
acontecido na família de um seu finado amigo, a quem ele prestou o serviço de
amparar.
O semblante de Paula estava tão artisticamente
perturbado, que fazia realmente acreditar na verdade das palavras, que eram
pausadamente ditas.
Prosseguindo na narração, acrescentou:
- Havia na família uma rapariga de 20 anos, a
qual criei nos meus joelhos. Era formosa, chamavam-na rainha do lugar.
Fez uma pausa, como se pela mente se lhe
erguesse o retrato primitivo de Eulália, com o seu corpo direito e cheio como
os estolhos novos do mandacaru; os olhos grandes, negros, de um brilho seco,
olhos que se destacavam muito sob as curtas pestanas das pálpebras finas.
- Dir-se-ia a estátua do pecado - concluiu
Paula.
- E esta rapariga perdeu-se? - perguntou o
sacerdote.
- É exato.
- E o que é feito hoje dela?
- Não sei; porém sobre mim pesa a
responsabilidade do seu destino no entender dos paroquianos, que me
constituíram seu sedutor.
Duas lágrimas tardas e grossas, espremidas com
grande esforço, rolaram pelas faces queimadas de Paula.
- A impiedade vai penetrando até os nossos
sertões murmurou o bispo, comovido pela hipocrisia do vigário.
- Já os ministros de Deus não podem sequer
professar a caridade - ajuntou o sacerdote; - V. Exa. não se lembra da acusação
que me fizeram, a respeito daquela família da rua da Palma?
O bispo meneou a cabeça, e Paula, com a finura
que tanto o engrandecera na paróquia, ponderou:
- Já V. Revma. sabe quanto semelhantes
injustiças doem; é preciso muita fé na remuneração da inocência por Nosso
Senhor Jesus Cristo, para que se vençam as sugestões da ira.
- O sr. vigário foi prudente?
- Tanto quanto se pode ser, apesar da
perseguição. A calúnia fez eco, na hora da missa; quando eu recolhia o meu
espírito para implorar da misericórdia divina perdão para os meus e para os
pecados dos meus paroquianos, estes prorromperam em insultos.
- Dentro da casa do Senhor?
- Dentro da casa do Senhor - repetiu Paula, em
cujos olhos as lágrimas continuaram a brotar. - Romperam até ameaças de morte,
e tão tremendas, que me vi constrangido a esconder-me na mesma hora.
- E não houve na paróquia quem tomasse o
partido de V. Revma.?
- Antes não houvesse; o meu coração não teria
um luto perpétuo, luto que só a morte dissipará.
- Houve então conflito?
- Os retirantes, esses desgraçados que são
órfãos em toda parte, haviam encontrado em mim um defensor natural. Graças à
boa vontade que só a nossa eterna fé sabe inspirar para com os que padecem, eu
velava por eles na qualidade de membro da comissão de socorros. Como os
tratava, pode dizer a vingança bárbara que tomaram espontaneamente. Na mesma
noite da injúria a paróquia era acometida alta noite pelos agradecidos
retirantes e a casa do outro comissário, do sacristão da paróquia e de um dos
potentados do lugar eram assaltadas. Os dois primeiros pagaram com a vida a
leviandade de terem tomado parte nas manifestações injustas que me foram
feitas.
- Foi então uma calamidade pública?
- Não pude evitar. Sentindo-me traído pelo meu
sacristão, abandonado, resolvi ocultar-me na sacristia e aí permaneci o dia
inteiro. Só consegui sair, quando o clamor do povoado advertiu-me da sua
iminente ruína. Então, empunhando um crucifixo, saí e contive ainda os ímpetos
dos assaltantes, que se desvairavam cada vez mais com a resistência que
encontravam nos paroquianos.
- É um fato singular - murmurou o sacerdote
pensativo -, muito singular.
O bispo agitou afirmativamente a cabeça e
Paula prosseguiu:
- Mais lhe admirará a outra circunstância. Um
dos poderosos da terra, moço completamente perdido, soberbo, ímpio, tinha
amores clandestinos com uma rapariga da paróquia. Ele era Feitosa e ela, Monte.
- O final há de ser por força uma tragédia.
- Não chegou a tanto, mas uma noite o rapaz,
ao sair da entrevista, foi surpreendido e apunhalado em um dos ombros, ferida
que não lhe causou a morte.
- Não podia ser outro o fim de tais amores.
- Pois bem; apesar de ser conhecida a
rivalidade secular entre Montes e Feitosas, o ódio vivo que eles se permutam,
querem saber quem foi o acusado de haver tentado perpetrar crime?
- V. Revma? - perguntaram os dois, admirados.
- Eu - respondeu submissamente o vigário -, eu
que não tinha relações íntimas com nenhum dos dois e que fui o primeiro a
apontar o Monte como o criminoso.
- Era então uma paróquia de doidos?!
- De caluniadores e perversos - observou Paula
- que me odiavam fingindo estimar-me, que me perseguiam, enfim, porque nunca fui condescendente com as suas
torpezas e os seus roubos.
- Tem na minha casa um abrigo; é a casa de um
seu afeiçoado.
Paula foi, pouco depois, acompanhado pelo sacerdote,
conduzido para os aposentos que lhe eram destinados.
- Então a rapariga era uma formosura, hein,
seu maganão? E você foi acusado injustamente - disse o sacerdote sorrindo.
- Falte-me a luz neste ponto - disse Paula
ajoelhando-se diante de um crucifixo - se eu por acaso tento desculpar-me de um
crime por mim cometido.
- Oh! diabo - pensou o sacerdote -, este não é
dos nossos, toma as coisas ao pé da letra; mas afinal há de se dar bem com o
sistema..."
Eulália demorou-se mais de 15 dias no hospital,
e só com grande esforço pôde conseguir da irmã a alta, por muitas vezes
pedidas.
- Vai expor-se a grandes sofrimentos e sem
necessidade, minha filha - ponderou-lhe a irmã; - Deus queira que se não
arrependa.
- É o meu dever que me chama, irmã; não quero
que me chamem ingrata.
O sol queimava; o sussurro da multidão
derramada pelas ruas e praças chamava a atenção, para logo infundir terror com
a miséria dos que falavam.
Eulália caminhava silenciosa e vagarosamente, olhando para todos os lados com a minuciosidade de quem observa por um microscópio.
De repente foi obrigada a parar.
Passava uma fila de carroças sobre as quais
eram transportados grandes tonéis de mel.
O líquido, vazando pelas frestas das toscas
vasilhas, deixava na calçada um rastilho negro.
Após as carroças precipitava-se uma multidão
de crianças, nuas, sórdidas, que apanhavam com os dedos os fios de mel, ou
deitavam-se sobre a calçada quente da soalheira para lambê-lo, não sem medonhos
conflitos.
"Como devem ter fome estes pequeninos
para que lhes consintam fazer semelhante coisa" - pensava Eulália, que
aproveitava a parada involuntária para observar à vontade os transeuntes.
Quando o ajuntamento dissolveu-se, Eulália
seguiu o seu caminho em direção ao palácio da presidência, o qual é avistado da
praça da Assembléia, de que dista apenas alguns passos.
- Disse-me a irmã que o presidente é um bom
homem; ele dar-me-á meios de encontrar com a minha família.
A lisonjeira esperança, que apressava e
impacientava a moça, não tardou, porém, a desvanecer-se; a ordenança do
presidente, com algumas palavras rudemente proferidas, transformou-a logo em
desengano.
- Espere lá fora; S. Exa. sairá de tarde.
Vamos, desentupa o beco, isto aqui não é comissão.
Eulália não se atreveu a insistir e voltou
consternada para a praça, onde havia presenciado o tristíssimo espetáculo dado
pelas crianças esfaimadas.
A aglomeração de povo não lhe permitiu andar
muito e a moça parou junto da linha de tabuleiros estendida em uma das faces da
praça.
As indiretas dos mercadores, as brutalidades
de alguns transeuntes começaram desde logo a incomodá-la e Eulália já se
dispunha a afastar-se, quando uma nova cena de miséria obrigou-a a demorar-se.
Uma vozeria enorme, atordoadora levantou-se do
meio da massa popular. Apitos prolongados e freqüentes sibilavam de todos os
lados e de par com eles agudos assovios e estrepitosas assuadas.
- Pega ladrão! - repetiram por muitas vezes
centenas de vozes, que eram em parte abafadas pelo barulho da multidão.
Grupos e grupos atropelando-se, enlearam em si
a moça, que foi, malgrado seu, transportada para o passeio da praça e para um
ponto em que não podia ver a ocorrência; mas logo que o barulho serenou,
Eulália pôde saber do que se tratava.
- Ora, é uma velha idiota, coitada, não se
pode levar em conta o que ela fez - disse um transeunte.
- Boa desculpa, com o pé de gira ela
vai fazendo das suas e comendo a fartar.
- E no entanto ela passa às vezes o dia
inteiro a catar no cisco bagaços de cana para chupar. Não está má a fartura.
- Recebe ração.
- Que outros furtam, ou que ela, por não ter
onde cozinhar, faz como todos: vende quilos de carne velha por dois
vinténs.
- E bebe o dinheiro que apura.
- Ela não sabe o que faz.
- Eu cá se fosse polícia não estava com autos
de perguntas: agarrava-a e metia-a na cadeia.
Os interlocutores deste rápido diálogo, que
haviam parado junto a Eulália, interromperam-no neste ponto e exclamaram ambos:
- Lá vem a pobre idiota.
- Lá vem a ladra.
Uma mulher de cerca de 50 anos, com os cabelos
desgrenhados e tendo por única vestimenta um saco de lona furado para
deixar-lhe passar a cabeça e os braços aproximava-se, seguida de uma nuvem de
crianças. Os retirantes abriam caminho para deixá-la passar e a infeliz,
bamboleando-se, estalando castanholas e cantarolando, marchava como que
desapercebida de si mesma.
- Repare - disse o interlocutor que defendia a
infeliz; - os seus olhos mostram bem que ela não tem nem pinga de juízo.
- Ora, não há nada que não se possa fingir
neste mundo.
A mulher que havia chegado em frente ao grupo
formado por Eulália e pelos dois interlocutores parou e, fazendo uma profunda
mesura ao que a acusava, perguntou-lhe com uma entoação tristíssima:
- Não conhece o Augusto Feitosa?
Uma gargalhada estrepitosa respondeu à
interrogação simplíssima. Só Eulália comoveu-se profundamente e não pôde
conter-se.
- Coitada da tia Antônia, como está desgraçada
- murmurou ela - já nem conhece a gente.
- Não o viu passar por aqui? - interrogou a
idiota. - Há muito tempo que eu o procuro para que ele me dê o conto de réis.
- Pois procure - resmungou o indivíduo a quem
ela se dirigia; - há de procurar por muito tempo.
- Eu quero contar-lhe como foi o caso da
paróquia. Eu vi o vigário sujo de sangue, e sou capaz de jurar que foi ele e
não o Monte quem o quis matar. Ouve? Se vir por ai o Feitosa, diga-lhe que
venha falar comigo.
- É a cisma da infeliz - ponderou o outro
indivíduo; - não sei o que será isto.
- Um conto de réis - acentuou a idiota -
nestas mãos, que festa não farei! Havemos de comer, de pagodear, de cantar, de
dançar.
Dizendo estas palavras a velha recomeçou as
castanholas e o cantarolado e prosseguiu na sua marcha bamboleada.
Eulália, que tinha custado a dominar o desejo
que teve de dar-se a conhecer à velha, ficou como que petrificada.
As palavras da ex-cozinheira de Paula
vibraram-lhe um golpe profundo, porque, embora não tivesse mais pelo seu
sedutor a paixão de outrora, todavia não pudera desencravar do coração a sua
imagem.
A acusação formulada pela idiota comoveu-a.
Tinha consigo as provas do crime de Paula e além disso tinha a sua própria
confissão. Sabia mais que tal acusação feita ao vigário, este não resistiria
embora a levantasse uma idiota.
Demais a velha Antônia procurava Feitosa e era
bem provável que este, depois do desbarato da paróquia, tivesse vindo também
para a capital e era, portanto, fácil um encontro entre eles.
Se tal acontecesse, qual seria o destino de
Paula? Aquele que tanto pânico lhe causava: a vergonha, a infâmia, e agora
inevitavelmente, porque havia uma prova fatal, a voz daquela velha que irrompia
através da noite de seu espírito.
Perturbada e perplexa diante do futuro
horroroso que se desdobrava no horizonte de Paula, Eulália sentiu erguer-se no
seu espírito uma pergunta pungente:
- Paula já terá vindo para a capital?
Abaixou a cabeça contristada e, quando a
levantou, viu passar em frente a si dois sacerdotes conversando alegremente.
Um deles era Paula.
Tinha readquirido o semblante dos bons tempos
da paróquia, o ar acessivo ainda que severo, o passo cadenciado e firme e
sobretudo o seu olhar feito de sarcasmos e de altivez.
Eulália, ao reconhecê-lo, sentiu-se duplamente
impressionada: pedia-lhe o coração que o avisasse, que o fizesse medir a
extensão do perigo que corria; a dignidade ofendida impunha-lhe silêncio e
indiferença para com o principal responsável das desgraças de sua família e de
seus amigos.
O coração porém venceu, e Eulália, arrastada
por uma força invencível, seguiu por algum tempo os dois sacerdotes através da multidão
e foi depois colocar-se em lugar em que pudesse ser vista por Paula.
- Quero saber se o amor perdura ou se a sua
perversidade chegará até desprezar-me. Vejamos.
Paula aproximou-se em pouco tempo e,
impassível, conservando nos lábios o sorriso condescendente com que ouvia o
colega, passou olhando friamente para Eulália.
- No fim de contas, é preciso que você saiba a
sociedade em que está; é preciso conhecer o mundo - ponderou o companheiro.
- Eu conheço bem os seus enganos e as suas
desilusões - respondeu Paula; - a felicidade não foi partilha da terra.
- Miserável - pensou Eulália -, fingiu não me
conhecer.
- Com que então há muito a aprender cá neste
mundo da capital?
- Muito, mas muito, meu vigário, e quem não
souber viver aqui não faz nada.
- Sobre que versam os conhecimentos? Há de ser
por força sobre perversidades, porque do que já lhe ouvi sobre o caso da
família sua protegida, a virtude aqui não é muito respeitada.
- Meu vigário - disse o sacerdote parando -,
atenda bem para esta verdade: a voz do povo é mais vezes voz de Deus do que voz
do diabo.
- Como assim?
- Eu tenho experiência própria. Freqüenta-se
uma casa; maridos, pais, irmãos, todos, enfim, estão na mais inteira boa fé,
ninguém suspeita coisa alguma. O povo, porém, começa a murmurar e, no fundo, há
sempre verdade.
- Então o padre confessa que no seu caso
houve...
- E crê você que é alguma novidade? Antes de
mim, já muitos tinham feito o mesmo.
Paula sorriu olhando de través para o
companheiro e acrescentou:
- E nem por isso a igreja deu em terra; a fé
continuou o que era.
- Portanto façamos todos o mesmo - acentuou
Paula ironicamente.
O companheiro percebeu a intenção do vigário,
mas julgou conveniente dissimular.
- Não digo tanto, mas quando se é acusado de
haver por sugestões da paixão lançado a desonra no seio de uma família, de
haver tentado contra a vida do seu semelhante, de haver atirado uma aluvião de
famintos sobre uma povoação pacífica, parece-me de bom conselho não querer ser
exceção entre os outros.
- Mesmo se todas estas acusações não passam de
calúnias.
- Mesmo assim, porque os jornais têm as suas
colunas para receber o que se escreve e não tratam de saber se é exato ou não.
- Isto é uma ameaça formal?
- Não, longe de mim pensar em tal, mas o meu
vigário conseguiu as boas graças do senhor bispo, em menos de 15 dias tornou-se
já influência junto dele, e o meu vigário, ouvindo uma declaração minha na
intimidade, pôs-se a rir de mim.
O sacerdote havia insensivelmente erguido a
voz de modo que as suas palavras podiam ser distintamente ouvidas por Eulália,
que de novo tinha ido colocar-se na passagem de Paula.
- Foi um engano do meu colega - sorriu o
vigário - e para prová-lo peço-lhe que tome os fatos da paróquia do modo que
entender.
- Mudemos de conversa - disse o sacerdote e,
assinalando Eulália, ajuntou - está ali uma bonita morena. Repare.
- Não é feia, não - respondeu Paula
estremecendo involuntariamente - é bonita.
- E é retirante, isto é, não dá trabalhos.
Paula não respondeu. As palavras do companheiro
traspassavam-no como punhais buídos e faziam com que o remorso sangrasse-lhe o
coração.
De relance passou-lhe pelo espírito uma
suspeita. Não teria o despeito levado Eulália a acusá-lo? Os excessos a que ele
se entregava na casa das perdidas de Quixadá era uma grave ofensa a qualquer
mulher, quanto mais a Eulália que lhe havia dado as primícias do seu amor, toda
a abundância de sentimentos que ela entesourara durante 20 anos de virgindade?
Era possível que a generosidade daquela alma chegasse ao ponto de perdoar
tamanha afronta?
A dúvida ficou irrespondida, e deu como
resultado a fraqueza e o terror. Paula, ao passar por Eulália não teve mais
coragem de encará-la, estava deveras humilhado e arrependido.
- Oh! vigário - resmungou o companheiro -, a
rapariga vem seguindo-nos ao que parece.
- Talvez não, o que quererá ela de nós?
- Talvez esmola... As retirantes gostam muito
de pedir esmola aos padres. Sabem que, em regra geral, são sempre atendidas.
- Mas há retirantes e retirantes. Nem todas se
sujeitam a pedir.
- Conhece você esta rapariga?
- Não... nunca a vi, mas parece-me, pela cara,
ser uma rapariga digna.
- Ai! que você tem saído só de palácio -
exclamou o sacerdote; - está com tanto zelo!
Paula sorriu-se a princípio, mas de chofre,
sendo avassalado pela dúvida de que o sacerdote, sabedor dos sucessos da
paróquia e do papel que neles Eulália representava, o quisesse experimentar,
ponderou com uma acentuação severa:
- Está enganado, colega; eu nunca vi aquela
moça, e se tem alguma suspeita dissipe-a.
O padre olhou de través para o semblante de
Paula, que não podia dominar-se mais e deixava patente a sua impressão.
“É singular" - pensou o sacerdote,
notando a comoção de Paula e ao mesmo tempo que Eulália acompanhava-os sempre;
- há de haver sucessivamente algum mistério aqui."
Deram mais alguns passos e o
sacerdote, parando de chofre, disse para o vigário:
- Tenho urgente necessidade de ir hoje ao
palácio; desculpa-me, não, colega?
- Oh! - respondeu Paula, a quem a despedida do
padre livrava de um pungente incômodo - eu não quero interrompê-lo nos seus
negócios.
O padre afastou-se lentamente, observando, sem
que fosse percebido, a confusão do vigário em face da moça.
- O que haverá entre eles? - interrogava a
curiosidade do sacerdote.
Paula, voltando sobre os seus passos, caminhou
na direção oposta àquela em que estava Eulália, que parou por algum tempo,
olhando para o sacerdote; que se viu constrangido a dobrar a primeira esquina.
Eulália percebeu que a intenção de Paula era
evitá-la e hesitou em segui-lo.
- Deixá-lo ir, há de parar diante da sua
própria ingratidão.
Mas o despeito da mulher desprezada veio eivar
a altivez do coração. nobre e generoso. Já não era o mesmo impulso, que a
levaria a seguir os dois padres por tanto tempo, o que lhe dirigiu os passos no
encalço de Paula, que, fingindo-se indiferente, tomou a rua que passa pela
frente do palácio para a praça do paço episcopal.
Na esquina de uma das ruas transversais, que
desembocam naquela pela qual seguiam os dois, uma aparição, medonha aos olhos
de Paula, como um espectro, fê-lo estatelar.
Era a mísera tia Antônia. A criançada
acompanhava-a, dando-lhe puxões e assovios, prorrompendo em gargalhadas cada
vez que a infeliz cambaleava.
Eulália aproximou-se então de Paula e com um
sorriso, que lhe pertransiu o coração, segredou-lhe:
- Não a conhece também, sr. vigário?
Paula não respondeu, mas, como se fosse
bruscamente despertado de um letargo, tentou voltar.
- É a tia Antônia - acrescentou Eulália; - o
seu idiotismo tem origem no crime da paróquia, e ela procura o autor dele.
Perturbado e vacilante, o vigário,
esforçando-se para libertar-se ao mesmo tempo da multidão que o envolvia e das
palavras de Eulália que o torturavam, deu um passo, mas no mesmo instante a mó
dos meninos empurrando a idiota violentamente, esta veio bater de encontro ao
vigário, em cujos ombros segurou para amparar-se na queda.
- Veja como me fazem mal estas crianças e eu
não lhes fiz mal nenhum - murmurou a desventurada.
Paula, calado e trêmulo, encolheu bruscamente
os ombros para tirar-se da compressão incomoda que o detinha, mas foi inútil: a
idiota, segurando-o com mais força, ajuntou:
- Eu não o deixarei mais... Irei consigo para
fugir deles. Vê? Estão já quietos.
De feito as crianças, educadas no brutal
fetichismo das massas pobres da província, ficaram interditas diante do
sacerdote. A assuada parou como por encanto, e grande parte dos meninos voltou
correndo para a praça da Assembléia, enquanto a outra imobilizara-se em face de
Paula.
- Sim, eu a protegerei - disse Paula
desnaturando a habitual entoação - mas é preciso que não me impeça de andar;
acompanhe-me.
- Está perdido - pensou Eulália -; a velha
Antônia o reconhecerá desde que o encare.
Eulália enganou-se; a idiota, ouvindo a voz do
vigário, correu a mão pela testa, como que para despertar uma reminiscência;
depois encurvou a mão em torno da orelha, fitou longa e minuciosamente o rosto
de Paula, e perguntou-lhe:
- Vossa Mercê é padre, não?
Paula, chamando a si todo o sangue-frio,
respondeu tranqüilamente.
- Você bem vê, filha; não tenha medo, venha
comigo, ninguém lhe fará mal.
Levantou em seguida a voz com a inflexão
autoritária do sacerdote respeitado e exclamou:
- Deixem em paz a mulher, vamos, deixem-na em
paz, ou os farei espalhar pela polícia.
- Bom padre - murmurou a idiota - eles me
faziam mal, e eu não lhes fiz mal nenhum.
- Vamos, filha - tornou Paula com meiguice; -
eles são uns malvados.
A velha Antônia, deu alguns passos silenciosa,
mas, parando de improviso e colocando as mãos no peito de Paula, exclamou:
- Conhece o Augusto Feitosa?
O semblante de Paula transtornou-se
visivelmente, e a velha prosseguiu:
- Ele está aqui, deve dar-me o conto de réis,
porque eu sei quem o quis matar. Na mesma noite do crime o vigário entrou em
casa com a roupa ensangüentada.
- Cala-te, infame - disse o vigário com uma
voz surda e gutural; - quem quis matar o Feitosa tem mãos ainda.
E apertou brutalmente o braço da idiota, a
quem em seguida empurrou para longe de si.
A tia Antônia olhou assombrada para o vigário
e de novo passou a mão pela fronte; depois murmurou, meneando-a:
- Não, não é ele, eu o conheço bem.
- Não me reconhece - pensou Paula - estou
salvo.
Apertou o passo e seguiu precipitadamente.
Eulália aproximou-se então da idiota e
perguntou-lhe, sacudindo-a por ambos os punhos:
- Não me conhece, tia Antônia?
- Não - respondeu a idiota, encarando-a
fixamente com o seu olhar estúpido -, não sei.
- Sou Eulália; não se lembra da filha do
professor de B. V.?
- Não - repetiu a idiota -, não sei.
- Oh, Santo Deus, como os malvados são felizes
- pensou Eulália.
Ficou por algum tempo pensativa olhando ora
para a velha, ora para o vigário. O cálculo falho abatia-a e fazia com que a
razão se lhe perturbasse, vendo que Paula teria a impunidade absoluta, enquanto
ela e as outras vitimas ficariam condenadas à dor e à miséria.
- Diga-me, tia Antônia, não conheceu também
aquele padre? - perguntou-lhe Eulália repentinamente.
- Não - repetiu a idiota -, não sei.
- Pois é ele o vigário Paula!
Eulália contava que esta revelação produzisse
grande abalo à idiota, mas, ao contrário da sua expectativa, a tia Antônia
continuou impassível e limitou-se a responder como sempre:
- Não, eu não sei.
Vendo definitivamente perdida a ocasião de
tomar a desforra do seu sedutor, mordida pelo desprezo esmagador que ele agora
ostentava por si, a moça correu na trilha de Paula, que já entrava no largo do
Palácio.
Dentro em pouco tempo, malgrado os esforços do
vigário para não se deixar alcançar por ela, Eulália colocara-se-lhe diante.
- O que fiz eu para merecer o seu desprezo? -
perguntou arquejando.
- As peripécias da viagem fizeram-na tomar
hábitos maus, mulher - ponderou Paula; - eu não quero passar pelo desgosto de a
mandar meter na cadeia.
- Eu quero saber o que fiz para merecer o seu
desprezo - repetiu Eulália pondo-se-lhe diante e impedindo-o de caminhar.
- O tempo da loucura passou; a senhora não era
uma criança; amava-a, correspondeu-me, o erro foi recíproco. Por minha parte,
eu hoje apenas quero esquecê-lo.
- Eu tenho um meio de lembrá-lo sempre.
- Não me acobarda; não é muito que uma mulher
que ia a minha casa, que foi minha amante pudesse furtar um punhal meu para com
ele armar contra mim inimigos.
Eulália, medindo a força do argumento de Paula
e ao mesmo tempo sentindo reaparecer naqueles olhos o brilho magnético que lhe
dava tanta superioridade, abaixou os olhos confusa e murmurou:
- É um castigo horrível, meu Deus; em paga do
meu amor, só tenho a vergonha e a miséria.
Paula sorriu triunfante. as dificuldades, que
ele teve a fraqueza de supor lhe seriam criadas por Eulália, desapareciam de
chofre, e em vez delas aparecia-lhe o futuro desassombrado. Quis ganhar ainda
maior prestigio, esmagar mais uma vez Eulália e, metendo a mão no bolso, atirou
aos pés da moça algumas moedas em cobre.
- Tem razão - disse ele -, eu não lhe paguei
os meses do nosso amor; leve isto por, conta.
E afastou-se tranqüilamente, deixando Eulália
imóvel de indignação.
Enquanto a adversidade desfechava golpes
violentos no coração de Eulália,. não poupava também a sua família.
Levadas pelo bilheteiro da estrada de ferro à
casa do comissário do abarracamento T..., d. Ana e suas sobrinhas foram por ele
bondosa e compassivamente recebidas. Receberam logo uma guia para serem
acomodadas e, o que as desvaneceu muito, uma recomendação especial.
D. Ana, a quem as freqüentes decepções tinham
tornado suspeitosa em extremo, saiu da casa do comissário abençoando-o
sinceramente.
- Santo homem! Iguais a ele é que deviam ser
todos os comissários.
De feito, julgado pelas aparências, o
comissário inspirava a maior confiança a quantos se aproximavam de si. Era
chefe de uma família numerosa, a quem mostrava adorar. Sempre que falava aos
retirantes, chamava para a sala os filhos menores, e, afagando-os, beijando-os
muito, espremendo lágrimas dos seus 40 anos, expunha fases tristes de sua vida.
- Conte com um amigo. No meu abarracamento não
há retirantes e comissário, há somente amigos e irmãos.
Profundamente beato, o comissário misturava às
suas frases consoladoras as mais comoventes máximas do catolicismo, de modo que
toda a gente acreditava que nele se ocultava o arcabouço de um futuro santo.
- Eu, minhas senhoras, entendo que só há um
caminho para a felicidade neste mundo: é compreender bem os mandamentos da
Santa Madre Igreja: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós
mesmos. Tudo o que não for isto é vão e falso.
E, abaixando a cabeça pequena, sarapintada de
cabelos brancos, aquele homem de estatura mediana, de carnação parca, de olhar
terno e humilde, acrescentava:
- Quando eu me casei, aos 18 anos, ninguém se
lembrou de tais verdades para comigo. Não nutri ódios, porém, resignei-me,
trabalhei e consegui.. Sei hoje quanto custa o infortúnio e o preço da
felicidade.
D. Ana saiu verdadeiramente tranqüila da casa
de tão profundo moralista e chegada ao abarracamento foi aí recebida
atenciosamente.
O administrador, um rapaz de vinte e poucos
anos, robusto, de maneiras delicadas e semblante que insinuava, esmerou-se em
obsequiá-la, a ponto de causar estranheza aos próprios companheiros.
Não havia para hospedar as recém-chegadas
lugar nenhum decente. O abarracamento tinha capacidade para mais de uma dezena
de milhar em vastíssimos telheiros, sob os quais viviam os retirantes numa
promiscuidade de animais. O lanço, que era formado por pequenas casas, estava
todo ocupado, e não era possível de momento arranjar aí morada para a família.
- As senhoras hão de ter notado quais as casas
em que moram os retirantes. Por ora é o que se tem podido fazer.
D. Ana, receando ser posta em contato com a
massa repelente dos seus iguais em desventura, abaixou tristemente a cabeça.
- De pronto não é possível arranjar-lhe uma
casa, portanto, à vista da recomendação especial do comissário, as senhoras
ficam hospedadas aqui até segunda ordem. Venha comigo.
O administrador atravessou uma pequena sala em
que estavam apinhadas as sacas de farinha e as mantas fétidas de carne.
Entre este compartimento e o outro em que
devia ficar hospedada a família, havia dois outros: um era a rouparia, e outro
um quarto pobre, mas decentemente mobiliado, em que, segundo a frase do
administrador, "o comissário descansava e ouvia as queixas particulares de
retirantes de uma certa ordem".
- Ah! é um santo homem, o comissário - repetiu
o administrador mostrando à família a parte central do abarracamento; nenhum
trata os retirantes com tanto carinho.
E o preposto chamou a atenção da senhora
principalmente para uma prateleira que havia na rouparia, e que tinha em cima
um grande letreiro: Dietas. O aspecto, e a qualidade dos gêneros confirmavam a
afirmação do administrador.
- Eis aqui a sua casa - disse ele por fim; -
aqui estão um quarto e uma sala. Não é um bom cômodo, mas serve. As senhoras
dormem aqui, e podem fazer a sua cozinha lá fora; eis aqui a porta para sair.
D. Ana e as sobrinhas ficaram maravilhadas;
tanta bondade afigurou-se-lhes por momento interessada, mas ao mesmo tempo o
desinteresse do homem que as recomendara ao comissário, a figura simpática
deste, que era um pai de família afastaram a mais leve suspeita acerca das
intenções com que tudo era feito.
- O mundo não é felizmente composto de
malvados somente, ainda há homens dignos no meio dos perversos - ponderou d.
Ana à Chiquinha.
- Parece, pelo menos - respondeu esta cujos
olhos tinham por vezes encontrado com os do administrador.
- Agora - disse o jovial preposto - quero
mostrar-lhes que, apesar de toda a bondade do comissário, aqui temos meios de
manter a ordem. Vejam as senhoras.
Tinham saído e haviam, depois de alguns
passos, parado diante de uma casa de paredes fortes. O administrador tirou do
bolso uma chave e abriu a única porta, que dava para fora e deixava ver uma
pequena sala, completamente nua.
- Esta casa tem seis compartimentos. Serve
para castigar os retirantes de uma certa ordem.
- É medonha - disse Chiquinha sorrindo: - não
tem janelas? Não entra luz aí?
- Não. Foi feita de propósito para o caso de
delitos graves.
- E aí tem estado muita gente presa?
- Nem por isso, felizmente. A maior parte das
vezes basta só a ameaça.
Quando o administrador voltou com a família,
diversos empregados tinham vindo espreitar, e sorriam maliciosamente.
- Olhem o Neco como se apresenta... Querem ver
que ele está fingindo de comissário ~...
- A rapariguinha mais velha é bem bonita.
- Felizardos... o melhor guardam para si.
O administrador, deixando a família, que não
reparara no ar dos curiosos, veio a esfregar as mãos e a rir.
- Com que então, seu Neco, você é quem pode.
- Mais baixo; parecem muito ariscas, fidalgas
da roça.
- É por isso que começam com este tratamento?
- Coisas do comissário.
- O que vale é que isso não dura muito,
é só enquanto as pequenas engordam.
- Mais baixo, cambada, a velha é desconfiada,
se ouve falatórios já, é capaz de arrepiar carreira.
- Grande perda, tão boas ou melhores não
faltam por aí, é pegar com os olhos fechados.
- Mas o grande caso é que vocês têm água na
boca.
O empregados rindo e chacoteando com o
administrador afastaram-se finalmente e deixaram-no só com o fiel do armazém.
- É esquisito este procedimento do comissário;
nunca se fez isto aqui.
- Ele não me recomendou que procedesse assim,
mas como disse na carta - recomendo-lhe tratamento especial -, entendi que
devia tomar esta resolução.
- E se ele não concordar?
- Ele há de alegrar-se até.
O administrador tinha razão quando afirmava
que o comissário alegrar-se-ia com o seu procedimento.
Quando à tardinha veio ao abarracamento, o
comissário ainda a cavalo, perguntou pelas suas recomendadas e, apeando-se,
acrescentou falando à puridade com o administrador:
- Então, que tais as meninas?
- Bonitinhas, mas estão multo desfeitas.
- Com uns 15 dias de bom tratamento refazem-se
e ficam ai fortes e de se verem.
- Se alguma febre não as lapear de um trago...
- Não agoure; você já está com inveja das
minhas moreninhas.
Desfazendo-se em jovialidade, foi logo visitar
d. Ana e presenteá-la com o melhor que havia na despensa das dietas.
- Não está tão bem como na sua paróquia, mas
não lhe faltará nada, minha senhora - disse o comissário; - o pedido do meu
amigo é como se fosse o de um pai. Devo muito, devo tudo aquele homem. O tempo
lhe demonstrará quanto vale para mim a recomendação que a senhora trouxe...
De feito, nos dias subseqüentes, o comissário
esforçou-se por se tornar cada vez mais amável e acessível. Distribuiu roupa
pela família, e contemplou-a na lista das viúvas que recebiam pensão semanal.
D. Ana não sabia até onde estender a sua
gratidão e; não sabendo também como demonstrá-la de modo a corresponder a
cordialidade do comissário, entendeu que o melhor meio era trabalhar para
limitar o mais possível a esmola de que tinha necessidade.
Doze dias passaram-se assim; d. Ana durante
todo este tempo não pedira coisa alguma ao comissário que era o primeiro a
obsequiá-la.
Em uma das suas visitas diárias, o comissário,
que se apeava à porta de d. Ana, pediu-lhe vinho.
- Já não o temos - respondeu a senhora
abaixando os olhos de acanhada -, mas se vossa mercê não estranha...
- Pelo amor de Deus, minha senhora, tenha a
bondade de mandar uma de suas sobrinhas buscar. Eu vou já à despensa.
Chiquinha foi mandada pela velha senhora e
acompanhou o comissário até a despensa.
Caiu então a máscara' ao hipócrita. Às suas
primeiras palavras revoltou-se o pudor de Chiquinha, que se limitou a
defender-se com as lágrimas e uma queixa inofensiva.
- Minha tia tem Vossa Mercê como um homem de
honra.
O comissário, vendo que a sofreguidão podia
prejudicar ou pelo menos dificultar os seus cálculos, conteve-se e, sorrindo,
ponderou à moça:
- Ah! eu logo vi que você havia de ofender-se;
quis experimentá-la. Agora vejo que trato com gente séria.
Chiquinha sorriu contente e agradecida e
levantou para o comissário os seus olhos negros arrebatadores.
- Não é preciso que a titia saiba do que se
deu não é verdade? Ficamos amigos, sim?
A moça meneou afirmativamente a cabeça e
saindo apressadamente, ao chegar à casa, longe de deixar pairar a menor
suspeita sobre o caráter do comissário, fez dissipar se uma tácita interrogação
que lhe fazia o olhar de d Ana.
O comissário, porém, não tardou a desmenti-la.
Não compreendera a profundeza das poucas palavras de Chiquinha; pelo contrário,
inferiu da sua brandura que não haveria dificuldade séria aos seus planos.
Resolveu dirigir-se jeitosamente à d. Ana e no dia seguinte convidou a velha
senhora para correr o abarracamento.
- Vê a senhora? - disse o comissário mostrando
as grandes barracas onde os retirantes viviam em brutal promiscuidade. - Dói-me
o coração, mas não me é dado fazer mais. Gomo isto é horrível, hein?
- É exato.
De feito, o comissário e d. Ana estavam em
face de um espetáculo comovente. Mulheres, homens e crianças, todos
esfarrapados e sórdidos, levantavam-se como que desvairados e vinham-lhes ao
encontro, erguendo súplicas e prorrompendo em soluços. Tinham fome, viam os
parentes moribundos e sem amparo, queriam algum socorro.
O comissário respondia com uma série de
consolações banais e esperanças vãs e, convidando d. Ana, fê-la penetrar no casarão
emparedado apenas em três das suas faces.
Haviam apenas dado alguns passos, quando o
comissário julgou que devia chamar de novo a atenção de d. Ana.
- Vê a senhora quanta miséria eu não posso
evitar?
D. Ana não pôde conter as lágrimas, em face do
quadro que se lhe oferecia às vistas.
Sobre o chão estava estendido um cadáver.
Era uma vítima da anasarca; a inchação o
deformava e tornava-o repelente. Largas fendas nas pernas dessoravam,
desafiando a gula de um mosqueiro, que esvoejava e pousava sobre o corpo, ora
sugando-o nos lagrimais, ora nos beiços roxos, de que escorria um ló de escuma,
ora penetrando nas fendas fétidas. O cadáver tinha como sudário uma tanga feita
com um pedaço imundo de lona.
A pequena distância do morto estava deitada
uma mulher ainda moça e que devia ter sido linda. Uma palidez mortal
revestia-lhe as feições, a tristeza embaciava-lhe os olhos e imobilizava-lhe o
olhar de modo que a desventurada parecia estar morta também.
- Olá - disse o comissário chamando o inspetor
do abarracamento; - por que deixou ficar aqui este homem?
- A mulher pediu-me que o deixasse ficar ao
menos até logo à noite.
- Estas vontades não se fazem - resmungou o
comissário - remova-me isto daqui.
Dizendo estas palavras, o comissário olhou de
través para d. Ana, para medir o efeito que este rasgo de brutalidade lhe
causara. Ficou satisfeito: d. Ana estava perplexa a olhá-lo.
- E quanto a esta mulher, é preciso dar-lhe
alguma coisa; ela já comeu hoje?
- Não se distribuíram rações hoje. As rações
são dadas nas segundas, quartas e sextas, hoje é domingo.
- E na sexta-feira deram-lhe ração?
- Ela trocou a ração por uma dieta de carne
fresca para o marido.
- Que estúpida - exclamou o comissário. - Vão ver que está para morrer de fome.
- Ela é muito soberba, quer se fazer de boa.
- Bom, amanhã não se esqueça de dar-lhe alguma
coisa, caso ela não morra hoje como parece.
A mísera mulher, de quem o comissário se
ocupava, volveu para ele os seus belos olhos cearenses, onde como que já se
projetava a sombra do túmulo, e sorriu.
- Bonitos olhos, não acha, d. Ana? - perguntou
o comissário que ostentava perversidade para intimidar a senhora.
- É pena que a terra não demore nada a
comê-los...
D. Ana não pôde mais conter os soluços e as
lágrimas, e o comissário com um suspiro fingido exclamou:
- Pensa a senhora que a minha alma não se
penaliza com isto? Não a quero ver sofrer tanto, vou infringir as minhas ordens
e socorrer esta infeliz. O sr. inspetor, leve já a mulher para o hospital.
- Obrigada, mil vezes obrigada - soluçou d.
Ana; - eu lhe agradeço em nome dos céus.
A moribunda levantou para d. Ana os olhos em
que bailavam duas grossas lágrimas, e o inspetor, coçando a cabeça, levantou a
infeliz, que entregou a dois serventes para que se cumprisse a ordem do
comissário.
- A senhora tem realmente um coração de anjo -
disse o comissário. - Veja agora também quanto tenho me esforçado para ser-lhe
útil e minorar-lhe os sofrimentos. Imagine o triste caso de não ter vindo com a
recomendação de um amigo meu, ou, o que nunca há de acontecer, a desgraça de
não me ser mais possível protegê-la. Quanta miséria, não é verdade?
D. Ana meneou a cabeça afirmativamente.
- Pode perguntar aos retirantes, um por um, se
o meu não é o abarracamento em que eles encontram melhor tratamento e,
entretanto, é isto: calcule agora o que serão os outros.
- Que horror! - exclamou a boa senhora. - Eu
creio porque vejo.
As palavras de d. Ana demonstravam comoção
mais profunda do que o comissário visara obter da, incômoda visita ao abarracamento.
De si para si o hipócrita julgou seguro o
êxito da sua baixa e criminosa empresa: conseguir pelo terror a desonra da
família Queiroz.
Decidiu-se, pois, a terminar a prova a que
submetera a honrada senhora, e voltou para a casa da administração.
- Até logo, d. Ana - disse ele ao entrar.
- O mais certo é até amanhã; é quase noite.
- Não, é até logo. -.
- Dá-nos muito prazer.
Separaram-se e com eles o sol despediu-se
também do abarracamento, sobre o qual ficaram, apenas pairando as tristes
claridades do crepúsculo e os ais dos que sofriam.
Não há cores que descrevam a vizinhança da
noite longe dos céus sob os quais temos as nossas afeições, as nossas
intimidades, todas as reminiscências, do passado e os escombros de todos os
sonhos do futuro. Há, então no pungir da saudade um incitamento invencível às
lágrimas. Da funda depressão que ela nos deixa no espírito, a imaginação
tristonha levanta visões comoventes, que nos endoidecem abeberando-nos de
angústias.
O crepúsculo parece um rosto carrancudo que
nos censura a vida, dir-se-ia que ele, com os últimos clarões do dia,
arrasta-nos o porvir: tamanho é o vazio que nos fica no coração.
Sob a luz mortiça de semelhante tarde
recolhiam-se ao abarracamento os trabalhadores, os miseráveis que debaixo da
soalheira do meio-dia, queimando os pés no areal ardente, torturando-se com as
gritas e as ameaças dos inspetores, tinham ido conquistar uma ração minguada
para a mulher e os filhos andrajosos.
Para recebê-los, havia, entretanto, sorrisos,
e que sorrisos - vitórias contra a fome, derrotas da morte.
Como que todo o abarracamento se animava:
aquele monturo ganhava uma alma.
O comissário, à janela, vendo as moças
retirantes que passavam correndo, e colhendo os andrajos para guardar a
compostura, dizia obscenidades a rir com o administrador:
- Olhe você, eu quero estabelecer aqui o banho
obrigatório e em comum.
- É quase impossível, não temos local.
- É difícil, sim, e por isso mesmo tenho
demorado.
- Há um meio de as ter asseadas; é negar ração
aos pais.
- Porém isto não evita que várias: vezes
tomemos gatos por lebres.
- Isto é verdade; e ainda agora creio que o
senhor cai numa dessas, com as vizinhas.
- Não, eu já lhes dei os contras; estão
seguras.
- Eu lhes vejo assim um certo ar.
- Querem vender o peixe caro, mas afinal
vendem-no pelo preço das outras.
- Pode ser.,. mas eu quero ver.
- Pois chame-me lá, a Chiquinha... Já se sabe
diga à velha, que a mandei chamar.
O administrador, cumprida a ordem, entrou, a
convite do comissário, para a rouparia.
Chiquinha acompanhada, pela caçula apareceu
dentro um pouco e veio falar com o comissário.
- Aqui estou - disse ela sorrindo -, às suas
ordens.
- A titia disse-lhe que eu ia logo lá, não?
Vou com efeito e para isto a mandei chamar, para que leve algumas bolachas e
café para a nossa ceia. Entre.
Chiquinha, olhando de soslaio para o
comissário, entrou tomando nos braços a caçula.
O comissário, que a veio esperar na passagem,
fechou a porta sobre si e, antes que a surpresa da moça desse tempo à
esquivança, depôs-lhe nas faces um beijo.
- Infame - exclamou Chiquinha -, deixe-me
sair.
Uma risada cínica respondeu à interjeição
nobre da moça.
- Eu estou cansado da comédia, cheguemos já ao
desfecho, ou atiro-as na rua com a ponta do pé.
- Faça-o, não lhe pedimos o que o senhor nos
tem feito; faça-o quando quiser. Deixe-me sair, porque assim evita o incômodo;
nós nos mudaremos hoje mesmo.
- Tem graça, minha atrevidinha, tem graça, mas
saiba que sou eu quem governa aqui.
- Socorro! - bradou Chiquinha e, correndo para
a janela, repetiu por três vezes - socorro!
Enquanto gritava, quis galgar a janela, depois
de ter posto fora a pequenita, que chorava e chamava por d. Ana, mas foi detida
pelo comissário, que resmungava furioso:
- Cale-se, desgraçada, eu tenho poder até para
mandá-la matar.
O clamor da moça, porém, produziu o efeito que
ela esperava. Embora os retirantes que passavam nem ousassem olhar para a casa
da administração, d. Ana acudiu resolutamente e, transpondo a janela,
colocou-se em face do comissário, que gritara pelo administrador.
- Chame os inspetores e guardas - bradou o
comissário; - é preciso que estas miseráveis paguem o crime de desobediência
que acabam de praticar.
Um assovio do administrador fez com que num
lance de olhos as duas mulheres se vissem completamente cercadas.
- Meta-as na prisão até segunda ordem - sorriu
o comissário e, voltando-se para d. Ana, disse com um ar disfarçado - com teu
amo não jogues as pêras.
D. Ana e Chiquinha olharam-se perplexas.
Estavam definitivamente perdidas; a resistência não só era inútil como fatal,
porque deixava as três outras meninas expostas à crueldade do comissário e dos
seus agentes.
O amargor do transe, a sua imprevisão
fulminante deixavam atônitas as duas mulheres; o olhar de Chiquinha perguntava
já a d. Ana se ela devia resignar-se.
- Uma palavra só, sr. comissário - suplicou
humildemente d. Ana.
- Esperem - bradou o monstro, que já contava
com o arrependimento das duas indefesas mulheres; - ouçamos.
- Em particular.
Foram postar-se em um recanto, e d. Ana, com
um sangue-frio inesperado, murmurou:
- Para que faz vossa mercê esforços por esta
rapariga, que já foi amante de um padre?
- Ah! - exclamou o comissário - que hipócrita!
Chiquinha ao ouvir a exclamação, percebendo
que d. Ana para salvá-la havia lançado mão de alguma inverdade, fundiu em
lágrimas.
- Se Vossa Mercê houvesse logo falado comigo,
esta cena não se passaria.
- Vejo que procedi mal, é exato. Retirem-se
todos - bradou o comissário, não é preciso mais.
D. Ana resfolegou e com um olhar mandou que
Chiquinha se afastasse.
- Eu - continuou d. Ana, não sou tão ingrata
como o sr. comissário me faz. A menina do meio chegou muito cansada da viagem.
Demais... - Inclinou-se no ouvido do comissário, disse-lhe algumas palavras, e
depois em voz alta:
- Dentro em três dias, pois, eu mesma me
comprometo.
- A senhora é muito mais razoável - disse ele
batendo no ombro de d. Ana sem atender para a transformação que se havia
operado no semblante da senhora; ficamos amigos.
- Conte.
D. Ana retirou-se e o administrador veio
encontrar-se com o comissário, que trouxera a senhora até a porta:
- Chegaram a acordo?
- Com a meã, a mais velha é uma comborça.
- E quando?
- Dentro de três dias.
O comissário retirou-se com a esperança, mas
por alta noite a família Queiroz deixava o abarracamento.
X
Uma semana depois dos sucessos que deixamos
narrados uma grande modificação havia-se operado na infeliz Eulália.
A família Queiroz, deixando o abarracamento,
ficara completamente desamparada e reduzida a morar como tantas outras sob os
cajueiros das vizinhanças dos abarracamentos.
Tinha entrado o ano de 1878, e uma reviravolta
política, mudando no governo as idéias políticas, dera em resultado na
administração da seca os mais funestos resultados. O presidente da província
havia pedido a sua exoneração porque não tinha confiança nem podia inspirar
confiança ao novo governo.
Tinha razão de sobra para fazê-lo. O partido
que acabava de subir amargurara indescritivelmente na província a alma do
honrado ex-administrador, que se viu atassalhado nos pontos os mais sensíveis
do seu melindre particular e público.
Pedida a exoneração, o presidente limitou-se a
conservar o que já havia feito, mas não se julgou autorizado a continuar no
trabalho de organização do serviço, a qual exigia que a autoridade central
emprestasse à provincial toda a força.
Esta parada causou males incalculáveis. A
mortandade atingiu a um número fabuloso, expressado talvez pela metade, se
tanto, nas estatísticas oficiais.
Multiplicaram-se os quadros horrorosos que
formaram a feição predominante nesta fase histórica da província. Debaixo das
árvores, onde o arbítrio dos abarracamentos havia transbordado os infelizes,
desdobravam-se cenas as mais compungentes. A morte era a menos horrorosa de
todas elas.
O leilão da honra tornou-se um fato comezinho
entre os desgraçados. Os maridos, os irmãos, os pais acossados pela fome
entregavam esposas, irmãs e filhas à libertinagem a mais desenfreada, para dela
tirarem a subsistência. A prostituição, esta nódoa que outrora não se lavava
nunca mais aos olhos do povo sertanejo, tomou-se uma coisa comezinha, a
respeito da qual não se discutia.
No meio da onda geral de perdidas que inundava
a cidade, aparecia agora a mísera Eulália.
Depois do insulto cruciante de Paula, ela
voltara a correr como doida após a sombra da sua família, perdida no meio da
espessa mó que atulhava a capital.
Felizmente para a desventurada, d. Ana,
impelida pelo temor de que o comissário, para tomar vingança, a perseguisse,
fora parar na extremidade da cidade, oposta àquela em que estava o
abarracamento T...
O lugar em que d. Ana parara, vizinho ao
abarracamento de M., ficava justamente do lado em que está situado o palácio do
bispo, em frente ao qual Eulália se achava quando pôde medir toda a extensão da
perversidade do padre Paula.
O primeiro pensamento que ocorrera a Eulália
foi atirar-se ao mar: a morte apareceu-lhe como o último desforço, porque dela
sobreviria a Paula o remorso.
Caminhou, portanto, para o lado do mar, porém
em meio caminho lembrou-se da caçula, do estado precário de d. Ana e das outras
suas irmãs, e arrependeu-se.
Quis viver para elas e para a sua vingança.
Tinha certeza de que as havia de encontrar e esperava que Feitosa tomaria sobre
o vigário uma desforra exemplar.
Caminhou direito ao abarracamento de M.,
guiada por um pressentimento inexplicável; aí se encontrou com o administrador,
um velho a quem a seca arrebatara a maior parte da família e da fortuna, mas em
cujo coração deixara, para compensar, um sentimento profundo de compaixão pela
desventura alheia.
Neste abarracamento, regularmente montado e
dirigido por um engenheiro e um médico, cujos nomes a Província do Ceará há de
saber lembrar e honrar, Eulália achou uma indicação mais ou menos exata acerca
de d. Ana, indicação que o espírito dedicado da moça prontamente completou.
Duas horas depois da sua chegada ao
abarracamento, sob um cajueiro, Eulália abraçava Chiquinha e suas irmãs, e
podia desafogar as lágrimas que por tanto tempo entesourara para aquele
encontro.
D. Ana, porém, recebeu-a friamente e com um
escrúpulo visível.
- Bem - disse Eulália -, agora, reunidas
todas, podemos ganhar para viver e procurar descobrir Irena e seu velho pai.
O Feitosa deve estar também na cidade.
D. Ana desfez logo o sonho dourado de Eulália.
Chamou-lhe a atenção para o estado precário de Chiquinha e das outras meninas e
depois de lançar em rosto a Eulália o seu bem-estar relativo, respondeu
friamente:
- Vocês podem ficar aqui todas juntas; é mesmo
mais razoável, porque Eulália já sabe os meios de ganhar dinheiro sem trabalho.
Eu, porém, estou velha, não viverei muito, não quero torturá-las; retiro-me
para bem longe.
Em vão Eulália, ferida pelas palavras severas
de d. Ana, procurou inspirar-lhe confiança afirmando-lhe que só viveria do seu
trabalho; d. Ana não se demoveu.
- Eu não posso ficar no mesmo lugar em que
estiver a filha que desonrou o nome de meu irmão. Ou você ou eu.
Diante do dilema fatal, o bom senso de Eulália
resignou-se a retirar-se e deixar as irmãs sob a vigilância da honrada senhora.
De resto das suas extremas economias, a
carteira que lhe fora dada por Virgulino conservava ainda vinte e tantos
mil-réis, de cinco dos quais ela serviu-se para arranjar um casebre para a família,
a título de oferecimento de umas vizinhas.
Dentro em poucos dias a carteira esgotara-se
pelas dádivas clandestinas de Eulália à família que hospedava d. Ana.
A velha senhora, Chiquinha e as irmãs
trabalhavam corajosamente, mas o resultado do trabalho de uma semana mal dava
para alimentarem-se três dias. Eulália, reduzida à mais extrema penúria, dormia
ao relento, e já começava a sentir os bárbaros efeitos da miséria.
Um dia dirigindo-se à família com quem tratara
a hospedagem das parentas, ouviu uma tremenda ameaça.
- Há duas semanas já que a senhora diz sempre
que trará alguma coisa e nunca nos traz nada; deste modo não é possível
continuar a estar aqui a sua gente. Esperamos mais oito dias, se neste prazo
não nos pagar tudo..
- Não acabe - exclamou Eulália soluçando -, eu
sei já.
- É o último recurso. Olhe, não tenha medo, as
suas duas irmãs são bonitas e viverão bem.
Eulália saiu como alucinada. Tudo quanto
possuía era a ração da comissão de prontos socorros, que conseguira para os
seus, e que só podia receber incertamente. Este recurso portanto não bastava
para garantir a vida e a honra de suas irmãs e estas ver-se-iam necessariamente
obrigadas à perdição.
Batida por esta previsão medonha, Eulália
vagou o dia inteiro e à noite ainda se achava em uma das ruas da cidade.
Prendia-a às calçadas um pensamento mau - a perdição; entregar-se ao primeiro
que passasse em troca da honra de suas irmãs, e quando a consciência lhe
bradava que não, o amor a aconselhava que fosse por diante, que não temesse o sacrifício.
Extenuada de cansaço, faminta e sedenta,
sentou-se a uma porta, na qual havia batido pedindo um pouco de água.
Uma mulher abriu e apresentando-lhe o copo
convidou-a a entrar depois de fitá-la atentamente.
- Entre, minha filha, entre, deve estar muito
cansada, e é bom descansar um pouco.
A amabilidade educada da mulher surpreendeu
agradavelmente a extenuada Eulália. Estava acostumada ao contrário. Levada na
vaga das outras retirantes, havia por vezes parado diante dos hotéis, onde em
mesa lauta os pensionistas almoçavam à farta. Às vezes via aqueles cruzarem os
talheres sobre os pratos, tendo apenas tocado nas comidas. Os retirantes
levantavam a voz pedindo-lhes os restos e por única resposta tinham os gestos
brutais dos criados, que vinham fechar grosseiramente as persianas. Em um
desses hotéis dois cães enormes, acorrentados na área, comiam em grandes tinas,
e a fartar, esses restos tão cobiçados.
Bebido, pois, o copo de água, Eulália fitou
agradecida o rosto da sua hóspede e arrancou um íntimo obrigada.
- Sente-se agora um bocadinho para descansar -
disse-lhe a mulher: - está a pôr a alma pela boca.
Nessas palavras transpirava um agasalho
maternal e o semblante prazenteiro, desnublado da hóspede o secundava com uma
bondade evangélica.
Eulália, sentando-se, pôs-se a reparar no todo
da mulher, trintona de ar nobremente altivo, vestida com o esmero provinciano,
com um olhar quebrado, transbordando de umas pálpebras túmidas e roxeadas; os
lábios tinham um sorriso permanente.
Em seguida a observação caiu sobre a sala,
cuja mobília, sem denotar riqueza, tinha a decência suficiente para mascarar a
pobreza.
- Vejo que não é daqui da capital...
- Não, minha senhora, sou do sertão e acho-me
aqui trazida pela calamidade que o afligiu.
- E não tem família ...
- Tenho e é ela quem me faz sofrer mais...
- Santo Deus ! Então leva uma vida de
torturas...
- É verdade, minha senhora; uma vida cruel,
porque não encontro trabalho.
- É dificílimo agora; não obstante ainda há
meios de se viver decentemente...
- Eu não o tenho achado...
- É que não encontrou ainda proteção. A
senhora é moça, bonita, simpática...
Eulália sorriu, com essa espontaneidade que é
natural na mulher, quando elogiada, e replicou:
- Mesmo que fosse assim, nada disto dá o
sustento.
- Conforme...
A conversação suspendeu-se temporariamente
neste ponto, para recomeçar depois de maneira mais clara e decisiva.
- É obrigada a dormir com a sua família, não?
- perguntou a mulher.
- Posso ficar fora, têm confiança em mim.
- Quando se está em épocas como a de hoje,
tem-se confiança em todos - sorriu a mulher e acrescentou: - portanto, pode
pousar esta noite aqui.
- Quanta bondade, minha senhora; eu não sei
como lhe agradecer.
- Olhe que está nas suas mãos se quer pagá-lo;
é não me deixar nunca mais. É bonita, pode servir-me muito..
Eulália, corando modestamente, perguntou com a
ingenuidade de quem não percebe:
- E em que a minha boniteza pode servir-lhe?
A mulher riu muito, mas percebia-se na sua
risada o constrangimento da hesitação que lhe causava a naturalidade da
pergunta. Por fim ponderou jovialmente:
- Isto é querer ir muito depressa; havemos de
ir devagar.
Continuou a rir fazendo da pergunta de Eulália
tema de comentários repetidos, até que afinal perguntou por sua vez:
- Nunca teve o seu namoradozinho lá no sertão?
- E como Eulália ficasse enleada: - são perguntas que não se fazem, não é
verdade? Não há 15 anos sem amor.
Eulália sorriu tristemente.
- E ficou-lhe viva a saudade deste tempo -
acrescentou a mulher. - Eu fui o mesmo: a primeira vez que ri para outro, como
se levantou diante de mim a imagem do meu primeiro amor. A senhora não é casada
...
A moça meneou a cabeça, ainda com maior
tristeza.
- Eu também não sou, e afinal não me dei mal
com isto, pelo contrário tenho vivido feliz.
- É que tem pais que a estimem e protejam.
- Também não; vivo sobre mim...
- Ah! - exclamou Eulália surpreendida.
- Custou-me a princípio, mas acostumei-me.
Metade da simpatia de Eulália pela sua hóspede
dissipou-se como por encanto, e, em vez da boa vontade com que se deixava
ficar, apareceu-lhe incômodo visível.
Esta mudança não passou despercebida ao olhar
perspicaz da mulher, que foi logo direito ao ponto a que visava.
- Já me disse que sua família tem-lhe feito
sofrer muito. Decerto tem irmãs e seus pais são velhos.
- Já não tenho pai nem mãe.
- Nem irmãos?
Eulália meneou a cabeça afirmativamente.
- Daí o medo de que aconteça alguma desgraça
às suas irmãs.
Eulália olhou fixamente para a sua
interlocutora.
- Desgraça inevitável aqui, principalmente se
elas são bonitas como a senhora, que já é livre, e pode dispor de si.. Eu -
continuou a mulher - não sei por que me interessei por si e não duvido
oferecer-lhe na minha casa meios de poder decentemente velar pelos seus. Dou-lhe
quanto precisar para poder aparecer. Assim terá de que viver, e evitar que
depois de fomes, de tormentos de toda a sorte, as suas irmãs venham a sofrer o
mal que tanto parece temer.
Eulália ficou boquiaberta diante da mulher que
ousava fazer-lhe tão aviltante proposta, mas longe de indignar-se ficou imóvel
e muda a encará-la.
- Está fazendo mau juízo de mim, eu percebo-o
- observou a mulher -, mas pense algum tempo e verá que eu não lhe proponho
senão o que todos lhe proporão. A diferença é que eu não a degradarei como os
homens o farão. Pense.
Eulália, resistindo a todos os esforços feitos
pela mulher para detê-la, levantou-se e saiu.
Começaram desde logo a redemoinhar-lhe no
cérebro as mais extravagantes e as mais horrorosas idéias. A imagem de Paula, sobrenadando
a todas elas, impunha-lhe terror e ao mesmo tempo impelia-a ao cogitar
alucinado.
Chegada ao abarracamento, não pôde dormir. O
cajueiro, sob o qual pousava, parecia-lhe animado, os seus ramos e folhagem
convertidos em asas, e os balanços da rede afiguravam-se-lhe vôos enormes,
colossais, que a arrebatavam às mais vertiginosas alturas para depois
despenhá-la nos mais profundos e negros abismos, e nesses vôos, quando a
infeliz ascendia, pensava nos primeiros tempos do seu amor por Paula, e, quando
despenhava-se, ouvia a voz agasalhadora da mulher.
Quando a claridade triunfal do dia
desacastelou-lhe do espírito os medonhos pesadelos, Eulália apressou-se em
correr à casa em que estava hospedada a sua família, e aí encontrar Chiquinha.
- A caçula morre, Eulália; ela não pode
resistir a esta vida; não tivemos ontem um grão de farinha e provavelmente hoje
será o mesmo.
- Então não lhes deram nada?
- Você já não lhes paga...
- Sim, já não tenho com que pagar a essas
malvadas.
- Elas prometeram já nos pôr fora daqui.
- Sim, prometeram, ameaçaram-me com isto, mas
não o farão. Adeus, eu juro que elas não o farão.
Afastou-se quase a correr, e, com os olhos
baixos, as feições demudadas, dirigiu-se à rua em que habitava a mulher, que
lhe oferecera casa e meio de vida.
- Estou aqui pronta - disse ela entrando; -
diga-me o que devo fazer, mas antes eu preciso de dinheiro para levar aos meus.
- Bravo; teve juízo - respondeu a mulher; - eu
a porei mestra em poucos dias; descanse em mim, não lhe faltará nada.
Feitosa não abandonou mais o pensamento de
tomar no vigário Paula a vingança a que o aconselhavam os longos meses de
tormentos.
A própria sofreguidão, porém, fazia-o
emaranhar-se em um labirinto de combinações, que não resistiam a mínima reflexão.
Não podia formular contra o vigário uma
denúncia; não tinha uma prova só que pudesse fundamentar a acusação. Tudo
quanto sabia não passaria de um fugitivo indício para todos; só o seu coração
torturado podia extrair uma certeza das palavras de Antônia e dos fatos que se
deram na paróquia.
O único meio que se lhe apresentou como
realizável e eficaz foi a difamação anônima, a qual prepararia o caminho para
que mais tarde fosse possível a denúncia formal.
Um periódico da capital publicou alguns dias
depois um artigo narrando amiudadamente os inacreditáveis acontecimentos de B.
V.
O retrato de Paula era aí habilmente feito e
de tal modo que só a cegueira não o podia reconhecer.
Feitosa visitou neste dia todos os seus
parentes e amigos para medir a impressão que haviam produzido as suas palavras.
Falava-se no artigo, mas a indignação que ele
julgava ter produzido no espírito público não realizou: todos se limitavam a
simplicíssimos comentários.
- Um padre como os outros.
- Isto de padres, é uma canalha.
- Que jeito, se é verdade o que diz o artigo;
valem-se bem da rivalidade das famílias.
Perguntavam a Feitosa se o conhecia, e então o
moço carregava as cores ao quadro que ele mesmo havia desenhado com o auxílio
de um amigo íntimo.
A manifestação pública, porém, não passou
destas frivolidades e Feitosa entendeu que devia insistir nos artigos.
Quando julgou que a notícia já devia ter
passado as portas, sempre fechadas, do palácio do bispo, dirigiu-se até lá,
disposto a apresentar verbalmente a queixa ao prelado.
A entrada lhe foi vedada e o porteiro, por um
mero ato de deferência para com os modos polidos e a boa fama de Feitosa,
enviou-o ao sacerdote que apresentara ao bispo o vigário Paula e gozava da
estima de S. Exa.
- É como falar a S. Exa. Revma; o que o sr.
padre resolver...
- É o que se fará, não?
- Pouco mais ou menos; eu não digo que seja
tudo, tudo; mas alguma coisa; um bocado mais para lá, outro mais para cá.
- E onde o encontrarei eu?
- Na igreja, de manhã e à tarde.
Feitosa dirigiu-se imediatamente ao templo.
O sacerdote lá estava empregado no seu mister
de confessor, com o semblante carregado em sinal de uma austeridade de comédia
e enfado pelo trabalho a que era obrigado.
Quando se desocupou e veio falar a Augusto
Feitosa, começou logo por afetar uma urgência, que não passava de um assomo de
grosseria.
- Viu o senhor em que tenho estado ocupado.
Confessei vinte e tanto retirantes moribundos. Ora, eles sãos causam nojo,
imagine o que serão nesse estado.
- Entretanto eu me veio obrigado a demorar
vossa reverendíssima.
- E com quem estou falando, posso saber?
- Com Augusto Feitosa de...
- Da grande família dos Feitosas...
- É exato e ultimamente morador de B. V., onde
residiu, também o vigário Paula, recentemente chegado a esta cidade.
Augusto Feitosa cravou o olhar no rosto do
sacerdote para acompanhar-lhe os movimentos da fisionomia. O sacerdote, porém,
impassível, afetando com uma naturalidade indescritível desconhecer
completamente a pessoa de quem se tratava, respondeu:
- Não sabia que o vigário de B. V. estava
na capital.
- Então, V. Revma. não leu as publicações que
têm saído a respeito deste vigário?
- Sobre que versam elas?
- Eu vou apresentá-las a V. Revma., que as
poderá ver e julgar.
Augusto Feitosa tirou do bolso alguns números
do periódico e passou-os às mãos do sacerdote, que se limitou a ler-lhe o nome.
- Ah! é isto?!... Eu não leio este pasquim, e
V. Sa. só acredita no que diz isto por não morar nesta capital.
- Perdão - exclamou Augusto; - eu não acreditaria
nos fatos aqui narrados se os não tivesse presenciado e não tivesse neles um
tristíssimo lugar.
- V. Sa. vem então denunciar-me o padre Paula?
- Venho comunicar à autoridade eclesiástica
fatos praticados por esse vigário e que infamam a classe inteira.
- Bem, eu o estou ouvindo, pode expor.
Augusto Feitosa percebeu logo a má vontade do
sacerdote, mas, acreditando na sua declaração de que não havia lido os artigos,
passou a expor minuciosamente os acontecimentos da paróquia.
- O que eu concluo é que o vigário Paula e o
sr. Augusto Feitosa - disse por fim o sacerdote - foram vítimas de uma tremenda
perseguição de um inimigo clandestino!
- Como? - perguntou Feitosa perplexo. - Não vê
V. Revma. que ninguém, a não ser o vigário Paula, podia praticar semelhante
crime?
- E por que não será o próprio Monte? E por
que não seria o velho Queiroz ofendido por ver Irena preferida à sua filha?
- Porque diz-me o coração que não, porque
nenhum deles tinha a alma torpe de Paula e nenhum podia urdir nas trevas semelhante
trama.
- E eu lhe digo que nada é difícil no mundo, e
nada é mais fácil do que iludir.
- Em suma - exclamou Augusto Feitosa irritado
-, eu devo contar com a impunidade do vigário Paula, não é assim?
- Não apresentou provas que baseiem a sua acusação.
Ouça o senhor: eu também já fui vítima de uma história semelhante.
E, zombando da exaltação de Feitosa, o
sacerdote, com uma entoação calma e desdenhosa, desfiou com todos os seus
pormenores a história a que ele já se referira falando ao bispo.
- À vista de semelhante experiência - exclamou
ele -, compreende o senhor que eu não posso dar crédito a qualquer denúncia.
Feitosa levantou-se precipitadamente, e, sem
despedir-se do sacerdote, tomou o corredor da sacristia.
O sacerdote acompanhou-o até a porta, sem
mostrar-se ofendido e, quando Feitosa punha o pé fora do limiar da igreja,
exclamou mansamente:
- Se arranjar provas, não faça cerimônia,
venha ter comigo.
Quando o moço desapareceu o sacerdote despegou
uma risada prolongada, e chamando o sacristão:
- Viu sair daqui aquele rapaz? É uma boa alma.
Se vir por aí o padre Paula, diga-lhe que preciso muito lhe falar. Olhe, vá lá
ao palácio e chame-o para chegar até cá.
E continuou a rir, com grande surpresa do
sacristão, que abria bajulatoriamente um riso alvar para secundar sua
reverendíssima.
- Tenho mais este na rede - murmurou o
sacerdote quando ficou só. - Feitas as contas, eu sou o melhor deles todos, não
vou às últimas.
Foi sentar-se na sacristia, onde um Cristo
amarelado pelo tempo abria os braços numa inconsciência igualitária à
hipocrisia de sua reverendíssima, do mesmo modo que a mais acrisolada virtude.
Ria-lhe no olhar a tranqüilidade que lhe vinha da certeza de conservar o seu
prestígio junto ao bispo e os proventos que dele tirava.
Momentos depois, no assoalho da catedral
soaram os passos cadenciados do vigário Paula. O silêncio, passageiramente
roto, readquiriu a sua integridade solene.
- Pode ir cuidar da vida - disse o sacerdote
para o sacristão que acompanhara Paula; - não é preciso cá.
O sacristão obedeceu e, fazendo uma profunda
reverência, saiu a resmungar:
- Muito amigos são estes dois; boa bisca é um
deles, conheço-o; o outro para fazer liga há de ser igual. Tramam com certeza
alguma trapaça.
Os dois podres uma vez sós olharam-se, ambos
sorrindo benevolamente.
- Vigário, não posso explicar a razão por que
me interesso por si...
Paula sorriu maliciosamente e respondeu com
uma inflexão escarninha:
- É de certo pelos meus lindos olhos.
- Quando, outro dia, aquela mulher nos seguia
e você se mostrava incomodado...
- Ah! conte-me esta novidade, porque não tinha
ainda reparado nisto.
- Tive desejos de pedir-lhe então uma
confidência explícita, de bom amigo que visa a garantir aqui a sua posição.
- Cáspite!
- Não me julguei, porém, com direito a ela, e
hoje também não peço senão explicação sobre alguns fatos.
- E quais são eles?
- Em primeiro lugar, devo dizer-lhe que ainda
não há meia hora travei relações com Augusto Feitosa.
Paula perturbou-se momentaneamente, porém, fazendo
um esforço supremo, conseguiu ostentar o mesmo aparente sangue-frio.
- Dou-lhe os parabéns - respondeu; - é uma
excelente relação.
- O vigário pode falar assim, porque o conhece
bem; pode deixar à boca render esta homenagem a Feitosa, uma vez que a sua
consciência lha nega.
- Não é tanto assim...
- É o que se infere da tentativa de
assassinato contra ele.
- Que é uma verdade tão provada como a sedução
da rua da Palma.
- Eu estou por isto. Disse-lho logo depois das
suas lamúrias ao bispo; houve porém uma diferença entre a minha revelação
naquela hora e a sua neste momento: é que eu então pensei que o sr. vigário
Paula era realmente inocente.
- E agora?
- Penso justamente o contrário, e não admito
comparação entre mim e o sr. vigário. Eu seduzi, mas não tentei matar.
Paula, vendo-se de todo descoberto aos olhos
do confidente do bispo, buscou por um lance de ousadia subjugar a sua
argumentação vitoriosa, e levantando-se solenemente aproximou-se do Cristo e,
colocando-lhe a mão sobre as chagas, exclamou:
- Pela última vez, juro diante de Deus que nos
vê e que nos ouve: não tentei contra a vida de Augusto, nem seduzi a filha de
Queiroz. Creiam-me ou não, se quiserem, mas não me torturem hipocritamente.
O sacerdote levantou-se também, e pondo as mãos
nas ilhargas, demorou-se numa gargalhada soluçada; e meneando a cabeça,
caminhou até junto de Paula:
- Eu juro também, pelo Deus que me ouve, e que
me vê: nunca seduzi ninguém.
E riu de novo estrepitosamente.
Paula abaixou a cabeça envergonhado. Reconheceu
que não podia representar bem a sua comédia de vítima, diante daquele homem
frio, que sem necessidade, por um mero gracejo, profanava a imagem do Cristo,
de quem ele se dizia ministro.
- Neste mesmo lugar e em hora muito mais
solene, ao cair da noite, quando a escuridão já invadia este recinto, estive
eu, uma alta dignidade do clero, a minha vítima e a sua mãe lacrimosas, que me
lançavam em rosto o meu crime. A minha vítima estava grávida e a velha mãe,
para obrigar-me a confessar o meu delito, convidou-me a pedir a Deus que se
fosse verdade o meu crime, por mim tão negado, a criança nascesse cega e
paralítica. Eu disse que sim.
- Peça-o com a sua mão sobre o Cristo - disse
a velha mãe.
- A minha vítima estremeceu; cobriu-lhe um
palor mortal as faces avermelhadas pela vergonha e pelo pranto; eu porém
caminhei sereno, sem hesitar, sem pestanejar ao menos, abracei-me com o
crucifixo, apertei-o de encontro ao peito e disse com voz clara:
- Juro que sou inocente e se não sou recaia
sobre mim e sobre o fruto do meu suposto crime o mais tremendo castigo. A
mísera moça - continuou o padre -, havendo-se levantado talvez para impedir-me
que jurasse, ao ouvir as minhas primeiras palavras, deu um grito e caiu por
terra desmaiada. Corri para ela e levantando-a tranqüilamente disse à
autoridade que me ouvia:
- Note V. Exa.; buscaram todos os meios de
perder-me, de perturbar-me, porém a justiça divina começa a justificar-me; não
é sobre mim que pesa a mão de Deus é sobre elas. Já vê, meu padre, que eu
conheço bem estas coisas: não valem nada para mim estes juramentos.
Paula veio muito perturbado sentar-se, e
olhando súplice para o padre murmurou:
- Não sei por que razão a palavra de um
desconhecido há de valer mais no seu conceito do que a de um seu colega.
- Não é a palavra; o que vale mais é a prova,
o testemunho de várias pessoas. Ousará ainda você negar?
Paula olhou humildemente para o sacerdote.
- Cala-se, é, pois, verdade, e no entanto,
ingênuo que eu sou, deixei-me imbair por si; julguei-o um exemplo de piedade
sacerdotal.
O vigário continuou calado e cabisbaixo; a sua
sorte estava definitivamente nas mãos do sacerdote, que podia desde então
salvá-lo ou perdê-lo, e certo disto o hipócrita não ousava sequer erguer os
olhos.
Da sua resposta, séria e verdadeira, depende a
sua sorte. Feitosa veio comunicar-me que iria denunciá-lo, se a autoridade
eclesiástica não o expulsasse da cidade; responda para o nosso governo:
praticou o crime?
- Sim - respondeu Paula altivamente; - mas se
não obtiver proteção, denunciá-lo-ei também. Não estava aqui, e, portanto,
contando os pormenores do caso da rua da Palma, como revelação sua, posso
perdê-lo.
O padre riu de novo prolongadamente, e batendo
no ombro do vigário:
- É muito criança ainda; previna-se ou virá a
perder-se. Eu só queria ouvir-lhe a confissão; não quero persegui-lo, mas
avisá-lo de que estará perdido se por acaso Feitosa puder entrar no palácio.
Quem tem inimigos desembaraça-se deles de qualquer modo. É preciso tomar
cuidado ou está perdido.
- Eu o procurarei...
- Não basta, é preciso esmagar aqueles que o
servem, a todos que podem prejudicá-lo, meu padre.
- Sim, sim, eu os encontrarei e a minha
vingança será completa.
- Faz um calor diabólico...
- E esta farsa que você fez-me representar
fatigou-me extraordinariamente.
- Queria ensaiá-lo.
Riram-se e afastaram-se vagarosamente da
sacristia, onde o Cristo ficava com o mesmo aspecto piedoso.
O sacristão que estava no átrio esperando
murmurou ao vê-los:
- Felizardos, sabem passar a vida.
Apesar da dificuldade imensa que surgiu diante
de Eulália, a infeliz não perdeu a esperança de vingar-se de Paula.
A sua nova posição, degradando-a aos seus
próprios olhos, mais do que diante da sociedade que a tolerava e até a
favoneava, fazia-lhe vir continuamente à imaginação a imagem do seu sedutor.
Quando pela primeira vez teve de entregar nos
lábios os beijos comprados e deixar que olhares libertinos devassassem-lhe as
formas, pensou que ia morrer. Passou a noite a deliberar, febricitada por um
pensamento monstruoso.
Mão invisível impelia-a para junto do vigário,
não para pedir-lhe, mas para indenizar-se no seu sangue do aviltamento a que se
via forçada.
Acordando, tirou da cintura o punhal, que
nunca mais abandonara, afagou-o com o olhar como que lhe pedindo uma
inspiração. Assomou-lhe então um plano monstruoso. Iria à igreja,
confessar-se-ia para pedir o perdão a Deus do seu crime, e depois esperaria que
o vigário viesse celebrar. Quando ele estivesse mais absorto, quando viesse
descuidoso e tranqüilo distribuir a hóstia consagrada aos penitentes, ela
cravar-lhe-ia o punhal uma, duas, mil vezes e no meio da geral estupefação
suicidar-se-ia heroicamente.
Este pensamento dava-lhe um suave bem-estar ao
espírito; o vapor de sangue, refrescava-lhe os lábios secos e despertava-lhe
ardente apetite de vida, mas de vida sobrenatural, de lágrimas ou de sorrisos,
de torturas ou de bem-aventurança, não importava, porque via nos golpes do
punhal unificados o seu e o destino de Paula.
Começou a vestir-se absorta nesta resolução,
mas, ao apertar o vestido que lhe fora dado pela dona da casa, como enguiço à
lascívia dos transeuntes, o esforço como que lhe rompeu a inércia da
consciência. Lembrou-se da família, e das irmãs.
A imagem de Chiquinha apareceu-lhe colocada na
posição tristíssima de perdida, macilenta, mascarando com sorrisos o desespero.
E, mais desgraçadas do que ela, via as irmãs menores, sendo exigidas pela
libertinagem na hora em que as graças da irmã mais velha se houvessem
dissolvido nas vigílias crapulosas.
Recuando espavorida diante das larvas que ela
própria evocara, soluçou a infeliz:
- Não, eu não as condenarei a tal sorte; serei
infame para lhes salvar a vida.
Saiu, entretanto, mas em vez de dirigir-se à
catedral, encaminhou-se para a vizinhança de Meireles e aí pagou com o prêmio
da perdição a tranqüilidade da família.
Uma satisfação dolorosa compensou-lhe o
sacrifício da noite, e a desventurada, resignando-se à crueldade do seu
fadário, resolveu-se a aceitar a sua nova posição.
- Voltou mais alegre - ponderou-lhe a
companheira de casa; - lá vê que o diabo não é tão feio como se pinta.
- Já paguei a casa para a minha família e
tenho fé que nunca mais lhe há de faltar nada.
- Conservando-se aqui. O nosso contrato é
despesas por
minha conta e lucro dividido em três partes,
duas para mim e uma para si, o mais razoável que poderia encontrar, não é
verdade?
Eulália meneou afirmativamente a cabeça.
- Ora, você, mantendo-se num certo pé, pode
ter pelo menos 10 mil-réis por dia, e, com os três que lhe ficam, a sua família
passa um vidão.
Eulália abaixou a cabeça para esconder as
lágrimas, que lhe vieram involuntariamente aos olhos.
- Depois ainda há os presentes; as noites de
pândega, passageiros que não conhecem a terra. Está com a fortuna feita, se
tiver juízo!
Nos dias que se seguiram, esta última
exclamação da companheira repetiu-se por diversas vezes. Eulália conquistou uma
série de admiradores, que lhe disputavam os sorrisos e os afagos. Tornou-se uma
celebridade.
- Eu quando a convidei não foi em vão, conheço
o povo com quem lido - sorria a perdida, quando Eulália vinha fielmente dividir
consigo o preço da sua degradação.
Ao contrário da alegria da companheira,
Eulália não se alegrava com os seus triunfos.
Só um dia na semana viam-na sorrir. Era às
quintas-feiras, quando voltava do abarracamento de M., onde ia levar à
honestidade da sua família o socorro que ela, chorando de vergonha, tirava à
perdição.
- Você é uma doida - observava-lhe diariamente
a dona da casa; - leva a torturar-se. Isto pode vir a fazer-lhe mal. Nesta vida
quer-se cara alegre e coração à larga, e você pode tê-los porque é feliz.
- Parece - respondeu-lhe um dia Eulália; - mas
estou certa de que nem aqui serei por muito tempo feliz.
Tinha neste dia amanhecido mais sombria do que
de costume e evitava toda conversação. Alta noite fora acordada pela
companheira, e estava a chorar sem saber a causa. Tinha-a afligido um pesadelo,
mas nem ao menos lhe ficara dele a reminiscência; sabia apenas que sofria
tanto, que não pudera conter o pranto.
- Há de ser alguma asneira, alguma dessas
criançadas em que você passa os dias pensando, e que não têm valor nenhum.
- Deve ser; eu hei de distrair-me.
A promessa era apenas uma evasiva para
furtar-se às consolações impudicas da companheira. Esta voz a incomodava,
porque a aviltava extremamente, uma vez que não a considerava senão uma fábrica
de adquirir dinheiro.
À noitinha, porém, a angústia atormentando-a
demasiadamente, mergulhando-a na indiferença que muitas vezes lhe embotava de
todo os movimentos nobres do coração, foi colocar-se à janela.
- Não se faça fraca, hein, Eulália! veja bem a
quem manda entrar; sentido com os peraltas; siga sempre o meu exemplo - disse a
companheira quase automaticamente, pelo hábito em que estava de fazer tal
recomendação.
Eulália sorriu tristemente. Aquela mulher
baixa, metalizada, tinha diante de si um grande prestígio: dera-lhe um meio,
ignóbil mas eficaz, para salvar a honra de suas irmãs e a vida inestimável de
d. Ana.
A frescura da tarde encantava-a. Uma viração
forte, escapando-se do mar, vinha de esfuziada pela rua, levantando
redemoinhos; a poeira, que não tinha tempo de fugir do abraço do vento,
limitava-se a cabriolar, a estorcer-se, a descer e a subir, com os movimentos
de uma briga de crianças.
Absorta no silêncio da rua, o olhar de Eulália
ora descansava no de algum transeunte decente que a encarava insinuantemente,
ora envolvia os grupos silenciosos e cabisbaixos de retirantes que passavam,
levando sobre o chapeirão de couro as rações de carne do Rio Grande,
branquicentas da salga, cheirando mal.
A pouco e pouco as feições da moça foram
desanuviando e readquirindo o acento de resignação que nelas predominava.
A companheira veio postar-se a seu lado,
elogiando-a.
- Assim é que eu gosto de vê-la, minha santa;
é preciso fazer pela vida.
Eulália conservou por muito tempo o semblante
calmo; a companheira tranqüila foi sentar-se na rede ao fundo e abandonou-se a
longos balouços.
- Vamos ter uma boa noite.
- Parece - respondeu Eulália; - promete.
Houve um curto silêncio, durante o qual só se
ouvia o ranger das cordas nos armadores da rede. Mas, de repente, Eulália,
levando as mãos aos olhos e entrando precipitadamente, soltou um ai agudo,
penetrante e desolador.
- O que sucedeu, meu bem, o que tem? -
exclamou a companheira correndo em auxílio de Eulália.
A moça trêmula, tiritante, com o olhar
esgarado, nada respondeu, e a companheira intrigada pelo imprevisto do
incidente, correu até a janela.
Nada viu que lhe chamasse a atenção, e, voltando
para dentro, exclamou com uma entoação maternal:
- Você está hoje com muitos nervos; não há
nada de extraordinário na rua. Distraia-se; eu vou buscar água.
Quando a companheira afastou-se correndo,
ouviu-se no silêncio da sala estas palavras que vinham da rua:
- Estás muito por cima, comborça.
O eco de tais palavras aumentou ainda mais a
perturbação de Eulália. Sabia que elas eram apenas o prólogo de uma página
violenta, e quem sabe se fatal à sua vida!
Quando a companheira voltou, Eulália estava
tão trêmula que não podia levar aos lábios o copo de água.
- Feche os postigos - disse Eulália; - não
quero ouvi-la nem vê-la.
A companheira dirigiu-se à rótula.
Começavam a acender o gás, e o acendedor
afastava-se neste momento de junto do lampião, que ficava a poucos passos da
casa.
Uma claridade viva dissipou o lusco-fusco que
ensombrava o lugar e a companheira pôde ver, sob o lampião, uma mulher que
olhava fixamente para a casa. Vestia uma porção de andrajos; cobriam-lhe a
cabeça uns farrapos de toalha pardos de sujo, e pelos rasgões do corpinho
viam-se-lhe os seios tufando uma camisa encardida. De uma estatura nobre,
direita, a mulher parecia uma aparição vingadora, vomitada pela miséria.
A companheira, ao vê-la, sentiu-se por sua vez
perturbada, e, vindo assustada sentar-se junto de Eulália, perguntou:
- É da tua família aquela mulher? Pelo seu
olhar parece estar fervendo em ódio.
- Não me fale nela - respondeu Eulália -,
deixe-a, é a minha asa negra; persegue-me, e eu tenho-lhe medo e ódio.
- Tem má catadura, é medonha, apesar de não
ser feia. O que ela quererá contigo?
- É a Mundica - respondeu Eulália -, é ela!...
- Ah! - exclamou a companheira a quem Eulália
havia narrado os sucessos da paróquia.
Foi fechar melhor os postigos e veio para
junto de Eulália, que continuava agitada e amedrontada, e buscou distraí-la.
- Eu não lhe disse que nem mesmo nesta vida eu
podia ter felicidade?
- Qual, filha, isto passa; não vale a pena
pensar em coisa tão pequena.
- Até outra vista, comborça - soou lá fora a
voz de Mundica -, lembranças ao vigário; nós nos havemos de tornar a ver.
Eulália resfolegou; estava livre por hoje, e o
adiamento, concedido por Mundica à tortura que devia infligir-lhe, pareceu-lhe
o aliviar de um peso enorme.
- Foi-se, com efeito - disse a companheira que
tinha ido espreitar no xadrez da rótula; - estamos livres dela.
Eulália, porém, não chegou a acalmar-se a
ponto de ficar inteiramente desassombrada. Tinha certeza de que Mundica viria
provocá-la, dar lugar a alguma cena de que resultasse algum escândalo. Passou a
noite a cogitar dos meios de evitar semelhante desastre e no outro dia ponderou
à companheira:
- Não seria melhor que mudássemos de casa?
Esta rua faz-me agora medo.
- Mudemo-nos; ainda que possamos perder alguma
coisa com isto. Enquanto se guarda de cor o número da casa, vai tempo.
- Eu creio que maior transtorno será ficarmos
aqui; aquela mulher...
- É urgente que nos mudemos; uma desgraça
agora que íamos indo tão bem.
A mudança foi no momento resolvida. Aconselhava-a
o interesse, a boa fama da casa, fama conseguida pela habilidade com que a
companheira tinha conseguido viver até agora, coonestando a sua baixeza. Na
vizinhança ignoravam ou fingiam ignorar qual a posição real das duas mulheres;
sabiam apenas que elas não eram casadas, mas nem por isso as consideravam
perdidas. As mais recatadas senhoras do quarteirão as cumprimentavam e algumas
delas, em dias de necessidade, mandavam pedir-lhes dinheiro emprestado.
Mundica viria, pois, causar um grande dano à
reputação das duas mulheres e cumpria à fina força evitá-lo.
Vestiram-se e saíram, com o trajo e o andar de
gente honesta, cumprimentando discretamente os conhecidos, deitando esmolas nas
mãos sujas dos pequenitos, que lhes vinham ao encontro, e fazendo inveja às
moças que vinham espiá-las.
- Vão bem vestidas.
- E sérias.
- Parece boa gente.
- Mas não levam homem consigo.
- Talvez seja gente de fora; mulheres dos
engenheiros que têm chegado.
- Têm ar.
No meio dessas aclamações da curiosidade,
correram toda a rua em que moravam e dobraram afinal tomando o lado beira-mar
da cidade, entrando em diversas casas, examinando-as detidamente. Sentiam-se
ambas dispostas a prolongar o passeio, apesar do sol que já queimava e ser
ainda manhã.
Chegadas, porém, perto do largo em frente à
Sé, Eulália não quis seguir na mesma direção. Ficava muito perto do lugar em
que morava a sua família, não queria vexá-la, e, mais do que isso, condená-la a
amargos sofrimentos, caso d. Ana a visse.
- Minha tia já anda desconfiada da proteção
que tem na casa e, se me visse assim, com certeza recusaria o pouco que dou a
minhas irmãs - ponderou Eulália; - busquemos outra rua.
Tomaram a rua em frente ao palácio da
presidência e seguiram por ela.
- Há de haver na rua que passa por detrás do
palácio alguma casa; vamos passar por lá.
Tomaram essa direção.
Em frente ao palácio havia um grande
ajuntamento de mulheres. Partia daí um sussurro intenso, e afinal alevantou-se
uma vozeria enorme.
- Temos fome - gritavam , matam-nos à fome, os
nossos filhos morrem de fome. Socorro!
Eulália e a companheira tentaram voltar, mas
não tiveram tempo de fazê-lo. Uma mulher que estava sentada em uma das portas,
levantou-se, e, correndo para elas, travou brutalmente do braço de Eulália.
- Onde está o vigário, coisa à-toa? Onde está
o teu amante? Queria que ele me visse.
Mundica, que era quem falava, sacudia
grosseiramente a infeliz moça, que interdita, com os olhos estatelados, nem se
esforçava para libertar-se da incômoda pressão.
Tinha as faces quase sangrando. A perdição não
lhe havia calejado ainda a delicadeza dos sentimentos, nem os extremos da
educação; passara-lhe sobre o coração como o lodo do brejo sobre as asas das
aves aquáticas, cujo verniz não as deixa manchar de todo, e basta um movimento
da plumagem para tomarem à limpeza. Não havia, como Mundica, mineirado no
cinismo frases obscenas e gestos canalhas, não podia, pois, responder-lhe.
Mundica, aproveitando da confusão de Eulália,
levantou a mão e espalmou-a sobre as espáduas da moça, que pôde a tempo livrar
as faces. Uma revolta da dignidade fez com que Eulália tentasse repelir a
afronta.
Os transeuntes pararam então, formando
circulo, chacoteando da luta, em que Mundica tinha superioridade. Vieram em
seguida os apupos, a assuada e afinal os apitos, a galhofa e a prisão das duas
contendoras, enquanto a companheira de Eulália fugia para não ser envolvida na
questão e nas suas conseqüências.
- Eu não fui a provocadora, passava quieta,
foi esta mulher quem me veio insultar - soluçou Eulália ao ver-se agarrada por
um soldado.
- Silêncio - respondeu o agente; - se resiste
à prisão, eu a levarei por mal.
À tarde ainda Eulália achava-se detida na
cadeia, misturada com a escória depravada de mulheres avilanadas pela mais
extremada miséria, e só à noitinha foi mandada embora.
A pouca distância da cadeia, esperava-a a
companheira que se lhe dirigiu friamente.
- Eu gosto muito de si, Eulália, mas não posso
continuar a morar consigo. A sua inimiga há de continuar a persegui-la, e isto
é vergonha e descrédito. Procure, pois, casa para si desde amanhã.
- Desde já - respondeu Eulália - não dormirei
mais na sua.
A decepção de Feitosa, ao ver levantar-se uma
barreira invencível diante da sua esperança de desforra do vigário Paula,
assumiu as proporções de uma alucinação.
Foi aos periódicos da capital, mas em vão;
fechou-os a própria natureza da questão e sobretudo a má fama daquele em que
tinham saído os primeiros artigos. Diante da autoridade civil a dificuldade foi
ainda maior, reputou-se mesmo impossível qualquer procedimento legal.
O moço, convencido de que era justa a punição
de Paula, não obstante os óbices legais que diante dela se levantavam, resolveu
a princípio matá-lo. Era fácil. A fome fizera do homem do povo uma fera. Este
já havia esquecido todas as noções e perdido todos os nobres traços morais que
elevam o cearense ao grau de povo essencialmente digno. Ele já não hesitava
diante das questões de honra; vendia esposa, filhas e irmãs ao primeiro preço,
alijando-as depois com a facilidade com que náufragos lançam ao mar os
designados pela sorte. Uma quantia avultada, pois, armaria não só um, mas cem,
mil braços se tantos fossem necessários para a vingança contra Paula.
Mas uma reflexão sensata sobreveio. Sabia-se
na capital qual a extensão do seu ódio contra o vigário; sabia-se mais qual a
influência dos padres sobre o espírito crédulo dos sertanejos cearenses. Para
que um destes levantasse mão criminosa contra um ministro de Cristo, seria
necessária uma pressão invencível feita sobre o seu espírito. Embora o
assassino se evadisse, era facílimo descobrir o mandante do crime.
Esta idéia fez abortar imediatamente o plano.
Augusto sentia que a sua vida dependia de Irena, que não poderia viver sem ela,
que não tinha mesmo o direito de torturar-se mais, sem que houvesse adquirido a
certeza de que Irena não existia.
- Não te perdoarei, padre miserável, embora eu
saiba ter a condenação eterna. Espaceio, mas não cedo a minha vingança.
Volveu ao seu primeiro empenho, trabalho em
que viu perdidos meses, e ainda agora já em fins de março não dava o fruto
ambicionado.
Uma tarde abriu-se-lhe a imaginação a uma
grande esperança. Circulou pela cidade um boato, que, embora não tivesse grande
alcance aos olhos de Augusto, produziu sobre si uma agradável impressão.
Propalou-se que o enorme cruzeiro da praça da Sé estava a marejar água.
A nova, entrando pelas casas da cidade, pelo
palácio, pelos abarracamentos, produziu, principalmente nestes, um grande
alvoroço. Semelhante acontecimento não podia ser senão a profecia de que em
breve estaria acabada a seca, e para os desgraçados não podia haver sobre a
terra nenhum anúncio mais grato.
Este rebate dado por um milagre tão estupendo
ao coração dos retirantes, esta evocação sobre-humana das suas mortas
esperanças fizeram com que a população inteira dos abarracamentos se entornasse
sobre a cidade. Todos queriam verificar o milagre, sentir diante dele o coração
desvairar de contentamento, alucinar-se numa alegria tal, que só se poderia
comparar à de um leproso que visse de repente me cair a crosta repelente, e
aparecer-lhe o corpo são e robusto, o sangue a querer irromper da epiderma nova
e finíssima.
Augusto, que havia calculado semelhante efeito
do boato sobre os retirantes, saiu logo para tomar lugar diante do cruzeiro,
ante o qual devia desfilar todo o mar desses desgraçados.
Chegando à praça, viu realizado o seu cálculo.
Desdobrou-se-lhe um espetáculo de cenas indescritíveis. A fé e a sofreguidão
davam ao ajuntamento enorme a voz das cascatas em época de enchente; saía dela
um ruído que azoinava. Soavam cânticos em toda a praça, onde a multidão se
conservava de joelhos; reinava a confusão em todas as ruas que desembocam no
largo.
Mas o que chamava mais a atenção era o número
incalculável de redes que passavam através da multidão, por entre alas que esta
lhes abria, como se quisesse dar aos enfermos esta última consolação.
A credulidade mantinha a exaltação geral;
formavam-se grupos onde havia sempre quem afirmasse que tinha visto, que era
perfeitamente exato o milagre: o cruzeiro marejava água, e isto depois de
tantos meses de soalheira assassina; era por força aviso do céu.
Os próprios moradores da capital mostravam-se
impressionados, sem poderem explicar o acontecimento.
- É quase inacreditável...
- Mas diante do fato...
- Sim, diante de fato não há contestação
possível.
- Entretanto - interveio finalmente um
incrédulo que ouvia um grupo formado junto a Feitosa - um sacristão pode ser o
autor do milagre.
- Como?
- Deitando água no madeiro gretado do
cruzeiro; este, embebido...
Não o deixaram acabar a frase; expeliram-no a
empurrões, chamando-o emissário de satanás, satanás em pessoa.
E clamavam em voz alta:
- Perdão, perdão, Senhor Deus, não vos
desafronteis em vosso povo da heresia do demônio.
E cada vez mais amotinado, o grupo repetia em
voz alta, com gesticulação exaltada, com soluços, com lágrimas a heresia, que
foi logo, com uma rapidez elétrica, sabida por toda a gente.
Começou então uma cena apaixonada de
desagravo. Todos queriam ao mesmo tempo oferecer a Deus a sua prova de fé, e
ricos e mendigos principiaram a atirar ao supedâneo do cruzeiro todo o dinheiro
que traziam.
Planejou-se logo uma solenidade estrepitosa de
missas cantadas e de procissões em toda a cidade, durante dias, para que o Ser,
que tudo sabe e sé faz o bem e o justo, se amerceasse da contrição daqueles que
nada tinham dito.
A noite caiu sobre este imenso fervor
religioso para que o luar desse-lhe ainda maior majestade e exaltação.
Feitosa, de pé, olhando, com uma atenção de
fera esfaimada, para as pessoas que saíam da praça por uma única rua,
providência que dera a polícia para evitar distúrbios, não perdia as feições de
nenhuma das que passavam.
- Ela virá, decerto; eu os encontrarei ainda
hoje; vou ver, felizmente, acabado o meu tormento.
Mas as horas foram passando
sem que a sua esperança tivesse o menor indício de se ver realizada; e o moço
começava já a desanimar. Para agravar mais o mal-estar que ele já sentia,
começou a diminuir o número dos que saíam pela rua. Feitosa soube então que o
povo tinha conseguido zombar das sentinelas e sair por todas as ruas.
- Oh! desgraçado que eu sou - exclamou Feitosa
que, sem se poder conservar de pé, foi encostar-se a uma parede próxima.
Um retirante corpulento,
vestido decentemente, com a camisa de algodão sobreposta a fralda às ceroulas
do mesmo pano, estava havia mais de uma hora, em frente a Feitosa, a olhá-lo, a
acompanhar-lhe todos os movimentos da fisionomia.
Quando Feitosa cambaleou e foi recostar-se à
parede, este homem deu um salto para ampará-lo, mas logo afastou-se e veio
ficar de novo em frente ao moço, a quem continuava a encarar com um olhar em
que se lia a hesitação.
Feitosa cansou de observar e com o coração
torturado, afogueado de desespero, pôs-se em caminho com o povo que se
espalhava.
O retirante, que não o perdia de vista, coçou
a cabeça como quem hesita e afinal acompanhou-o até junto de um lampião, sob
cuja luz pôs-se diante de Feitosa.
- Vossa Mercê dá-me uma palavra? - disse o
retirante.
Feitosa parou e esperou que o interlocutor se
aproximasse.
- Eu sou o comboeiro Estevão, de B. V., e
queria pedir a Vossa Mercê...
Ao ouvir o nome da paróquia, Augusto Feitosa
desanuviou imediatamente o semblante, porque o coração readquiriu a esperança
de encontrar Irena.
- Conheceu lá então o velho Monte e sua filha?
- perguntou ele precipitadamente.
- Lá e aqui, meu senhor, e é por eles que eu
venho pedir a Vossa Mercê...
- Fale, fale - exclamou Feitosa -, diga-me
onde eles se acham.
A maneira brusca por que estas palavras foram
proferidas, fizeram estremecer Estevão, que interrompeu Feitosa com uma
entoação suplicante.
- Morrem à fome; o velho cego e inchado da
anasarca, a filha reduzida a esqueleto, sofrem muito.
- Sim, eu imagino, tenho certeza de que devem
ter sofrido muito; diga-me onde estão eles.
- Eu não venho denunciar, meu senhor, eu venho
pedir perdão para os dois infelizes. Toda a gente na paróquia soube, por fim,
que não foi o velho Monte quem cometeu o crime contra Vossa Mercê e não é justo
que seja ele o perseguido. Perdão, meu senhor, perdão para os desgraçados!
Feitosa estava como doido. A noticia, que lhe
trazia finalmente a paz ao espírito, lançava-o num estado de exaltação, que não
lhe dava palavras para exprimir o que sentia. Não respondeu à suplica de
Estevão; fez-lhe por sua vez o pedido que lhe pairava, havia longos meses,
sobre os lábios.
- Vamos vê-los, meu amigo; já, depressa.
- E perdoá-los, não?
- E pedir-lhes perdão, - exclamou afinal
Augusto Feitosa; - tenho-os torturado muito.
Estevão, que conservava na mão o chapéu, desde
que se dirigira a Feitosa, enterrou-o na cabeça e disse triunfantemente:
- É por aqui, estamos lá dentro em meia hora.
- Minha santa Irena - murmurou Feitosa -,
ainda tenho tempo para salvar-te.
- Decerto, há de salvá-la. Eu por um acaso fui
empregado como guarda do abarracamento, há 15 dias, e encontrei-os sob um
cajueiro: Irena com febre, o pai inchado pela anasarca. Corri ao abarracamento,
o da Pimenta, e lá contei o que eles eram e o que padeciam. O administrador
teve dó deles e mandou recolhê-los ao hospital. O velho estava a morrer e d.
Irena...
- Não me diga nada sobre o seu estado -
interrompeu-o Feitosa; - vamos vê-la.
Em menos de meia hora, atravessando a cidade,
os dois
homens chegavam ao alto da Pimenta e
aborreciam-se com o embaraço que lhes causava, ao caminhar apressado, o longo
areal. Permearam, finalmente, as ruas de casas de palha e o cercado em que eram
distribuídas as rações, distante apenas alguns passos do hospital.
Por comum acordo, Feitosa parou, enquanto
Estevão ia ao hospital chamar Irena, para que fosse menos violento o abalo do
encontro e se lhe dissipasse o temor da vingança de Augusto.
Estevão, tomando uma vela na administração,
penetrou no hospital; uma sala de 40 palmos de comprimento sobre 20 de largo e
em que se viam uns trinta e tantos leitos miseráveis, feitos com quatro
forquilhas e envarados de bambus, sobre os quais, cobertos apenas por um
cobertor de algodão escuro, jaziam os doentes.
Quando a claridade da vela alumiou o recinto
fétido e asqueroso, Estevão deparou com um quadro comovente.
Numa das extremidades da sala em que estava o
leito de Rogério Monte, estava estendida sobre o chão frio e imundo a mísera
Irena; e, sobre o leito, estatelado, inerte, o corpo de Rogério. Estevão salvou
correndo a pequena distância e inclinou-se sobre o fazendeiro.
- Morto, já está morto! - exclamou ele, que
balançava o cadáver. - Infeliz velho, infeliz gente; quem sabe se ainda é tempo
de salvar a filha?
Dizendo tais palavras, tomou nos braços o
corpo de Irena e saiu com ele para o lugar em que deixara Feitosa.
- Está aqui ela; o pai é morto.
- Irena, minha santa amiga, perdoe-me,
perdoe-me -soluçou Feitosa; - nunca mais nos separaremos.
Irena não respondeu. Queimava-a a febre
intensa que lhe arrebatava os sentidos e a deixava completamente indiferente a
tudo. O seu semblante, muito demudado, parecia já mascarado pela morte.
- Não há de morrer, não, minha amiga; viverá,
viveremos para o nosso amor - murmurava Feitosa, cobrindo de beijos as faces da
enferma; - vamos já daqui.
Poucos minutos depois, entrava pela cidade
Irena, conduzida em uma rede, e ao lado dela Feitosa e Estevão.
O resto da noite passou sobre as maiores
torturas e as mais doridas lágrimas que podem sofrer e derramar um coração
humano. Feitosa, completamente desvairado, impaciente, febril, não deixava o
médico um só momento.
Queria-o de contínuo à cabeceira de Irena e
que lhe fizesse desaparecer a febre. Dar-lhe-ia o que lhe pedisse; a vida de
Irena era mais que a sua vida. era a sua honra.
Ao romper do dia o médico veio comunicar a
Augusto que a doente parecia estar salva; a febre fazia remissão e a fisionomia
era lisonjeira.
De feito, pelas oito horas da manhã, quando
Augusto, lembrado por Estevão, mandava este tratar do enterro de Rogério Monte,
a fim de que o honrado fazendeiro não fosse atirado à vala comum, como os
demais retirantes, o moço esteve a ponto de endoidecer.
De dentro do seu quarto vinha o eco das vozes
do médico e de Irena, que lhe perguntava:
- Não estou então delirando? É verdade que eu
estou acordada e que me vejo assim?
- É, minha senhora, e é preciso acalmar-se,
dormir um pouco.
- E meu pai? - perguntou ela precipitadamente.
- Melhor; a moléstia é muito grave; foi
necessário retirá-lo daqui para a serra... Está com o beribéri.
- Pois eu era capaz de jurar que ele...
Um soluço compungente sufocou-lhe o resto da
frase e o doutor, intervindo sem hesitação, exclamou:
- Também eu pensei, mas felizmente foi apenas
um acesso violento que passou... Acalme-se a senhora, porque bem sabe que seu
pai não resistiria à sua perda.
Irena, com a sua docilidade natural, obedeceu
ao médico e calou-se. Estava nesse estado inconsciente em que as febres
violentas deixam o enfermo, estado em que parece que há uma dormência no
espírito, proibindo que as sensações e os sentimentos tomem corpo e se
arraiguem.
Com os olhos amortecidos, os lábios muitos
secos, as faces escaveiradas, Irena ficou a olhar por muito tempo reparando na
decoração singela, mas confortável, do quarto e, afinal, perguntou com
interesse:
- Quem é que nos socorre?
O doutor, calmo e prevenido para responder à
pergunta, disse carinhosamente:
- Pergunte ao coração se não há ninguém que os
possa socorrer; que se orgulhe em servi-los.
Irena olhou admirada para o doutor, cuja
fisionomia de qüinquagenário se iluminava por um sorriso acariciador.
- Temos vivido tão sós e tão abandonados, que
eu não julguei poder encontrar alguém que nos socorresse.
- Eu guardarei o segredo; será o seu presente
de convalescença, que deve ser breve para encontrar-se com o seu velho pai.
Irena cerrou as pálpebras depois de algum
tempo, durante o qual ficou absorta a olhar para o doutor. Parecia ter
adormecido, mas, de repente, levantando-se no leito, exclamou trêmula e
ofegante:
- Adivinhei o seu segredo, doutor, adivinhei,
e o senhor vai confirmar-mo.
O doutor sorriu benevolamente e respondeu:
- Não é possível.
- Disse-mo o coração, e disse-me mais que o
meu desgraçado pai está perdido. O meu protetor é Augusto Feitosa!...
O doutor perturbou-se e não soube como
responder. Irena, aproveitando a confusão, buscou sair precipitadamente, mas à
porta do quarto Augusto deteve-a, exclamando de joelhos:
- Sou eu, sim, quem vem merecer de ti o perdão
que não pude obter de teu pai!...
Irena recuou espavorida e foi sentar-se
automaticamente no leito, muda, boquiaberta, a fitar com os olhos esgazeados o
amante. Lia-se-lhe no semblante o terror profundo e invencível que a dominava e
deixava-a quase inteiramente alheia ao que se passava.
- Não acreditas, não é assim? Também eu ontem
pensei que sonhava ao encontrar-te, tamanhas foram a minha ventura e dor, mas a
tua presença, hoje e aqui neste momento, convence-me de que não me enganei. Não
me encares assim como para um fantasma dos teus delírios; olha-me bem,
serenamente, sou eu, o teu amigo que te pede perdão!...
Os lábios descorados do moço tentaram beijar
as mãos de Irena, mas um movimento delicado e rápido da moça furtou-as ao beijo
apaixonado.
- Tens razão - soluçou Augusto -, eu lá não
mereço uma caricia tua, e nem a posso pedir. O meu amor foi a tua
desgraça: as humilhações, as afrontas, a
penúria em que por longo tempo viveste, foi tudo obra minha. Sei, não devia
afoitamente encarar contigo, Irena! Porém julguei-me castigado pelos meus
remorsos e esperei que a sinceridade do meu sofrimento fosse um título à tua
piedade...
Houve uma longa pausa em que ressoaram mais
alto os soluços de Augusto.
O médico saiu do quarto, cabisbaixo e
comovido, e, cruzando os braços sobre os rins, pôs-se a andar de um para outro
lado da sala. De quando em quando na quietação do aposento ouviam-se o retinir
das ferraduras dos animais no calçamento da rua e palavras destacadas de
conversas de transeuntes. Um retirante, que estava ao serviço de Feitosa,
ressonava sentado no corredor.
O médico parou afinal junto de uma janela que
tinha as vidraças descidas e as cortinas corridas. Duas mulheres conversavam
sobre um espetáculo a que tinham assistido na praia.
- Era de cortar o coração; pobre gente! Que
dor que ela sofria!
- E a família que só tinha mulheres? O que vai
a pobre fazer lá no Pará? Esperanças.
- Por muito mau, sempre é melhor do que aqui;
à fome não se há de morrer. Eu e o meu marido já resolvemos ir para o Rio de Janeiro;
dizem que lá é um céu aberto.
- Basta estar perto do imperador; lá não hão
de fazer muamba, o graúdo está vendo.
- No Pará é que não nos apanham; sei lá o que
é aquilo? Ninguém fala, e depois só mandam para lá barcos velhos.
- Este de hoje e assim.
- Uns homens que estavam ali conversando
disseram que o barco vai ao fundo mais dias menos dias; que não dá conta da
viagem.
- Tudo desgraça...
- É a vontade de Deus.
As duas mulheres calaram-se, e o doutor voltou
ao seu passeio maquinal, que para logo interrompeu indo parar à porta do
quarto.
Augusto conservava-se de joelhos, com a cabeça
pendida sobre a beirada do leito, e arquejando continuava a soluçar.
Irena, por sua vez, conservava-se muda, mas,
ainda que na mesma posição, havia escondido nas mãos as faces, que se
orvalharam de lágrimas silenciosamente.
A sua cabeleira louro-clara, muito seca e
descurada agora, caía-lhe sobre os ombros, exagerando ainda mais a palidez
romântica da sua epiderma. Aparecia-lhe por sob o vestido velho de chita o pé,
pequeno, fino, escurecido pela poeira, mas ainda assim deixando ver as longas
estrias azuis das veias. Do seu todo de mendiga exalava-se um perfume celestial
de honestidade heróica, que enchia todo o aposento de um extremo recato
virginal.
O médico passeou por largo tempo o olhar sobre
os dois mártires. Sua alma, acostumada com as grandes dores, calejada já pelos
espetáculos comoventes, acostumada a ouvir prantos desolados de orfandade e
viuvez de envolta com os últimos suspiros, com o derradeiro resfolegar de pais
e de esposas, vibrou não obstante com uma sensibilidade ampla e comunicativa.
- Eis o que é ser desgraçado - pensou ele; -
amam-se, querem-se, e no entanto cada um teme lançar-se nos braços do outro.
Em bicos de pés avizinhou-se de Augusto, e,
pondo-lhe a mão sobre o ombro, imprimiu-lhe um movimento delicado; e como
Augusto levantasse para si o rosto banhado em pranto o médico mostrou-lhe com o
indicador as lágrimas e a atitude de Irena.
- Eu contava com o teu perdão - exclamou
Augusto, levantando-se e beijando precipitada e gulosamente as mãos da moça; -
fui menos cruel que desgraçado.
Os crebros soluços de ambos concluíram a
reconciliação de tão vivo quanto sincero amor.
À tarde Estevão veio comunicar a Augusto
Feitosa que tudo estava pronto para o enterro do velho Rogério. O bom do
comboeiro ria e chorava ao mesmo tempo. Estava contente de si porque, na sua
qualidade de guarda do abarracamento esforçara-se sempre em socorrer o velho
Monte e Irena; mas, quando expunha aos seus companheiros que os dois pertenciam
à grandes famílias dos Montes, aqueles riam e chasqueavam, atribuindo as suas
atenções a causas vis.
Hoje tinha-lhes demonstrado que não mentia,
que tinha sido verdadeiro quando recomendou o velho ao respeito de todos. Isto
o alegrava.
- Está muito bonito o velho com a sua roupa
toda preta, a barba feita, no caixão de belbutina com galões de ouro. Tomou
outra vez o seu ar fidalgo.
Mas isto mesmo causava tristeza a Estevão,
porque pensava que devia ser vestido assim, com aquele ar grave e respeitoso,
que o velho devia ir acompanhar Augusto e Irena como noivos e abençoá-los
diante de Deus. Entretanto, no dia em que os dois se encontravam, o pobre velho
baixava à terra para não mais se levantar.
Augusto depois de ouvir Estevão foi consultar
com o médico sobre o que deveria fazer: se ocultar a Irena o saimento paterno
ou dar ocasião a que ela o visse.
O doutor opinou que se deixasse ao acaso
resolver.
À tardinha ouviram-se na rua os compassos
retardados e a entoação tristíssima de uma marcha fúnebre.
Irena, que havia adormecido, acordou
sobressaltada e, arregalando os seus grandes olhos azuis, cheios ainda das
sombras do sono, perguntou a Augusto o que era aquilo.
O doutor, convidando Irena a levantar-se,
conduziu-a até junto da janela e levantando a cortina das vidraças mostrou-lhe
a triste cena que a marcha fúnebre anunciava.
Alguns homens vestidos de preto seguravam nas
alças do caixão, e um bando de mulheres e de crianças acompanhavam-no. Logo por
trás do modesto féretro caminhava Estevão, que conduzia dois mochos, que
serviam de eça, em que de quando em quando o caixão era depositado.
Irena, ao dar com o rosto comovido de Estevão,
exclamou com um entono indefinível de dor:
- Meu pai, meu desgraçado pai!
- Irena - soluçou Augusto -, é diante do
cadáver de teu pai que eu venho pedir-te com o perdão, a reparação do crime.
Perdoas-me?
Irena deixou-se cair sem forças nos braços de
Augusto. pálida como um cadáver, e, enquanto o moço, esquecendo no egoísmo da
ventura a grande dor da moça, beijava-lhe as faces arrebatadamente, lá da
extremidade da rua vinham encher o silêncio da sala os compassos da marcha
fúnebre.
Deixando a casa da companheira a sorte de
Eulália tornou-se mais cruel e insuportável.
A princípio a infâmia da perdição
compensava-se com a certeza do bem-estar da sua família vendia-se aos que
passavam para comprar assim a tranqüila honestidade de suas irmãs. Havia
alegria naquela miséria; aquele lodo brilhava com os reflexos da boa ação, como
o brejo com as irradiações do luar.
Mundica veio mudar tal situação. Avilanada
desde os tempos da paróquia, a rapariga havia na capital descido ao mais baixo
e sórdido da perdição. Fazia parte da concorrência infame da vizinhança dos
quartéis e aí, aguardentada, fumando, vozeando e lutando, arrastava
miseravelmente a vida, passando as semanas parte na cadeia e parte na mais
assombrosa dissolução. Especulando com a virgindade e a frescura das irmãs,
Mundica desde logo as converteu em instrumento de ganho. Amelinha passou a andar
com a recua de meninas que pediam esmolas, especialmente nos hotéis e às
reuniões dos rapazes.
Tendo descido a tanta baixeza, Mundica, não
tendo mais nada a perder, decidiu causar a ruína de Eulália. Aquela
perversidade tinha o faro dos cães; não perdia a pista da moça; onde quer que
esta se recolhesse, lá a encontrava.
Eulália foi constrangida a deixar de morar nas
ruas em que podia decerto modo desmascarar a sua vergonha, e a habitar naquelas
em que as palavras obscenas, as injúrias horrorosas de Mundica pudessem ser
ouvidas sem escândalo dos vizinhos.
Nesta mudança a infeliz viu partido o degrau
dourado da perdição. Passou de ser uma mulher recatada para ser uma coisa
à-toa, conhecida da cadeia como desordeira.
Desde então o dinheiro começou a escassear-lhe,
à medida que as violências à sua educação e ao seu pudor aumentavam.
A princípio freqüentavam-lhe a casa uns homens
que a obrigavam a fumar, que exigiam dela risadas e frases canalhas.
Eulália obedeceu a esta nova exigência do seu
aviltamento. Aprendeu a falar torpezas com o cigarro ao canto da boca, rompendo
em explosões de uma lubricidade caprina.
Mas nem todos os exageros bestiais bastavam
para atrair a concorrência da baixa libertinagem. Eulália tinha de sair à rua,
de ir lá enguiçar com as cores desbotadas do enxoval de perdida, que lhe dera a
companheira - a sua sagaz introdutora no mundo do lodo e da humilhação -, a
lascívia saciada dos d. Juans reles.
Passaram assim semanas, em que dia a dia a
desgraçada sentia a beleza desaparecer, o corpo emagrecer, o espírito
conturbar-se-lhe, e a sede de dinheiro tornar-se vesana e insaciável à medida
que as férias diminuíam.
Um dia acordou com febre; sentia os lábios
secos e o hálito quente como o ar próximo a uma forja. Uma quebreira
irresistível arrastava-a para o leito; disse-lhe uma vizinha com uma risada,
chasqueando da sua ingenuidade:
- Você chegou à primavera; vai dar flores.
O coração torturado de Eulália sangrou; estas
poucas palavras eram a sentença fatal que de uma vez para sempre a condenava.
Nem mais a sórdida profissão lhe podia valer, estava definitivamente perdida.
A desolação do seu espírito começou então a
agigantar-lhe mais as proporções do seu infortúnio. Não se pervertera por si,
mas por suas irmãs; contava que o tempo viesse em socorro delas, que a
calamidade cessasse e que lhes fosse possível a elas volverem para a terra do
berço puras e imaculadas. Mas a seca, em vez de desaparecer, dobrou de
intensidade, o mau estado da província longe de melhorar agravou-se. O que seria,
pois, de Chiquinha e das outras?
Veio-lhe então à dolorosa meditação uma idéia.
A retirada para fora da província era enorme agora. Para todas as províncias do
Império retiravam-se cearenses. Iria, pois, falar com Chiquinha. expor-lhe-ia o
segredo da sua existência, a origem da comodidade de que elas gozavam e
aconselhá-la-ia a insistir com d. Ana para que emigrassem.
Assentada esta resolução, Eulália lançou logo
mão de todos os recursos. Foi ter com a família que era a protetora aparente de
d. Ana e pediu-lhe que mostrasse a esta desejos de a ver retirar-se de sua
casa.
- Eu dentro em muito tempo, talvez, não possa
mais pagar a pensão; estou doente, vou tratar-me e, se lhes hei de dar
prejuízo, previno.
Não era preciso mais para que os supostos
protetores pusessem em campo toda a sua atividade junto de d. Ana,
convencendo-a de que devia partir.
Todos os boatos, que então circulavam a
respeito do destino que esperava os emigrantes, foram repetidos e exagerados.
Era como sair de um inferno para entrar num
paraíso. Os retirantes, ao chegar, eram recolhidos em casas de ótimas
acomodações e delas só saíam empregados e ainda protegidos pelo governo.
Enquanto não tinham emprego, conservavam-se nessas casas, sustentados pelo
imperador, que era para a crédula gente o que nós outros chamamos o governo.
- Todos os que têm ido para fora escrevem e
dão boas notícias; pelo menos lá não há fome, nem a gente tem necessidade de
vender o que tem de mais santo.
- São terras de muita fartura - acrescentavam;
- dizem que lá para o sul chove quase todos os dias.
D. Ana relutou por alguns dias. Era
verdadeiramente cearense e sertaneja; amava com sinceridade a terra em que
nasceu. A própria desgraça a que a via hoje reduzida ligava-a mais a si,
estreitava-lhe a solidariedade com o seu destino. Parecia que o seu lugar era
aí no meio dos horrores, dos acontecimentos descomunais que tanto já haviam
pungido e que tão diretamente ameaçavam-lhe o futuro. A filha carinhosa, ao ver
a mãe afetada de uma moléstia contagiosa, procede assim. Ao passo que todos
evitam-lhe o hálito, fogem-lhe do contato, ela, que sente a piedade filial
manter-lhe a gratidão vivaz, respira nos beijos, afronta nos apertos de mão e
nos abraços estreitos o mal de que os outros se arreceiam.
Afinal d. Ana viu-se obrigada a ceder.
Eulália, tendo adoecido gravemente, continuava a manter a família com o produto
das suas economias, que eram poucas e, portanto, não davam à moça a confiança
necessária para condescender com a sua velha tia. Insistia, portanto, junto dos
supostos protetores e estes junto de d. Ana, que afinal se resignou a abandonar
a província.
Era urgente que saíssem o mais depressa
possível, e a velha senhora portanto não escolheu o lugar para onde ir. Pediu
passagem no primeiro navio que partisse; pouco lhe importava o destino; em
qualquer lugar viveriam do seu trabalho e seriam mais felizes do que então.
Eulália, que esperava ansiosa por esta
resolução, foi encontrar-se com Chiquinha.
- Coragem, minha irmã - disse-lhe ela -, vão
porque irei brevemente encontrá-las.
Depositou nas mãos da irmã a pequena soma que
lhe restava e que devia servir para as primeiras necessidades da família na
província em que chegasse.
Sentiu-se então desafogada, melhor; a honra de
suas irmãs estava salva. Se por ela tinha caído sobre a memória de seu pai uma
sombria mancha, esta mancha evitara outra maior.
E a mísera Eulália, voltando para o seu
casebre, abençoava a sua infâmia. Passou alegremente os dias que decorreram, e
só a viram triste na tarde em que Chiquinha, abraçando-a, disse-lhe em soluços.
- Amanhã partiremos; está decidida a viagem.
Pelas 11 horas da manhã, uma onda de
retirantes desdobrava-se sobre a vastidão da praia afogada em sol.
Vinha dos navios ancorados uma triste melopéia
cantada pelos marinheiros, que marinhavam mastros ou mantinham-se a cavalo nas
vergas. Um bando de jangadas, com as velas muito bojadas, voava muito inclinado
e com a velocidade dos pássaros pescadores quando se despenham sobre as presas.
Misturava-se no espaço, como notas de um uníssono, o sussurro do povo, o
murmúrio das ondas, o farfalhar longínquo do coqueiral a leste.
Apesar da claridade do dia e da multidão,
pairava sobre a praia uma pesada atmosfera de tristeza, que exalava do lugar e
das fisionomias.
O cômoro do Croatá ao lado como que diluía-se
na vivíssima luz meridiana. As suas choupanas de tetos havana-escuro, muito
baixas, quase roçando o solo, pareciam um cardume de socós enrufando as asas
para voarem. Do outro lado a ponta do Mucuripe, entrando prolongadamente pelo
mar, dava ao lugar uma aparência de deserto; tão árido é o aspecto da sua
extensão pedregosa, que enruga o chão como as pústulas de um lázaro.
No meio da multidão, que tinha o mau cheiro de
um monturo, ou de um grande acúmulo de andrajos, apareceu Eulália, com os
vestidos sovados e já barrados pela poeira das ruas.
Junto dela veio logo postar-se uma roda de
libertinos provincianos, que não faltavam a nenhuma reunião para farejar na
miséria as coroas virginais esquecidas pela fome.
- É bonita - conversavam eles olhando para
Eulália; -bonito porte.
- O olhar é prometedor, muito meigo, cearense.
- Mas já lhe estão a surgir através das
faces...
- Se lhe parece. Queria-a como quando nasceu?
Era o supra.
Eulália ouviu e desvaneceu-se a princípio com
a conversa. Talvez aqueles elogios lhe dessem ocasião de pôr de parte alguma
economia, e esta representava a junção em breve com as irmãs e a velha tia,
cuja separação tanto lhe custava.
A palestra, porém, mudou de assunto. Tinha
havido um grande movimento no seio da multidão, que se desagregou em uma porção
de grupos que corriam para a grande ponte de embarque, a qual buscavam
flanquear.
O grupo dos peralvilhos moveu-se também
acompanhando Eulália.
No meio das alas abertas pelo ajuntamento
começou a desfilar o grupo dos emigrantes, sobre o qual a própria repulsão da
miséria fazia convergirem os olhares.
- E embarcam sempre naquele navio os
desgraçados? - disse um dos peralvilhos.
- Pudera; a melhor política é mandá-los andar;
desentupir a nossa cidade de semelhante peste.
- Não está mau modo.
- É o único; entrouxá-los e marchar.
- Mesmo porque, se houver um naufrágio,
ninguém sente, e com razão, porque tanto faz que eles morram de fome como
afogados; no fim é sempre morrer.
- Bravos à piedade; vem a tempo.
- Não é piedade, é indignação. Não há quem não
saiba aqui o estado em que está aquele navio. Estava já para ser vendido como
lenha.
- Então aquele é o patacho ...
- Ele mesmo, e, como já não prestava para
nada, o governo fretou-o e responsabilizou-se por qualquer desastre que
sobrevenha.
- Ah! sim, o dono é do partido que está em
cima...
- E para servir um amigo mata-se mais de 200
pessoas.
- Isto é pessimismo exagerado.
- Eu aposto a cabeça em como o navio não torna
ao Ceará, nem chega ao seu destino; ele não agüenta o vento que lá vai fora.
- Eu estou quase arriscando 20 mil-réis.
- Aceito-os contra 200.
- Feito.
- Feito - respondeu convencidamente o
interlocutor.
Semelhante segurança não podia deixar de
impressionar Eulália. A princípio buscou disfarçar a desagradável impressão que
experimentou, mas, quando viu a família no meio dos emigrantes, lacrimosa,
desolada, Eulália sentiu que a profecia do conversador era verdadeira e que ela
estava condenada a perder para sempre as carícias da caçula e a amizade das
irmãs. Esforçou-se para romper as linhas de povo colocadas diante de si, mas a
massa fria, impiedosa, repeliu-a, apesar dos motivos com que ela legitimava a
sua insistência em passar.
- Para fora; não empeste a gente -
resmungavam-lhe; - não se encoste.
- Piedade - soluçava Eulália -, vão ali minhas
irmãs e eu sei que o navio vai perder-se.
- Para trás, já lhe disse; gente como você não
tem família. Perdida tem você a vergonha.
Torturada, insultada, a infeliz buscou sair.
Se corresse pela praia, se tomasse uma jangada chegaria a bordo a tempo de
encontrar-se com a família e poderia ainda demovê-la. Mas a saída também lhe
foi por longo tempo vedada e só pôde efetuá-la quando a multidão debandou-se.
Correu então pelo areal, fixando o solo movediço com a sua violenta resolução.
O vento, colaborando com os seus bruscos movimentos, desdeu-lhe os nós das
tranças e a sua cabeleira negra, soltando-se do sincipúcio, desgrenhou-se-lhe
como um véu negro, como um pedaço das trevas da morte que começasse de
envolvê-la.
Arquejante, alucinada, chegou à beira-mar e
gritou para uns jangadeiros, que, muito calmos, sentados sobre os paus
flutuantes da sua embarcação, comiam a rir.
- Levem-me a bordo.
- Estamos almoçando agora; só por bom preço.
- Levem-me.
- Paga cinco mil-réis?
- Chegue - exclamou Eulália -, chegue e
depressa.
Meteu a mão no bolso do vestido e,
desamarrando um lenço, pôs-se a contar o dinheiro. Tinha apenas oito mil-réis.
- Ainda sobram-me três - murmurou a
desventurada; - bastam-me.
A jangada partiu rápida com o nado certeiro de
uma cobra através da correnteza. As ondas, afofando-se em espessa espumarada,
tinham o ruído semelhante ao da lâmina de aço de encontro à pedra do rebolo
vertiginosamente movida.
Mas a celeridade da jangada não conseguiu
compensar o tempo perdido. Quando Eulália aproximou-se do navio, já as
escotilhas estavam fechadas; os saveiros, em que os retirantes tinham ido,
voltavam vagarosamente, e à proa do patacho, os marinheiros, com o seu coro
tristonho, que parece uma lamentação partida do mar, coro que sintetizava todas
as dores da despedida, inclinavam-se e levantavam-se, em vaivéns ritmados,
suspendendo a âncora.
- Pode-se falar a uma família que aí está
embarcada? - perguntou Eulália, trêmula e impaciente.
- É muito tarde já; estão levantadas as
escadas.
- Mas é para que ela não vá, porque não
precisa ir.
- Traz ordem da comissão? - perguntou de
bordo, depois de uma pequena demora, um indivíduo que parecia ser o comandante.
Eulália despenhou em soluços e o homem de
bordo acrescentou.
- Sem eu nada posso fazer.
O patrão da jangada disse friamente para os
companheiros:
- Aproveitemos o vento, toca para a terra.
A jangada partiu com a sua vela bojada,
sussurrando extraordinariamente, e sobre os soluços de Eulália desdobrou-se,
como um acompanhamento do oceano, o coro triste dos marinheiros levantando a
âncora:
- Oi...i! oi...i! arriba, oi...i!
De volta da excursão precipitada, Eulália
trazia, de mistura com o desespero, a recaída da moléstia de que, havia alguns
dias, fora atacada.
O sol influía-lhe no organismo com a energia
de um veneno. Batiam-lhe as têmporas violenta e dolorosamente como o latejar de
um tumor; tinha os lábios empergaminhados, ressaibando travor bilioso. Um
relaxamento geral dos músculos dificultava-lhe os movimentos.
Quando a jangada varou na praia cuspindo-a de
espumarada alvadia, o patrão, indo tomar Eulália nos braços para desembarcá-la,
viu-lhe os pés completamente molhados, e, como a fitasse para pedir-lhe
desculpa, exclamou assustado:
- Vossa Mercê está muito desfigurada; o mar
fez-lhe mal.
Eulália não respondeu; levou silenciosamente a
mão ao bolso para tirar o dinheiro e pagar. O patrão fitou de novo o seu
semblante, em que as pálpebras entrecerradas punham um tom de tristeza
indefinível.
- Vá com Deus, moça - disse o velho homem do
mar -, guarde o seu dinheiro; mais perdeu Vossa Mercê. Não paga nada.
Eulália olhou admirada para o velho patrão,
significou-lhe o seu agradecimento por um estreito aperto de mão e pôs-se a
caminho pelo areal a fora, sob o ardor inclemente do sol.
Chegando à casa, pensou que ia morrer. As
conversas, o arrastar dos chinelos das suas companheiras, o menor ruído, enfim,
tomava nos seus ouvidos um volume descomunal, que a alucinava. Tinha desejos
brutais de se atirar de encontro às paredes, de rolar pelo chão, gritar e
dilacerar as roupas. Sentia sob as pálpebras arder-lhe uma forja inextinguível,
que irradiava uma temperatura incômoda. Pôs-se a beber água com a demasia de um
dromedário, e depois, desvairada, deitou-se numa rede a cantar.
- Foi forte o mar de ontem, Eulália; -
exclamaram as companheiras; - a ressaca de hoje é forte.
E ela ria, sem ouvir, automaticamente, por uma
ação reflexa, acompanhando a gargalhada alvar das outras.
Mas, em breve, a moléstia avassalou-a; tomou-a
nas garras e imobilizou-a. Vieram-lhe bruscos calafrios, que a faziam tiritar,
e a sua garrulice de doida extinguiu-se, dando lugar a um silêncio profundo, só
perturbado pelo resfolegar arquejado.
Passou assim horas. As companheiras de casa,
sentadas à janela, tirando de cigarros e cachimbos longas e fartas baforadas,
não se impressionaram; esqueceram-na para ali com um frase vil:
- Está cozinhando.
À noite, porém, ela continuou no mesmo
resfolegar de enferma, no mesmo bruto letargo; e uma das mulheres,
aproximando-se da rede, teve um sobressalto.
- Credo! Parece que a Eulália aprontou-se de
mais; venham vê-la.
A desgraçada ardia numa febre violenta, que a
escaldava e tolhia-lhe os movimentos do corpo e da razão. Ao chamarem por ela,
respondeu inconscientemente:
- Vim pedir minhas irmãs, não quero que elas
partam para morrer; o navio vai ao fundo.
As outras olharam-se perplexas. A salda do
navio carregado de retirantes e as palavras de Eulália explicavam a causa da
moléstia. Aquelas palavras denunciavam também sentimentos que eram uma
justificação do procedimento de Eulália. Embora se entregasse, como as outras,
e emparceirasse com elas na prática das mais aviltantes baixezas, Eulália,
durante certas horas, ficava intratável, fechava-se no seu cubículo e daí
apenas saía nas horas do ganho, e então um círculo roxo marcava-lhe nas
pálpebras o vestígio das lágrimas.
- Isto vai ser um inferno - disse uma das
perdidas; - ela não se levanta daí tão cedo.
- É botica e dieta - ponderou outra.
- E o trato, e tudo de que um doente precisa -
acrescentou a terceira; - nós não podemos com eles.
Houve um largo silêncio, durante o qual as
três mulheres se olhavam como se cada uma tentasse ver na fisionomia da outra a
resolução que todos hesitavam em manifestar:
- Acho melhor esperarmos até amanhã, talvez
ela espaireça.
- Talvez.
- Mas pode piorar.
De novo a dificuldade de resolver surgiu
diante das três mulheres, cada uma das quais como que temia revelar à outra a
perversidade de que todas eram capazes.
- Eu por mim deixava-a ficar aqui; sempre é
nossa companheira e nenhuma de nós está livre de uma igual.
- Este é que é o bom caminho; mas você bem
sabe que há morrer e viver.
- Mas não se morre assim como um cão, sem mais
nem menos.
Faltava decididamente coragem a todas para
dizer qual a medida que deviam tomar, medida que logo apareceu ao juízo comum.
As pausas explicavam-no suficientemente; é que nenhuma queria parecer aos olhos
da outra a mais desnaturada, para que, em caso semelhante, não fosse o seu
conselho de agora um argumento imperioso.
- A morte não marca tempo - disse uma delas; -
vem e leva aquele cuja hora é chegada.
- E se ela morrer aqui...
- Sem médico...
- É um incômodo para a gente; fala-se tanto.
- Mas por isso não havemos de pôr na rua uma
companheira que arde em febre.
Esta última reflexão fez com que as outras
duas perdidas abaixassem os olhos, como se lhe tivessem surpreendido para
refutar de chofre uma resolução prestes a ser emitida.
- Se ela morrer aqui - disse uma delas -, nós
temos de mudar-nos; ninguém mais entrará em nossa casa; é como se fosse
amaldiçoada.
- E para fazer a mudança é preciso achar quem
nos queira alugar casa - disse a outra.
- Se ela morrer aqui, por causa de uma, podemos
contar que vamos as três para a rua. Não havendo dinheiro, não há casa.
Este último argumento decidiu a sorte de
Eulália. Ficou vencido que a infeliz enferma não podia continuar na casa.
Somente faltava a cada uma das companheiras a coragem de ser a primeira em
segurar em Eulália para deitá-la à rua.
Um incidente demorou por mais algum tempo o
alvitre. Um grupo de homens havia parado à porta e dirigia daí frases obscenas
às perdidas, e estas, correspondendo ao apelo, distraíram-se algum tempo.
Quando, porém, ficaram de novo sós, voltaram
ao projeto. Eulália estava cada vez mais grave; tinha no semblante a máscara da
morte e a febre parecia ter-lhe estagnado o sangue numa pasta incandescente que
lhe avermelhava extraordinariamente o rosto.
- É preciso decidir - disse uma das mulheres -
este despotismo de febre mata-a por força.
Olharam-se as três hesitantes, mas de repente,
como se temessem arrepender-se da ação que iam praticar, exclamaram ao mesmo
tempo:
- Vamos deixá-la à porta da Misericórdia.
As três mulheres começaram logo a pôr em
prática a sua resolução. Duas delas, trançando os braços em cadeirinha,
colocaram sobre eles a enferma, envolvida em um lençol enxovalhado e sustentada
pela terceira, que a segurava pelas costas.
Puseram-se a caminho; deram um grande avanço,
mas a distância a vencer era considerável e o peso que carregavam, enorme para
aqueles organismos depauperados pela fome e pelas noitadas lascivas. Demais
disso, o corpo de Eulália escaldava, e como o incômodo da posição e fizesse debater-se,
era preciso grande esforço para contê-la.
Não obstante, as mulheres caminhavam sempre, e
só paravam para revezar e descansar. Vindo de perto do largo dos Voluntários,
haviam atravessado já metade da praça da Assembléia, e aí pararam um pouco, sob
um lampião, a tomar fôlego.
- Tenho os braços mortos - disse uma delas.
- Eu tenho os meus que parecem uma sopa, de
tão moles - disse outra.
- Mau, mau - exclamou a terceira; - se querem
dar parte de fracas, não chegaremos lá.
- Não, havemos de chegar, nem que seja de
madrugada.
- Descansemos bem.
Sentaram-se as três e puseram-se a fumar.
A praça rumorejava o farfalho das suas enormes
árvores, lembrando um grande ajuntamento a cochichar. Era o único ruído que
quebrava o silêncio profundo da cidade, mergulhada em sono. A luz dos lampiões
projetava uma claridade mortiça na extensão do largo, onde aqui e ali, junto
dos velhos troncos, viam-se grandes manchas negras ou amareladas. Eram
retirantes que dormiam ou que, paralisados pela fome, esperavam ali a hora do
perpétuo descanso.
As três mulheres continuavam a fumar
indiferentes ao quadro que tinham diante dos olhos. Estavam acostumadas a ele
como figuras que dele se haviam destacado e que mais tarde deviam volver a ele,
como que buscavam evitá-lo.
Uma delas, porém, dirigiu o olhar para o
centro do largo, fitou-o por largo tempo e depois de levar a mão aos
supercílios e dobrar de atenção no observar, disse para as companheiras:
- Vamos talvez ter alhada, olhem para acolá.
As duas mulheres, depois de repararem
atentamente, murmuraram com uma expressão de assombro indefinível:
- É a patrulha, não?
- Parece-me - respondeu a primeira -, e não
seria mau que nos fôssemos escapando.
As três levantaram-se, mas, antes que tivessem
tempo para dar um passo, a patrulha saía do largo e caminhava sobre elas.
- Nem mais um passo - disse uma das mulheres
-, sangue-frio.
Os três rondantes pararam junto delas e o
comandante informou-se miudamente do que faziam. Depois verificou se era exata
a causa dada e, pondo a mão sobre a testa de Eulália, disse para os
companheiros:
- Esta lá está arranjada, é uma brasa.
Enquanto falava, o chefe trocava com os dois companheiros de patrulha olhares
significativos e cada um deles fazia minucioso exame da fisionomia das perdidas.
Afastando-se delas, perguntou o chefe:
- Que me dizem das três? Bonitinhas, não
acham?
- Uma delas é quera.
- Mas nós estamos em serviço, ponderou o chefe
hesitando...
- Maldito serviço.
Deram mais alguns passos e as mulheres
começaram a aprontar-se para seguir.
Um ruído de saias veio desafiar o respeito à
disciplina manifestado pela patrulha, que sem querer estacou.
O chefe tirou a barretina e coçou a cabeça
brutalmente; depois levou as mãos às ilhargas e, olhando para os outros, que
sorriam, resmungou:
- Vocês vêm o que é um precipício? E assim que
se perde a divisa de anspeçada.
- Quando se é visto - ponderou um dos
camaradas.
- E a esta hora.
- Sim, a esta hora não é costume passar
ninguém por aqui, mas por infelicidade...
- Eu não tinha medo, aqui é impossível darem
por isto.
- Deveras?
- O meio do largo é escuro e, se formos para
lá, veremos um gato que passe por aqui e daqui ninguém nos distinguirá lá. Vêem
vocês quem está deitado sob aquela árvore? Descobre-se um vulto e nada mais.
- Coração à larga e marchar - sorriu o chefe.
Voltaram a ter com as três mulheres, que já havendo endireitado Eulália sobre
os braços, principiavam a caminhar. O quadro infundiu respeito à patrulha, que
acompanhou-as por algum tempo silenciosa, mas afinal a animalidade dos três
instrumentos do arbítrio venceu a momentânea piedade.
- Oh! lá, vocês erraram de caminho, toca para
a outra banda.
- Nós vamos para a Misericórdia...
- Qual Misericórdia, nem o diabo! vocês vão é
deixar essa mulher ali sob uma árvore e provar que nada fizeram.
As três a um tempo começaram a defender-se
submissamente, apelando para o exame que o chefe tinha acabado de fazer. Havia
nas suas vozes o eco do temor que lhes causava a prisão e do respeito de toda a
província à autoridade.
O chefe lançou uma olhadela de inteligência
aos camaradas, para assegurar-lhes a vitória.
- Não sei lá dessas coisas; os doutores é que,
à vista da doente, poderão dizer se vocês fizeram-lhe ou não alguma coisa.
- Mas o que é que nós havíamos de fazer-lhe?
- Diante do delegado vocês provarão que nada
lhe fizeram, ou se verá o que vocês fizeram. Eu o que não quero é réplicas;
caminhem para acolá! - exclamou, apontando o largo.
As perdidas não ousaram arriscar a mais leve
desculpa e, dando vaivéns no corpo dormente de Eulália, atravessaram a rua e
penetraram na parte ensombrada da praça.
- Bem - disse o chefe -, depois que elas se
desembaraçaram da carga, acompanhem-nos.
Penetraram mais no escuro do largo e aí o
chefe renovou as suas perguntas, porém, com uma acentuação tão diferente, que
não passou desapercebida nem ao temor das perdidas.
A ameaça tremenda para as mulheres mudou-se em
uma cordialidade extrema e daí a pouco, em vez da autoridade que julgava
necessário o inquérito e as suspeitas das que lhe deviam responder, no meio do
crepúsculo da praça conversavam vozes amigas e condescendentes.
- E nós que não tínhamos dado pela astúcia.
- Caluda, que pode vir alguém.
Correu assim mais de uma hora; afinal as
mulheres quiseram retirar-se para seguir.
- Ora, adeus - observou o chefe da patrulha; -
tanto faz que ela passe a noite aqui como na porta da Santa Casa. Amanhã hão de
dar-lhe alguma volta.
- É verdade - disseram os camaradas; -
deixem-na estar Se ela não tiver de morrer, levanta-se fina amanhã; o ar é bom
remédio.
As perdidas concordaram, e, acendendo os
cigarros, despediram-se familiarmente dos soldados, dizendo-lhes a casa em que
moravam.
Quanto a Eulália, ainda ao amanhecer, ardia
com a febre intensa que a prostrava, no mesmo lugar em que as companheiras a
haviam deixado. Estava de bruços e os vestidos, arregaçados em parte pelos
movimentos bruscos, deixavam-lhe ver as meias enxovalhadas e as botinas já
fortemente cambadas.
A praça, desde madrugada, enchendo-se de vozes
de homens, começou a espalhar sobre a desventurada o sussurro de um mosqueiro
esfaimado. Dezenas, centenas de homens passaram junto dela; alguns pararam,
formaram roda e comentaram:
- Isto caiu de fome; é dessas que vivem ao
deus dará - disse um.
Um mercador de café e bolachas, o qual trazia
sobre a cabeça o tabuleiro e na mão direita uma lanterna apagada, parou, e, por
temor de que lhe pedissem alguma coisa, contestou a causa.
- Qual fome! Gente desta tem sempre o que
comer, nem que seja ração de soldado...
- Enquanto prestam.
- Mas quando já não prestam, não vestem assim;
vendem os luxos às conhecidas da mesma roda. Cá para mim, isto é mona
grossa.
- Também pode ser - concordou o interlocutor.
O grupo dissolveu-se, sem que ao menos um dos
indivíduos se houvesse abaixado para observar as feições da infeliz.
Pelas oito horas da manhã apareceram no largo
uma dezena de guardas dos abarracamentos, que, por entre baforadas de cigarro,
perguntavam se não havia algum morto na praça.
A mó de retirantes indicava friamente de um e
de outro lado, e os urubus como os chamavam, lá iam amarrar nos
compridos paus os sórdidos cadáveres.
Dois dos urubus pararam junto a Eulália e
desenlearam as cordas com que deviam amarrá-la, mas, ao tocarem-na, sentiram-na
quente e repararam então que ela respirava.
- Esta ainda está aprontando o mocó; demos
tempo.
Os circunstantes intervieram logo, pensando
que os urubus queriam conduzir a desgraçada.
- Deixem-na, esta apenas apanhou um pifão.
- Cozinhe à vontade - disseram os urubus, que
se afastaram.
Desde então Eulália ficou completamente
abandonada; os transeuntes não se demoravam junto dela mais do que junto de um
cão, que se debatesse envenenado.
Toda a gente que enchia o largo ficara
convencida de que ali estava uma bêbada e riam do sono pesado e da imobilidade
da mísera enferma.
Pelas nove horas da manhã, passando uma banda
de música pela rua lateral, o povo que enchia o largo correu tumultuariamente
para ver o que era. Diversas pessoas tropeçaram no corpo inerte e um retirante,
dando-lhe um pontapé nas coxas, exclamou enraivecido:
- Leve-te o diabo, besta! cais aqui para
atrapalhar a gente?
A banda de música passou tocando uma polca de
compassos alegres. Após ela ia um pequeno caixão, dentro do qual estava um
corpo de criança, um anjo, vestido de branco, com grandes laços azuis; a cabeça
cingida por uma capela de flores artificiais. Acompanhando uma porção de homens
e meninos de calças brancas, velas de cera acesas e os rostos dilatados de
alegria.
O povo que havia corrido, embasbacado ainda
diante do esplendor do saimento, comentava-o com frases piedosas:
- Vai em muito boa idade; não sofre mais.
- Não passará o que temos passado.
E outros acrescentavam ingenuamente:
- Morre tanta gente, só os comissários não.
- Estão embalsamados em carne velha e farinha
podre.
A onda de povo separou-se em duas alas e todos
começaram a descobrir-se respeitosamente. As mulheres e as crianças saindo das
alas, vinham para a clareira sofregamente e beijavam a mão de dois sacerdotes
que passavam conversando e que nem se demoravam em olhar para elas, enquanto
desses lábios de fiéis partiam súplicas em coro:
- Peça a Deus por nós nas suas missas, santo
padre; peça inverno nas suas orações.
Os homens, aplaudindo a prova de respeito,
davam as razões.
Aqueles dois padres eram os que confessavam os
moribundos; um deles, o mais moço, era mesmo um santo. Passava horas e horas na
Sé e quando era preciso não se enfadava de ir até os abarracamentos, coisa que
nenhum outro fazia.
- Santo homem - exclamavam em uníssono -, não
há de durar muito.
Os padres caminhavam sempre, sem se deterem.
Ao dobrar a esquina, quando já o povo não os
estreitava tanto, um deles perguntou ao outro:
- Então, Paula, tens-te dado mal com os meus
conselhos?
- Você é mestre.
- Olha que nem o bispo é capaz de ter assim
tão espontâneas saudações. Estás sendo tido por santo.
- E, nessa fama sem proveito, eu como o osso
da caridade e vocês a carne da fé.
- Não sejas sôfrego; eu já te disse que te
arranjava a vigararia para a cidade de... Espera mais alguns dias e continua na
tua obra. Aquilo dá uns 300, livres de despesa.
- Mas a sua porcentagem?
- Afora esta, talvez; a coisa é saber levar os
bichos; não olham depois a preço.
Sumiram-se, enquanto o povo, por sua vez,
recolhia-se ao largo alvoroçadamente, fitando os tabuleiros gulosamente e
regateavam com os mercadores as custosas migalhas.
Estava marcado para este dia, uma
quinta-feira, o casamento de Irena e Feitosa.
A noiva conservara-se fria e triste durante
toda a manhã. Faltava-lhe um complemento à sua felicidade: o conchego daqueles
que lhe haviam enchido de carícias os primeiros anos da infância; os conselhos
austeros de seu pai e os últimos beijos de Eulália no seu rosto virgem.
Quanto a seu pai, ela resiguava-se; não vinha
porque a morte o proibia. Mas Eulália devia viver, devia rolar envolvida na
túmida vaga da desgraça, que ululava horrores pela capital.
Feitosa fora mais agradável a Irena se tivesse
adiado as núpcias para quando encontrasse a infeliz ou obtivesse plena certeza
de que ela não vivia mais. A resignação diante do impossível seria então fácil,
porém, assim com a dúvida, era amarga.
- Tenho eu direito de ser feliz, quando a
minha desventurada amiga sofre? - perguntava a si mesma.
E acusava-se como cansa ao erro de Eulália com
o vigário. Deixara-se vencer por ele, porque viu quanto a paixão desse monstro
fora a princípio veemente. Se não tivesse tido tamanha prova, talvez resistisse
e acabasse por vencer-se. Mas a fatal noite da horta alucinou-a, e alucinou-a
porque Eulália, expondo a própria reputação, consentia em que Augusto
penetrasse furtivamente dentro da residência paterna.
Cerca do meio dia Augusto entrou risonho e
expansivo, e sentando-se junto de Irena pegou-lhe da mão, e, retendo-a nas
suas, ficou a olhá-la absorto.
Irena baixou os olhos tristemente corando e.
exalou um longo suspiro.
A modesta mobília da sala, única testemunha
desta cena de amor, lembrava uma criada grave, discreta, protegendo a paixão
clandestina de uma nobre castelã. Havia no recinto um recolhimento pudico, um
perfume de casta segurança, um venerando acento de pudor.
- Suspiras, Irena - balbuciou Augusto; - estás
triste? Duas lágrimas preguiçosas responderam à carinhosa interpelação.
- Choras?! - perguntou ele admirado. - Nem ao
menos hoje colocas diante das tuas tristes recordações a imagem do nosso amor?
Olha, eu também perdi minha mãe, perdi amigos, e tenho entretanto risos para
ti, e hoje me sinto deveras feliz.
- Não posso - soluçou Irena; - hoje, mais do
que nunca, sinto diante de mim alevantar-se a figura de Eulália para acusar-me
de ingrata.
- Tu, ingrata? E ela, que, sabendo talvez qual
o verdadeiro autor do crime, deixou que a desonra pairasse por tanto tempo
sobre a cabeça de teu pai, ela o que será?
- Já lhe pedi que não a acuse; demais não
sabemos de nada ao certo. Quanto a mim, sinto que ela não esteja aqui, para
dividir consigo um pouco da minha felicidade.
Calaram-se ambos por algum tempo, ambos
cabisbaixo e tristonhos. Irena, porém, ao ver demudadas as feições de Augusto,
sacudiu gentilmente a sua cabeleira loura e, fitando no noivo os olhos azuis de
que enxugara as lágrimas, disse-lhe sorrindo:
- Você há de procurá-la e há de encontrá-la,
não é verdade? Posso descansar em si....
- Juro-te, e bem sabes que não deixei de o
fazer. Se não a tens hoje aqui, é que a fatalidade impediu-me o encontrá-la.
- Quero pedir mais um favor antes de deixar o
meu luto; mas você há de prometer-me já que o fará.
- Pede - disse Augusto sorrindo; - estou
pronto a fazê-lo.
- O padre Paula foi um homem perverso para
conosco...
Augusto estremeceu, teve ímpetos de retirar a
promessa antes que Irena concluísse. Mas a acentuação da voz da moça era tão
suave, o seu coração sofria tanto, que Feitosa não teve coragem de interrompê-la.
- Ofendeu-nos nas pessoas que nós mais
amávamos. Matou sua mãe, Augusto, com os barulhos da paróquia; matou meu pai
pelos horrores da vida que passamos.
- É um monstro - exclamou Feitosa.
- Descarregou sobre si, Augusto, um golpe
traiçoeiro, e a mim feriu duas vezes roubando a honrada minha amiga e dando
causa a que eu amargasse todos os rigores da miséria.
- Não há castigo bastante para tal monstro.
- Há - assentiu convencidamente a moça - Olhe,
quando corrida de susto por havê-lo encontrado, eu retrai-me com meu pai e,
escondida nas capoeiras da Pimenta, vigiava dia e noite para não ser vista por
si; quando depois vi meu pai lançado naquele hospital imundo onde só tínhamos a
proteção do bom Estevão, acudia-me de contínuo a lembrança de Paula, cuja
história Estevão havia-me contado. Não tinha coragem para refletir sobre os
atos de semelhante homem; a sua perversidade entontecia-me. Proferia então
contra ele uma única sentença.
- E qual era ela? - perguntou precipitadamente
Augusto, cujas narinas tinham a dilatação da vingança e cujo olhar brilhava com
um fulgor de relâmpago.
- O perdão! - murmurou Irena; - deixá-lo para
que o remorso o tome de assalto na hora de morrer.
- Não é em almas semelhantes que o remorso
pode doer.
- Não importa, Augusto; parece-me que não
seríamos felizes se ao ajoelhar-mo-nos diante de Deus levássemos na consciência
a mancha da vingança. Perdoa-o por mim, pelos nossos próprios tormentos. Que
seria de nós se após tantos sofrimentos ficasse-me um temor pelo futuro? O
perdão daquele perverso será o meu descanso.
Augusto Feitosa ficou silencioso. A idéia da
vingança contra Paula era uma parte da sua felicidade: cedê-la era como que
mutilar a sua alegria.
- Perdoa-o, Augusto? - perguntou timidamente
Irena.
Augusto Feitosa fitou os seus nos olhos azuis
de Irena. A profunda melancolia que lhes amortecia o brilho tornava
irresistível a súplica que neles pairava. Nunca a natureza angélica de Irena se
lhe pronunciara tanto. Pareceu-lhe estar diante de uma aparição sobrenatural,
de uma força invencível que, de modesta, como que se envergonhava de seu
próprio poder, e procurava revogar o seu direito de impor com a humildade do
pedido.
O moço deliu todo o seu ódio naquele olhar
súplice. Todo o passado desapareceu diante desse instante que o amor dilatava
por todo um futuro de compensação dos terminados martírios.
Apesar de tantos meses de atribulação e
miséria, aquele simples olhar bastara para suprimir da memória de Augusto as
grandes dores que o acabrunharam.
As maiores angústias que o haviam torturado
não tinham o amargor suficiente para deixar o mais leve ressaibo na felicidade
deste momento.
Apertou nas suas estreitamente as mãos de
Irena e proferiu dissimulando a heroicidade do sacrifício na intenção de
desassombrar o espírito da moça:
- Tu assim o queres, seja feito. Os
sofrimentos que me couberam em partilha não foram tamanhos como os teus, e tu o
perdoas.
No semblante de Irena assomou um clarão vivo
de alegria; como que aquela alma ressuscitou inteira então para o amor e para a
ventura. Todavia teve ainda uma frase sentida:
- Como seria eu feliz se pudesse hoje ver
Eulália!
Pelas cinco horas da tarde o préstito do
casamento passava pela frente do palácio.
Uma banda de música militar tocava uma valsa e
sentados sob as janelas da casa presidencial os músicos faziam movimentos de
cabeça e trocavam-se olhares marcando o compasso.
Em uma das janelas laterais estava o novo
presidente, fumando um charuto a espaciar as baforadas. Dois amigos, aos lados,
conversavam com gestos de uma intimidade respeitosa, de inferior para superior,
de uma bajulação insinuante. Descobria-se facilmente no rosto de ambos a
intenção de se fazerem notar dos transeuntes, de provar-lhes que privavam com o
governo no menu e no dessert, e trocavam com ele toques de taça.
O rosto do presidente, que de vez em quando
passava a mão pela barba negra, tinha o desanuviamento da alegria, do homem que
vê as coisas friamente e que tem em torno de si um coro continuo a louvá-lo.
Os noivos passaram acanhados e cabisbaixos,
Irena pelo braço do padrinho, Feitosa de braço dado com a madrinha; alguns
convidados, vestidos de preto, formavam uma linha curva em torno deles; um
bando de curiosos ia-lhes no encalço.
- Noivado - ponderou o presidente olhando para
o grupo; - ainda há quem case com um tempo destes!
- E tenha sonhos de felicidade - observou um
dos comensais.
- Mal seria do homem se não houvesse a
esperança -reflexionou o outro.
- É o melhor dom do céu - disse o presidente
tomando uma baforada longa e soprando-a no ar morosamente.
- Os conservadores, por exemplo, morreriam de
despeito se não tivessem esperança de galgar breve o governo - disse um dos
comensais.
- Ah! o imperador é o chefe do partido e eles
contam justamente com a sua proteção.
O presidente teve um pigarro a expectorar
adrede, porém os comensais não o entenderam.
- Mas agora eu creio que tão cedo Sua
Majestade não se atreverá a mudar a face da política.
- Ora não! tudo é possível hoje, e a prova é
que ainda não foram dissolvidas as câmaras.
O presidente consertou de novo a garganta.
- Isto não prova nada.
- Prova o poder pessoal, é o que prova; está
governando o partido liberal quando a representação nacional é conservadora.
Mas a fraqueza dos nossos homens...
- Está a fazer hipóteses vãs, doutor -
interveio o presidente. - As coisas são como são e não como parecem. A
contradição, que o senhor vê, prova a favor de Sua Majestade. Mais do que às
câmaras feitas como nós sabemos, Sua Majestade considera os reclamos da opinião
pela eleição direta. Eis aí explicada a mudança. O poder pessoal é um tutu de
que o ministério, eu e todos quantos trabalhamos na imprensa oposicionista nos
servimos; a verdade única na política de nossa terra é que Sua Majestade só
quer o bem do país. Verá; não entra um conservador para a nova câmara...
Os dois comensais, que se conservavam numa
curva respeitosa diante de S. Exa., resfolegaram.
- Deus o permita - disse o doutor.
- Não descreia; convença-se. O doutor não
parece que há de fazer grande carreira, é muito oposicionista...
O outro comensal teve um riso de quem aprova e
se alegra por ver esmagado um competidor.
- Perdão - murmurou o doutor -, eu apenas
repito o que dizíamos na oposição.
- Pois eu nem me lembro de que algum dia
estivéssemos em oposição ao governo de Sua Majestade.
E o presidente voltando-se de todo para fora
continuou a fumar.
A banda militar acabara de tocar a valsa.
Ouviam-se agora distintamente o eco das vozerias do largo da Assembléia, o
trilo dos apitos e os prolongados assovios, S. Exa. parecia deleitar-se com
tudo isto, com o silêncio da banda militar, dos dois comensais e o barulho da
praça.
De repente, havendo relanceado o olhar para o
lado da igrejinha ao fundo do palácio viu por terra uma criança.
- Que diabo fará ali aquela criança? -
perguntou S. Exa.; é um povo muito mal educado este nosso.
- Uma canalha, esses retirantes. Morriam de
fome no tempo dos nossos adversários, hoje morrem justamente por uma razão
diametralmeate oposta.
- Mas é preciso regularizar o serviço, cumprir
as minhas instruções.
- Mas o que se há de fazer? Eles pedem e não
se dão por satisfeitos senão quando não podem mais andar de tão empanturrados.
- É necessário todo o cuidado - observou o
presidente soltando uma baforada; - vamos muito melhor, é verdade, mas tudo
quanto se puder fazer faça-se. Eu estou contente com o que se tem feito, é bom;
porém, se for possível mais, não é mau.
A música passou a tocar uma polca.
Os interlocutores puseram-se a conversar sobre
fornecimentos de gêneros e a utilidade em comprá-los na província para agradar
o comércio...
Completamente alheios a tudo quanto viam em
torno de si, os noivos tinham entrado na Sé e lá recebido das mãos do vigário
da capital as bênçãos, e sentiam-se tão extraordinariamente felizes que
misturavam os sorrisos e as lágrimas.
Quando saíram da igreja em direção à casa,
Augusto perguntou à noiva se estava ainda triste...
- Dir-se-ia que já não me amavas esta manhã.
- Eu? - perguntou ela; e depois, abaixando
muito a voz.
- Já disse que desejava ver hoje Eulália entre
nós.
Voltaram pela praça da Assembléia, porque na
superstição popular não devem os noivos voltar pelo caminho que foram ao
templo; é sempre um agouro.
Logo que penetraram na praça, como que um véu
correu-se sobre as fisionomias dos noivos. Custavam a caminhar, porque de toda
a parte os assaltavam pedidos importunos de esmola. Afinal foram constrangidos
a parar.
Um grande ajuntamento impedia o trânsito e, ao
contrário do que se dava sempre que havia reunião de retirantes, mantinha-se um
grande silêncio entre o grupo. O padrinho tomou a frente dos noivos para
abrir-lhes passagem, mas quando atravessando o círculo de povo chegou ao
centro, voltou de chofre para impedir que os noivos se adiantassem.
- Acho melhor tomarmos outro caminho - disse
ele.
- Não - disseram, já agora vamos por aqui...
- Mas é que aí está um cadáver...
- Não faz mal, passemos.
Deram alguns passos. Dois homens haviam já
amarrado os braços e pernas de um cadáver de mulher em torno de um pau e agora
apertavam-lhe também o corpo. O vestuário da mulher, porém, não era o de uma
retirante e por isso mesmo chamava a atenção.
Feitosa desembocara da ala mesmo em frente ao
cadáver e não pôde furtar-se a lançar-lhe um olhar furtivo. Teve então um
calafrio violento e tornou a olhar.
- É um sonho, por força - bradou ele; Eulália!
Irena precipitou-se sobre o cadáver e
ajoelhando segurou-lhe com as mãos no rosto empastado de areia. Quis falar, mas
a voz embargou-se-lhe na garganta e a infeliz caiu sem sentidos nos braços de
Augusto.
Era de feito o cadáver de Eulália, que havia
morrido abandonada no largo a alguns passos do palácio do governo e aos sons da
música que todas as quintas e domingos ia acompanhar a digestão da presidência.
A desventurada comparecia desta sorte aos esponsais de Irena.
Quando, em casa de Augusto Feitosa, despiram o
cadáver, encontraram-lhe amarrado à cintura um canivete-punhal.
Feitosa abriu-o e viu na folha mordida pela
ferrugem as iniciais de Paula. Tornou a fechá-lo, deitou-o no caixão de Eulália
e na tarde seguinte a terra guardava para sempre todas as provas do crime do
vigário Paula.
...........................................
As folhas públicas desse dia traziam logo em
seguida à cena dada na volta do préstito do casamento de Feitosa uma longa
local em que se noticiava a nomeação do vigário Paula para a cidade de... e a
local concluía assim:
"A cidade de... recebe no seu novo
vigário um digno apóstolo da religião do Calvário. Prouvera a Deus que sempre a
nossa fé tivesse como órgãos homens iguais: a moralidade e a caridade reinariam
eternamente sobre o mundo."