OS RETIRANTES

 

José do Patrocínio

 

SEGUNDA PARTE

 

A Retirada

 

I

 

Em outubro de 1877 a improbidade ostentava-se já na província com o desavergonhamento dos cães vadios e havia comissários do governo que podiam zombar da calamidade, que torturava a população, porque tinham-se locupletado bastante para atravessá-la.

 

Foi a certeza de tais abusos o que levou o presidente a escassear as remessas de gênero e provimentos de dinheiro para o interior, visto como a impossibilidade da fiscalização fazia com que eles quase nada aproveitassem aos desgraçados.

 

A conseqüência da medida foi incomensuravelmente desastrada. A fome deu alarma nas cidades, vilas e povoados, como nos mais humildes casais esparsos pelos tabuleiros e pelas charnecas do sertão, e o povo, rápido e ruidoso como a enxurrada, afluiu às estradas em demanda do litoral e da sede do governo.

 

Nessa corrente geral entraram os destroços da paróquia de B. V.

 

A retirada efetuou-se por um semicírculo em cuja curva tinha por extremidades as cidades de Fortaleza e de Aracati. Poucos, porém, foram aqueles que se dirigiram para a segunda cidade da província, porque as relações estreitas, mantidas entre ela e a paróquia, apontavam-na como um lugar onde os retirantes pouco melhoravam de sorte. Fortaleza foi o alvo geral.

 

Cerca de duas léguas de B. V. uma vendola espiava sobre a ondulação da estrada, que, conduzindo a vários pontos povoados comunicava a pequena paróquia com a cidade de Quixeramobim, a vila de Quixadá, a cidade de Baturité e, finalmente, com a capital.

 

A vendola, embora muito conhecida, havia uns dois meses chamava a atenção dos transeuntes, que se dirigiam ao velho vendeiro gabando-lhe o fornecimento.

 

- Você foi quem aproveitou com a seca, velho Inácio; lavou a cara do negócio.

 

- Qual? Atamanquei isto; como sempre há maior feira, deu-me na vontade.

 

De fato, a vendola parecia ter tomado para modelo as melhores da cidade, e o seu fornecimento bastava para satisfazer todas as necessidades mais urgentes dos viajantes. O movimento aí era também digno de nota; havia tardes em que mais de 20 cavaleiros desencilhavam os seus animais sob a meia água da frente e desciam as cargas para pousar.

 

Uma circunstância, que passou despercebida para todos, foi a coincidência dos assaltos freqüentes dos Viriatos, por extensão de oito léguas, com a prosperidade do velho Inácio.

 

Esses bandidos, que vestidos de pele e ferozes como os touros barbatões, levavam o espanto e a miséria onde quer que farejavam algum dinheiro ou provisão de gêneros; que atacavam os comboios e assassinavam os seus condutores, poupavam entretanto a vendola, apesar da temeridade do velho Inácio, que escolheu justamente uma fase anormal para dar mostras de abastança.

 

- Você tem algum patuá que o defenda, homem? Olhe que o tempo não está para fazer arreganhos de riqueza.

 

- Tenho a graça de Deus, que é quem defende os pobres.

 

- A desgraça não escolhe pobres nem ricos quando quer ferir: tome cuidado, velho Inácio.

 

O vendeiro encolhia os ombros desassombradamente e respondia quase sempre:

 

- Vocês sonharam aí com os Viriatos e andam a dar com a língua nos dentes sem saber o que dizem. Por aqui não os há, descansem, porque se os houvesse havia muita gente que não seria mais orgulhosa.

 

- E os roubos?

 

- Com as estradas sempre atulhadas de gente, como pôr-se a culpa neste ou naquele?

 

No domingo tão fatal ao povoado, como era costume encheu-se a vendola; mais de 30 cavaleiros, chegados em grupos, apearam-se e puseram-se a beber enquanto velho Inácio dava ordens para que se apressasse o almoço.

 

Três cavaleiros singulares chegaram por último quando já sob a meia água os pratos de louça branca estavam estendidos em frente aos fregueses de Inácio.

 

- Vivam o Onça e o Diabrete!

 

- Viva o Desempeno! - bradaram todos indo ao encontro dos recém-chegados.

 

- Boa súcia - respondeu o Onça -, hoje não se faz nada, o dia é para a folia.

 

- Veja respondeu um dos do grupo desembainhando a faca que trazia sob a véstia -, esta ainda não riu hoje, está tão séria como ontem.

 

- Nem estas - acrescentaram os outros puxando igualmente das suas facas; - olhe, elas não se riem.

 

- Cá a minha - ponderou um rapazola de olhar expressivo -, ainda nem lavou a cara; está com a ramela de ontem.

 

Mostrou então a faca ainda tinta de sangue, e, chegando-a às narinas, acrescentou:

 

- Isto cheira a bom dinheiro; só a prata velha; quem me dera apanhá-la!

 

- Bom, velho Inácio, nós também temos barriga; apronte-nos lá para um canto algum bocado.

 

O Onça e os outros dois recém-chegados apearam-se por sua vez e, atravessando a vendola, isolaram-se da massa dos gárrulos companheiros.

 

- Lá vão para o conchavo - começaram cá fora a murmurar.

 

- Eles são os que põem e dispõem das nossas vidas e sem nos dar satisfação.

 

- Ordem de cima.

 

- Ordem do diabo; nós não somos animais para não ser ouvidos, nem cheirados.

 

- Mas já nos veio mal por eles? Não tem tino?

 

- Ora qual; andam por aqui e nem ao menos a gente sabe com quem fala; é ir para ali e para acolá, mais nada.

 

- É sempre com aquelas máscaras.

 

- Isto é o que me aborrece.

 

Os três recém-chegados, uma vez fora das vistas do velho Inácio e dos seus hóspedes, desafivelaram as máscaras, que tanto incômodo causavam aos que os seguiam. Estas máscaras eram uns bonés de couro curtido, que escondiam-lhes as cabeças até os supercílios e dos quais caía uma asa que só deixavam-lhes a descoberto os olhos, o nariz e a boca.

 

Esses três homens, desconhecidos para todos os outros, eram Virgulino, o Feiticeiro e seu filho, o primeiro conhecido por Desempeno, os dois chamados o Onça e o Diabrete.

 

- Então quando chegará o dia da paróquia? - perguntou Virgolino. - Daqui lá é um pulo.

 

- Não se apresse; deixe aquela gente não contar mais com a missa; por ora não há que fiar, pode estar à espera. Você sabe que o padre é fino.

 

- Isto há de ficar ainda no rol dos esquecidos.

 

- Não se afervente; por vir tarde não perderá, cobraremos velhos e novos.

 

- Pode-se entrar com os almoço?

 

- Já lá vai, é um instantinho, velho Inácio.

 

Os três colocaram de novo os bonés e o pequeno abriu a porta.

 

- Então para onde se atiram hoje? - perguntou o velho Inácio.

 

- Hoje é só alguma coisinha aí pela estrada, não há nada de maior, é dia de descanso.

 

- Eu no seu caso hoje não fazia nada; os rapazes lá fora estão-se alegrando muito...

 

- Pois diga-lhes que bebam à vontade e que depois sumam-se até de noite. Você estenda redes para nós.

 

O velho Inácio não fez a menor reflexão à ordem recebida, e os cavaleiros só demoraram o tempo indispensável para terminar o almoço.

 

O Onça e o Desempeno reataram a conversação, por entre as garfadas de quem traz bom apetite.

 

- Você não tem ninguém no povoado e por isso não lhe bate o coração; aposto que não se daria o mesmo, se deixasse mulher e filhos, parentes e amigos?

 

- Tudo isto nada vale, quando o homem não tem nada para dar-lhes. Eu vivi do veneno das cobras e hoje vivo do sangue dos homens, que é mais venenoso do que o dente das cascavéis. Por que vivo assim? Porque sou malvado, toda a gente, diz; mas ninguém sabe que eu sou pai e que errei de casa em casa sofrendo quanto o diabo enjeita para um dia ver a mulher morrer à míngua, sem ter ninguém que a viesse cuidar na hora do parto.

 

- Está bom, não falemos em tristezas: você avexa-se com elas demais e eu quase desacoroçôo da vida.

 

- Fique certo, Virgulino, de que eu não fui convidá-los para virem comigo, só para fazê-los bandidos dos Viriatos. Bandidos são todos os homens em certa hora da vida. Eu fui chamá-los para dar-lhes com que alimentar as suas famílias; tomamos aos que têm e não querem dar aos que morrem à fome. Os juizes e os ricos podem nos condenar; os pobres chamarão ao que fazemos igualar as necessidades.

 

- Mas há quem enriqueça com o que nós todos ganhamos.

 

- Há, mas dá-nos com que segurar o dia de amanhã.

 

- E os perigos por que passamos?

 

- Perigos há-os em toda a parte. O homem que trabalha pode cortar-se com a enxada e morrer; ser atravessado ou esmagado pela árvore que derrubou; ser mordido pela cobra, enrodilhada na moita, e morrer. O homem, que tem o ofício de roubar, não corre maior perigo do que a morte. Em que é ele diferente dos outros?

 

- Mas antes morrer pelos primeiros trabalhos; não se morre amaldiçoado.

 

- E o que importa a bênção ou maldição a quem morre? A terra come igualmente a todos, não rejeita os maus, como nós rejeitamos a comida mal feita.

 

- Bem, bem, à nossa saúde; eu não quero zangá-lo.

 

Beberam todos e o Diabrete, que não dera uma única palavra durante o diálogo, levantou-se para sair.

 

- Vá colocar-se ali perto, veja quem vem e onde estão os outros. Ninguém passe por aqui, sem que saibamos quem é.

 

O rapazinho afastou-se e os dois chefes de quadrilha foram deitar-se nas redes, que lhes armara o vendeiro num quarto vizinho.

 

- Desarreie os cavalos, ouviu? E peie-os aí por perto.

 

A venda silenciou e os dois chefes puseram-se a dormir descansados. A ousadia do viver aventuroso e celerado dos Viriatos mostrava-se em toda a sua plenitude nos modos, palavras e finalmente no descuido temerário do Onça. Percebia-se em toda a sua latitude a paixão com que os bandidos dos Cariris praticavam os crimes monstruosos, que apavoravam a memória da província. Dir-se-ia que esses facínoras eram feitos de lascas da cordilheira, tão duros e bárbaros eram nas suas correias, cujo rastro era a cinza do incêndio, ou o sangue do morticínio, quando algum ousado pretendia opor-se ao bom êxito dos seus assaltos. É que os sequazes, recrutados no mais horroroso da miséria, não tinham os corações virgens para as grandes dores, e pelo contrário, familiarizados com elas, pouco se impressionavam de vê-las reproduzidas em outros.

 

Com as mãos molhadas de sangue, ainda sentindo a voz das vítimas ecoar as últimas súplicas, dormiam sossegadamente como quem acaba de praticar uma boa ação. Embalava-os a maternidade bruta e lerda da ignorância.

 

- Então vai isto a emendar pés com cabeça? - gritou à porta do quarto o vendeiro. - Olhem que o sol já está cochilando.

 

- Eh! - bocejou o Onça espreguiçando-se. - Deixa-o ir; a noite é mais nossa amiga.

 

- Mas é preciso que a rapaziada não venha achá-los dormindo. Põe-se para aí a grazinar.

 

- Tem razão; há muita linguazinha que deve ser cortada - ponderou o Onça, - olhando fito para o vendeiro. - Não concorda, Inácio?

 

- Eu sei lá - respondeu o velho perturbado. - O que você manda é o que se faz.

 

- Acabam-se os falatórios.

 

- Ora, eles rosnam só, mas obedecem; deixa-os ao menos desafogar.

 

- Desafogam demais... Uma coisa, velho Inácio: não passou ninguém por aí?

 

- Nem viva alma.

 

- Os diabos têm faro.

 

- Mas se passasse era o mesmo, aqui não se pode fazer nada.

 

- Isto é o que se há de ver.

 

- Se houver alguma coisa descobre-se logo que esta venda não é minha. Já se murmura por vê-la assim.

 

- Eu sei o que faço - respondeu secamente o Onça, e levantando-se seguiu até a porta da vendola, onde quedou a olhar para as árvores semimortas.

 

Pouco depois da sua chegada aí, o Diabrete surgiu no terreiro e veio apressado parar em frente e falar-lhe.

 

- Meu pai, aí vem uma mulher.

 

- Sozinha?

 

- Sim, senhor.

 

- É alguma retirante...

 

- Pode ser, mas vem muito asseada. A toalha é muito alva.

 

- Melhor para ela, deixa-a passar em paz. Espreite para ver se não vem mais gente e venha para casa.

 

- Eu já vi que ela vem sozinha.

 

- Veja melhor, e se a mulher pedir alguma coisa, mande-a aqui ter comigo.

 

Cerca de meia hora depois, uma mulher com um vestido de cor muito viva, uma toalha alvíssima pendente da cabeça, andando vagarosamente, parava na estrada defronte da vendola e hesitava sobre se devia ou não chegar.

 

O Onça deu um assobio entre dentes, que servia de sinal a Virgulino, e ambos foram disfarçadamente ao encontro da transeunte.

 

Desde que relancearam os olhos sobre ela, os dois facínoras olharam-se surpreendidos, como se tivessem conhecido a mulher, cujo rosto se escondia quase todo sob a toalha. Virgulino, que sofreu com maior intensidade a impressão produzida pela fisionomia tristonha da transeunte, dirigiu-lhe a medo uma pergunta:

 

- Boa tarde. É mesmo deste lugar?

 

- Boa tarde - respondeu ela com uma voz muito fraca - sou sim, senhor, dali de B. V.

 

- E para onde vai?

 

- Para este mundo de Deus, até que encontre uma casa para trabalhar.

 

- Hoje, moça - interveio o Onça -, é difícil.

 

A transeunte estremeceu, como se no tom da voz do Onça houvesse alguma ameaça contra si, e só respondeu tristemente.

 

- Paciência!

 

- E onde vai dormir hoje?

 

- Debaixo das árvores - murmurou a infeliz. - Aí há sempre lugar para os pobres.

 

- Inácio - gritou Virgulino -, lá entre a sua gente há lugar para uma pessoa?

 

- Até para cinco.

 

- Então, moça, vá dormir lá na casa daquele homem. Sempre é mais abrigado.

 

A recém-chegada olhou surpreendida para os dois bandidos, cujas feições era impossível descobrir, ocultas como estavam sob as máscara de couro, e murmurou:

 

- Queiram perdoar-me; porém eu não posso ficar aqui, devo ir pousar mais longe; B. V. está ainda muito perto.

 

- Dentro desta casa é o mesmo que estar muito longe; ninguém, a não ser seu pai ou sua mãe, virá tirá-la daqui. Fique; veja que não poderá andar muito, é quase noite, e as estradas agora não são seguras.

 

- Infelizmente já não tenho pai, nem mãe - disse a recém-chegada; - e nada tenho a perder, não quero ficar.

 

- Fique - suplicou Virgulino; - lembra-se de uma noite, na paróquia, quando uma família de retirantes era posta para lado da igreja pelo vigário, porque um dos homens tinha uma cruz na testa... Lembra-se?

 

- Sim. Então ainda meu pai era vivo.

 

- Lembra-se que foi o velho Rogério Monte quem agasalhou os desgraçados?

 

- Também já não mora no povoado...

 

- Ao sair da igreja, quando todos resmungavam porque o velho era bom para com os infelizes, lembra-se das pessoas que abraçaram o velho, achando que ele fazia bem?

 

- Sim, lembro-me, e até de que os homens depois fugiram e abandonaram a sua família, o que tanto dó nos causou.

 

- Mas esqueceu-se de que os desgraçados não rejeitaram a casa de Rogério Monte, nem as esmolas que davam à família deles aquelas duas moças, que eram chamadas os anjos de Deus, Eulália e Irena. Fique na casa de um amigo, de um parente daquela pobre gente, D. Eulália!

 

A entoação do pedido era tão humilde e acariciadora que Eulália sentiu invadir-lhe uma confiança extrema pelos mascarados, que até então inspiravam-lhe medo. Olhou-os, enxugando as pálpebras arroxeadas, e murmurou com uma inflexão tristíssima:

 

- Eu sou muito desgraçada...

 

- Nós o compreendemos, d. Eulália - respondeu Virgulino; - não tenha medo, está entre infelizes. Venha conosco.

 

Seguiram os três para a puxada coberta de palha, que ficava para os fundos da vendola, e onde a família de Inácio recatava-se quanto era possível dos hóspedes estranhos, que freqüentemente vinham bater, alta noite, à porta, e incomodavam o velho para lhes dar pouco.

 

A bondade e expansão do acolhimento mantiveram a confiança de Eulália, que durante toda a noite só teve uma ocasião de sobressaltar-se com algumas frases que ouvira à voz roufenha do Onça. É que o chefe do grupo dos Viriatos, ao qual cabia a exploração das circunvizinhanças de B. V., conhecia bem os seus subalternos, e queria evitar que o mais leve desacato fosse ofender a mísera hospedada. Tomou então a precaução de postar de sentinela à porta o Diabrete, a quem incumbiu de guardar a entrada e repelir a quem ousasse tentá-la, depois de avisado.

 

"Quem serão estes homens mascarados?" pensou Eulália; mas, apesar do cuidado que a perturbava, e do leve temor que começava a sentir, adormeceu prostrada pela fadiga da jornada e da violência que fizera ao coração, abandonando a paróquia.

 

Durante a noite, por diversas vezes, o Onça e o Desempeno vieram cautelosamente escutar à porta da puxada, e, finalmente, certos de que Eulália dormia, foram acomodar-se.

 

- Bem - disse Virgulino deitando-se -, eles estão bêbados como uma cabra; não se levantam.

 

- E que o façam e vão para lá que o Diabrete não é de graças.

 

- Mas que diabo levaria esta moça a dar este passo?

 

- Coisas da vida; alguma criançada. Em tempo de fome tudo é possível; meu pai contava histórias muito tristes das outras secas.

 

O sono fez ponto final à conversação dos dois chefes, e a vendola mergulhou-se em profundo silêncio, até que a madrugada veio, com os seus assopros furtivos e a sua claridade iriante, descerrar as pálpebras dos sequazes dos Viriatos.

 

Virgulino, impaciente por saber notícias do povoado, andava como uma pêndula de uma para outra extremidade da puxada, enquanto o Onça distribuía os seus soldados para diversos pontos.

 

Eulália apareceu, enfim, à porta, com a sua toalha à cabeça, e despedindo-se da família de Inácio:

 

- Muito obrigada - murmurou ela ao ver os dois mascarados; - Deus lhes há de pagar tanta bondade.

 

- Já então? - perguntou o Onça. - É muito cedo, não pode partir.

 

- Devo - respondeu Eulália -, é preciso que eu parta; se bem pareça que não sentiram a minha partida - acrescentou baixinho.

 

Onça, depois de dar-lhe algumas provisões, deixou-a partir e limitou-se a apontá-la à família, proferindo uma frase poucas vezes usada por ele.

 

- Faz-me pena; é muito desgraçada.

 

Virgulino, porém, acompanhou a forasteira, visivelmente perturbado, e, quando já não podiam ser ouvidos pela família de Inácio e pelo Onça, lançou delicadamente a mão ao braço de Eulália e disse-lhe com voz submissa.

 

- Saiba que eu não a deixo ir assim; a senhora e sua amiga salvaram a vida dos meus parentes, eu hei de salvar a sua.

 

- Mas eu não tenho nada - respondeu Eulália forcejando para sorrir; - estou boa.

 

- Não tente disfarçar - continuou Virgulino -, é a morte o que a senhora deseja, para ocultar o seu erro, mas a senhora não pode matar o seu filho.

 

- Nem quero! - exclamou a infeliz - Quero salvá-lo, porque tenho sofrido muito.

 

- E como quer ir por essas estradas por onde nunca andou, sem recursos, sem um guia, sem ter ao menos uma rede onde durma? Escute, d. Eulália, volte para o povoado, eu vou acompanhá-la para junto dos seus; a senhora não sabe o que é viver fora da família, eu dou hoje tudo para viver com os meus filhos.

 

- Não posso voltar - soluçou Eulália; - os meus seriam os primeiros a desprezar-me; deixe-me ir, eu conto com a misericórdia de Deus.

 

A resolução que acentuou estas palavras era tão firme que Virgulino não ousou resistir. Puxou precipitadamente o guarda-peito e arrancou do cinturão uma bolsinha de couro, que obrigou Eulália a segurar.

 

- Daqui ao primeiro pouso são oito léguas - disse ele -, e lá já não terá ninguém por si. O desgraçado da noite da igreja pede-lhe que aceite esta bolsa, por amor de seus filhos. Esconda-a consigo.

 

Eulália afastou-se soluçando, e Virgulino, que a acompanhara com o olhar, murmurou por fim:

 

- Não morrerá, porque nós a seguiremos.

 

O Onça, que tinha seguido com o olhar o jogo da rápida cena da despedida, meneou a cabeça desconsoladamente e disse para o vendeiro:

 

- Lá está o Desempeno na sua choradeira da família. Decididamente, para a nossa vida, não há como homens desapegados de tudo.

 

- Eu não sei o que me bacureja que esse cabra ainda faz alguma.

 

- Não tenho receio - sorriu o Onça pegando no cabo da faca; - antes que ele meta a cara eu o limpo.

 

Eulália tinha-se afastado e Virgulino de pé, como que atraído pela retirante, olhava para o lado da estrada por onde ela seguia.

 

- Vou acordá-lo - disse o Onça, e, caminhando para o seu companheiro de assalto, foi bater-lhe no ombro, a resmungar. - Não sei o que parece isto! Você está aí como uma rapariga que vê partir o noivo.

 

- É que a pobre moça causou-me dó; lembra-se dela no povoado? Era a companheira da filha de Rogério Monte e tinha muita piedade por meus filhos.

 

- Está bem, já pagamos em parte a dívida; agora cuidemos da vida.

 

- Hoje? E para onde iremos se tudo isto espremido não dá uma gota de sumo?

 

- Isto é aqui; mas, se ganharmos algumas léguas a coisa muda de figura. Além disso você precisa distrair-se.

 

Virgulino abaixou os olhos e só depois de uma longa pausa durante a qual o Onça passeava de um para outro lado, respondeu a sorrir.

 

- Olhe que às vezes tenho medo de mim mesmo; aborreço a vida e dá-me vontade de fugir.

 

- Nós conhecemos o Ceará palmo a palmo e os nossos cavalos correm bem...

 

- Já o sabia - respondeu contrariado; - felizmente nunca hão de correr contra mim. Estou pronto para o que você quiser e até posso indicar um lugar, onde podemos fazer muito.

 

- Qual?

 

- As vizinhanças de Quixeramobim.

 

- É um queijo daqui lá...

 

- Mas é bom; vemos por ali os que navegam por essas estradas, e na volta apuramos algum resto de gado.

 

- Vou pensar - respondeu o Onça -, em todo o caso, amanhã sem falta temos serviço.

 

Virgulino não teve coragem para objetar, ainda que o seu fim, indicando a cidade de Quixeramobim, fosse acender no Onça o desejo de partir imediatamente, o que daria ensanchas de socorrer Eulália. Sabia que as suas reflexões podiam produzir até a anulação da boa vontade do chefe, que, se descobrisse o verdadeiro objetivo do conselho, não o receberia, só para que, mesmo indiretamente, nenhuma mulher tivesse relação com a sorte da quadrilha.

 

- Pois então falaremos logo; eu vou dar um giro e, se você consente, levo comigo o Diabrete.

 

"É algum pedido", pensou o Onça, e chamou pelo filho. "Sempre é bom ver o que estão fazendo por aí esses pacholas."

 

O Diabrete não se fez esperar, e ao lado de Virgulino pôs-se a caminho pela estrada, que se dirigia para o norte da província.

 

Durante algum tempo caminharam silenciosos, sugando nos toscos e negros cachimbos imensas baforadas. A vegetação depauperada, imóvel no meio da claridade da manhã, lembrava uma linha de sentinelas sonolentas, que os estivesse espreitando.

 

A estrada alva de areia e de seixos, subindo uma colina, parecia uma baioneta enristada cravando-se no coração do arvoredo amarelento.

 

- Como este lugar é triste - observou o Diabrete -, parece um cemitério, tão descampado para aquela banda, tão sem água, tão sem gente! Eu, se pudesse, partia hoje mesmo daqui.

 

- Também eu, mas só amanhã é que o seu pai há de decidir.

 

- E que não passe de amanhã, senão faz-se aí um falatório e vai tudo em poeira.

 

Virgulino sorriu da bravata do rapazola e, batendo-lhe amigavelmente no chapéu, exclamou:

 

- Voute! poltrão; você não tem nem a coragem de repetir estas palavras ao Onça.

 

- Mas juro em como não dormimos mais amanhã aqui. Aposto o que quiser, se duvida. Eu quero sair daqui, porque este lugar é mais feio que um olhar de cascavel, e eu quando quero, quero.

 

- Aposto - disse Virgulino que buscava pelo interesse estimular o filho do chefe; - se você o fizer tomar para os lados de Quixeramobim, tem uma faca de prata.

 

- Está feito - respondeu Diabrete, estendendo a mão a Virgulino; - apronte o bolso.

 

- Salvei-a - murmurou Virgulino; assim pudesse salvar também os meus filhos, não seria mais infeliz.

 

- Arrependeu-se? - perguntou o rapazinho, reparando tão silêncio do companheiro. - Ainda é tempo de desfazer.

 

- Nem pensava nisto; é outra coisa que está a fazer arderem-me os miolos.

 

Continuaram a caminhar silenciosamente, com a ligeireza própria dos cearenses. Mais de uma hora decorreu-se depois que saíram da vendola, e no entanto o Diabrete não sabia para onde iam e nem ousava perguntar, porque os soldados dos Viriatos iam para onde os mandavam os chefes, ou acompanhavam-nos sem saber, nem inquirir em que sítio deviam jogar com a vida no perigo dos noturnos assaltos.

 

- Vamos numa boa marcha - ponderou o pequeno; - neste andar, em menos de quatro dias, estávamos em Quixeramobim.

 

- O que me admira é não encontrar ninguém. Os marrecos foram para longe; talvez lhes cheirasse a dinheiro algum adormecido por aqui, e eles não lhe perderão a pista.

 

Continuaram a caminhar apressadamente, porém cerca de meia hora depois Virgulino ponderava a si mesmo:

 

“Não pode ser; Eulália não pode ter caminhado tanto, deve ter ficado por ai. Talvez se escondesse de vergonhada, quando sentiu os nossos passos”.

 

- Sabe o que mais? - disse alto. - Vamos almoçar, visto que não encontramos nenhum deles. Virão mais tarde.

 

- Isto é presa por força.

 

- Ou malandrice. Talvez se metessem pela capoeira e se pusessem a dormir.

 

- É bem possível.

 

- Vá você lá por aquela beirada, que eu vou por esta. Veja se descobre algum rasto.

 

Puseram-se a marginar a estrada, olhando fixamente para as folhas secas que atapetavam o chão, rendilhado da sombra do arvoredo.

 

- Creio que perdemos o nosso tempo - ponderou Virgulino -, não entra gente aqui há mais de um mês.

 

- Sempre é bom ver e assobiar para avisar alguém que esteja perto.

 

Os assobios cabalísticos da quadrilha ecoaram em vão por muitas vezes, e de espaço a espaço.

 

- Não estão, eu logo o vi! E Eulália - resmungou Virgulino - também desapareceu.

 

- Bem dizia eu que era bom procurar - exclamou o Diabrete, depois de dar umas centenas de passadas e acenando com a mão, acrescentou quando Virgulino aproximou-se:

 

- Por aqui arrastaram alguém.

 

 

II

 

Virgulino, com a impaciência do cão ao descobrir a pista, esgueirou-se por entre as árvores, seguido pelo rapazola, que não deixou de notar tamanha sofreguidão do companheiro, mas limitou-se por muito tempo a acompanhá-lo, sorrindo.

 

Internaram-se durante mais de dez minutos e, entretanto, nenhum barulho veio dar-lhes esperança de que não seria muito longa a caminhada. Só eles, roçando nos galhos dos arbustos, perturbavam a inação e o profundo silêncio da natureza, que se abrasava, muda e imóvel, nos raios ardentes do sol. O assobio cabalístico sibilou em vão por três vezes anunciando a vizinhança de um chefe. O eco desdobrou-o por toda a circunvizinhança, mas ninguém respondeu.

 

- Foram meter-se em casa de Judas - ponderou o Diabrete -, ou então já acabaram com a festa e nós nada mais temos para ver. Já não tenho mais vontade de ir adiante.

 

- Pois eu seguirei o rasto até descobrir onde eles estão, ande embora até de noite. Se quiser pode voltar, Diabrete, e seria até melhor, porque o Onça não nos esperará para o almoço.

 

- E se o nosso amigo precisar de algum auxílio?

 

- Não hei de precisar, não - respondeu Virgulino, sorrindo tristemente à observação pedantesca do companheiro; arranjar-me-ei como puder.

 

- A presa não há de ser grande e não vale a pena esta fadiga.

 

- É por ela ser pequena que eu devo procurá-la para defendê-la. Vá, Diabrete, eu já não preciso de si; diga lá ao Onça onde estou.

 

- Então com licença; esta caminhada tem-me feito apetite; até logo.

 

Virgulino seguiu com maior afã o rasto que se tornava de vez em quando mais vivo, porque se mostrava sobre os claros de solo deixado pela folhagem caída. Via então distintamente que alguém tinha sido arrastado por aí, e esse alguém, pensava o bandido, não podia ser senão Eulália.

 

Havia caminhado mais de meia hora, quando pareceu-lhe ouvir gemidos, e, apressando mais o passo, verificou, dentro em pouco tempo, que não se enganara. Ainda que exalados por uma voz fraca, os gemidos se tornavam mais e mais distintos. O assobio do chefe de novo sibilou, mas não foi respondido, e o chamado por Eulália, proferido em voz muito alta, não obteve também como resposta mais do que os gemidos, que se tornavam mais distintos.

 

A poucos passos mostrava-se o quadro que Virgulino, pela alteração do semblante, mostrava temer presenciar. Eulália estava caída sobre uma poça de sangue, na inconsciência da dor, sem cuidado pela compostura.

 

- Miseráveis! Não respeitam nem as mulheres; mataram-na! - bradou Virgulino, que, ajoelhando-se junto à desmaiada, repetiu por vezes o seu nome, para ver se a chamava ao uso dos sentidos.

 

Debalde insistiu. Eulália, com os dentes cerrados, as pálpebras entrefechadas deixando ver nos olhos o brilho amortecido do desmaio, não o pedia ver nem ouvir. Paralisava-a e insensibilizava-a o quebrantamento causado pela perda do filho, de quem recebera a coragem para voltar costas ao crime, e defender-se heroicamente com a sua própria desonra. Tinha abortado.

 

Com o respeito de um irmão carinhoso, o bandido consertou as roupas da sua protegida, tornou-as mais folgadas, e procurou em seguida descobrir a bolsa de couro, que ele mesmo havia dado à forasteira.

 

- Bem; ao menos terá vingança, d. Eulália - murmurou Virgulino; - eu saberei desmascarar o infame que a insultou.

 

Levantou nos braços fortes o corpo de Eulália, cuja cabeça foi ajeitada sobre o ombro robusto do bandido, que fez-se de volta para a estrada, a transportar com o desvelo da gratidão a mulher, que também teve por ele piedade em uma hora aflitiva.

 

Só depois de mais de uma hora de caminhada, coberto de suor, ofegando de cansaço, chegou à estrada larga com a sua carga tão cuidadosamente zelada. Um sussurro de vozes veio dentro em pouco tomar-lhe o passo e de novo o voluntário protetor da mísera retirante foi esconder-se no capoeirão.

 

- Bem bonita vendinha, porém má catadura de toda aquela gente, não lhes pareceu?

 

- É verdade, não há ali uma cara que seja conhecida.

 

- Para serem também retirantes, estão muito asseados.

 

- São talvez gente de marinheiros, de filhos de fora, que vêm fazer comércio no sertão.

 

- Deixa-os lá; a grande verdade é que foram eles quem nos deram alguma coisa para matar a fome.

 

Um grupo de mulheres, carregando grandes trouxas sujas na cabeça, e os filhos menores no braço, passava pela estrada e conversava, como se depreendia das suas frases, a respeito das pessoas que tinham visto na vendola.

 

Virgulino, que se havia sentado, não só para se esconder melhor, como também para descansar, despiu a véstia e, sobre ela deitando Eulália, tentou levantar-se para ir ver quem eram os conversadores, cujas frases só lhe chegavam em sussurro. Mas os gemidos da infeliz não tinham cessado, e o bandido, receando que os ouvissem, deteve-se, conchegando de encontro ao peito aqueles lábios descorados.

 

- Deus os ajude, seja quem for; não podem ser malvados, porque respeitam os pobres.

 

- Deus a ouça, minha mãe.

 

A estrada voltou ao silêncio e ao abandono, e Virgulino, retomando nos braços o corpo da enferma, recomeçou a caminhada na direção da vendola.

 

O assobio da quadrilha ecoou por três vezes na solidão do caminho, e Virgulino apressou-se em respondê-lo, bendizendo o Onça, que mandava alguém ao seu encontro.

 

A alegria tornou-se ainda maior, quando viu a pouca distância o próprio chefe acompanhado pelo Diabrete e mais dois companheiros. Ainda de longe, com a voz entrecortada pelo cansaço, exclamou Virgulino:

 

- Venham ajudar-me, soam bem chegados; eu havia de custar muito a dar conta da mão.

 

- Então que diabo de novidade é esta? - perguntou o Onça.

 

- A nossa visita de ontem, que foi atacada por um diabo.

 

- Ajude ali, depressa, canalha - gritou o Onça para os seus subalternos -, não vêem vocês um superior a trabalhar?

 

- Está fora de si.

 

- Havemos de saber quem é o engraçado desta festa.

 

- Eu espero - respondeu Virgulino; - você bem sabe que não é dos nossos usos atacar mulheres que não têm defesa.

 

Um dos sequazes do Onça tomou dos braços de Virgulino o corpo de Eulália, e os dois chefes, encaminhando-se para a vendola, reataram a conversação.

 

- Não viu ninguém aí pelo caminho?

 

- Senti vozes, mas, como não queria que me vissem, escondi-me.

 

- Fez bem, se havia de ficar com o coração cortado.

 

- Ah! São muitos desgraçados, então?

 

- Sim, uma porção de mulheres que perderam os maridos ainda ontem, numa briga que houve em B. V.

 

- Perguntou-lhes você por minha família?

 

- Por todos... - respondeu tristemente o Onça.

 

- E o que disseram elas?

 

O Onça estacou, como se fora de chofre tomado de um insulto paralítico e, franzindo os sobrolhos, encarou com Virgulino repreensivamente. Depois, sorrindo, encolhendo os ombros e respirando alto, silabou demoradamente:

 

- Você dá um belo exemplo aos seus inferiores! Que tem você com os retirantes da paróquia? Os Viriatos não têm família, enquanto os liga o juramento ao seu chefe.

 

- Sim, tem toda a razão; estejam nossos pais, mães, filhos e mulheres morrendo à fome, não devemos nem lembrar-nos deles! Tem razão, juramos.

 

Calaram-se ambos, e silenciosos prosseguiram até a vendola; Inácio, que aí estava à porta, levou a mão cova aos olhos, e com a sua voz bajulatória exclamou:

 

- Olé, isto é presa de nova espécie, por aqui nunca tínhamos visto igual. E eu também guardo-lhes cá uma surpresa.

 

- Venha ela, e mande-me tratar desta infeliz; é a nossa hóspede de ontem.

 

- O almoço está à espera, Desempeno - disse o vendeiro; - não valia a pena demorar tanto para tão pouco.

 

O Onça acompanhou Eulália até a puxada, e lá ficou a recomendar todo o desvelo pela infeliz à família admirada de ver tais assomos de filantropia em corações de homens tão brutais. Mas ninguém ousava perguntar aos homens, que só conheciam pela voz o segredo deste procedimento novo.

 

Os bandidos, que estavam a descansar sentados sob a meia-água, estranharam também o ato dos dois chefes, e reparando na tristeza do semblante de Virgulino:

 

- É boa! - resmungou o rapazola que na véspera gabava a sua faca. - Vêm ainda a tempo essas virtudes, ganham o reino do céu.

 

A conversa e os comentários aumentaram entre ele quando ficaram em liberdade, por se terem retirado também Virgulino e o Diabrete, e o velho Inácio, que lá dentro exagerava a perfeição do almoço.

 

- Esta carne assada está sem o que se lhe diga, e o arroz cheira que faz água na boca. Entre neles com vontade, que logo desemburra. O Onça esteve engasgado comigo, mas, logo que meteu o dente no naco, mudou como da água para o vinho, desembuchou todas as queixas. - Vá, Desempeno, tome um gole por cima e verá. Vá, eu deixo-o à vontade.

 

Virgulino, porém, não compartiu a prazenteria comunicativa do velho vendeiro e sentou-se, taciturno, a desamarrar a máscara que o desfigurava aos olhos mais perspicazes.

 

- O velho foi desabrido com você, feriu-o muito, mas eu não estou pela história.

 

- Ele tem razão - respondeu Virgulino - eu jurei. Ainda muito meu amigo é ele, socorrendo d. Eulália. Lembra-se você dela no tempo em que estivemos no povoado?

 

- Se me lembro ! Ela e a outra de cabelos louros, boas moças!

 

- Que falta vão elas fazer à pobreza?!

 

- Não - respondeu o Diabrete; - em B. V. já não há gente. Fugiu todo o povo; tem passado muito e o resto vem por aí roncando que parece uma ventania.

 

- Oh! Que desgraça, Santo Deus! Que desgraça a minha! Hei de ver partirem os meus, sem que lhes possa dizer uma única palavra!

 

O Diabrete abaixou os olhos e murmurou com entoação sentida:

 

- E não poderá mesmo, porque eles não passarão mais.

 

- Morreram então?

 

- Não - acudiu o rapazinho -, mas já vão longe a esta hora. Aquelas vozes, que você sentiu, eram deles. Eu quando vi os seus pequenos, quando vi a sua mulher tão magra e tão abatida, tive vontade de dizer-lhes: olhem, eu sou o filho do Feiticeiro, o meu pai e o Virgulino estão aqui; entrem, nós agora temos dinheiro, não precisamos de ração: comam, bebam. Mas o olhar do velho fez-me calar e recuar, porque a sua mulher como que reconheceu a voz do meu pai. Não pude ter senão a alegria de encher bem de bolachas as mãos dos pequenos, de carregar de farinha e de carne as moças e sua mulher, e lá dei um pouquinho de vinho à velhinha, a vovó, que mal pode já com as alpargatas, mas que ainda assim estira o andar para ganhar tempo.

 

Virgulino pôs-se a soluçar convulsivamente, enquanto as lágrimas lhe escorriam em fio, e o pequeno continuou:

 

- Lá morrer de fome, não morrem não, eu o juro, porque ainda por cima o velho passou para mão da velhinha algumas notas; mas ser tristeza, é; eu ainda me lembro quando morreu minha mãe; o velho mesmo arrancava os cabelos aos maços.

 

- E hoje não consente que eu veja os meus. Hei de dar ao diabo esta vida; matem-me se quiserem, mas eu não fico mais nesta maldita sorte.

 

- Espere, eu vou ver se arranjamos a ida para Quixeramobim; assim está tudo feito.

 

- Como você é bom, Diabrete! Não parece filho do Onça.

 

- Psiu, ele aí vem, coma para agradá-lo.

 

Virgulino dera apenas algumas garfadas com a displicência de quem está profundamente magoado, quando assomou à porta o Onça, chamado por Inácio.

 

- Lá está acomodada a menina; a velha disse que não há de ser nada, que a põe boa em menos de 15 dias.

 

Inácio parou à porta a um sinal do Onça que o detinha enquanto Virgulino se mascarava.

 

- Então qual é a surpresa? - perguntou ele.   Você também já sai à estrada?

 

- Olá! Entre para falar com o chefe - gritou Inácio voltando para fora.

 

- De onde vem ele?

 

- Do Icó.

 

O portador, que era um homem robusto, acaboclado e de modos rudes, aproximou-se e entregou ao Onça uma pequena bolsa de couro, pronunciando três palavras, que era a senha da quadrilha.

 

- Vivo, luto e venço.

 

- Vá em paz - respondeu o chefe e fez sinal a Inácio e ao recém-chegado para que se retirassem.

 

Abriu então vagarosamente a bolsa e tirou de dentro dela uma pequena placa de folha-de-flandres, pintada de amarelo de um lado, e mostrou-a a Virgulino e ao Diabrete.

 

- Partir já - exclamou Virgulino, olhando fito para o Onça.

 

- Mas não diz para onde, é só um aviso - ponderou o Diabrete.

 

Onça voltou na palma da mão o outro lado da senha pintada de vermelho:

 

- Para onde está o chefe - murmurou ele e acrescentou em voz alta: - Inácio, diga ao portador que faça-se depressa na volta, e aos outros que se preparem a fim de seguir para o Icó.

 

- Eu não posso obedecer - disse Virgulino levantando - esta ordem é cruel para o pai que sabe que os seus filhos andam ao desamparo por estas estradas fora.

 

O Onça, afastando rapidamente a vestia, levou as mãos à tinta e dai as retirou armadas por um par de revólveres, fazendo alvo para o desventurado pai.

 

- Você sabe que eu sou seu amigo, Virgulino, mas sabe também que eu sou seu chefe e que os Viriatos não se retiram deixando soldados seus. Escolha: ou morre ao primeiro movimento ou obedece. Vamos, responda e lembre-se de que faço-lhe saltar os miolos, e mais a todos os seus parentes, que não se acham longe daqui.

 

- Obedeço - respondeu o mísero pai; - meus filhos não têm culpa da minha loucura.

 

- Saia então.

 

O chefe foi obedecido, e quando ficou só, murmurou entre dentes:

 

- Antes o veneno das cobras, ele não me ofendia o coração.

 

 

III

 

Horas depois o Onça e Virgulino entravam na puxada e recomendavam de novo a enferma à família de Inácio.

 

- Façam esta obra de caridade - disse Virgulino; - ela há de saber ser agradecida.

 

- Ouça, Inácio; tratem-na bem porque eu pago, posso pôr e dispor e tenho com que - ponderou o Onça. - A sua mulher já me disse que não havia perigo, conservem-me, pois, aqui a moça até que voltemos. Até a vista.

 

Quando iam montando a cavalo, Virgulino, dirigindo-se ao primeiro chefe, lembrou-lhe a meia voz uma de suas promessas, por uma pergunta:

 

- Os malvados que maltrataram a d. Eulália ficam impunes?

 

- Não; mas não posso já, já, saber; o Diabrete virá no meio do farrancho para ouvir as conversas.

 

- Há um meio: eu dei a d. Eulália a minha bolsa, e não a encontrei em seu poder, quando achei em tão desgraçado estado a pobre moça.

 

- É um meio de descobrir: descanse que o exemplo há de escarmentar os outros. Eu o prometo.

 

A cavalgada destilou por detrás da vendola por uma picada, que através do capoeirão comunicava a estrada de B. V. com outra, que se ia entroncar com a que se dirigia para o ponto que a numerosa cavalgada tinha por alvo.

 

- Estamos livres por algum tempo - murmurou Inácio; - é pelo menos um mês de descanso, se não lhes levar o diabo.

 

- Eu bem vos aconselhei quando quisestes fazer este negócio, agora é sofrer.

 

- Tem razão, mulher, tem razão, mas, o que quer? A ambição é sempre assim. Hei de acompanhar a procissão até o fim, não posso mais remediar.

 

Pouco durou a conversação do velho com a esposa, porque um grupo de retirantes de B. V. veio interrompê-lo para comprar provisões. Após, chegarem outros e outros, e Inácio não pode mais abandonar o balcão durante o dia. À tardinha, uma família chamou a atenção do velho vendeiro. Era uma senhora idosa, que vinha precedida por duas meninas, a mais velha das quais teria 11 anos, e uma mocinha de 14 a 15 anos, que carregava, deitada sobre o ombro, uma menina de quatro anos.

 

Todas elas traziam trouxas à cabeça, mas, ao contrário da maioria dos retirantes, não vinham imundas e repelentes.

 

- É uma venda, minha tia - disse a mocinha para a velha senhora; - talvez o dono queira comprar algum do nosso ouro e assim tenhamos com que obter alguma coisa.

 

- Talvez - respondeu a velha senhora; - eu vou lá. Encaminhando-se para Inácio, a idosa retirante apresentou-lhe umas argolas de orelha e uns pares de brincos de criança, pedindo-lhe que os comprasse.

 

- Não é o meu ramo de negócio - disse o vendeiro -, e mesmo agora não é tempo para negociar com estes objetos, a não ser por pouco mais de nada.

 

- Chega para matar a fome a quatro infelizes; aquelas que ali estão? Se chega, meu senhor, é uma grande esmola que me faz.

 

Inácio tomou os objetos e, pondo-os na palma da mão, sopesou-os e examinou-os miudamente, perguntando por fim.

 

- São de ouro mesmo?

 

- Devem ser, meu senhor - respondeu a senhora, em cujo semblante lia-se o temor de uma repulsa; - comprou-os pessoa entendida, que não se deixaria lograr.

 

- Isto é que ninguém pode saber, os marinheiros mascates passam por esses sertões muito ouro falso. Só quem é do ofício pode conhecer.

 

Voltou a seu exame atento aos objetos, enquanto a senhora o olhava de soslaio com uma súplica dolorosa no marejamento de lágrimas, que já se lhe nivelavam com o bordo das pálpebras.

 

- Não parecem maus, não, é verdade - continuou Inácio

 

-, mas eu não entendo disso. Pelo sim, pelo não - acrescentou olhando penetrantemente para a velha, que o encarou a estremecer - pelo sim, pelo não... veja se lhe agrada o preço.

 

Foi direto a uma barrica que estava encostada a uma armação, e por duas vezes voltou com as mãos cheias de bolachas, as quais pôs-se a contar.

 

- Uma, duas, três... dez... vinte, e uma, e duas, e quatro, e mais estas duas de quebra para aquela pequenita. Serve-lhe assim?

 

- Muito obrigada - murmurou a velha senhora, que pela primeira vez experimentava o amargor da miséria e o rigor da fome. - Deus há de levar-lhe em conta dos seus pecados.

 

Inácio, que esperava que a sua freguesa regateasse, exigindo melhor e maior preço para a sua mercadoria, ficou boquiaberto a olhar para a mulher, que mostrava tamanho desapego, e, em vez de revoltar-se contra a sua usura, bendizia-o, invocando o nome de Deus a favor dos seus pecados. O seu espantou aumentou, quando, depois de haver recolhido as bolachas, a boa senhora tentou sair.

 

- Não - disse Inácio -, eu não quero ficar com os seus objetos, e foi por isso que lhe propus o negócio.

 

- Ai! meu senhor - soluçou a infeliz, debulhando-se em lágrimas - tenha piedade de umas pobres de Deus. Eu não lhe peço por mim que estou velha e não me importo de ser chamada quando o nosso Redentor for servido, mas por aquelas meninas que ali vê, filhas de um homem que nunca negou um bocado aos que precisavam.

 

- Não é possível fazer obras de caridade nesta época -disse Inácio; mas, envergonhando-se logo da sua crueldade, perguntou: - Quem era esse homem que nunca negou um bocado, e que deixou a família sair com tamanhas necessidades?

 

- Era o professor de R. V. Não o acuse pela nossa miséria; ele já não existe.

 

Inácio, como todos os vizinhos da paróquia, conhecia o nome de Francisco de Queiroz, e, ouvindo pronunciá-lo, estremeceu, como o pungisse um remorso.

 

- E a senhora é gente dele?

 

- Sua irmã - respondeu d. Ana - e aquelas são suas filhas.

 

- Mulher - gritou Inácio, indo até a porta do fundo da vendola - vem cá fora, para fazer um negócio.

 

- Graças, meu Deus - disse d. Ana, com olhar que alevantou para o teto.

 

Os dois consortes segredaram ao fundo, e Inácio, dirigindo-se em seguida a d. Ana, disse-lhe:

 

- O negócio fica fechado assim. As bolachas, um quilo carne, dois litros de farinha, e, como Vossa Mercê não encontra casa nesta redondeza, senão daqui a oito léguas, a não ser B. V., tem pousada por esta noite, ali naquela sala.

 

E apontou para os aposentos em que tinham estado os dois chefes.

 

D. Ana nem teve voz para agradecer ao vendeiro, tamanha foi a sua alegria, e, da porta, chamou com um aceno de mão as suas sobrinhas.

 

A família de Inácio veio colocar-se no fundo da venda a olhar muito comovida para o mísero grupo, que, pelos modos, feições e palavras, provava não pertencer à vasa de ociosidade e de descuido pela vida; vasa que aproveitava os fundos sulcos da seca para entornar-se como praga fatal por sobre toda a província.

 

- Não repara que aquela mocinha é muito parecida com a que está lá dentro? - perguntou uma das filhas de Inácio.

 

- É verdade; quem sabe se elas não são parentes? Era perguntar.

 

A suspeita, cochichada entre as raparigas, passou à esposa ao próprio vendeiro, fazendo com que à hospitalidade espontânea se associasse logo uma idéia de lucro.

 

- Vossa Mercê não tem mais nenhum parente? Mais nem sobrinha ou filha, dona? - perguntou Inácio.

 

- Tive mais uma sobrinha, porém esta morreu, há já algum tempo, vítima das moléstias da paróquia.

 

- Pois havia de jurar que tinha visto uma irmã daquela mocinha - e assinalou Chiquinha. - Veio hospedar-se aqui.

 

- E o senhor foi bom para com ela, hospedou-a, não? - perguntou d. Ana arrastada pela comoção.

 

- Fiz o que me mandaram por essa infeliz, que parecia não ter mais ninguém no mundo.

 

- E quem mandou socorrê-la? Não disse que ela parecia não ter mais ninguém na Terra?

 

- Às vezes aparecem como por encanto homens benfazejos, e a pobrezinha encontrou um desses.

 

- Ah! Então ela não é de todo desgraçada: tem quem a socorra.

 

- Por ora...

 

- E o que é feito dela?

 

- Partiu, só, desamparada, por esse mundo de fome e de crimes.

 

D. Ana e as sobrinhas não puderam conter as lágrimas, traindo assim claramente o segredo que a boa senhora queria guardar inviolável.

 

- Vossa Mercê tem pena da pobre moça, e, não obstante, não a viu. O que faria se a visse arrastando-se por essa estrada, mordida pela fome e pelo cansaço...

 

Desgraçada, desgraçada - murmurou d. Ana.

 

- ... atacada pelos bandidos, desrespeitada por eles, perdendo pelo terror...

 

- Basta, meu senhor, basta  Nós nada temos com essa moça, mas vamos também desamparadas, e quem sabe o que nos acontecerá? Faz-nos muito medo semelhante história.

 

O vendeiro, apesar das negativas de d. Ana, certificara-se de que a protegida do Onça e de Virgulino era sua parenta ou pelo menos sua conhecida íntima. Não dirigiu mais a palavra a d. Ana, mas, com uma piscadela de olhos, chamou a atenção da esposa e das moças para as recém-chegadas.

 

- Entrem para cá e acomodem-se - disse a esposa. - É casa de pobres, mas dada de bom coração.

 

A fadiga alquebrava a família Queiroz, e ela não esperou que o bondadoso convite se repetisse. A noite não as encontraria ao desabrigo, e recolheu dos lábios da tia carinhosa e das irmãs de Eulália bênçãos para Inácio e para os seus.

 

Talvez neste momento, a esposa do abençoado vendeiro fizesse jus ao quinhão que lhe cabia nas preces da família. Durante o dia tinha cercado de solicitude a rede em que jazia a enferma, que só muito tarde voltara confusamente a si, envolvida no olhar da zelosa enfermeira.

 

- Teve um mau sonho, não é verdade? Esteve muito insofrida, mas não admira, porque a fraqueza produz sempre isto. Olhe; é preciso tomar alguma coisa.

 

Eulália, abrindo muito os olhos enevoados pelo torpor, fitou atentamente a sua hospedeira, e depois observou tudo quanto via em torno com as minúcias da incredulidade. Depois do exame, sorriu e apertou a mão que havia apenas abandonado à mulher do vendeiro e murmurou:

 

- Pois eu era capaz de jurar que era verdade. Há pesadelos bem cruéis.

 

- Eu já os tenho tido horríveis.

 

Eulália continuou a relancear os olhos por toda a saia, como se julgasse que o pesadelo começava agora. Percorria de alto a baixo as paredes apenas embaçadas, de uma das quais pendia uma espingarda entre apetrechos de caça, e de outra um quadro tosco, esfumaçado, emoldurando um registro da Senhora da Conceição, espancando em derredor como um foco intenso de luz, nuvens sobre as quais esvoaçavam e pairavam anjinhos da compleição de crianças fortes e sãs, sorrindo com a alegria delas.

 

- Eu era capaz de jurar que se tinha dado realmente.

 

- É que foi muito mau o sonho, não foi?

 

- Foi... imagine a senhora - respondeu ela sorrindo, e, exprimindo-se demoradamente com uma voz muito fraca, começou então a contar a cena que a prostrara.

 

Tinha se despedido de manhã e recebera provisões e uma bolsa que lhe deram os seus protetores, os dois mascarados. Aventurou-se à estrada deserta, que retorcia-se pela extensão dos capoeirões como um ornato de grega sobre as ramagens de um corpinho de chita. Ia pensativa e triste evocando da solidão todas as recordações da sua ridente vida de outrora, esbatidas à vontade naquela tela indefinida. Oito léguas, pensava, devia caminhar para encontrar uma pousada; a noite viria surpreendê-la antes, sacudindo os guizos das cascavéis, aguçando-lhes nos dentes venenosos o apetite de morte, e, entretanto ela teria de afrontá-la sozinha. Se aparecesse alguém, que tivesse igual destino, que fosse também para a capital, refletia, caminhara mais depressa, com a agilidade da coragem!

 

Foi sob o influxo desse pensamento que viu ao longe um homem vestido de couro, deitado à sombra e à beira do caminho. Aproximou-se dele e perguntou-lhe, ainda que ele fingisse dormir, qual a direção que devia tomar. O homem respondeu-lhe com uma acentuação brutal que passasse quieta o seu caminho, e ela, estremecendo de susto, seguiu.

 

Um pouco adiante, porém, deu de face com o semblante medonho desse indivíduo, aliás ainda muito moço, e a sua voz fez envermelhecerem-lhe as faces, como se ele a houvesse esbofeteado. O silêncio foi a resposta ao insulto e o estímulo ao crime. Ah! É orgulhosa, exclamou o facínora e, de um salto, despojou-a da bolsa e das provisões.

 

O terror avassalou-a e faltaram-lhe os sentidos para testemunhar toda a infâmia da agressão. Lembrava-se apenas de que tinha aberto os olhos uma vez, e que não viu mais ninguém junto a si. Apenas as árvores do capoeirão cercavam-na silenciosas, deixando de quando em quando cair sobre si alguma folha, que lhe causava a sensação suave do contato de mão amiga. De novo, perdeu os sentidos, e só agora os recobrava.

 

- Já vê que não passou de um pesadelo quanto contou; nessas estradas não há ladrões, nem assassinos.

 

- Graças, meu Deus - suspirou Eulália, e, voltando-se para a mulher de Inácio, acrescentou: -  uma boa notícia para quem tem de caminhar desprotegida.

 

Tentou então levantar-se, mas, com um requinte de solicitude, a velha enfermeira deteve-a, murmurando:

 

- Os seus protetores não consentem que a senhora retire-se de entre nós.

 

- Não é possível, eu devo seguir hoje mesmo.

 

- Eles não querem; ordenaram que não a deixássemos sair.

 

- Eu os convencerei de que devo seguir o meu caminho.

 

- Já não estão aí, partiram para o Icó.

 

- Mas então deixem-me ir; eu agradeço de todo o coração tanta bondade, mas preciso seguir.

 

- Pode fazê-lo - respondeu a velha, em cuja mente passou uma inspiração triunfadora -, mas a fadiga matará o seu filho. Repare bem e trema pela sorte dele.

 

Eulália apertou ainda mais a mão da sua interlocutora e, olhando-a de face, prorrompeu em soluços. O amor de mãe vencera-lhe o temor de envergonhar-se diante dos seus, que porventura lhe viessem ao encalço.

 

Fácil foi à enfermeira convencer a doente de que era necessário ficar alguns dias em repouso, para salvar o ente querido, que a encorajara na fuga aventurosa. A própria desgraça, que já lhe havia sobrevindo, servia de argumento poderoso, e Eulália resignou-se a obedecer, porque as dores que se lhe despertaram com o acordar, assim a aconselhavam.

 

O velho Inácio, tomando conhecimento da submissão da doente, volveu de novo a reflexão para a família Queiroz.

 

- E as parentas? - perguntou ele. - Deixamo-las ir? A esposa não soube responder. Era preciso ver que não tinham recebido ordem do Onça nem do Desempeno para acolhê-las. É verdade que a natureza da proteção que dispensavam a Eulália mostrava relações íntimas, porém quem sabia se as mesmas razões os levariam a socorrer a família inteira? O melhor era deixar o resto por conta da d. Ana: oferecer-lhe a casa e, se ela insistisse em seguir viagem, fazer-lhe a vontade.

 

- É o meu entender - respondeu a velha -, o mais é tomar trabalhos sem a gente saber se pode ou não com eles.

 

Alta noite, o sono dos moradores e dos hóspedes da venda foi interrompido por um latido impertinente de um cão, que de quando em quando arranhava a porta do fundo da saleta, em que estava agasalhada a família do vendeiro.

 

- O negócio amanhã começa com a madrugada - disse Inácio à sua mulher; - temos gente lá na varanda.

 

- Vão ser uma canseira estes dias, até que se esgote toda a gente do povoado.

 

- Estava quase indo abrir para ver quem é.

 

- Já se pode imaginar: alguns pobres que querem comprar bolacha; os remediados e os ricos não deixam de bater, e também não viajam em horas mortas.

 

- Tem razão; o cachorro há de cansar, e eles que esperem até de manhã.

 

Logo com os primeiros rubores do dia, Inácio levantou-se e veio abrir a porta da vendola; porém, ao contrário do que esperava, achou a varanda deserta.

 

- Bom; já se puseram a andar, é que não tinham essas urgências ou não sabem o caminho, e neste caso hão de voltar.

 

A família Queiroz, apesar do cansaço da jornada, começou a aprontar-se, desde que ouviu barulho na vendola. Chiquinha, que era quem se incumbira especialmente da caçula, para livrar d. Ana de tão penoso trabalho, tratou de acordá-la, e endireitá-la para a caminhada do dia. A criança, porém, acordando estremunhada, pôs-se a choramingar e a negar-se aos cuidados da irmã.

 

Eulália, que ouviu o choro, levantou-se precipitadamente e chamou pela esposa do vendeiro.

 

- Desculpe-me, minha boa senhora, mas eu lhe ficaria devendo um grande favor se me dissesse quem dormiu hoje aí.

 

- Umas pobres mulheres, que trazem uma criancinha muito galante.

 

A fisionomia de Eulália perturbou-se ainda mais com a resposta, e a infeliz toda trêmula, querendo levantar-se para sair apesar das recomendações terminantes da sua enfermeira, perguntou sofregamente:

 

- E ninguém as acompanha?

 

- Ah! Pensava que elas vinham sós, e como está nesta circunstância, teve dó delas? Felizmente acompanham-se de alguém; descanse, não esteja a sobressaltar-se que lhe pode fazer mal.

 

As lágrimas romperam em chuva nos olhos de Eulália, que soluçava ofegando, como se neste momento houvesse recebido algum golpe violento.

 

- Por que chora assim? - perguntou a velha enfermeira, para quem não era desconhecida a causa do sofrimento da moça. - Não tem razão para isso. Falta-lhe alguma coisa aqui?

 

- Não - respondeu Eulália. - Choro por uma tolice muito simples, por uma tolice; a voz da criança que está chorando parece muito com a de uma outra de quem fui muito amiga na paróquia.

 

A velha enfermeira, impressionada, com a piedade de mãe, que era, entendeu ser ocasião oportuna de sondar o coração de Eulália, para dar-lhe o consolo que a sua voz tentaria em vão verter naquela alma.

 

- Diga com sinceridade, minha amiga; não tem nenhum parente que a possa amparar?

 

- Não - respondeu Eulália -, nem um só!

 

- E amigos?

 

- Também não, porque iria envergonhá-los.

 

- E se eles a quisessem ver e amparar?

 

- Eu negar-me-ia, porque hoje morreria de vergonha ao encará-los e preciso de viver para o meu filho.

 

- Quer então continuar só e sem ninguém?

 

Eulália meneou a cabeça afirmativamente e a interlocutora continuou:

 

- Olhe, minha amiga; não sabe ainda o que é a vida, o que vai de desgraças por este mundo fora. Tenho ouvido coisas que fazem arrepiar os cabelos; dizem que as próprias mães já não se importam com os filhos, tamanha é a miséria que todos sofrem. Se os seus parentes, se os seus amigos a quisessem consigo, eu, no seu caso, aceitaria.

 

- Não, minha senhora, não; eu apenas iria aumentar-lhes as necessidades. Prefiro morrer a causar-lhes mais tormentos; para mortificar-me e entristecê-los, já fiz bastante: deixei-lhes a lembrança de minha vergonha.

 

- E então por que queria tanto saber quem era a criança que chorava?

 

- Porque pedir-lhe-ia que ma deixasse ver, talvez pela última vez, o seu rosto, e assim fortalecer-me no meu tormento. Desde que a família vem acompanhada, eu já sei que não é quem penso; a de quem eu falo, só teria hoje por companheiro a sua honradez.

 

- Eu imagino quanto tem sofrido, minha boa filha - disse a velha retirando-se e enxugando os olhos.

 

Na vendola Inácio insistia com d. Ana para que demorasse mais a sua partida.

 

- Por essa madrugada, é uma pressa desnecessária; esta casa é dada de bom coração e bem vê que não incomoda. Demore-se por hoje, descanse mais as meninas; olhe que daqui ao primeiro lugar povoado são oito léguas, e por essas estradas só se encontram casas desertas. Ao menos deixe passar a força dessa gente que por aí vem; pode algum desalmado atrever-se e as senhoras não têm um homem para defendê-las.

 

D. Ana, depois de assegurar ao velho Inácio de que entre os retirantes de B. V. não temia encontrar inimigos, agradeceu muito o agasalho e pediu que ele e a sua família não se escandalizassem com a sua partida.

 

- Precisamos chegar ao Ceará; lá teremos abrigo.

 

- Bem, minha senhora - disse Inácio, e, beijando a face da caçula, deixou-lhe na mãozinha as jóias que na véspera havia recebido de d. Ana, que não viu a ação generosa do velho; - Deus as acompanhe.

 

Inácio caminhou para a porta da vendola e, dando volta à chave, acrescentou:

 

- Fico triste, por irem tão sós..

 

A porta abriu-se violentamente, e estirou-se aos pés de d. Ana um cão negro e robusto, que a festejava batendo a cauda e rosnando.

 

- Agora já não estou tão sozinha, posso partir descansada.

 

O velho Inácio conservou-se de pé na porta, enquanto a família afastava-se, e só quando a viu desaparecer, murmurou:

 

- Bem, fiz hoje uma boa ação; estou contente comigo.

 

 

IV

 

A estrada e o ambiente, saturados de sol e calor, formavam uma engrenagem de onde os transeuntes saíam esmagados.

 

Os sombrios e maltrapilhos caminheiros, cheios da heroicidade do instinto da vida, não desanimavam, porém; seguiam sempre com a resignação e o passo tardo dos bois encangados, submissos à voz do carreiro e ao morder do aguilhão.

 

A família de Virgulino, que fora uma das primeiras vistas na vendola, estava já distanciada cerca de quatro léguas daquela paragem, e resoluta, sobranceira ao cansaço, seguia sempre, ainda que as crianças, amolentadas pela soalheira, causassem-lhe grande medo pelo estado precário da saúde.

 

- Eles disseram que passadas oito léguas acharemos pousada - diziam as moças recordando as palavras do Onça e dos outros bandidos; - não há de faltar muitas léguas, andemos.

 

O incitamento produzia um efeito benéfico e as infelizes continuavam cobrando alento do próprio temor que tinham de que a noite as viesse surpreender no meio da solidão. Todavia o esforço não conseguiu senão adiantá-las mais duas léguas, e à tardinha um quadro tristíssimo veio lançar o espanto entre estas desgraçadas.

 

A estrada muito fulva, formando um ângulo muito agudo em ambas as extremidades, parecia um elo de cadeia enormemente alongado trancando o passo ao transeunte.

 

Uma nuvem espessa de urubus pairava, parte na extremidade fronteira, parte pousava no solo e nos arbustos do capoeirão.

 

- O que será aquilo? - perguntou a velhinha que mal se podia arrastar de cansaço. - Parece um agouro.

 

- Há de ser algum animal morto; não se lembra que quando viemos de Maria Pereira perdemos o nosso cachorro na viagem?

 

- Com certeza é isto mesmo - concordaram todos -, o pior é a fedentina.

 

Ao lado do caminho viam-se já grandes montes de cascas secas de croatá, orquídea venenosa, que entretanto serve de alimentação aos famintos.

 

- Não reparam - ponderou a mulher de Virgulino - como por aqui a fome já chegou tão forte aos viajantes? Vejam quanto croatá chupado.

 

- É mais uma porção de gente que vai ter inchação; quanta desgraça por esse mundo de Deus!

 

A voz da velhinha tomou uma acentuação profundamente e acrescentou:

 

- Vocês, minhas filhas, terão de ver tudo isso, eu felizmente já tenho os pés na cova e creio que nem chego ao Ceará.

 

As consolações para dissuadir a velhinha afluíram a todos lábios; não obstante, a impressão não deixou de ser dolorosa, e uma das moças perguntou:

 

- Chegaremos hoje ao pouso?

 

- Eu já não tenho pernas - disse a velhinha - e, além disso, aí vem a noite; por meu parecer ficaríamos mesmo à beira da estrada debaixo de qualquer pé de pau.

 

- Não, não é preciso, não pode faltar muito - advertiu a esposa do Virgulino -, havemos de chegar.

 

O mau cheiro começou a se fazer sentir incomodativamente, e ao mesmo tempo as crianças, obrigadas a andar para que as mulheres pudessem descansar, choramingavam.

 

- Que lugar tão triste - exclamaram todos -, faz medo. Cerca de uns duzentos passos as exalações fétidas tresandavam, e, para mais incomodar os transeuntes, os urubus, espantados pela presença desses inesperados hóspedes, levantavam ruidosamente o vôo.

 

A família apertou o passo para mais depressa furtar-se das pútridas emanações, mas não deixou de olhar para o lado onde os urubus assinalavam o foco.

 

Uma cruz toscamente feita destacava-se no meio de um claro formado pelo capoeirão, e junto a ela, meio coberto pela folhagem, o cadáver de um homem mostrava parte dos intestinos, sob a véstia entreaberta.

 

A comoção e o temor, produzidos pelo horrendo quadro, emudeceu o grupo, que se limitou a tomar nos braços as crianças para acelerar ainda mais a marcha já fadigosamente forçada.

 

- Viu? - perguntavam-se em voz baixa. - É horrendo; vamos ver se chegamos ao pouso....

 

Dobraram o passo, mas a velhinha, que não podia resistir a tamanho esforço, deu sinais de invencível cansaço e começou a retardar e a distanciar-se.

 

- Já é noite - observou por fim -, e nós não podemos chegar a nenhum pouso hoje; fiquemos por aqui mesmo.

 

- Mais um bocado - respondia o grupo; - estamos de certo muito perto, temos andado tanto...

 

- Paremos; se houvesse algum pouso perto os urubus não estariam comendo um corpo humano.

 

A objeção da velhinha era irrespondível e as afoitas companheiras tiveram de ceder diante deste golpe decisivo da realidade.

 

- Não havemos de dormir no meio da estrada; caminhemos até a primeira árvore.

 

A marcha fadigosa continuou com tanta celeridade quanta era possível obter depois de tão penosa jornada. As árvores, porém, pareciam ter desaparecido todas da face do solo. Só o capoeirão, mordido pelas soalheiras, amarelo, silencioso, quase despido de folhagem, estendia-se para ambos os lados, repassando o coração da mísera família da mesma tristeza da sua solidão e esterilidade.

 

- Até a primeira árvore - repetiam de quando em quando.

 

A claridade crepuscular diminuía mais e mais, e a noite descia com a desesperança sobre a estrada e sobre os corações.

 

O terror, invadindo os espíritos crédulos, povoava os arredores de espectros e rumores sobrenaturais, e a família conchegava-se cada vez mais, como se assim quisesse fortalecer-se contra o desânimo.

 

- Não posso mais comigo - arquejou a velhinha -, morro; sigam vocês com as crianças, eu as acompanharei de longe.

 

Pelo silêncio da família julgar-se-ia que ela havia acedido, mas o retardamento do passo demonstrou que naqueles corações não havia ainda guarida para semelhante egoísmo.

 

A noite, porém, indiferente a tamanho sofrimento, avassalava rapidamente os últimos clarões do dia, e, de mistura com ela, a sombra do mato marginal aumentava o temor das caminheiras. O crepúsculo mortiço, como um olhar de idiota, assemelhava-se, porém, a um abraço longo de pai em hora de despedida, tão pouca era a vontade que tinha de furtar-se da contemplação das míseras mulheres.

 

- Vejam, vejam, lá; uma árvore, lá está ela, é talvez um cajueiro, vejam.

 

- Mais um bocadinho de coragem, minha mãe; está ali uma árvore - disse a mulher de Virgulino dirigindo-se à velhinha; - amanhã não caminharemos senão muito tarde.

 

A velhinha limitou-se a menear afirmativamente a cabeça e as moças, encorajadas pelo abrigo, apressaram a marcha.

 

De fato uma vetusta maçaranduba abria, não longe, a copa vastíssima que parecia um docel auriverde esquecido no meio da vegetação moribunda. A ramagem pendida, meneando-se morosamente ao sopro da tarde, que se fazia comparar ao resfolegar arquejante da natureza descansando da fadiga canicular, acenava às caminheiras com a bondade insinuante da hospitalidade espontânea.

 

- Não repara, mamãe? Podemos até pendurar as redes nos galhos.

 

- Achamos uma boa casa; descansaremos à vontade.

 

Estas ponderações da súbita coragem, que lhes assomou ao ânimo, aumentaram a alegria geral por uma circunstância que não teria valor em outra qualquer ocasião, mas que no presente era de uma importância máxima. O vagido fraco de uma criança ecoava, derramando no espírito da etenuada família o contentamento expansivo do encontro de companheiros no meio da solidão.

 

- Não somos os primeiros a chegar - ponderou sorrindo a mulher de Virgulino -, já há donos deste lado da casa.

 

- Tomemos conta do outro e façamo-nos amigos dos nossos vizinhos.

 

Foi extasiada nos transportes de tão justa alegria que a mísera gente hospedou-se debaixo da velha árvore, a sentir-se feliz como viajantes fidalgos que pudessem apear-se às portas de um palácio. As próprias crianças pareceram reanimar-se e perderam o ar tristonho, a acentuação profunda de enfado que lhes embaciava o semblante. As moças começaram logo a atar as longas cordas das suas redes nos braços da corpulenta maçaranduba, que sussurrava como a voz dos vassalos de um hospedeiro, que conversassem acerca dos hóspedes recém-chegados.

 

Só depois de algum tempo, a atenção da esposa do bandido, que era a mais forte das companheiras e que se estava ocupando de aprontar a refeição, voltou-se para o choro da criança. Tinha necessidade de lume e lembrou-se de remover a dificuldade de obtê-lo indo pedi-lo aos próximos vizinhos.

 

- Quem vem comigo até aquela casa? - perguntou a sorrir; - precisamos de fogo e não temos.

 

- Prontas, nós ambas, e para fazer calar a criança levaremos bolachas para dar-lhe.

 

As três caminharam na direção do choro da criança e só pararam na distância de uns 20 passos, reparando que era uma outra criança quem acalentava a chorosa.

 

- Como chegou aqui esta pobre gente! - ponderou Maria, a esposa do bandido. - Dormem a gosto, enquanto o filho esgoela-se de modo que já está rouco.

 

- Estão com um sono de ferro, ou cansados a mais não ser - respondeu uma das irmãs; - vejam que fome não traziam esses desgraçados.

 

- O pior é que eu não vejo fogo e parece que perdemos o tempo vindo cá.

 

- Eu falava sempre - observou a irmã; - acordava-os por amor da criança.

 

Deram mais alguns passos e foram parar junto do grupo formado por uma mulher ainda moça e pelas duas crianças. A mulher, deitada de lado, muita espichada, com os braços estendidos de modo a formar um ângulo obtuso com o resto do corpo, tinha os dedos enterrados no chão arenoso e deixava a descoberto, sobre os frangalhos de uma camisa enegrecida, os seios muxibentos. Sentada muito conchegada a ela, a mais velha das crianças, que devia ter cerca de cinco anos, muito magra e coberta apenas pelos farrapos de uma camisola, tentava ajeitar a que chorava, que não teria mais de seis meses, aos seios maternos.

 

- Que sono - observou ainda uma vez Maria; e, levantando a voz, timbrou vigorosamente um pedido de licença.

 

- Ela não quer ouvir - respondeu a criança; - eu estou chamando-a desde de tarde para dar a maminha ao maninho e ela não se importa.

 

- É que está doente, filhinha; espere que eu a acordo já.

 

Maria inclinou-se por sobre a desconhecida e pôs-se a sacudi-la pelos quadris, chamando-a com acentuação cada vez mais forte. O trabalho foi inútil, a mulher não se moveu, imobilidade que surpreendeu desde logo as recém-chegadas.

 

- Eu não disse que ela não se importa? - ponderou a criança. - O maninho já está rouco e mamãe não quer ouvir, pensando que é manha dele.

 

Maria tomou nos braços a criancinha e pôs-se a aleitá-la, ao passo que as suas irmãs davam à outra as bolachas, que Pêra este fim haviam trazido, segredando-se:

 

- Está bem mal esta infeliz mulher e talvez seja fome.

 

- Você já está aqui há muito tempo, filhinha? - perguntou Maria à menina que devorava as bolachas com a sofreguidão própria dos famintos.

 

- Desde ontem, depois que deixamos lá atrás morto o papai.

 

- Então o seu papai morreu? E onde morreu ele?

 

- No meio do campo, aí mesmo na estrada e lá ficou.

 

A lembrança do cadáver, que servia de pasto aos corvos, avivou-se, toda esbatida no horror do quadro visto pelas moças, que limitaram-se a trocar olhares compadecidos.

 

- Mamãe - continuou a criancinha - esteve junto de papai dois dias, mas ontem de tarde nos trouxe para aqui. Hoje de manhãzinha deu-me o resto de croatá, e, depois de dar de mamar ao maninho, andou a comer folhas e a chupar umas raízes. Depois ela me disse que estava ficando tonta e que havia de ser sono, queria dormir e me deitou junto de si. Quando eu acordei, porque o maninho chorava, ela já estava assim.

 

Uma das moças abaixou-se e tentou afastar os braços da mulher, mas a frialdade, que sentiu ao seu contato, fê-la levantar-se de um salto, como se a tivesse impelido uma força oculta.

 

- Não está dormindo, não, Maria, ela está morta - gritou toda trêmula.

 

A mulher do bandido não se mostrou perturbada como suas irmãs, que logo se afastaram; tomou pela mão a orfãzinha, que rompera em soluços ouvindo o grito fatal, e voltou a reunir-se à sua família.

 

O egoísmo do instinto de conservação, brutal, feroz, mas sem imputabilidade, recebeu-a aí com o mais pronunciado desagrado.

 

- Nós já somos tantos, Maria - resmungou a velhinha -, e você bem vê que é impossível tratar agora de filhos alheios.

 

- Eu tenho dois peitos - respondeu a boa mulher - e o meu leite chegará para ambos. Quanto a estazinha ela não come tanto que eu não lhe possa dar um bocado do que tocar aos meus filhos.

 

- É verdade - disse uma das irmãs -, mas você não poderia carregar as três, e nós já não podemos com as nossas, quanto mais com as cargas alheias.

 

- Bem, eu ficarei - respondeu resolutamente a esposa do bandido; - há de passar alguém que se condoa desses infelizes.

 

A resposta de Maria impôs silêncio pela sua nobreza, e nenhuma das parentas da heróica mulher ousou objetar-lhe, mas também, como se desde aquele momento a houvessem segregado da família, nenhuma dirigiu-lhe a palavra durante a refeição e nem tampouco ao deitarem-se, irritadas por verem desde então começados o sacrifício grandioso. Maria, depois de aleitar a filha e a pupila, deitou-as com a outra menina na sua rede, e, muito satisfeita, deitou-se embaixo sobre andrajos que estendeu no solo.

 

O luar momo e indiferente, como se representasse a absoluta impassibilidade da natureza, inundava o capoeirão e, coando-se por entre a ramagem da maçaranduba, revestia de um crivo de luz e sombra o corpo de Maria e o cadáver da mãe desventurada. Pairava um escárnio pungente nesse brilho igualitário, que não distinguia entre a morte e a heroicidade, entre a imobilidade do cadáver e ataxia do mártir.

 

Na tristeza ingênua ao local sentia-se alguma coisa que tinha a atitude de um terra-nova negro, acocorado na sombra, lambendo o focinho com a larga língua vermelha num acesso de gula, a rosnar muito atento para alguém que comesse. Era o instinto de conservação da família, que, malgrado o ressonar de todos, velava solícito espreitando os órfãos que dormiam na satisfação do quilo de uma longa fome agora extinta.

 

Horas depois da quietação geral, quando as fadigas das jornadas deliam-se já num sono profundo, a velhinha, a que mais cansada se mostrara, revolveu-se na rede e sentando-se, fitou demoradamente o lado em que repousava a esposa do bandido. Mas a superstição, a ouriçada habitante da treva e a solidão, ergueu-se-lhe talvez diante, e a velhinha voltando-se bruscamente para a banda em que jazia o cadáver, mergulhou-se rápida e perturbada no leito.

 

Não obstante, minutos depois, reagindo contra si mesma, levantou-se e, descendo cautelosamente, foi, esgroviada e trôpega, com um lençol imundo ao pescoço, parar junto da boa mulher, a quem chamou repetidas vezes para certificar-se de que estava completamente adormecida. Maria não respondeu e nem ao menos rompeu por instantes a uniformidade do resfolegar.

 

"Bem, dorme profundamente - pensou a velha e caminhou para a rede em que dormiam as crianças.

 

Abriu-a, fitou os três rostos serenos, mas hesitou e ficou a tiritar de modo a ter necessidade de agachar-se para não dar em terra. Reanimou-se, porém, com um assomo subitâneo de coragem, e, erguendo-se, tirou jeitosamente uma das crianças e caminhou até o meio da estrada, onde o luar resplendia em toda a inteireza do seu brilho.

 

O olhar hostil, minucioso como um microscópio, cravou-se então no semblante da criança que, não sentindo-se magoada, prestava-se ao necessário exame. Depois desta precaução, a velha sentou-se cavando um colo em que deitou a criança, pôs-se a dobrar muitas vezes o lençol até que converteu-o num espesso quadrado, pouco maior do que o rosto do menino.

 

A lua, alumiando com a sua claridade elétrica este grupo, deixava ver-lhe as feições, ambas maceradas, uma, porém, calma como a inocência, a outra perturbada como o crime.

 

O lençol foi então aplicado e ajeitado delicadamente sobre o rosto da criança, mas para logo a velha, segurando-o com uma das mãos pelas extremidades, apertou-o vigorosamente e, com mão posta sobre a boca, de encontro às narinas da vitima indefesa, sufocou-lhe os fracos vagidos.

 

Quando os movimentos desordenados da asfixia cessaram, a velha, deitando sobre a estrada o lençol, sacudiu por vezes a vitima e depois, segurando-a pela cinta, ergueu-a até a altura dos olhos. A cabeça, os braços e as pernas da infeliz criança penderam no relaxamento da morte.

 

Um longo suspiro foi assoprado pela velha assassina que, levantando-se, dirigiu-se de novo à rede, mas agora com tanta presteza que parecia haver remoçado com a alucinação do crime.

 

O cadáver foi posto ao lado da filha de Maria, e a outra órfã veio tomar no colo da velha o lugar deixado pelo irmão.

 

A estrada foi de novo teatro de uma cena igual à que acabava de desdobrar com o máximo requinte da perversidade, e outro cadáver veio colocar-se ao lado da inocentinha, que era a causa inconsciente do duplo assassinato.

 

Desembaraçando-se da miseranda carga, a velha perdeu de chofre a força que a animava, e não pode ganhar a rede senão arrastando-se. Aí, porém, esperava-a o remorso, hirto, inexorável, fatal, e ela sem poder deitar-se, sem poder desfazer em lágrimas o peso grande que lhe esmagava o coração, conservou-se sentada durante toda a noite, a encarar, com a atenção de um tigre esfaimado, o sarcófago das vítimas, onde, entretanto, o ambiente continuava a pôr nos pulmões da filha de Maria ruídos de vida.

 

A madrugada, na sua suntuosidade de luz eletrizada pelos calores estivais, veio encontrá-la na mesma atitude, que traía já a insônia do idiotismo.

 

- O que tem vosmecê, minha mãe? - perguntou a moça que na véspera se mostrara mais infensa à ação bondosa de Maria.

 

- Nada - respondeu a velha -, estou ouvindo se respiram, por aquelas bocas, que devem acabar o sustento dos meus netos.

 

- Deus há de nos dar meios de poder arranjar tudo melhor; descanse, vosmecê precisa de dormir.

 

- A noite foi muito comprida...

 

- Muito, mas a caminhada foi igual; veja se dorme, é preciso, minha mãe.

 

A velha não respondeu, mas estremecendo como se tivesse acordado de um espasmo nervoso e se encontrasse em lugar desconhecido, pôs-se a reparar em torno de si.

 

- Veja como passou mal a noite; não tenha mais susto; estamos todos vivos. Vamos, descanse.

 

E a moça, aproximando-se dela, constrangeu-a carinhosamente a deitar-se. De junto da rede olhava com acentuada contração de má vontade para a irmã, a quem foi acordar logo que a velha aquietou-se.

 

- Maria - disse ela - você vai matar nossa mãe.

 

- Eu?! - exclamou Maria, erguendo-se estremunhada.

 

- Que lhe fiz eu?

 

- Meteu-lhe medo tomando essas duas crianças. Nós já fizemos o que podíamos; demos-lhes do que tínhamos. Podemos ainda repartir com elas o que temos para as nossas crianças. E depois?... Eles que sigam a sua sorte. Não somos os únicos que passamos por estas estradas; outros que possam carregá-los hão de socorrê-los.

 

- Não - respondeu resolutamente -, não os deixarei; sigam vocês adiante; levem vocês os outros seus sobrinhos, porque o pequeno fica bem acomodado na minha cintura. O outro, que já não tem mãe, e que morreria se eu o deixasse, irá nos meus braços; a pequena caminhará. Eu chegarei também, louvado seja Deus.

 

- Não fale em Deus, mãe sem coração; Ele a castigará pela morte de meu infeliz sobrinho. Antes a morte levasse aqueles dois demoninhos, como levou-lhes a mãe! Mas eu tenho fé em que eles não durarão muito, e então você não terá nem filho nem protegidos. Deus há de ouvir-me, pelo sofrimento de nossa pobre mãe.

 

O coração materno de Maria estremeceu de pânico supersticioso, ouvindo a ameaça, a praga horrorosa da irmã; mas a boa mulher, vencendo o egoísmo que sentiu despertar-se-lhe inclemente e cego, respondeu resolutamente:

 

- Seja, mas ao menos não se dirá que eu, sendo mãe, neguei um pouco do meu leite e da comida de meus filhos a crianças que sem isto morreriam de fome.

 

Caminhou para a rede e, pondo-lhe a mão sobre os punhos, acrescentou:

 

- Eles morrerão comigo, e a morte não deve doer muito quando a gente morre por motivo tão santo.

 

E com a delicadeza peculiar às mães extremosas, Maria abriu a rede e, tomando nos braços envolto em andrajos o cadáver do pupilo, veio, sorrindo, apresentá-lo à irmã.

 

- Veja se era possível deixar esse coitado ao desamparo; já parece um defuntinho - disse, e, suspendendo-o para aproximá-lo aos seus lábios, ajuntou: - mas o meu leite ainda está forte e ele ficará tão forte como o meu próprio filho.

 

O beijo hospitaleiro, com que Maria queria afagar o mísero órfão, fê-la, porém, extinguir o sorriso que tinha nos lábios e reparar para o rosto da criança. Não proferiu uma única palavra, apesar da certeza dolorosa de que tinha nas mãos um cadáver, e, com grande satisfação da irmã amuada, cujo semblante alegrou-se notando-lhe a perturbação, correu até a rede e por um dos braços tentou levantar a menina. O corpo inanimado da infeliz, erguido violentamente, caiu inerte logo que Maria o abandonou, e a boa mulher bradou com uma entoação indescritivelmente sentida:

 

- Ai! As pragas destas bruxas mataram as coitadinhas; ambas, ambas estão mortas!

 

A espectadora desta cena, bufando um escárnio, resmungou:

 

- É capaz de ficar doida esta desgraçada; não se incomodaria se visse o filho morto, contanto que se salvassem os dois feiosos.

 

Maria, porém, com igual precipitação largou no solo o cadáver do pequenito e tomou nos braços o filho, beijando-o sofregamente e sacudindo-o, como se na sua imaginação já se lhe afigurasse vê-lo morto. A criança abriu os olhos sonolentos, começou a chorar, mas, reconhecendo-a e sentindo nos lábios o contato acariciador do seio materno, calou-se.

 

- Ria, ria, malvada - gritou ela para a irmã; - este vocês não matarão com as suas pragas sem que eu as mate também.

 

As outras irmãs e pessoas da família acordaram precipitadamente e a velhinha perguntou a tartamudear:

 

- Vivem ainda estes dois demoninhos, não é?

 

- Morreram - gritou a filha -, mataram-nos.

 

Fizeram bem - respondeu tranqüilamente a velha; eles matariam os meus netos.

 

Maria, aleitado o filho, conduziu chorando os cadáveres dos dois pequenos até junto do da pobre mãe e veio pedir à: irmãs que a coadjuvassem para prestar um último serviço aos desventurados.

 

Engenharam uma cruz com uns galhos secos da árvore e depois foram buscar, no interior do capoeirão, braçadas de espinhos com que cobriram os restos da esposa e dos filhos para que não tivessem a mesma sorte do corpo do esposo. Ao menos os urubus gulosos de podridão não profanariam aqueles despojos humanos.

 

O sol nascente veio servir de brandão a esta solenidade tristíssima, e subindo cada vez mais, ainda rubro como um ferro em brasa, projetou um raio sobre o algodão encardido em que reatara o sono o filho da boa Maria, como se nele coroasse a virtude materna.

 

A família começou então a preparar-se para a partida, entrouxando as roupas andrajosas nas redes sórdidas, e guardando cautelosamente as migalhas que restaram da refeição matinal.

 

- Graças a Deus - murmuraram as moças -, vamos ao menos como chegamos.

 

- Vocês têm o coração de pedra - soluçou a esposa de Virgulino; - estamos comendo a esmola que nos deram e vocês ficam contentes por não terem que reparti-la com os que tinham igual necessidade. Daqui ao Ceará é longe e Deus permita que não tenhamos de saber outra vez o que é a fome.

 

- Rogue bem pragas, você as sofrerá também.

 

Deram finalmente os primeiros passos da grande jornada, que as devia conduzir ao povoado, que lhes fora indicado na vendola e onde deviam encontrar alguns recursos.

 

A velhinha, que vinha por último no grupo, vendo os netos caminharem a rir, parou, como que para fazer também demorar dentro em si a agradável impressão que lhe causava o quadro e resmungou:

 

- Fossem dez, fossem vinte, fossem mil, eu os mataria todos!

 

Um estremeção violento abalou-lhe o corpo e ela seguiu apressada até incorporar-se ao grupo.

 

Quem passasse ao pé dos três cadáveres veria sob os espinhos a mãe com os dedos cravados no solo, muito esticada como se quisesse arrastar-se para ir empolgar a assassina.

 

 

V

 

Os bandidos, estacionados na vendola, foram uma providência para as desoladas famílias que deles se aproximaram.

 

Graças a eles a família Queiroz não experimentou, durante o seu trajeto até o pouso, os rigores da fome. Também dos lábios de d. Ana e das sobrinhas elevavam-se continuamente aos céus bênçãos aos desconhecidos, sempre que as míseras mulheres viam à beira da estrada cadáveres apodrecendo ao sol e servindo de pasto aos bandos de corvos.

 

No pouso, porém, as circunstâncias da desditosa família agravaram-se e a miséria, com todo o seu cortejo de horrores, confundiu-a com o resto da onda de retirantes transbordada da paróquia de B. V.

 

A princípio, o povoado em que se havia agora aglomerado a imunda enxurrada da desgraça, pareceu um oásis abençoado no meio do deserto. A comissão de socorros públicos tinha pelos desvalidos solicitude fraternal, e estes bendiziam o destino por lhes haver feito deparar com esse refúgio aos seus sofrimentos tremendos. Mas, pelo começo de novembro, o deserto veio suprimir este único abrigo e expulsar daí os miseráveis retirantes, vibrando contra eles os mais pavorosos flagelos.

 

Primeiro atirou sobre o lugar uma enfermidade semelhante à cólera e que trazia fatalmente a morte dentro em três dias, em seguida estancando as poucas fontes de que se abastecia a localidade.

 

À tarde, em torno das cacimbas, travavam-se lutas ardentes de que freqüentemente resultavam ferimentos e mortes. É que aqueles que conseguiam encher uma pequena vasilha tinham por esta ração o cuidado de um avaro pelo seu ouro.

 

O egoísmo da conservação mantinha a mais estreita espionagem para que houvesse igualdade na divisão, e não obtivesse tamina senão uma pessoa de cada família.

 

Durante as horas da maior aglomeração, entre todas as mulheres uma sobressaía a todas nas reclamações que de contínuo fazia. Não se contentava com se prover da sua ração, aí ficava de pé a denunciar e a exigir que se verificasse se este ou aquele não pertencia à família de um outro, que já havia obtido a sua porção de água.

 

- Vá com Deus, Mundica - diziam os circunstantes cansados de questões provocadas pela moça; - você gosta muito de tirar rusgas.

 

Mas a filha do sacristão Marciano continuava imperturbável até que todos se retiravam, levando a questionar todo o tempo da tamina.

 

A indisposição contra a Mundica era geral, mas ninguém ousava acentuá-la, porque murmurava-se que um dos membros da comissão de socorros tinha zelo demasiado pela moça e por todos os seus.

 

D. Ana sempre que voltava da fonte repetia às suas sobrinhas:

 

- Eu, se pudesse tirar água em outra parte, não iria mais à fonte. Aquela Mundica anda sempre a buscar ocasião de tomar vingança contra nós. E um precipício.

 

A penúria aumentava dia a dia, e crescia com ela o temor da honrada senhora que, para não dar pretexto à inspeção importuna de Mundica, deixava-se por último no tomar da sua ração de água.

 

- Há gente que fica sempre para o fim e, em vez de uma, tira duas, três vasilhas - disse Mundica, vendo d. Ana à espera.

 

- Pois faça você o mesmo - disseram alguns dos circunstantes -, é fácil.

 

- Vamos esperar mais longe; hoje ela quer pegar conosco por força - segredou d. Ana à Chiquinha -, e eu não quero trocar palavras com tal mulher.

 

A tia e a sobrinha quiseram afastar-se, mas a caçula, que chorava com sede, pôs-se a soluçar pensando que não teriam ração naquela tarde. Em vão tentaram consolá-la e conduzi-la, a criança não atendeu.

 

- Tire um pouquinho da minha água, d. Ana - disse uma das conhecidas da paróquia: - depois Vossa Mercê pagar-me-á.

 

D. Ana aceitou o oferecimento e a caçula pôs-se a beber.

 

- Vejam aquele conluio - gritou Mundica; - vem a velha, a sobrinha, cada uma leva a sua ração e, ainda por cima, outros tiram água para dar-lhes. Desta maneira não é admiração que fique tanta gente sem ter nem um gole para uma criança de peito.

 

- Está enganada - respondeu a mulher que obsequiara d. Ana; eu emprestei um nadinha da minha ração.

 

A vingativa rapariga tirou, da resposta decisiva que recebeu, argumento para confirmar o que afirmara, e discorreu chamando em seu auxilio testemunhas de todos aqueles que ela sabia respeitarem-na, pela circunstância de ser a amante de um dos comissários.

 

- Não é verdade que eu já tenho falado. Romualdo? -perguntou a um dos guardas da fonte, e voltando-se para outro: - não tenho eu notado sempre, Silvestre?

 

Os guardas que viam na menor hesitação o ódio de Mundica a perseguição e, finalmente, a perda dos lugares, que lhes garantiam os víveres para as famílias, responderam prontamente:

 

- Ser verdade, é, mas a gente fechava os olhos, porque, fim de contas, uma panela de água de mais ou de menos era o que secava a fonte. Demais era sempre por último.

 

- Qual a mesma coisa! - exclamou a filha do sacristão.

 

- Isto é um furto aos outros, e aqui não deve haver proteção para ladras. Eu lá as conheço desde B. V.

 

- Olhe que o melhor é você calar-se, Mundica - ponderou a mulher; - se houve alguém conhecido em B. V. foi você.

 

- E o que tem você com isto? A história não é consigo, seu caminho para não arrepender-se.

 

- Eu vou mesmo, não tenho filha moça e se tivesse, não era para fazer o mesmo que você faz.

 

- Diabos me levem, se você amanhã não amargar o que está para aí a ladrar, e depois aquelas comborças que a salvem...

 

O silêncio da família Queiroz irritou a agressora, que obrigar as agredidas a falar, continuou:

 

- Eu sei que há de haver quem repare em me ouvir dizer isto daquelas santas, mas é que não as conhecem. Aquela velha, que ali vêem tão beata no rosto, entregou a sobrinha mais velha ao vigário e depois veio para praça gritar.

 

- Pode dizer o que lhe vier à boca - soluçou d. Ana, e chamou as sobrinhas para se retirarem.

 

- Vejam se ela tem coragem para negar, vai-se embora; ao menos neste ponto mostra vergonha.

 

- Em B. V. todos conheciam, como mulher do vigário, você e não a sobrinha de d. Ana; todos sabiam que foi o velho Marciano quem entregou a filha, e não a irmã do professor. Camborça é você - gritou a mulher que fora involuntariamente causa do falatório de Mundica.

 

Todos os excessos, a que pode chegar uma língua desenvolta, foram proferidos pela filha do sacristão, certa do seu poder e da sua influência sobre a massa que a ouvia. A penúria geral fortalecia-a com o temor comum, de que uma detenção pela favorita do comissário condenasse famílias inteiras à morte pela fome.

 

Só a mulher que cedera a água às suas antigas amigas da paróquia ousou fazer frente à poderosa Mundica.

 

- Fale para ai, mulher à-toa - exclamou por fim; - você tem passado de dono em dono como um pangaré micuento; fale até que vá cair nalgum monturo.

 

Mundica, atirando fora a toalha e a vasilha que tinha sobre a cabeça, arremessou-se de encontro à mulher, não que recuou diante da agressão, mas antes respondeu-a desfechando-lhe um murro no ombro.

 

- Perdida por um, perdida por mil - bradou ela, e, contrastando com a cobardia da multidão perplexa em face de tanto atrevimento, atracou-se com a insolente provocadora.

 

Dentro em pouco a Mundica, que cravara os dentes no braço da destemida mulher, jazia por terra e era vigorosamente esbofeteada.

 

- Deixem, deixem que ela me faça sinais, eu mostrarei o que há de acontecer - gritou a agressora agora acovardada.

 

Como se só neste momento houvessem reparado na cena, os dois guardas que riam, como quase todos, das atitudes e gestos das duas lutadoras, puxando pelos seus rebenques - arma com que faziam a policia dos retirantes - arrancaram à força de golpes a mulher heróica de sobre a amante do comissário.

 

- Não é ela, eu não tenho nada com ela - bradou a vingativa filha do sacristão: - as criminosas estão ali.

 

Assinalou então as míseras d. Ana e suas sobrinhas, que se haviam detido em vão, para acomodar sua defensora.

 

- Fora com aquelas comborças! - gritou Mundica. - Fora com aquelas víboras!

 

- Fora, comborças! - repetiu a multidão, que via no partido das desgraçadas a fome e o desamparo. - Fora, com D. Ana e Chiquinha, aturdidas pela injúria que lhes era vibrada pelo clamor uníssono de mais de duzentas pessoas, não tiveram forças para retirarem-se, e limitaram-se a abraçar-se e a confundir as suas lágrimas e soluços.

 

- Olhem aquelas descaradas; ainda querem ficar! Não vêem? Querem ficar! Fora, comborças!

 

Os dois guardas caminharam até junto das duas infelizes, e, cegos pela subserviência, impelidos pelo temor da perda do emprego, repassados do egoísmo da conservação, levantaram os chicotes e, desfechando os golpes sobre as costas das duas indefesas, exclamaram:

 

- Vamos! Arreda para fora, cambada; aqui não há vigário como o de lá; todos são tão bons como tão bons.

 

Magoadas pelos golpes brutais, d, Ana e Chiquinha separaram-se e correram, deixando entregue aos vaivêns da multidão a mísera caçula, que soluçava e tentava acompanhá-las na carreira precipitada.

 

A grita, perseguindo insistentemente as fugitivas, as impeliu até a porta da sua mesquinha morada, onde um afago as esperou espontâneo e expansivo. Partiu ele do Amigo, o cão leal que preferiu à comezaina de alimárias mortas e ao tripúdio na podridão acompanhar os seus donos e comungar com eles a penúria e a vergonha.

 

Era ele o braço forte da casa. Ainda que as fomes repetidas o houvessem emagrecido, conservava-se corajoso e incansável, retribuindo com requintes de generosidade as pequenas ingratidões da família. Às vezes, quando a ração era menor, d. Ana e suas sobrinhas não se apiedavam do olhar ávido do Amigo, que assentado sobre as patas traseiras, agitando as orelhas, lambendo com a língua muita vermelha o focinho negro, suplicava-lhes um bocado. O Amigo, porém, não as esquecia nunca. Sempre que ia à feira e que podia afrontar as cóleras dos vendedores de carne, que desancavam os cães a cacetadas e pedradas, abocanhava algum pedaço e, em vez de devorá-lo, trazia-o para casa com a inteireza de um criado fiel.

 

Ao verem o único amparo que lhes restava, as duas fugitivas pararam de súbito e olharam-se arquejando, como se a dignidade de ambas aconselhasse-lhes uma vingança. Mas o cão fitou-as, rodeou-as, e depois de farejá-las, correu para o lado da fonte.

 

A multidão ria a bom rir, assobiando e chasqueando das pobres mulheres, que representavam a honestidade fugindo acossada pelo impudor.

 

- É como se lhes tira o fogo.

 

- Não há nada melhor para acalmá-las.

 

- Está bom, com esta lição elas nunca mais se hão de encrespar; perdem a proa.

 

- Não vê - exclamou Mundica -, isto é o começo; eu as conheço desde pequenas e sei das suas maretas.

 

O Amigo internou-se na mó latindo furiosamente, como se ele só quisesse dar combate a todos que o cercavam. Os olhos vermelhos, o ar de resolução, a ousadia do corajoso companheiro da família Queiroz assombraram, e um grito repetido por todos estrugiu propiciamente.

 

- Está danado! Ê um cão danado!

 

Dentro em pouco a aglomeração dissolveu-se pelo pânico e o Amigo corria ao encontro do grito fraco da mísera caçula.

 

D. Ana e Chiquinha, que muito mais que a afronta das vergalhadas sentiam a perda da infeliz companheirinha, ao verem-na de volta à casa, proferiram ambas a deliberação única a tomar:

 

- Vamos deste maldito lugar!

 

E d. Ana acrescentou:

 

- Antes que a vingança daquela fera se estenda até esta coitadinha.

 

Na manhã seguinte as desgraçadas filhas e irmã do honrado Queiroz deixavam o pouso insultadas e indefesas.

 

 

VI

 

A cena da fonte foi a conversação de todo o dia, e a fama do poder de Mundica circulou não só pelo abarracamento dos retirantes, mas até pelos interiores mais recatados das casas do lugar, despertando viva curiosidade.

 

O próprio vigário, que era um qüinquagenário, sentiu desejo de conhecer essa formosura que assim se impusera ao ânimo do seu amigo comissário, um homem viúvo e que merecia a geral consideração.

 

“Deve ser uma flor” - ponderou o pachorrento vigário Belmiro d'A... -, hei de ir vê-la para ver se a trago ao seio da igreja.

 

À tarde conseguiu encontrar-se com o comissário e foi com ele até o abarracamento, a conversar indiferentemente sobre a seca. Chegados, porém, o vigário, cuja reserva a respeito da conversação obrigada do dia lisonjeava muito o comissário, acometeu-o de frente.

 

- Onde é que está a favorita?

 

O tom de que se serviu, porém, era tão doce, tão atencioso e sacerdotal, que o surpreso comissário apenas pode desculpar-se com uma negativa banal.

 

- Ora, todos têm a sua fraqueza - disse o vigário; - afinal de contas você comete a penas um pecado venial.

 

O comissário, cedendo à amabilidade do pároco, conduziu-o até o cubículo em que residiam Mundica e a sua família.

 

- Cá está o sr. vigário, Mundica - disse o amante enfatuado pelos gabos que ouvira à beleza da preferida; - vem repreendê-la, como eu já o fiz hoje, pela sua briga de ontem.

 

Entraram os dois, e Mundica, com a afetada docilidade a que se afizera para domar os ímpetos do vigário Paula, veio cumprimentá-los.

 

- Contam sempre demais, sr. vigário; deve-se sempre partir ao meio o que se ouve.

 

- Mas ainda assim...

 

- É porque Vossa Mercê não sabe; são queixas velhas.

 

Toda a família da amante do comissário veio fazer sala a tão ilustre visita, e a velha mãe, vaidosa por gozar um momento da sua vida de outrora, ouvindo em casa a voz de um padre, mostrou um por um todos os filhos.

 

- Esta já está mocinha, já mulher também.

 

- E bem mostra que é irmã da Mundica - acrescentou o comissário, sorrindo-se para o vigário.

 

- É uma família de formosuras - ponderou judiciosamente o qüinquagenário, que passou a sua boceta à velha mãe.

 

A visita foi pouco demorada e os dois hóspedes retiraram-se sem que a repreensão, que dera-lhe pretexto, fosse formalmente feita. De volta para o povoado o pároco, buscando rodeios evangélicos, desfiando frases sentimentais, chegou finalmente ao que parecia ser o alvo das repetidas considerações que fazia sobre a família.

 

- E, diga-me cá, a pequena, a Amelinha também já terá a desgraça de ser como a irmã?

 

O comissário, fingindo não compreender a razão da pergunta, respondeu distraidamente:

 

- Homem, para lhe dizer a verdade, não sei; o que me parece é que ela não o é, porque não pôde; porém, mais dia menos dia...

 

- É; em tempos de calamidade é muito difícil que a pobreza possa conservar-se pura. Lá diz o rifão: "Quando a necessidade bate pela porta da frente a virtude sai pela dos fundos”.

 

- Se efetuar-se o que se diz do novo presidente, eu não lhe dou uma semana. Aquela gente não conta muito com estas coisas. De brio eram a d. Ana e a tal Chiquinha, e essas morrerão à fome antes que cedam a honra.

 

- Para estas épocas não servem...

 

- Está claro, por melhor que seja o coração, não gosta de ver orgulhosos na miséria. Eu não sei o que vai ser delas. É verdade que, de uma hora para outra, muda-se tudo, e a Chiquinha não deixa de ser bonita. Boa noite.

 

- Boa noite, eu já sei que tem ainda muito que fazer no abarracamento.

 

Riram-se ambos e separaram-se.

 

O vigário, que estava próximo à casa, dirigiu-se para ela pachorrentamente pensando consigo que era bem bom ser como o comissário, um viúvo rico e respeitado. Quanto a si era pároco, devia manter-se pelo menos cauto, sem sequer lançar um olhar indiscreto, e quando muito saboreando no silêncio algum pomo caído da árvore da vida.

 

Abeirava a entrada da sua habitação, absorto neste cogitar, quando um homem todo vestido de couro com um lenço de Alcobaça atado ao rosto, tomou-lhe o passo e cumprimentou-o pelo nome.

 

- Boa noite - respondeu o vigário com a secura do mau humor de quem já está cansado de dar pousada a desconhecidos.

 

- Vossa Reverendíssima pode dar pousada a um colega?

 

- Esta casa recebe sempre como irmão os membros do meu santo ministério..

 

Contrastando com a cordialidade das palavras, o olhar do pároco fitou penetrantemente o desconhecido, a quem fez entrar guardando alguma distância. Dentro, via-se nas feições de Belmiro d’A... um ar de incredulidade e o passar célere de um pensamento assustador.

 

"É talvez um ladrão, ou algum impostor que invoca o nome da minha classe para desfrutar-me.”

 

O desconhecido, porém, ainda que percebesse o embaraço do seu hospedeiro, conservou a imperturbabilidade de quem fala a verdade.

 

- Vossa Reverendíssima não pode acreditar que eu seja seu colega, e é de feito incrível que um sacerdote da nossa santa religião veja-se reduzido à miséria de andar descalço. Leia, porém, estes papéis e convença-se.

 

Passou um maço de papéis ao vigário, que, negando-se polidamente o suficiente para prolongar uma insistência, pôs-se a ler.

 

- É então o vigário Paula, de quem tenho ouvido falar? Ali de B. V., não? Disseram-me, com efeito, que havia abandonado a paróquia.

 

- Que remédio; a calúnia pode tudo neste mundo e eu fui uma das suas vítimas.

 

Desfiou longamente, adulterando-os, os fatos que agitaram tão desastradamente a paróquia de B. V., e tanta foi a perícia com que o fez que Belmiro d'A... comoveu-se até as lágrimas.

 

- É um povo endemoninhado - comentou o qüinquagenário; - merece bem a calamidade que o tortura.

 

- Em dobro - murmurou Paula - e eu, onde quer que os veja, hei de fazer-lhes a guerra que a nossa santa igreja aconselha. Árvore que não dá bons frutos corta-se pela raiz.

 

- E eu que me condoía tanto da sorte dos que estão por aqui pousados.

 

- Ah! Eles estacionaram aqui? - perguntou Paula perturbado. - Pois bem - acrescentou  , espere pelas conseqüências, não lhe dou muito tempo que não haja barulho.

 

- Eles já deram o pano de amostra; ontem duas das mulheres já obrigaram os guardas do abarracamento a acabar com uma briga e por meio dos rebenques.

 

- E os chefes das famílias consentiram?

 

- São de famílias sem chefes, uma d. Ana e uma... Mundica, gente à-toa.

 

Os nomes das duas mulheres, tão conhecidos de Paula, fizeram-no estremecer e o pároco, reparando na comoção do colega, perguntou-lhe:

 

- Conhece-as?

 

- Ah! Bem sabe que nós os vigários conhecemos todos os fregueses.

 

- Pois foi com elas o fato.

 

Paula abaixou a cabeça e pôs-se a olhar consternadamente para o solo, enquanto Belmiro d’A... narrava outros acontecimentos da sua paróquia. Quando houve uma pausa, perguntou o hóspede:

 

- E a d. Ana foi também castigada com rebenque?

 

- Ela e a filha foram as escovadas, porque foram as que provocaram o conflito.

 

- É impossível - exclamou Paula; - se as conhecessem não lhes fariam esta injustiça, são incapazes.

 

- Pode ser - respondeu Belmiro d'A... - mas o caso é que elas chucharam e bem caladinhas.

 

- Pois eu hei de vingá-las.;

 

- Seria em vão tentar; a Mundica é a amante do comissário e já vê que é ela quem tem sempre razão.

 

- Deve ser assim - murmurou Paula, mordido pelo despeito -, as mulheres como estas são as que encontram defensores. D. Ana e sua sobrinha são honestas. Sabe o colega dizer-me onde elas estão?

 

- Partiram, segundo ouvi do comissário; sabiam que nada mais teriam no abarracamento.

 

- Víbora, eu te castigarei - resmungou Paula pensando em Mundica.

 

Certo de que tratava com um colega, o pároco Belmiro esmerou-se na hospitalidade e em breve anunciou a Paula que não tardaria a ceia.

 

- Quem sabe se não queria tomar primeiro um banho? -. perguntou.

 

- Sem incômodo.

 

Temos tido uma falta de água enorme; a fonte não dá para que cada retirante possa ter uma panela de água por dia. Mas isto não quer dizer que eu não tenha até para dar de beber e lavar o meu cavalo.

 

- Em compensação cuida das almas desses desgraçados - ponderou Paula no seu tom irônico; - falta-lhes água, mas lhes falta a palavra de Deus.

 

- Já está posta a água, e lá no quarto encontrará roupa branca e chinelos. Sempre hão de agradar-lhe mais do que esta véstia de couro e trazer os pés descalços.

 

Isto é um acolhimento de Marta a Jesus.

 

- Se quiser barbear-se, tem lá estojo.

 

- Quanto a isto agradeço-lhe, fiz voto de conservar-me assim até que fale ao bispo.

 

- Sempre faz mais efeito.

 

Riram-se e Paula entrou para o quarto de onde voltou pouco depois vestido com a roupa do colega, rindo-se com a satisfação de quem se sente bem.

 

- A mortalha é menor que o defunto - disse Belmiro - mas ainda assim não deixa de servir.

 

- Muito a gosto.

 

- Vamos à ceia.

 

A mesa do pároco estava resplandente confrontada com a penúria geral, e Paula acentuou bem a impressão de que recebera com tanta magnificência.

 

- É uma hospedagem real.

 

- É unicamente a boa vontade de um pobre colega. Sirva-se dessa galinha ensopada, não deve estar gorda, mas também só temos por aqui o milho do governo.

 

- Pois é o suficiente para engordar bem a criação.

 

- Qual, os retirantes são uns miseráveis esfaimados que comem quanto milho vem. Aos meus cavalos só posso dar ração duas vezes ao dia.

 

- Desta maneira o pobre animal talvez não resista à seca...

 

- Não pode ser mais; temos de dar a essa gente todas duas rações por semana, e é preciso que vá um pouco de milho para o mugunzá. Há de ver como esses demônios estão nutridos, ao passo que os meus pobres animais emagrecem.

 

"Este é que faz bem", pensou Paula; "eu não tratei de arranjar-me, trabalhei para o bispo."

 

- Aquele assado, padre, não deve estar mau, porém beba deste vinhozinho que é assim, assim.

 

- Porto, hein? Tem disto por cá?

 

- É do que vem para a dieta dos doentes, e eu fiquei com as sobras. Também eles nunca tiveram tais dietas, não lhes faz nenhuma falta. Prove.

 

- Não o bebia, há mais de ano; lá por B. V. já não aparecia nada semelhante. Boa pinga - disse Paula, escorropichando o cálice.

 

- Se não houvesse estes achegos, colega, não havia quem aturasse a canalha que tem descido do sertão. É para fazer cabelos brancos. Sujos na vida, hediondos na morte; vivem na imundícia como as varejas, e morrem como gado pesteado. Eu não tenho outra vida senão ungi-los e encomendá-los. São uma praga.

 

- E não há esperança de que se ponha uma barreira a este dilúvio de gente?

 

- Nós temos alguma esperança; com a falta de água é quase certo que eles emigrem.

 

- O melhor é apontar-lhes a capital, que vão para lá.

 

- Aqui eles não ficam nem mais uma semana; a fonte não dá água para tanto tempo e o povoado não há de morrer à sede por amor de uma canalha.

 

- Quanto aos de B. V., juro sobre os santos Evangelhos, não valem uma pitada de farinha.

 

- Nem a Mundica? - sorriu o qüinquagenário. - Por esta eu era capaz de dar um saco.

 

- Eu também não me negaria, para matar algum tempo.

 

- Você está mais que autorizado a dizer, eu já sei que foi o feliz...

 

- Infelizmente não; já era país descoberto.

 

- Mas você tratou-a então como país conquistado.

 

- Lá isto não contesto, mas era o meu direito.

 

- E a irmãzinha? O que me diz? Tem um arzinho, um não sei quê...

 

- Pode-se aproveitar para espairecer depois de uma confissão.

 

Continuaram a mastigar, a beber e a alegrar-se conversando sobre as moças do abarracamento, mas o vigário Paula conservava-se impressionado, apesar da licença das palavras do colega. Com a sua habilidade natural foi conduzindo de novo a conversação à briga de Mundica e d. Ana, e afinal ao ponto em que desejava tocar.

 

O colega confessou alguma vez a família de d. Ana?

 

- Não; ela mostrava-se muito esquiva para a igreja, e eu só vim a saber o nome da velha ontem depois da briga.

 

- Então não conhece ninguém da família?

 

- Não; sei apenas que ela compõe-se da velha, de uma mocinha dos seus 15 anos, duas meninas já crescidas e uma pequena.

 

- E quem lhe disse é pessoa que as conhecesse bem?

 

- Foi o comissário, que sabe o número das pessoas de todas as famílias, porque tem de distribuir as rações.

 

- Afiança-me então que não havia mais ninguém?

 

- Afianço pela informação do comissário, mas você que é da paróquia e que conhece a pequenota mais velha...

 

- Infeliz  - murmurou Paula - Talvez esteja morta.

 

- O que é que me diz da mocinha?

 

- Que é uma virtuosa menina, e que hei de fazer-lhes o bem que puder.

 

- Então é deitar-se a correr pela estrada fora; porque no andar que levam, com as costas a arder, devem estar longe.

 

Paula reconcentrou-se. A frieza do colega irritava-o, porque vinha contrastar-lhe a espontaneidade da compaixão, para com aquelas a quem havia condenado a tão profundos sofrimentos. Em vão o Rev. Belmiro prodigalizava ditos com pretensões à graça, Paula apenas sorria e respondia ao que era obrigado.

 

- Ite, missa est - exclamou por fim Belmito, levantando-se.

 

- Deo gratias, - respondeu Paula e acompanhou o colega, que o conduziu à porta do quarto.

 

- Durma em paz, amanhã mostrar-lhe-ei a gente da terra. Há de gostar de ver, depois da ausência, a formosa Mundica.

 

- Agradeço-lhe o favor, mas não posso aparecer a todos, antes de haver falado com o sr. bispo. Não quero dar azo a que a calúnia de novo se levante.

 

- Faz muito bem, mas eu cá não lhes dava a menor importância. O que pode valer uma queixa de retirantes?

 

As últimas palavras do vigário Belmiro ficaram ressoando como um suave consolo nos ouvidos de Paula.

 

A crueldade de Mundica, porém, a barbaridade da sua vingança, que se estendia de Eulália a toda a família Queiroz, o valimento de que ela gozava junto do comissário, que era rico e respeitado, assomaram na memória do foragido como tremenda ameaça. Demais a consciência não cessava de acusá-lo pelo desbarato da paróquia, e noites inteiras passava-as ele a debater-se contra larvas que vinham afear-lhe a insônia. ,O espectro de Antão Ramos, principalmente, não o deixava descansar, perseguia-o de contínuo, pedindo-lhe conta do destino da sua família, para quem o malsinado vendeiro acumulava em ouro os remoques e humilhações, que lhe custavam a usura. Horas e horas, com a impassibilidade de uma pêndula, a sua consciência levava a perguntar-lhe pela mulher de Antão Ramos e pelos filhos, e a imaginação, tremendo juiz que não dorme, que não se suborna, desdobrava-lhe quadros medonhos como resposta.

 

A visita que por ele tinha sido feita à vendola, quando Antão Ramos desanimara no meio da empresa do incêndio do engenho; aquele quadro de felicidade doméstica - a mãe e o filho são e robusto, o pai a convalescer entre carícias - transfigurava-se numa cena horrorosa. A mulher deixava-se cair encostada a um arbusto desfolhado, à beira da estrada afogada em sol, deitava nos lábios da criança o seio nu, mas este estava árido como um rochedo, e o quadro era agora triste, porque era a esterilidade amamentando um esqueleto. Para maior horror, Paula via ainda por detrás de si o espectro inexorável de Antão Ramos, que o segurava com o aperto do remorso e o violentava a contemplar a consciência da sua obra.

 

- Hei de vingar-me! - exclamava o desgraçado acordos medonhos pesadelos. - Nela e nos seus.

 

A vingança, porém, espaçava-se. É certo que Marciano já não existia; que entre os destroços da carnificina Paula o vira, mas não era só ele o autor da sua perdição. Dias e dias tinha-os passado espreitando as estradas para encontrar Mundica, e vira perdidas as suas emboscadas, em que por vezes correu o perigo de ser reconhecido... Hoje a encontrava, forte e poderosa, e perguntava-se assombrado o que devia fazer para saciar a sua vingança, cujo desejo era tamanho como o de Mundica para com Eulália.

 

Uma chegada inesperada deu-se na mesma noite a oito léguas de distância da localidade em que Paula cogitava nos meios de prejudicar a sua ex-amante.

 

O velho Inácio, ouvindo um assobio, correu à porta com a precipitação do subalterno que vai receber o chefe.

 

- Homem, esta chegada de sopetão causa-me susto e alegria: novidade no povo ou caça gorda?

 

- Uma trapalhada - respondeu Virgulino, apeando precipitadamente; - antes de tudo notícias da d. Eulália.

 

- Sempre triste, quase à morte, a arrastar-se pela casa, a chorar sem consolar-se.

 

- Já soube então da desgraça?

 

- Logo que melhorou, não foi possível enganá-la e, como parece que só vivia para o filho, sofreu um golpe, que por pouco não a levou para a cova.

 

Virgulino tratou de espairecer a impressão que lhe causaram as palavras do velho, e, mudando bruscamente de tom, pediu com uma prazenteria afetada que lhe dessem de jantar.

 

- Venha isto depressa: comi de manhã e só agora paro; venha comida para meia dúzia.

 

- Bravos - exclamou o velho - já vejo que não nos traz más novas; o apetite é o companheiro da alegria.

 

- Olhe, não precisa dizer quem está, por hoje, amanhã tenho tempo para falar com a dona. Sempre é ocasião - resmungou - para dar más notícias.

 

Inácio não demorou em vir ter com o seu chefe, na saleta, que era destinada aos superiores da quadrilha, e, para merecer-lhe uma palavra amiga, deu-se logo pressa em comunicar-lhe que a família de Eulália tinha sido acolhida por ele da melhor maneira.

 

- Conheceu lá em B. V. a família da dona, não é verdade?

 

- A d. Ana e quatro sobrinhas.

 

- Estão de luto.

 

- Não estavam, quando lá estive.

 

- Pois estão agora; conheci pelos rostos; têm todos os mesmos traços, e conhecendo-as não tive mãos a medir; dei-lhes o que pude. Fiz bem ou mal?

 

- Muito bem, velho Inácio; eu dou por elas até a vida.

 

- Eu logo percebi.

 

Virgulino pôs-se a jantar sem responder á tagarelice do velho, que se estendeu em gabos ao próprio procedimento.

 

- Elas não me disseram nada - acrescentou ele -, nem cá a dona confessa que tem parentes, mas eu disse comigo:

 

são negócios de família e todos têm lá as suas razões. Eu é que não posso fechar os olhos e fingir que não vejo o que é claro como água, e por isso fiz o que me deu na cachola. A senhora velha veio oferecer-me uns ouros e deixava-os comigo por um dez réis de mel de furo. Percebi que grande necessidade havia para que uma mulher sabida não desse apreço a ouro e não tive mais auto de pergunta, dei o que pude: comida, pousada, matalotagem.

 

- Pena é que não possamos, dentro em pouco, continuar a fazer o mesmo - murmurou Virgulino, que empurrara os pratos para o lado; - isto está para findar.

 

- Como para findar? - perguntou Inácio, que veio acocorar-se em face do chefe.

 

- É uma história muito comprida; mande vir primeiro café.

 

O vendeiro saiu ansiando de curiosidade e voltou depois de uma breve demora.

 

As palavras de Virgulino feriam-no fundo.

 

Estava velho, e havia longos anos vegetava tranqüilamente na sua vendola. As velhas prateleiras, os caixões vazios, as garrafas e botijas vazias, que apenas serviam para o cenário do pequeno teatro em que estreitamente ganhava para subsistir, tudo que ali estava, a velha balança de conchas de folhas-de-flandres, os copos esverdeados, o balcão tosco e encardido, queimado pelos tições de fogo, os bancos desconjuntados em que os ociosos vinham deitar-se para passar a sesta; tudo fazia parte de si, do ambiente indispensável para que respirasse bem a sua velhice.

 

Um dia o Onça entrou-lhe pela casa com o atrevimento dos bandidos, e riu-se desaforadamente da sua pobreza.

 

- Tem família, velho? – perguntou-lhe o Onça.

 

Como lhe respondesse afirmativamente, o celerado sacudiu os ombros e apontou-o a um dos companheiros com uma exclamação compassiva.

 

- Era ver que tinha família. Morre para aí, mais dia menos dia, e afinal os filhos ficam a dormir sob os pés de pau e a comer raízes.

 

- Sua alma, sua palma - respondeu o outro.

 

Mais tarde, Inácio, que se assustara com os modos do Onça, e que se pusera à espreita, ouviu dizer:

 

- Este lugar é magnífico; se o velho quisesse fazer negócio, eu dava-lhe até dois ou três contos de réis.

 

A ambição fê-lo esquecer todo o seu passado de tranqüilidade e de honradez, e desde aquele momento resolveu aceitar a proposta que lhe fizesse o Onça, fosse embora a perpetração de um assassinato.

 

O chefe de um dos grupos dos Viriatos não era homem de recuar diante de nenhuma empresa; o dente das cascavéis tinha-o ensinado a arrostar a morte e aquela alma obcecada não conhecia nem mesmo o temor do túmulo. Dirigiu-se sobranceiramente ao velho Inácio, por uma frase concisa como o golpe de um estilete, a qual o velho nunca mais esqueceu.

 

- Vou lhe propor um negócio, é segredo entre nós; se você der à língua, morre.

 

Propôs-lhe que lhe cedesse a vendola, mas continuasse a figurar como dono. Os Viriatos vinham fazer excursões por ali e precisavam de um lugar e de uma pessoa contra a qual não recaísse suspeita. Não podiam achar outro em melhores condições, nem ponto mais seguro. Inácio, conhecido por todos como um velho trabalhador, econômico e sério, garantiria com a sua continuação na vendola a paz e a vida da quadrilha.

 

- Quer aceitar? Tem dois contos de réis! - e como o velho hesitasse - Mais um, e não paga o que comer. Serve?

 

No mesmo dia o velho irrefletido recebia das mãos do Onça o preço de toda a sua vida de probidade, e assentava praça nas fileiras da reserva do exército dos Viriatos.

 

A nova de que ia dissolver-se a quadrilha causava-lhe portanto dupla dor. De um lado, o despertar da vida criminosa que desde então começou a levar, sem outra contrariedade que não fossem alguns assomos de mau humor do Onça, que eram rápidos e afinal rendiam gorjetas. De outro lado a possibilidade de que o segredo, guardado por ele tão discretamente viesse a divulgar-se, e assim os seus cabelos brancos aparecessem publicamente manchados pela poeira de correrias de ladrões, de quem ele era o couto.

 

- Cá está o café, Desempeno, cá está, tome-o e fale-me pelas 11 mil virgens.

 

- Está quente, meu velho - sorriu Virgulino chupando um gole; - isto não é por ora sangria desatada.

 

- Se quer preparar-me para o golpe - resmungou o velho - eu estou pronto para o que der e vier.

 

- Qual! Não é nada para desanimar. Nós somos muito felizes, não caímos assim. Escute.

 

O velho Inácio colocou-se em frente do bandido, e posse a ouvir sem pestanejar.

 

- Lembra-se de que nos mandaram chamar a toda pressa? - perguntou Virgulino. - Era para dar um assalto em regra nas beiradas do Crato. Foi bonito! Velho Inácio, coisa limpa! Era chegar, amordaçar e apanhar o que havia, e tudo ligeiro como a correnteza de um rio cheio. Começou a brincadeira ali pelas oito horas da noite e, ao romper do dia, tínhamo-nos aviado por mais de uma légua em redor. Estávamos todos alegres e era caso para a maior alegria...

 

- Dia de muito, véspera de pouco.

 

- O Pedro, aquele endemoninhado, cuja língua o Onça tantas vezes quis cortar, veio transtornar tudo.

 

- Aquele pernóstico! Aqui é que ele nunca me entrou - disse Inácio, levando a mão ao peito; - não sei o que me palpitava cá.

 

A conversação demorou-se por algum tempo sobre as qualidades de Pedro. Era um rapazola, muito blasonador e espinhado. Gastava a maior parte do dia em contar proezas, e aí mesmo na vendola, Inácio tinha-lhe ouvido dizer que a sua faca ainda cheirava ao sangue derramado no assalto da véspera. Poucos eram os companheiros que o estimavam e muitos relevavam que, de há muito, era plano dele dividir a quadrilha e proclamar-se chefe de um grupo. Temerário até a loucura, tinha na sua curta vida de bandido ações bastantes para captar a boa vontade dos companheiros pela valentia, e por isso mesmo estes, receosos de cegarem-se por esta eminente qualidade do rapazola afastavam-se dele alegando os seus defeitos.

 

Pedro percebia a animadversão geral; mas não desanimava e sobretudo, para conservar-se inabalável na sua empresa de coroar-se chefe, odiava de morte não só os cabeças de turmas, mas também o chefe supremo da quadrilha.

 

- Pois o Pedro - continuou Virgulino - incumbiu-se de tornar um dia triste o da nossa maior felicidade. Havia muito tempo - acrescentou ele - denunciavam-no sempre como pouco fiel. Diziam muitos companheiros que ele guardava sempre para si metade do que podia obter nos assaltos.

 

- Infame! - exclamou o velho. - Como se todos não corressem igual risco.

 

- O Onça - prosseguiu o chefe -, quis muitas vezes castigá-lo; mas eu detinha-o sempre e fazia com que não se criassem ódios entre nós. Enfim, no Crato, a coisa foi feita sem jeito, e um dos companheiros viu-o esconder um faqueiro de prata, que só ele dava para um homem ficar contente consigo. O Onça não esteve mais para deter-se, e o castigo não se fez esperar.

 

- Sem desfazer nos outros, aquele Onça é que é sempre um pedaço de homem.

 

- Para dar um exemplo aos outros, o nosso chefe deu-lhe sentença de morte se ele não declarasse onde havia escondido o que já havia roubado aos companheiros. A certeza de que morreria fê-lo confessar, e a primeira coisa que soubemos foi que a minha bolsa estava com ele, e, portanto, que foi quem atacou d. Eulália.

 

- Veja que valentão que dá assaltos a uma mulher que vai sozinha por uma estrada!

 

- O Onça não lhe pôde perdoar isto, e, mandando amarrá-lo, fez o que nunca se tinha feito entre os Viriatos: surrá-lo.

 

- Isto é que é saber governar. Aconteça o que acontecer, a surra já ninguém lha tira e ele precisava bem dela.

 

- No dia seguinte, meu velho, você talvez não dissesse o mesmo lá no Crato. Pedro conseguiu o que talvez fosse

 

impossível conseguir em toda a sua vida: dividiu o povo dos Víriatos. Mais de 60 companheiros fugiram com ele e deixaram espalhadas pela estrada cruzes para dizer-nos que nos faziam guerra de morte.

 

- Se o medo é este, Desempeno, eu não o terei nunca. Pinga de urubu não mata rês gorda.

 

- Aquilo é falso como Judas, e de emboscada pode fazer-nos todo mal possível.

 

- Faz a alguns, não faz a todos.

 

- E se em vez de nos combater a punhal, ele for à justiça?

 

O velho Inácio ficou estatelado a olhar para Virgulino. A justiça era a sociedade inteira, e justamente diante desta não queria o velho Inácio aparecer tal como era. Fizera-se criminoso para garantir a felicidade dos seus, tinha filhas e o futuro delas foi o conselheiro mau, que o levou à transação ignóbil com o Onça. Ouvir falar em justiça, era para ele a evocação de todo o seu passado iluminado na sua pobreza pela honestidade, tranqüilizado na sua parcimônia vizinha da penúria pela consciência de que ninguém o amaldiçoava.

 

- É verdade que Pedro tem uma ambição imensa, e talvez ela o convença de que o melhor caminho não é ir à justiça - respondeu Virgulino.

 

- Acertou, ele não cai nesta.

 

- Mas - acrescentou Virgulino - ele pode muito bem pensar que, denunciando-nos, fica-lhe mais campo para as suas façanhas.

 

- É também certo   murmurou Inácio. - A verdade é que o diabo do cabra dá-nos água pela barba.

 

- Há de custar, mas para isso é preciso andar depressa. Esta venda, por exemplo, deve desaparecer daqui.

 

- Eu nada posso dizer.

 

Estas palavras foram proferidas com tamanha tristeza que o bandido não pôde furtar-se à fraqueza de comover-se.

 

- Isto não quer dizer que você não a possa reabrir mais tarde, se nós conseguirmos dar caça ao Pedro. Nestes três dias, o mais tardar, tenho notícias.

 

O velho Inácio baixou os olhos submissamente. Quando, seduzido pelo preço que lhe oferecera o Onça, vendeu a sua propriedade, a alucinação momentânea não lhe deu tempo de meditar e por isso mesmo nada sentiu. Demais soube logo que não teria de sair dali e, por isso, não teve ocasião de avaliar a estima que tinha à vendola e ao torrão em que ela estava situada. Agora que recebia ordem de abandoná-la, embora com a esperança de que a ausência seria temporária, todos os seus sentimentos sublevavam-se, Parecia-lhe que a vendola e as árvores e tudo da localidade estava assentado e arraigado no próprio coração, e que as palavras de Virgulino eram golpes cruéis desfechados para arrancá-los.

 

- Mil raios partam aquele traidor! - bradou o velho.

 

- Eu não sei o que vai ser esta novidade para a minha velha.

 

- Eu também não tenho coragem de dizer a d Eulália que ela deve partir.

 

- Ela será a primeira a pedir.

 

- Mas eu terei de consentir, e depois que perdi a esperança de reunir-me aos meus, essa moça tomou-lhes o lugar.

 

A conversação, arrastando-se de tristeza em tristeza, continuou por algum tempo, mas acabou bruscamente por uma observação de Virgulino.

 

Seja o que for, enquanto eu tiver mãos hei de fazer valer a minha faca e o meu revólver. Depois, ninguém me conhece e eu saberei fugir.

 

- Eu sou infelizmente conhecido de todos - resmungou o velho Inácio e fitou atentamente o seu chefe.

 

Separados, Virgulino alquebrado pela fadiga fechou-se por dentro, tirou a máscara com que se disfarçava e adormeceu prontamente, como se nenhum sentimento o oprimisse. Inácio, porém, retirara-se vagarosamente, parando, levantando os olhos para o teto, como quem vai cogitando de coisas' tristes. Não se recolheu logo, ficou a passear pelo terreiro, e por duas vezes veio até a porta da saleta, diante da qual estacava e ficava a mirar-se com o olhar de quem duvida da sua própria ação.

 

- É preciso que, a sofrer, soframos todos, não haja desconhecidos entre nós.

 

Virgulino dormia já profundamente, quando o velho Inácio foi acomodar-se repetindo a sua frase igualitária, que por si só era um crime gravíssimo diante dos estatutos da quadrilha.

 

Na manhã seguinte, ao encontrarem-se, o velho Inácio tinha o semblante de tal maneira demudado que o chefe não pôde furtar-se a perguntar-lhe a causa.

 

- A justiça ainda vem longe, velho, não vale a pena adiantar sustos e pesares.

 

- Você fala assim, Desempeno, porque ninguém lhe poderá dizer fora daqui: você é dos Viriatos. Esta máscara...

 

- É verdade; mas não a deixarei antes de ver que tudo está perdido; ao passo que você pode hoje mesmo abandonar-nos.

 

Inácio não teve coragem de levar mais longe a sua queixa temerária, porque o tom de Virgulino, ordinariamente despretensioso, adquirira a altivez própria de um rude superior.

 

- Como está a d. Eulália? - perguntou o bandido. – Já se levantou?

 

- Ainda não sabe que você está conosco.

 

- Melhor, diga-lhe você primeiro que os meus negócios vão mal, que eu estou aqui muito desanimado. Eu afasto-me; não tenho coragem para ser o primeiro a dar-lhe causa para dizer que parte.

 

Internou-se pelo capoeirão, que perto da casa amarelecia e desfolhava-se ao rigor persistente do verão. Caminhou a esmo, sem destino, como se fugisse para não mais voltar; mas, afinal, sentindo-se fatigado, reparou para as árvores em roda, e, sentando-se a olhar e a desmanchar o cigarro, disse distraidamente:

 

- Estou perto da Encruzilhada, bem longe da vendola.

 

De feito, a alguma distância de Virgulino, duas picadas se cortavam e, aí bifurcando-se uma e a outra dividindo-se em três, formavam uma espécie de leque espalmado por entre a vegetação, em face do qual o viajante pouco prático difícil poderia atinar com a direção.

 

- Aqui é preciso uma sentinela - murmurou Virgulino batendo na cinza do cigarro; - se não andarmos alertas, estamos perdidos.

 

Sucederam-se os minutos, os quartos, as horas e, não obstante, o bandido persistiu, ora sentado, ora deitado, já fuzilando fogo no isqueiro, já cortando com a ponta da faca os arbustos em roda. Dir-se-ia que ele tinha sido acometido de um ataque de idiotismo, ao vê-lo assim esperar sem causa e por tanto tempo em um lugar, onde não podia contar que passasse uma só presa, porque as picadas só eram conhecidas dos mateiros e dos bandidos.

 

Cerca de cinco horas depois da parada de Virgulino, uma pessoa apareceu no extremo visível do caminho, e o bandido, que tinha os olhos voltados para este lado, sorriu e murmurou:

 

- Dizia-mo o coração, miserável!  Enganou-me!  Vai pagar a tua ousadia!

 

Rápido e sem ruído como o rastejar de uma cobra, Virgulino levantou-se e foi postar-se em um dos ramais da encruzilhada, acocorado como um tigre, e com a faca desembainhada.

 

O caminheiro, andando com a ligeireza cearense, em breve ganhou a grande distância que o separava do ponto em que Virgulino se emboscava, e, chegando em face da encruzilhada, parou a olhar para as árvores. Esta demora, que dizia claramente que o apressado caminheiro aplicava instruções que recebera acerca do caminho, alegrou muito ao emboscado, que sorria, enquanto o caminheiro, tirando o isqueiro, fuzilava fogo.

 

De um salto, Virgulino, que havia embainhado a faca veio cair sobre o desconhecido, desfechando-lhe sobre a omoplata um murro formidável, que o fez vacilar e para logo cair ao choque do corpo do agressor.

 

- Onde ia você? - perguntou, apontando ao peito do agredido o revólver engatilhado: - Fale ou morre!

 

Houve uma hesitação da parte do caminheiro, e Virgulino continuou:

 

- Não procure ocultar que pertence aos rebeldes do Pedro; só eles poderiam ensinar-lhe este caminho, que vai dar justamente numa entrada falsa da venda: responda ou eu faço-lhe fogo!

 

Fingiu que ia apertar o gatilho, e acrescentou:

 

- Morre por sua conta; eu bem lhe dei meios de salvar-se.

 

- Não descarregue, que eu lhe direi tudo; entrei apenas há três dias para o serviço de Pedro e não quero morrer já.

 

- Fale então.

 

A voz trêmula do emissário revelou, a titubear, o plano grandioso de Pedro. Entraria ao lusco-fusco pela cerca e ir-se-ia esconder na vendola, e à noite assassinaria Virgulino e em seguida o velho Inácio, que seria acordado e chamado pelo assobio da quadrilha dos Viriatos.

 

- E depois? - perguntou Virgulino.

 

- Eu obrigaria a família do velho a dar-me o que tivesse e deitaria fogo à casa.

 

- Infame traidor! Enganou-se por esta vez - exclamou o chefe e perguntou: - onde está esse infame?

 

- Não posso dizer - respondeu o caminheiro; - você, que é chefe, sabe que eu prefiro morrer a denunciar meu chefe.

 

- Mas o seu chefe sou eu, e você não faz mais do que me dizer onde pára um rebelde.

 

- Não, o meu chefe é Pedro; mate-me se quiser, mas não ouvirá de mim nem uma palavra que o condene.

 

- Morra, pois que assim o quer.

 

A detonação ecoou longe, mas a bala não ofendeu o agredido, porque Virgulino propositalmente desviara a pontaria.

 

- Vamos, responda, não me obrigue a mandá-lo para a casa do diabo; salve-se enquanto é tempo.

 

- Não - insistiu o agredido; - não denuncio o meu chefe.

 

Virgulino olhou fixamente para o bandido e exclamou:

 

- Você é um homem de coragem, não deve morrer!

 

O caminheiro, que se conservou estoicamente severo ante as ameaças, encolheu desdenhosamente os ombros, vendo que o chefe detinha-se em face da sua coragem.

 

- Veja em que fica? - disse ele. - Abrevie isto.

 

Virgulino, que continuava confuso pela ousadia deste homem - principalmente porque, desarmando-o, reconheceu que ele vinha atacar a uma casa de bandidos e trazia por única arma a sua faca -, não se irritou com a provocação e ao contrário ponderou-lhe amigavelmente:

 

- É pena que você desperdice tanta coragem com tão ruim chefe. Perde o seu tempo: não demorará muito que Pedro morra ás nossas mãos.

 

- Tanto pior para mim e para ele, morreremos ambos. Cada palavra do desconhecido fazia-o subir mais no conceito de Virgulino, que rola em tamanha calma a sua própria energia. Não seria ele quem o matasse; não queria corresponder à coragem com uma ação covarde. Resolveu, pois, conservá-lo preso até que notícias dos seus companheiros de quadrilha dissessem-lhe se devia ser piedoso ou cruel com os soldados de Pedro.

 

- Vamos para a venda – disse-lhe; - lá hei de dar-lhe a resposta.

 

O desconhecido não resistiu á ordem e levantou-se a resmungar:

 

- É indiferente para mim morrer lá ou aqui. Vamos.

 

Durante a caminhada, Virgulino, que não desengatilhara a arma e não se distraíra um só momento para não perder o menor movimento do seu prisioneiro, ia entretanto pensando no golpe que devia sofrer quando chegasse à vendola. Eulália o viria receber talvez, e desde logo ficaria resolvida a sua partida. Esta idéia triste quase o decidiu a desfechar o tiro sobre o desconhecido, visto que assim podia demorar-se mais. Não era uma infâmia, pensava ele, viera para assassiná-lo à traição. Mas a altivez de caudilho dos Viriatos demoveu-o logo, fazendo-o lembrar-se de que nunca assim procedera.

 

Chegaram finalmente à cerca e o assobio do chefe chamou o vendeiro, que apareceu sem demora.

 

- Traga-me uma corda - disse Virgulino; - temos aqui um freguês.

 

Inácio, satisfazendo o mandado do chefe, voltou pronto, e os dois amarraram sem resistência os braços do desconhecido, cruzados sobre as costas.

 

- É um soldado de Pedro; bem me parecia que ele não tardaria a nos mandar visitar.

 

O velho Inácio custou a conter a impressão dolorosa que lhe causara a noticia.

 

A presença do emissário era uma prova de que Pedro tinha as vistas postas sobre a vendola, e por conseqüência que ele, o velho senhor e amigo da mesquinha propriedade, teria de perdê-la em breve.

 

- Eu não o poupava - ponderou o velho; - quem ao inimigo poupa nas mãos lhe morre. Cabia-lhe bem um tiro nas costelas.

 

- Tudo há de ser feito pelo melhor, não tem dúvida; este já não perde o trabalho. Por ora vamos dar-lhe o que comer.

 

O prisioneiro foi conduzido para a saleta do chefe, que,  amarrou-lhe também os pés, e, satisfeito por não ter visto Eulália, e assim poder adiar por mais um dia a sua partida, saiu de novo recomendando o desconhecido aos cuidados do Inácio.

 

Eulália, porém, ouvira não só o assobio, mas a voz de Virgulino, e veio procurá-lo à saleta, onde apenas encontrou o desconhecido.

 

A presença deste homem, que, amarrado e cabisbaixo, olhou-a com uma súplica, fê-la estremecer e recuar.

 

- Não tenha medo de mim que não lhe posso fazer nada, moça - murmurou o desconhecido. - Quem é o forte aqui é o amigo do seu pai.

 

A curiosidade e a piedade, que lhe despertou o bandido, fizeram com que Eulália parasse e perguntasse por Virgulino, seu protetor.

 

- Saiu, foi talvez fazer emboscada a alguém que venha descuidado. é o ofício dele e o meu.

 

As palavras do bandido agravaram as suspeitas que, desde o primeiro encontro com o chefe, tinham atravessado o espírito de Eulália. A máscara que escondia o rosto de Virgulino, o seu modo de trajar comparado com a sua prodigalidade fizeram com que ela pensasse que havia alguma coisa misteriosa do seu protetor. Mas estas suspeitas desvaneceram-se espontaneidade do acolhimento que dele por duas vezes recebera, e sem que a mais leve sombra de interesse tivesse vundo diminuir o merecimento de tais atos. Agora, porém, as suspeitas irrompiam quase com a pujança da certeza.

 

Ficou a olhar perplexa para o desconhecido, a perguntar-lhe com os olhos o que não ousava pela voz.

 

- Sim, está na estrada com certeza. Lá é que é o lugar dos ladrões. Faça-se você também de criança, não sabe, hein? Pois admira; ele que se apresente em qualquer parte para ver se o conhecem logo ou não.

 

Corrida de temor e de vergonha por se achar em casa de ladrões, Eulália saiu precipitadamente, deliberada a partir no mesmo instante. O velho Inácio, porém, muito risonho embargou-lhe o passo, e Eulália, que, amedrontada pelas palavras do bandido, perdera toda a confiança nos seus hospedeiros, dissimulou a indignação.

 

- Passear com este sol é perigoso, Eulália. Não me disse que está com vontade de seguir viagem para o Ceará? Olhe que para navegar por essas estradas é preciso ter pernas.

 

- Andava em procura do meu protetor, ouvi-o falar ainda agora.

 

- Esteve aqui, mas saiu logo; não tarda por ai nem um minuto.

 

- Parece que ele anda a se esconder pela beira da estrada...

 

- É que não tem coragem de ouvir de Vossa Mercê a notícia de que quer nos deixar. Como sabe os perigos que se corre em andar hoje por esses caminhos, tem pena.

 

- Ele então sabe que há muitos perigos?... Como sabe?

 

- Pois se ele navega por elas dia e noite com o seu negócio...

 

Eulália, deixando-se calculadamente prender pela conversa, ficou e foi para a palhoça esperar melhor ocasião para retirar-se despercebidamente. A hora do jantar ofereceu-lhe o momento que ela já começava a considerar impossível. Negando-se a ir para a mesa, saiu furtivamente e enveredou pela estrada que se dirigia para o norte da província.

 

A sua caminhada, porém, não foi longa; o velho Inácio, terminado o jantar, veio procurá-la com a costumada solicitude, que era a de um fâmulo fiel e dedicado. Chamou-a, procurou-a na vizinhança da casa e, desanimando de encontrá-la, assobiou dando sinal a Virgulino.

 

- A d. Eulália anda por ai a procurá-lo. Disse-me que você talvez estivesse escondido à beira da estrada, e é provável que seguisse por ela.

 

Virgulino caminhou quase a correr, espiolhando com o seu olhar de bandido as margens do caminho, mas toda a sua perspicácia foi inútil; não encontrou o menor vestígio da passagem de Eulália.

 

- É que já voltou - pensou ele, e, dando de mão à pesquisa, retrocedeu para a vendola.

 

Vinha apressadamente, mas calmo porque lhe aprazia toda demora do encontro com a sua protegida. Todavia estava magoado; era agora seu dever procurar Eulália, falar-lhe para a piedade não fosse por ela julgada desprezo.

 

Um incidente desviou-lhe por alguns momentos a atenção.

 

Inácio tentara, como Virgulino, arrancar do desconhecido a denúncia de Pedro, e insistiu com ele com a impertinência do pânico. Parecia-lhe fora de dúvida que a vida do traidor importava a perda da quadrilha dos Viriatos, e por isso era também coisa decidida para si que era dever seu e de seus companheiros tratar de obter o segredo, que guardava o refúgio do chefe rebelde.

 

- Está uma bonita sorte - ponderou ele ao prisioneiro; - parece mais um escravo do que um homem livre.

 

- A traição pode tudo: talvez que se o seu chefe, velho sem-vergonha, em vez de se esconder como a cobra enroscada no caminho, tivesse comigo uma briga cara a cara, não fosse eu quem aqui estivesse.

 

- É verdade; grande covardia a do Desempeno; heróis são vocês que sempre oferecem luta cara a cara. Você vinha aqui justamente para fazer isto.

 

A ironia doeu ao prisioneiro mais do que se o houvessem desfeiteado. Um rápido pestanejar e o tom da sua voz o exprimiram.

 

- Mas nós somos o menor número, os fracos; podemos servir-nos de todos os meios.

 

- E por que é então que você se envergonha? – perguntou Inácio; - se é coisa líquida, como lhe custa a fazer?

 

O desconhecido não respondeu; ao contrário, perdendo a altivez colérica com que olhava para o velho, cravou no chão os olhos, como se o peso do vexame fosse para si irresistível.

 

- Vamos - continuou Inácio; - você não é para fazer parte da quadrilha de Pedro, porque é um homem de brio. Para aquele miserável, só os cães como ele. Os cães que tenham coragem para atacar mulheres, para as afrontar na sua honra, para insultar os fracos e indefesos. Não assim você que tem vergonha de qualquer ato de covardia, mesmo quando é para com o chefe de seus inimigos. Vamos, amigo, faça a vontade ao Desempeno, venha para nós, que não abandonamos os nossos na hora do perigo. Ele, porém, como teve cara para trair amigos, terá para vendê-los.

 

Quando Inácio acabou a sua estirada de entusiasmo, que se aumentava tomando o silêncio do prisioneiro por aquiescência, este replicou-lhe por um laconismo pungente:

 

- Todo o medroso tem a língua comprida; fale até se esbofar.

 

- Eu quero a sua felicidade.

 

- Pois eu quero o sangue de vocês todos, e, se não bebê-lo eu, beberá alguém por mim.

 

O velho vendeiro mediu até o fundo do coração do desconhecido o ódio intenso que lhe deviam os Viriatos. A sua última frase traduziu-o pela entoação rancorosa, e completou-o por um sorriso escarninho.

 

- Então você prefere a morte, não é?

 

- O que quiserem, menos chamá-los meus companheiros.

 

- Porém, que mal lhe fizemos nós? Poupar-lhe a vida.

 

- Os Viriatos andam à noite, como as corujas agoureiras, como as onças; assustam e matam sem ver a quem o fazem. Nenhum deles por isso mesmo conhece as suas vítimas, nem é por elas conhecido, e no entanto ficam da passagem dos bandidos rastros de sangue e de cinzas, resultado dos assassinatos e dos incêndios.

 

- Ah! - exclamou Inácio. - Você tem-nos ódio velho; está bem, falando é que os homens se entendem.

 

O vendeiro voltou as costas ao seu interlocutor, e foi sentar-se na venda a meditar. Sabia bem que a generosidade de Desempeno era inquebrantável e que ele não voltaria atrás a concessão que tinha feito ao desconhecido; enquanto o retivesse prisioneiro, fosse qual fosse o crime praticado, não o mataria.

 

Inácio não pensava do mesmo modo; entendia que se tratava de uma questão grave a cuja solução não podia ser outra senão o extermínio de uma das quadrilhas: ou os Viriatos ou Pedro.

 

- Com os diabos - pensava ele; - o cabra teve como primeira idéia mandar-nos desta para a melhor; hoje mesmo à noite devíamos ficar todos espichados, e nós é que havemos de poupar a vida àquele mesmo que veio para roubar a nossa! Não entendo e não consinto.

 

Olhava para a larga faca que tinha sobre o balcão, muito polida, luzindo como um olhar guloso, mas não ousava pegar dela para vibrá-la contra o desconhecido, porque sabia que a sua pagaria a vida traiçoeiramente roubada.

 

- E há de viver - resmungou juntando as mãos -, e talvez venha a matar-nos. Um assalto liberta-o, e nós seremos vítimas. Não, não há de viver.

 

Saiu e, chegando à palhoça, ordenou que lhe dessem o jantar para o prisioneiro. Quando lhe entregaram o prato, o velho, muito trêmulo, veio de novo à vendola e de uma das prateleiras tirou uma pequena boceta, que estava cheia de umas bagazinhas rubras. Machucou com o cabo da faca algumas delas e, misturando-as à comida, entrou na saleta e depôs o prato junto ao prisioneiro. Voltou ao negócio, e, tomando a garrafa de vinho e um copo, dirigiu-se amigavelmente ao desconhecido:

 

- Enquanto não vem o dia da briga, sejamos bons camaradas.

 

- Pois não; eu tinha mesmo necessidade de comer e tomar trago à saúde de Pedro.

 

O corajoso emissário virou de um gole o copo que lhe apresentado e pôs-se a comer com o apetite produzido por uma longa jornada.

 

- Que tal, hein? Ao menos bem temperado nós comemos; de fome é que não se morre - disse Inácio.

 

- Não é mau, não; podia ser pior.

 

O velho seguia com o olhar os bocados tirados pelo prisioneiro, e ia-se gradativamente alegrando.

 

- Enfim! - resmungou ele, ao tirar o prato. - Deste estou livre.

 

Inácio não se enganava; meia hora depois o desgraçado emissário estorcia-se com uma coragem lacedemônia, sem deixar fugir um ai, e tinha no semblante todos os sinais do envenenamento. O velho, para coonestar o crime, certo de que o desconhecido não podia mais evadir-se, desamarrou-o, e chamou para a saleta toda a família.

 

Foi neste momento que Virgulino entrou, e Inácio, com o sangue-frio de um velho envenenador, disse-lhe:

 

- Chegou a tempo, este desgraçado está expirando.

 

- Como? - perguntou o chefe surpreso, e depois de ver que nenhum ferimento dava causa à morte, acrescentou: - que ele envenenou-se.

 

- Talvez - murmurou Inácio; - não há de ser outra coisa.

 

A comoção do chefe, que demonstrava os seus sentimentos generosos, foi presto sufocada pelo egoísmo da própria conservação.

 

- Foi melhor assim - disse ele depois de uma pausa; -livrou-nos de recorrer a outro qualquer meio. Prestou-nos um grande serviço.

 

- Se todos os companheiros do Pedro têm igual sorte, não há muito que recear deles.

 

- Pois eu penso de modo contrário; veja qual o ódio que ele nos tem, que passa logo aos que se lhe associam e os faz preferir a morte a viver por uma graça nossa.

 

Inácio meneou a cabeça concordando com o chefe e, olhando de través para o moribundo, perguntou:

 

- O que acha você melhor, Desempeno: deixá-lo aqui, ou pô-lo lá na estrada? Eu não estragava caridade com semelhante bicho.

 

- Não - intervieram as filhas de Inácio; - é um cristão e não deve ser atirado à estrada como um cachorro.

 

Virgulino compartiu a piedade das mulheres, mas o moribundo como que se apressou em vir em auxílio do temor do velho em conservá-lo por mais tempo na vendola. Teve uma contração fortíssima, mas logo, esbugalhando os olhos injetados, e arregaçando os lábios sobre os dentes cerrados, inteiriçou-se para não mais mover-se.

 

- Foi-se - exclamou Inácio; - vejamos se ainda assim querem que ele fique. Dirão todos que ele foi morto por nós.

 

- Agora, sim; é preciso tirá-lo daqui. Vamos conduzi-lo até a estradinha.

 

- Saiam vocês - bradou Inácio, vendo o semblante da família; - isto é negócio nosso. Olhe cá, minha velha, uma sede lavada; quero que este pé-rapado goze ao menos de um pouco de limpeza na hora da morte.

 

Não demoraram a entregar a rede ao vendeiro, que por sua vez apressou-se em arranjar o cadáver dentro dela.

 

- Pronto, meu chefe, fora com ele - sorriu o velho; - não será ele quem nos faça mal; de um já estamos livres.

 

Virgulino curvou-se para enfiar a rede no caibro que o velho tinha entre mãos, quando um grito de espanto e uma exclamação dolorosa o fez olhar para a porta.

 

- O que tem, d. Eulália? - exclamou o bandido saltando para junto da sua protegida prestes a desmaiar. - Não se assuste que isto nada vale. Foi um retirante que veio morrer aqui de cansaço... Sossegue, isto acontece todos os dias.

 

- Já passou - murmurou Eulália esforçando-se para mostrar calma. - É que eu ando tão fraca e tenho ouvido falar muito em morte que não posso ver um defunto.

 

- Vá para onde estão as suas amigas - disse o velho com um tom acariciador -, nós voltaremos aqui num pulo.

 

Eulália obedeceu, e os dois, colocando nos ombros a carga funerária, internaram-se pela estrada lateral, que desembocava detrás da vendola.

 

Quando voltaram já era tardinha, e vinham ambos sombrios. Eulália, que os esperava ansiosa, porque desejava obter de Virgulino permissão para partir, arreceou-se de falar-lhe. Na sua imaginação a bondade de seu protetor parecia-lhe agora um plano indigno, e, para não dar ocasião a que ele o realizasse, justificando-o com qualquer ato seu, foi que voltou, arrependendo-se da fuga. Ao ver agora o chefe, Eulália pensou consigo que era chegado o dia em que ela devia começar a pagar os favores recebidos.

 

- Zanga-se pela menor palavra e faz disto pretexto.

 

Conservou-se, pois, silenciosa, mas, vendo que nem o mascarado nem o velho dirigiam-lhe a palavra, e, ao contrário, pareciam evitá-la, resolveu-se a espreitá-los e escutá-los de longe.

 

- Não há dúvida que ela deve partir, ou fica sabendo de todos os nossos segredos e você bem sabe o que são mulheres.

 

- É exato, velho Inácio; ela parece amedrontada e eu aproveito a ocasião para conseguir que ela parta comigo.

 

- Consigo? E se vierem atacar a casa?

 

- Tanto faz um como dois; não durma você cá dentro. Vão-se os anéis e fiquem os dedos. O certo é que eles não podem chegar aqui hoje, e amanhã temos cá o Onça ou o reforço. Eu vou falar à d. Eulália. Fica assentado.

 

Virgulino encontrou-se perto com a sua protegida, que só se afastara mais depois de ouvir o final da conversa, e alegre com a idéia da partida, ainda que temesse a companhia.

 

Poucas palavras trocaram para que resolvessem que a viagem devia ser imediatamente.

 

- Aproveita-se a fresca da tarde e da noite; é sempre melhor do que o sol do meio-dia.

 

Eulália limitou-se a concordar, embora objetasse que não era preciso o incômodo que o chefe insistia em tomar. Tinha medo, mas disfarçava o temor que lhe causava o companheiro, recordando-se das palavras que lhe ouvira, nas quais parecia haver inteira isenção de qualquer indignidade.

 

- Vá lá, seu maganão - exclamou Inácio ao ver o chefe montado e Eulália a endireitar-se na garupa; - vai ser uma noite de rosas.

 

Virgulino não respondeu senão por um olhar repreensivo. Eulália, porém, corando muito, murmurou:

 

- O sr. Virgulino disse-me que me protegia, porque eu prestei não sei que serviços à sua família, não é verdade?

 

- É sim senhora, d. Eulália, e estou pronto a servi-la até a morte.

 

Calaram-se ambos, e Virgulino esporeou o cavalo, o seu valente companheiro de correrias e assaltos, que em marcha certa e uniforme enveredou pela estrada geral.

 

A noite veio dentro em uma hora envolver o grupo, e Virgulino, que temia que a sua companheira se estivesse fatigando muito, dirigiu-lhe a palavra:

 

- Não acha bom que descansemos um pouco? Teremos feito uma légua, mas ainda falta mais de meia dúzia para chegar ao pouso.

 

- Eu não estou cansada - respondeu Eulália estremecendo, por julgar tais palavras um ardil do bandido; - gostaria mais de seguir.

 

Virgulino, percebendo o temor que involuntariamente inspirava, não objetou e, estimulando o animal, fê-lo prosseguir na marcha cômoda e ritmada.

 

Eulália, à medida que se adiantava a noite, e convencia-se da pureza das intenções do bandido, admirava-se de tamanha generosidade, e teve ímpetos de abraçá-lo, quando pela madrugada Virgulino, fazendo parar o animal, disse-lhe submissamente:

 

- Aqui é preciso que nós nos separemos; o pouso fica a meia hora de caminhada, e Vossa Mercê pode chegar lá antes que o sol clareie. Eu não posso ir mais longe.

 

- Obrigada - murmurou Eulália -, eu sei que se o senhor me deixa é que posso seguir só.

 

Apearam-se ambos e Eulália, sentando-se, pôs-se a olhar para Virgulino, que se mostrou perturbado.

 

- Quero pedir-lhe perdão - murmurou ela. - Fui muito ingrata para consigo. Aquele homem, que morreu na casa do Inácio, fez-me julgá-lo assassino - murmurou Eulália, continuou relatando a breve conversação que tinha tido com o comissário de Pedro.

 

- Não tenho nada a perdoar-lhe, d. Eulália; eu é que devo ser perdoado, pelos sustos que lhe causei. Aquele homem não lhe enganou, eu sou com efeito um ladrão.

 

O epíteto foi acentuado com o desprezo com que um inimigo de Virgulino o pronunciaria para aviltá-lo, e Eulália, tomando-o por uma ironia proferida para magoá-lo, murmurou:

 

- Não; eu estou agora convencida de que o senhor não é um ladrão. Um ladrão nunca é assim generoso!

 

- Sou um ladrão, sim - repetiu Virgulino -, mas não fui eu quem procurou sê-lo... fizeram-me. Lembra-se da noite em que na paróquia de B. V. apareceu uma família à noite, e o sacristão e o vigário e outros deitaram-no fora, porque o chefe tinha na testa a cruz com que se marcam os ladrões? Veja se conhece o homem de quem Vossa Mercê, sua amiga e seus pais tiveram tanto dó?

 

Virgulino desatou a máscara que o disfarçara por tanto tempo a Eulália, e continuou:

 

- Eu jurei nessa noite que não era um ladrão, e juro-o ainda agora. Mas Vossa Mercê não sabe o que é trazer em si este sinal cruel. É como que fechar o mundo à gente e obrigar a ser mau. Lembre-se do que se passou naquela noite, pois é o mesmo em toda a parte. Os filhos, a mulher, as irmãs, os parentes do desgraçado choram, morrem à fome, e a maior parte do povo ri-se, atirando-lhes à cara o insulto pungente filho, mulher, irmã, parente de um ladrão. B. V. deu-me abrigo, mas além da paróquia estava todo o Ceará, e eu tinha de caminhar.

 

- Talvez achasse quem o socorresse como na nossa paróquia.

 

- Talvez, mas havia anos que eu sofria e só Vossa Mercê e sua amiga e seus velhos pais tiveram pena de mim!

 

O Feiticeiro chamou-me para ser o que todos diziam que eu era, e eu vim para dar aos meus filhos algum dia o direito de viverem contentes fora daqui.

 

- Contentes - pensou Eulália -, quem sabe se eles viverão ainda!

 

- Eu sou muito desgraçado! d. Eulália, e alegro-me por não ser de todo perverso. Adeus; reze a Deus para que desapareça de mim o sinal que me faz tão mau, e diga aos meus filhos. se algum dia os vir, que o seu pai comete crimes, porém nem por isso deixa de ser agradecido a quem teve piedade dele!

 

O mísero bandido, atirando ao colo de Eulália um pequeno embrulho, montou de novo a cavalo e partiu rapidamente, deixando a moça enredada na confusão que lhe causava aquela natureza contraditória, que aliava à nobreza de um cavalheiro a abjeção de um bandido.

 

Ficou por muito tempo a olhar para o lado em que desaparecera o cavaleiro, absorta como se estivesse a sonhar acordada e, quando distraiu-se, murmurou

 

- Que diferença entre o bandido Virgulino e ele!...

 

Pronunciando esta última palavra, porém, como se ela contivesse em si um mundo de fantasmas, Eulália teve medo de estar só e levantou-se a olhar em torno de si. O embrulho, que Virgulino atirara-lhe ao colo, caiu tinindo o som do bater de moedas de ouro. Olhou-o com desprezo; a sua alma, afinada pela delicadeza moral de que o velho Queiroz dera provas não querendo fazer parte da comissão dos socorros; a sua alma, educada em extremados escrúpulos, rejeitou a esmola que vinha de uma fonte indigna.

 

- Antes morrer do que me servir de tal dinheiro! - pensou ela, e deu alguns passos.

 

O cansaço da viagem, porém, dificultando-lhe os movimentos, alquebrando-lhes o organismo, levantou a brutalidade dos instintos sobre a delicadeza dos sentimentos. Vieram-lhe à memória todas as narrações pavorosas que tinha do a respeito dos retirantes, que morriam em grande parte de fome. Deixar a esmola de Virgulino era o mesmo que se suicidar. Não teve coragem para persistir na sua resolução, e, deixando-se a olhar desconfiada, guardou no seio o tesouro que lhe fora dado.

 

Pôs-se a caminhar apressadamente, enxugando as lágrimas que lhe caíam em fio.

 

 

VII

 

Vinha surgindo o sol, vermelho como uma brasa, no meio da quietação mórbida da natureza.

 

Grupos e grupos, maltrapilhos e esgroviados desfilavam praguejando contra o destino e contra os homens. Iam e vinham da mesma direção: um pano grande de areia de cor intensamente hidrargirada, no meio do qual havia uma escavação, em que manava um olho de água.

 

Nos que de lá voltavam reinava o mesmo desgosto que mostravam os que para lá se dirigiam; todos eram acordes nas lamentações e paravam para cruzar doestos e pragas às autoridades do lugar.

 

- É mesmo para fazer ferver o sangue de um santo: os cavalos do sr. vigário têm mais direito do que nós!

 

- O comissário manda tirar barris e barris para os seus amigos; os pobres que morram à sede.

 

- Há de dizer-se que a água é deles; que não brota da terra para todos os cristãos.

 

- Uma pouca vergonha: família em que há mulher bonita não sente faltas; a água aumenta logo pelos seus bonitos olhos.

 

- Corja, mil raios os partam!

 

- E o diabo do comissário é quem atiça o vigário. Ainda este vá, porque precisa dos cavalos para levar o sacramento; mas aquele velho delambido só para agradar os seus amigos; é um desaforo!

 

- Um cancro lhe roa o bandulho para que saiba se é bom ou não sofrer.

 

Eulália, entrando no povoado, teve de atravessar esses grupos, e ouvindo-os estremeceu pelo futuro que a esperava.

 

Envergonhada por se ver só, vestida tão pobremente, com o vestido de chita com que saíra de casa, quase descalça, cumprimentava a todos para ver se a curiosidade hospitaleira da província dirigia-lhe perguntas, e assim tivesse ela ocasião de dirigir outras. Os grupos desatentos, porém, passavam sem reparar em si.

 

Continuou, pois, a caminhar silenciosa até a igrejinha que ficava no meio do povoado, e cujas portas abertas deram-lhe a esperança de encontrar com quem falasse.

 

Entrou pela tosca nave coberta de telha vá e foi ajoelhar-se entre umas dezenas de pessoas, que aí estavam. As queixas que ouvira lá fora continuavam dentro do templo.

 

- É porque os pais de família não querem; senão aquele velho descarado deixaria a comissão. Onde é que se viu uma vadia, como a tal Mundica, ser dona de uma terra e governá-la assim?

 

- Qual, dona, os homens nada podem fazer; o meu homem, que é entendido em política, diz que ninguém pode com o velho, porque o partido dele está de cima e ele é quem é o chefe aqui.

 

- Forte peralta é a tal bicha!

 

- Uma atrevida!

 

- Veja o que ela fez com aquela pobre família de luto, que dizem ser a de um professor?

 

- Ameaçou-a com chicote, não é?

 

- Qual ameaçou?! Mandou metê-lo, e a velha e uma mocinha, se não quiseram ficar lanhadas, tiveram de fugir, deixando até perdida, entre o povaréu, uma criancinha de uns quatro anos.

 

- Isto há de ter um fim, seja qual for; não pode continuar.

 

- Do céu venha remédio; se não houver outro recurso, faz-se na vadia o mesmo que ela mandou fazer à família.

 

- O que diz o vigário a isto?

 

- É um mole; quer estar bem com todos. Agora então ninguém poderá obter dele nada. Está com hóspede.

 

- Não há de ser de grande importância, porque o vigário ainda não saiu com ele a passeio.

 

- Pois as pessoas da casa não dizem o mesmo. Na mesa eles tratam-se por colega, ainda que o hóspede tenha os cabelos da coroa e a barba crescida.

 

- Então é segredo que eles querem guardar.

 

- Deve ser, porque o vigário nunca diz o nome do hóspede. É colega para lá, colega para cá.

 

- Quer que lhe diga uma coisa? Se formos à casa do vigário fazer uma queixa em regra, ele talvez tome providência agora, para não parecer fraco aos olhos do outro.

 

- Nós conversaremos: a tal Mundica é que não pode continuar aqui.

 

Eulália bebia com voracidade todas as palavras das duas interlocutoras. O nome de Mundica, o padre que se escondia na casa do vigário impressionavam-na vivamente.

 

- Quem sabe se não são eles? - pensava Eulália. - Devem ter parado aqui.

 

Demais uma circunstância a sobressaltava com uma suspeita pavorosa: Mundica tinha mandado açoitar a família de um professor. Não seria esta família a sua?

 

A infeliz retirante não pôde mais conter-se e dirigiu-se a uma das interlocutoras.

 

- A senhora não sabe o nome da família?

 

- Não perguntei, mas é fácil saber no abarracamento.

 

- E você não é de lá - perguntou a outra interlocutora -, não é retirante?

 

- Sim, senhora - respondeu Eulália cujas faces quase sangraram de vexame pelo qualificativo; - mas ainda não entrei para o abarracamento.

 

- É fácil, quando acabar a missa vá ter com o vigário.

 

A campainha tangida repetidas vezes anunciou o começo da missa e a igreja encheu-se do sussurro das saias das mulheres que se ajoelhavam. O vigário Belmiro apareceu na capela-mor revestido de branco, segurando com uma das mãos o cálice e pousando a outra sobre o véu e a bolsa.

 

- Vê? É aquele o sr. vigário, muito bela pessoa; vá ter com ele.

 

Eulália agradeceu a indicação e ajoelhou-se devotamente para suplicar aos céus que lhe afastasse o golpe, que as palavras das duas mulheres lhe anunciavam iminente. As duas interlocutoras calaram-se também por algum tempo, mas para logo começaram a cochichar.

 

- Lá está o comissário; quem dirá que ele é quem é? Brejeiro!

 

- Homem que reza muito dá sempre em vadio; eu tenho conhecido uns poucos assim.

 

- Eu só quero ver como ele se tira desta alhada; não queria estar no pêlo dele.

 

- Ora, tudo se esquece, e, se ele tiver a repentiva de pôr ao campo a vadia, ninguém lhe fala mais nas chicotadas.

 

- A verdade é que as mulheres que as levaram, levaram e nem Santo Antônio as tira.

 

Depois de haver desfiado, pachorrento e demorado, todo o latim da missa, o vigário Belmiro, fazendo profundas reverências, retirou-se para a sacristia, acompanhado pelo comissário.

 

Eulália levantou-se logo para ir ter com aquele que devia dar-lhe informações que a torturassem ainda mais ou que lhe serenassem o ânimo. À porta da sacristia, porém, o sacristão deteve-a com uma frase imperiosa e grosseira:

 

- Olá! Não vê que está aqui gente a conversar? Espere, se quiser falar.

 

A moça não respondeu e esperou.

 

- Digo-lhe que não é mais possível demorar esta gente - ponderava o comissário; - a água não chegará nem mais para uma semana, vai diminuindo como se a chupasse uma esponja.

 

- Cava-se noutro lugar; não lhe parece que Deus não há de permitir que esteja tudo seco por esta vizinhança de umas duas léguas?

 

- Tem-se cavado tudo, homem, nem tão descuidado sou eu, mas a água é uma pilha de sal. O que quer você que lhe faça? Deus não há de permitir; mas lá se vai um ano de seca.

 

- Experimente sempre, teime, porfie; bem vê que, se for por essas estradas fora, de todo o povaréu que está no povoado não escapam cem pessoas.

 

- Por minha parte não faço mais nada; demais, dizem que o novo presidente não quer que continuem as comissões no interior; não estou para perder trabalho. De hoje até amanhã teremos notícias do Ceará e o vigário verá se estou mentindo.

 

Mas, enquanto não chega, vai-se fazendo uma obra de misericórdia.

 

- Eu não admito mais uma só pessoa no abarracamento.

 

- Salvo se for mais bonita do que a Mundica, não é verdade?

 

Riram-se ambos, e, como o vigário já se houvesse desrevestido, dirigiram-se para a porta.

 

Eulália saiu-lhes ao encontro e formulou o primeiro pedido ao vigário.

 

- Eu sou retirante - murmurou envergonhada -, e venho pedir a Vossa Mercê que me mande entrar para o abarracamento.

 

- Filha, isto não é comigo - respondeu o bonachão do Belmiro; - aqui está quem pode mandá-la para lá.

 

- É só por um ou dois dias - acrescentou Eulália -, eu sigo viagem para o Ceará.

 

- É a cantiga de todos - sorriu o comissário; - já não caio. Com muito gosto se não fosse ter de cessar com os socorros. De hoje em diante é impossível.

 

- Eu peço porque não conheço ninguém aqui, e não sei os caminhos para seguir viagem.

 

- Tanto pior para você, minha filha - observou o comissário. - O que lhe hei de eu fazer? O que não tem remédio...

 

- Remediado está - disse o vigário, acabando a frase.

 

- Venha comigo que eu lhe arranjarei onde passar os dois dias. Serve-lhe?

 

Eulália meneou a cabeça afirmativamente e acompanhou os dois poderosos da localidade. Toda a conversação das duas mulheres afluía-lhe tumultuariamente à memória, impondo-se-lhe como verdade, e Eulália mal podia conter a impaciência que a impelia a perguntar ao pároco o nome do seu hóspede.

 

- Aqui está a casa onde vai ficar; entre - disse o vigário e gritou da porta: - ó mana, ai vai uma filha de Deus para dormir duas noites.

 

A mão carnuda de Belmiro foi bater no queixo de Eulália acariciadoramente, e ele acrescentou:

 

- Agradeça-me, hein? Não seja ingrata.

 

Embora a liberdade tomada pelo pároco a houvesse magoado, embora o pudor da mísera retirante se houvesse ofendido, Eulália entrou com semblante alegre.

 

O que lhe importava não era o pensamento oculto do pároco, mas saber se a família do professor tinha alguma relação com a sua.

 

O dia, porém, passou desaproveitado para a sua missão. Falou-se por diversas vezes no fato, que era o principal assunto de todas as conversas, mas ninguém sabia o nome das mulheres que tinham sido vitimas da violência brutal de Mundica e dos guardas do abarracamento. A noite, mais propícia, preparou para Eulália a certeza que ela devia obter.

 

Mundica, assenhoreando-se dia a dia do ânimo do comissário, preparava o caminho para estabelecer-se inteiramente ao lado dele. Não passava um dia sem que, a pretexto de esmola, fosse à casa do apaixonado viúvo e lhe exacerbasse a paixão com a prodigalidade de carícias. O último acontecimento, porém, fechou-lhe de dia as portas da casa comissário, que, para acalmar a opinião pública, aparentava ter-se afastado da amante, e de tal forma que ele não visitava mais os cubículos por ela ocupados no abarracamento. Os encontros foram, de comum acordo, mudados para adiantadas horas da noite, em que Mundica saía do abarracamento acompanhada por um dos escravos do comissário.

 

O vigário Paula, que para furtar-se aos olhos dos seus paroquianos não acedera ao convite do colega para visitar de dia o povoado e que premeditava uma desforra da sua ex-amante, saía também à noite e só voltava muito tarde, fato que o pachorrento Belmiro assim explicava a sorrir:

 

- Você é um destemido, Paula, pode dizer como César: veni, vidi, vici.

 

E Paula com o seu ar de hipócrita respondia-lhe satisfeito:

 

- O que se há de fazer? A sociedade impõe-nos o recato das virgens.

 

As vizinhanças do abarracamento eram o ponto em que Paula perdia as noites, não feliz como ele fazia crer ao colega, mas emaranhando-se num dédalo de planos, que abortavam todos diante da ignorância em que ele estava da morada de Mundica e do modo de fiscalização que se punha em prática no abarracamento.

 

O acaso veio em auxílio do projeto do vigário contra Mundica.

 

Desde a primeira noite, Paula colocara-se em posição de poder estender o olhar por toda a frente do abarracamento e por longo espaço da estrada que o comunicava com o povoado. Por duas noites foi em vão tomar lugar no seu observatório; várias pessoas entraram e saíram, mas nenhuma delas deu-lhe ao menos a esperança de poder ver Mundica. O insucesso das suas pesquisas fazia desanimar e retirar-se arrependido de haver perdido o tempo.

 

Na terceira noite, porém, antes de ir postar-se no seu ponto de mira, dirigiu ao colega algumas perguntas que mais ou menos o orientavam acerca da morada da sua ex-amante.

 

Chegado ao abarracamento, ao ver passarem, como nas outras noites, diversas pessoas, pensou em falar com uma delas, mas abandonou logo o projeto: se a maioria dos retirantes não o conhecia, havia muitos a quem não seria possível enganar, embora disfarçasse a voz. O projeto, porém, sugeriu-lhe outro e resolveu:

 

- Entrarei, como os outros entram; com estas roupas, sou também um retirante.

 

Penetrou corajosamente na própria área do abarracamento, que era uma linha de casinholas feitas de ramos secos e cobertas de palhas; mas, quando já se adiantara muito da casa de Mundica, refletiu e parou.

 

Se alguém me visse rondar-lhe a casa? Tem inimigos e muitos, eles podem se aproveitar da circunstância, e depois, quando se souber que eu estive na localidade, sobre mim cairá a condenação.

 

O impulso do ódio impediu-o de retroceder. Demorou-se quedo por algum tempo e em seguida entrou num vão dos muitos que separavam as casinholas.

 

- É impossível que eu não veja ao menos o comissário, hoje. Ficarei até que venha a madrugada, se tanto for necessário.

 

Sentou-se e pôs-se à espera. Lembrava a paciência da cascavel enrodilhada no caminho à espera de presa. Ninguém poderia suspeitar semelhante emboscada; a própria respiração de Paula havia diminuído de intensidade; dir-se-ia que ele fizera parar os pulmões e respirava apenas pela epiderme.

 

Um sussurro, porém, veio restituí-lo à atividade e à paixão que o agitava na empresa. A princípio a areia estalitou sob passos cautelosos e depois duas vozes abafadas trocaram entre si uma frase, ao passo que dois vultos passavam pelo vão.

 

- Por ora ninguém e nem quero que saibam, o resto fica por minha conta.

 

- Se puder conseguir é coisa grossa; eu posso jurar que ele trouxe do Ceará mais de um conto de réis.

 

Paula não pôde ouvir o resto da frase, mas ouvira quanto bastava - o som da voz de Mundica. Saiu cautelosamente do esconderijo, e, distanciado bastante, acompanhou os dois conversadores.

 

Os vultos saíram perto do local do abarracamento e tomaram a estrada na direção do povoado, onde pararam quase na extremidade da rua em que Paula se hospedava.

 

- Eu contava já com isto - murmurou ele; - deve ser a casa do comissário. Perdi o meu tempo.

 

Parou, e já se decidia a voltar para casa, quando viu que só Mundica entrara; o outro vulto continuara a caminhar. Pensando em reconhecê-lo, Paula ia seguir-lhe ao encalço, mas, ao passar pela casa em que vira a sua ex-amante entrar, empurrou por demais a porta. A porta, porém, cedeu, e ao seu movimento, como se uma barreira se houvera erguido ante si, Paula estacou.

 

Uma tentação invencível apoderou-se do ânimo temerário e apaixonado do vigário, que maquinalmente entrou para logo parar estupefato da sua própria ousadia. Felizmente a porta abria sobre um corredor que estava às escuras, e, portanto, fácil era ao vigário voltar sobre os seus passos, sem que fosse percebido. Tentou fazê-lo, mas, sentindo passos na rua, e temendo que fosse o companheiro de Mundica, seguiu tateando e a pensar consigo que estava perdido.

 

O temor de Paula tornou-se logo realidade.

 

A porta foi discretamente trancada e o amedrontado vigário, que apenas teve tempo para ocultar-se por detrás de uma porta, sentiu que alguém atravessava o corredor.

 

-Oh! rapaz - disseram de dentro a meia voz -, venha acordar-me às matinas.

 

A pessoa que passava respondeu com a submissão do escravo e seguiu.

 

Paula, por uma reação inexplicável do próprio temor, encorajou-se, e, não podendo retirar-se logo, porque o ranger da chave denunciaria a presença de um estranho na casa, caminhou vagarosa e cautelosamente até que, entrando em uma sala, a claridade que escoava por uma porta entreaberta o fez parar.

 

- Ouça, eu se zanguei-me com elas não foi porque tenha desejo de fazer mal aos outros; é que elas foram a causa da morte de meu pai.

 

- Mas devia ter feito as coisas de outro modo, assim comprometeu-se e comprometeu-me.

 

- É porque o senhor quer; com pouco mais de nada eu posso ir por algum tempo morar fora daqui e depois volto.

 

- Se fosse tão fácil eu não duvidava fazer, mas infelizmente falta-me agora o melhor.

 

- O que é?

 

- O dinheiro...

 

- É o que não falta aqui - disse Mundica, ao mesmo tempo que se espalhou no silêncio da sala o som de uma tampa de lata brandamente percutida.

 

- Aí não há nada meu, abra e veja.

 

- E esta latinha?

 

- Leia o que tem em cima - dinheiro da comissão -, este é sagrado. Sabe o que mais, vamos dormir.

 

- Você é bem mau, sr. Cassiano; eu ainda lhe faço uma.

 

- Até ver não é muito, apague a vela.

 

Ouvindo o nome do comissário, e ao mesmo tempo a afirmação de que na lata havia dinheiro, Paula foi avassalado por uma idéia que nunca lhe ocorrera. Quedou por um tempo, que lhe pareceu uma eternidade, e conservou-se atento como a dominar o estremecimento que lhe causava o horror da idéia que concebera, até que a respiração compassada e tranqüila do comissário e de Mundica assegurou-o de que estavam dormindo.

 

O ódio deu-lhe então o sangue-frio de que precisava e, penetrando no quarto, abriu imperceptivelmente a lata maior e conseguiu apanhar a menor.

 

Pouco depois estava fora da casa do comissário, da qual saira pulando uma das janelas da sala de visitas, e a passos largos palmilhou a rua até a casa de Belmiro. Dentro do quarto, acendeu a vela e arrancou com a ponta da faca o fecho da pequena lata.

 

- Cá está o dinheiro - disse consigo -, amanhã ela será uma ladra.

 

- Já sei que teve uma boa noite, colega - exclamou a bocejar o vigário Belmiro, que, deitado na sala, acordava sempre que Paula entrava.

 

- Uma excelente noite, colega, até amanhã.

 

Paula não se enganava a respeito do escândalo que se daria, logo que o comissário desse por falta do dinheiro dos socorros.

 

A ação parecia abjeta aos seus próprios olhos. A consciência não o absolvia, acusava-o de haver praticado um furto: ainda que não tivesse a intenção de utilizar-se do dinheiro, não podia também entregá-lo de pronto, porque seria justificar Mundica e engrandecê-la como vítima diante daqueles mesmos que a houvessem condenado. Chamava-se, pois, a si próprio gatuno, mas ao mesmo tempo regozijava-se com a idéia de ver Mundica expulsa da afeição de Cassiano, e entregue à irrisão geral e talvez mesmo à prisão.

 

Ao almoço, conversando com Belmiro, mostrou-se tão jovial que o pachorrento colega observou-lhe:

 

- Ora, pois, como o vejo mais alegre, quero dar-lhe um conselho.

 

- Venha ele, meu padre, hoje ou ontem era sempre bem-vindo.

 

- Vá lá - sorriu Belmiro agitando o indicador. - Estas fazem mal; é preciso não ir com tanta sede ao pote.

 

- Não sairei mais; eu ontem já pensei nisto; corro perigos apesar de disfarçado: do que eu preciso é de forças para a viagem que deve ser amanhã ou depois, e a pé.

 

Belmiro, atribuindo a resolução do seu colega à sua observação, insistiu em demonstrar-lhe que não tinha tido a intenção de magoá-lo, e acabou oferecendo um dos seus cavalos e um pajem ao vigário Paula.

 

- Então partirei depois de amanhã; quero convencê-lo que não me ofendi consigo; bem vê que estou alegre.

 

Bem diverso do estado de espírito de Paula era o de Eulália. Hospedada na casa em que Belmiro a recomendara, não tendo senão as consolações banais da hospitalidade indiferente, a mísera retirante sentia o coração sitiado pela quase certeza de que o hóspede do vigário da localidade, a amante do comissário e, sobretudo, as mulheres insultadas por esta eram o vigário Paula, Mundica, d. Ana e as suas irmãs.

 

Desde o amanhecer quis logo sair para receber em cheio o golpe que já lhe doía; mas, refletindo melhor, pediu à velha senhora que a hospedara para mandar saber do vigário o nome das mulheres que haviam sido chicoteadas. Ainda assim o golpe foi adiado, porque só depois da missa o vigário poderia responder.

 

Como se houvesse uma intenção providencial de delongar a dor imensa reservada à infeliz, o vigário demorou-se na igreja mais do que tinha por costume e, com grande espanto do sacristão, fechara-se por dentro na sacristia com o comissário.

 

O sacristão, intrigado por esta prova momentânea de desconfiança que lhe era dada, explicou-a engenhosamente aos fiéis que igualmente se espantavam de que o confidente do pároco fosse excluído do colóquio.

 

- Isto há de ser negociata com a tal Mundica; eu sinto-lhe o cheiro, porque não há outra razão para tal segredo.

 

Qual, é impossível; o sr. Cassiano está pelo cabresto - ponderavam todos.

 

- É justamente aí que a besta empaca. Eu não creio que ele esteja disposto a mandar embora a delambida, isto não; mas que tenha outros fins tapar a boca do mundo.

 

- De que modo? Ninguém se deixará enganar; enquanto a Mundica estiver aqui, o povo inteiro repetirá que ela é a senhora do comissário.

 

- Pois ele aceitará o que dizem e pedirá à igreja que lhe dê o direito de andar com ela por toda a parte. Fará da retirante sua mulher.

 

- Ora esta agora! Havia de ter graça.

 

- Não era coisa do outro mundo; a paixão cega o homem.

 

Quando o vigário e o comissário saíram da sacristia, ao passo que este se conservava carrancudo, aquele escondia uma risada sob o semblante de piedade, e, logo que se viu livre do olhar do comissário, despregou a rir como um perdido.

 

- Então há alguma novidade? - perguntou-lhe o sacristão. - Vossa Mercê ri enquanto o comissário quase chora?!

 

- Coisas da vida; ele anda em rapaziada e eu conheço-me como velho.

 

- O passarinho bateu as asas?

 

- Não, mas levou alguma coisa no bico. Segredo de cova, hein? - observou o vigário esforçando-se por ficar sério.

 

- Se eu não sei nada, como hei de guardar segredo?

 

O vigário, abaixando a voz, contou que o comissário, desde a estralada das chicotadas, havia mudado para tardas horas da noite e em sua casa os seus encontros com Mundica, e que hoje dera por falta do dinheiro da comissão de socorros.

 

- Está danado!

 

- É uma bucha - ponderou o sacristão. - E o que vai; ele fazer agora?

 

- Vai ao abarracamento ter com ela e obrigá-la a entregar o dinheiro.

 

- E se ela não o entregar?

 

- Ele mesmo não sabe o que fará. Está tremendo de raiva. Eu é que não perco a festa; logo que acabe da missa, lá irei ter.

 

Esta resolução do vigário fez com que, só pelo meio-dia, Eulália pudesse ter a certeza de que se temia. Como soubesse que o vigário estava no abarracamento, perdeu o receio de ser aí insultada por Mundica e seguiu para lá.

 

A massa dos retirantes sussurrava surpresa com o acontecimento descomunal que veio tomá-la de assalto. O comissário, seguido pelos guardas do abarracamento, dera busca em todas as casas do abarracamento e afinal mandara também revolver todos os cubículos ocupados por Mundica, que não podia conter as lágrimas.

 

O comissário, parando diante dela, perguntou-lhe secamente.

 

- Você não entrega a latinha?

 

- Não está comigo, já lhe disse; nunca furtei.

 

- Bem - bradou ele, dirigindo-se aos guardas -, ponham-me para fora a chicote esta ladra.

 

Em vão Mundica tentou obter com as súplicas a revogação da cruel sentença; os mesmos guardas que havia poucos dias obedeciam-na na afronta a d. Ana e Chiquinha, vibravam contra ela os instrumentos ignominiosos, e a suposta ré era obrigada a fugir entre os apupos da multidão.

 

- Fora também com o resto da súcia, nem mais um minuto fique aqui no povoado um só parente da ladra.

 

Os guardas obedeceram e a família de Marciano foi obrigada a sair no mesmo momento.

 

Eulália, que chegava no instante mais violento da cena, vendo Mundica, teve a dolorosa certeza de que se tratava com efeito de d. Ana e de suas irmãs.

 

Cambaleando como uma bêbada, pôs-se a andar espiolhando para dentro dos albergues até que lhe perguntaram por quem procurava. Murmurou então o nome de sua família, e obteve uma resposta desdenhosa:

 

- Ah! Procure-as lá para aquela banda, há uns quatro dias que partiram; talvez a fome a tenha feito demorar e possa encontrá-las pelo menos mortas.

 

 

VIII

 

Eulália, impelida pela alucinação que lhe causara a certeza do insulto recebido pela família, tomou automaticamente a estrada apontada, mas o cansaço e a reflexão vieram logo detê-la. De que serviria aventurar-se por desconhecidos caminhos sem alguém que lhe servisse de guia?

 

A bolsa, que lhe fora dada pelo bandido, lembrou-lhe que podia obter um guia, e Eulália, voltando ao povoado, não regateou o pagamento.

 

Horas depois, a pé, suando ao ardor do sol, embora já declinado, recomeçou a caminhada.

 

À medida que se adiantava, dobrava o terror que lhe causava o amargo pressentimento das desgraças a que estava exposta a sua família. O deserto, com o seu corpo pardacento, seco e ardente, havia-se estendido a fio comprido por toda a circunvizinhança. As casas tinham sido abandonadas, e as portas e janelas, desconjuntadas pelas ventanias freqüentes, agravavam ainda mais a tristeza desses mesquinhos monumentos da prosperidade extinta da província. A nudez substituíra a vegetação, e o verão deixara um rastro negro sobre os lugares outrora cultivados, como se fora uma lápide sobreposta aos mortos plantios.

 

- O que será feito delas? - pensava Eulália. - Que forças há que possam resistir a jornadas longas por esta paragem desabrigada?

 

- É preciso ir mais devagar - observava de quando em quando o companheiro; - daqui ao Quixadá vão mais de 20 léguas.

 

Eulália, porém, apressava mais o passo quando o camarada lembrava-lhe a grande distância que a separava do ponto povoado. A sua imaginação media pela distância a extensão da penúria a que estavam reduzidos os seus, e os pés reproduziam-lhe a agitação do espírito.

 

- Não lhe parece que duas mulheres, tendo de carregar uma menina de quatro anos, e de medir o passo pelo de duas meninas, não podem andar muitas léguas por dia?

 

- É exato; mas em três dias podiam estar perto de Quixadá, a não haver contratempo.

 

- Podiam, se não tivessem necessidades; mas estas devem obrigá-las a parar.

 

- Qual! A fome dá asas à gente; já podem estar em Quixadá.

 

- Encontrá-las-emos lá então, mas é preciso caminhar.

 

E dobrava a celeridade do passo, e tinha desejos de deitar fora as provisões para que a necessidade a impelisse com maior presteza.

 

A noite, porém, veio providencialmente obrigá-la a parar, para que não ficasse logo extenuada.

 

Três léguas fizemos nós hoje - ponderou o companheiro; - amanhã podemos andar pelo menos mais do dobro, e depois de amanhã dormir perto de Quixadá.

 

O honrado camarada pôs-se logo a acender fogo para preparar a alimentação; e Eulália, ao ver as labaredas crescerem, enquanto o camarada desarrumando o mocó de viagem punha no chão as provisões, desatou a chorar.

 

Passava-lhe pela imaginação o quadro medonho a que necessariamente estariam reduzidas sua tia e irmãs, e a fartura em que ela se via pungia-lhe mais do que todas as suas dores.

 

Rogério Monte, o padre Paula, Augusto Feitosa surgiam todos diante de si e cada um dizia-lhe uma palavra amarga, que a sua consciência comentava em silêncio, afeiando-lhe a sorte de d. Ana, Chiquinha e suas irmãs.

 

Todavia, por maiores que fossem as torturas que lhe causasse a cogitação, elas não reproduziam nem palidamente a sorte da família.

 

Depois da inaudita violência, que foi obrigada a sofrer sem reagir, d. Ana apenas teve tempo e recursos para arranjar provisões para um dia. A boa mulher, que fora involuntariamente causa da cena aviltante, prestou-se a vender-lhe as jóias e ir clandestinamente encher de água as borrachas ou vasilhas de couro, que dariam, quando muito poupadas, para que a família se arraçoasse por três dias. Com esta matalotagem seguiu viagem.

 

No primeiro dia não sofreu senão o cansaço e apenas afligiu-a o horrendo temor da fome. Porém, a esperança, a eterna companheira dos desgraçados, atenuava-lhe a angústia, e ela conseguia espairecer e até rir-se, e falar alegremente às meninas para dar-lhes coragem.

 

- Agora restam-nos poucas léguas; não tarda muito que não encontremos alguma casa habitada, e dizia-me o defunto mano que esta gente por aqui era muito caridosa.

 

Tais palavras produziam o resultado esperado por d. Ana: encorajar as meninas, que não cessavam de caminhar. A própria caçula, com o seu descuido infantil, queria, de quando em quando, descer do colo para andar também pelo próprio pé e ir brincando com o Amigo.

 

No dia seguinte, porém, as provisões, embora poupadas, só podiam chegar para iludir a fome, e não obstante a casa habitada não aparecia. O cansaço e o desânimo tomaram o lugar da coragem, e só a muito custo d. Ana pôde conseguir que só se parasse com a noite.

 

Com a manhã do terceiro dia, a família viu aparecer de novo em torno de si o deserto, mas agora agravado pela fome. As meninas tinham já os pés disformemente inchados, e a caçula estava prostrada pelas soalheiras e pelo começo da fome, cujos efeitos fatais d. Ana evitava dando, de quando em quando, uma bolacha à pobrezinha.

 

De todo o grupo, só um dos entes se mostrava corajoso e enérgico: era o Amigo. O nobre cão jejuava desde o pouso; havia emagrecido muito e tinha os olhos vermelhos, de modo que a família começava a recear que ele viesse a danar. Mas ainda assim não tinha perdido o porte altivo; parecia um mártir a caminhar sereno para o suplício. Era o primeiro sempre a sair e agora, como se percebesse que falecia a coragem aos seus companheiros de infortúnio, corria até o meio da estrada, latia e vinha puxar pelo vestido de d. Ana.

 

A jornada foi, afinal, encetada, mas a fadiga, duplicando a fome, fez com que não se adiantasse muito para o estádio da viagem, a vila de Quixadá.

 

À noite as meninas deitaram-se e adormeceram extenuadas, e a caçula, que também ficara sem o que comer, queimada pelo sol, ardia em febre. D. Ana e Chiquinha, sentadas uma em face da outra, choravam sem trocar uma única palavra. O Amigo também parecia ter desanimado, e, ao clarão das frouxas labaredas do fogo que as infelizes haviam com muita dificuldade acendido, o nobre cão embebia nelas o olhar.

 

Durou por muito tempo o silêncio, mas afinal Chiquinha quebrou-o bruscamente perguntando a d. Ana:

 

- Vosmecê lembra-se do que nos contou aquela mulher a respeito do que ela e a família passaram?

 

D. Ana meneou afirmativamente a cabeça.

 

- Começaram comendo raízes do mato...

 

- É que elas conheciam as ervas de que podiam aproveitar as raízes, porém nós...

 

- Mas depois - continuou Chiquinha - mataram a besta que trazia as cargas e comeram-na.

 

- Nós não temos besta - sorriu tristemente d. Ana -, portanto, não podemos fazer o mesmo. Temos de esperar com fome até que encontremos algum croatá.

 

- Mas nós temos...

 

- O quê? - perguntou d. Ana interrompendo-a.

 

- O Amigo - respondeu Chiquinha, que abaixou os olhos.

 

O cão, ouvindo o seu nome, pulou ao colo de Chiquinha e deitou para fora a língua larga e vermelha, meneando-a com intenção acariciadora.

 

- Eu não tenho coragem - murmurou d. Ana; - era muita ingratidão!

 

- É a necessidade! - exclamou Chiquinha enxugando as lágrimas. - Não é verdade, Amigo?

 

O nobre animal, que, afastado brandamente por Chiquinha, havia-se espichado junto a ela, bateu com a cauda no solo e soltou um latido festivo.

 

Dir-se-ia que neste movimento o Amigo fazia um oferecimento da sua à vida da família e que lhes suplicava até a honra desse holocausto.

 

D. Ana e Chiquinha, compreendendo assim a atitude do Amigo, fundiram em lágrimas, que de há muito buscavam um pretexto para correr livremente e com a abundância do tormento que lhes dava causa.

 

- Não, não! - exclamaram ao mesmo tempo. - Seria um crime.

 

O Amigo, levantando-se de chofre, caminhou num passo picado em torno das meninas adormecidas, farejando-as como se quisesse confortá-las com o bafo. Voltou a esticar-se de novo aos pés de Chiquinha, a ganir acariciadoramente, e, como as senhoras se conservassem imóveis, tornou ao passeio em volta das adormecidas.

 

A caçula acordou estremunhada, e, com um choro doloroso, repetiu com uma acentuação comovente:

 

- Não posso mais, eu morro de fome.

 

Os esforços de d. Ana e Chiquinha para acalentá-la foram vãos, e dentro em pouco despertavam também, com o semblante lastimoso do faminto, as duas meninas.

 

O Amigo, como se quisesse repreender as senhoras que o poupavam prolongando assim a angústia das crianças, latiu alto, parando hostilmente em face de Chiquinha.

 

A moça hesitou ainda, mas afinal, como se fosse tomada de um acesso de loucura, levantou-se, e, tomando um dos tições, chamou com uma castanhola o nobre cão, que a seguiu sem relutar.

 

Estavam abrigadas numa das muitas casas abandonadas que marginavam a estrada, e Chiquinha, entrando para o compartimento destinado à cozinha, amarrou com as cordas da rede o pescoço do Amigo. O animal, levantando-se nas patas traseiras, estendeu para ela as dianteiras e pousou-lhas sobre o ombro, como se a buscasse abraçar.

 

O choro da caçula, a sua triste queixa de que ia morrer soaram com mais força. A moça, revestindo-se de uma heroicidade semelhante à alucinação, passou em um dos caibros a corda e puxou-a até que o fiel companheiro dos seus infortúnios começasse a sentir os primeiros efeitos do estrangulamento.

 

D. Ana, ouvindo o latir engasgado do Amigo, correu até o lugar da execução, mas Chiquinha longe de desanimar comunicou à tia a sua resolução e dentro em pouco o corpo do nobre animal caia em terra, inerte e sem vida.

 

- Vamos, minha tia, é preciso ter coragem, ou senão veremos todas aquelas crianças mortas.

 

Horas depois, as duras carnes do Amigo faziam calar a caçula, e, satisfazendo as duas meninas mais velhas, diminuía a dor das duas senhoras.

 

No dia seguinte, quando Eulália chorava lembrando-se de que à mesma hora talvez a sua família sofresse as indescritíveis torturas da fome, d. Ana e suas sobrinhas dormiam com o peso do cansaço o sono do apetite satisfeito, graças ao corpo do Amigo.

 

Eulália conciliou também o sono na sua pousada e só pela madrugada voltou à tristeza dos seus pensamentos e à ousadia da sua empresa. Metendo-se a caminho, a sua imaginação via em cada estremecimento, em cada redemoinho de poeira, que se levantava na estrada, o passar da sua família.

 

Talvez em vez de adiantar a jornada retardava-a, e foi por vezes advertida pelo camarada, que pôde por fim obter que seguissem em linha reta.

 

O dia findou sem que o menor vestígio deixasse perceber a passagem da família; nem uma só pessoa apareceu de quem pelo menos uma informação vaga servisse de incentivo à esperança.

 

Ao anoitecer, porém, quando o camarada já exigia de Eulália que ela se recolhesse para não se afadigar muito, um vislumbre de esperança veio indenizar-lhe em parte o sofrimento do dia.

 

Passavam por diante de um casebre, de frente esburacada, já sem janelas e sem portas. Vinha de lá um berreiro de crianças.

 

- Ouve? Quem sabe se não são eles?

 

- É impossível, minha ama; eles devem chegar hoje a Quixadá.

 

- Mas podiam ter ficado por aqui por causa das crianças.

 

- Por isso mesmo não ficariam.

 

- Pois bem, vá saber quem é; devemos pousar dentro em pouco tempo, e sendo boa gente...

 

- Podemos fazer ponto aqui.

 

- Ouça, pergunte se é a família de d. Ana Queiroz, ou se a conhecem, mas não diga o meu nome.

 

O camarada dirigiu-se à casa, enquanto Eulália, sentada a distância, aguardava, deleitando-se com a esperança de haver enfim encontrado com a sua família.

 

Um quadro de miséria esbateu-se aos olhos do companheiro de Eulália. Da porta da entrada viu no interior da casa uma família inteira, composta de moças e de crianças agrupada em torno de uma velha, que, recostada ao colo de uma das moças, ansiava a respiração dificultosa dos moribundos.

 

Entrando com a precipitação da compaixão, o camarada foi parar junto do grupo e proferiu a pergunta que a sua ama lhe recomendara.

 

- Não - respondeu uma das moças; - somos uma família que morre à fome.

 

- Mundica! - exclamou o camarada, reconhecendo uma das moças. - Como é desgraçada!

 

- Conhece-me? - soluçou a filha do sacristão. - Pois quando voltar ao povoado diga lá se fui eu quem roubou o comissário.

 

O homem, em quem palpitava um coração cearense na plenitude da virgindade sertaneja, teve ao ouvir estas palavras uma impressão indefinível. Sabia que a mais brutal das ofensas tinha sido por ordem de Mundica praticada contra a família de Eulália. Talvez a esta mesma hora, pensou ele, estivesse aquela a padecer o mesmo tormento, pois que era quase impossível que, sem dinheiro e sem provisões, alguém atravessasse incólume as estradas da província. Como, pois, socorrer as desgraçadas que ali via às portas da morte? Além disso, embora sua ama viesse prevenida para socorrer os seus, quereria ela abrir mão de alguma coisa para socorrer estranhos e inimigos?

 

O desespero em que o emaranhavam tais pensamentos fê-lo demorar mais do que o tempo que devia gastar para uma simples pergunta, e Eulália, tomando a demora por um bom agouro, caminhou até junto da casa.

 

- São elas, não é verdade? - perguntou ao ver o semblante comovido do camarada que saía. - Sofrem muito?

 

- Sofre-se muito aqui, morre-se mesmo à fome, porém não é a sua família.

 

- Pois fiquemos entre eles - murmurou Eulália suspirando longamente a sua desilusão; - não pode haver melhor companhia.

 

O camarada baixou os olhos confuso, e, como Eulália se encaminhasse para entrar no casebre, o leal companheiro veio postar-se-lhe na frente.

 

- Vossa Mercê não deve entrar, faça pelo amor de Deus uma obra de misericórdia às infelizes que lá estão dentro, mas não entre, porque talvez se arrependa de ter querido praticar tão boa ação.

 

- Não me disse você que as pessoas que aí estão dentro morrem à fome?

 

- É verdade, porém Vossa Mercê tem-lhes ódio.

 

- Eu?

 

- Sim, e não as perdoará nem na hora da morte.

 

- É então Mundica? E a família da malvada? - interrogou Eulália arquejando.

 

O camarada abaixou os olhos; e ambos conservaram-se por algum tempo em silêncio, mas afinal a vítima de Mundica murmurou a soluçar:

 

- Avie-se para que encontremos outro pouso, e dê à gente que lá está dentro metade do que trazemos.

 

O camarada, aturdido pela generosidade de Eulália, entrou apressadamente na casa e foi entregar a Mundica o socorro inesperado.

 

A ex-amante do comissário, entregando-se a expansões de gratidão, e como invocasse os céus em paga da piedade que lhe vinha em auxílio, observou-lhe o camarada:

 

- Antes de tudo, você deve pedir um perdão; ajoelhar-se aos pés de uma pessoa a quem maltratou muito.

 

- Nunca ofendi ninguém que não me houvesse ofendido antes, mas ainda assim farei.

 

- Venha então comigo; esta esmola, que acabo de trazer-lhe, não é dada por mim; quem a dá é d. Eulália.

 

- Quem? Eulália?! - exclamou indignada. - Pode levar outra vez o que me trouxe. Eu sabia que ela devia estar farta e feliz, enquanto eu vivesse abandonada. Diga-lhe que nunca hei de curvar-me a ela, a comborça.

 

O camarada no primeiro ímpeto de indignação pensou iludir a ama e deixar Mundica e os seus entregues à penúria. Chegou a dar alguns passos, mas o seu coração cearense deteve-o.

 

- Diga o que quiser, fera, come e quando tiver mais força calunie, insulte e persiga a quem a salvou. Deus queira porém que o dia de hoje não volte, e sem remédio.

 

Sem dar tempo à resposta de Mundica, o honrado camarada saiu deixando a orgulhosa faminta irresoluta sobre a decisão a tomar.

 

Eulália, que se havia afastado, perguntou ao ver chegar o camarada:

 

- Poderá salvar-se a família?

 

- Sim - respondeu ele; - Vossa Mercê foi o anjo da guarda que lhes apareceu.

 

- Elas hão de pedir a Deus por quem lhes dá esmola - ponderou Eulália pensando em Virgulino; - e isto servirá para redimir-lhe os pecados.

 

- Elas amaldiçoarão o benfeitor - pensou o camarada; - aquelas feras não agradecem.

 

E o camarada era quem tinha razão. Mundica veio até a porta a fim de verificar se era com efeito Eulália quem vinha em socorro da sua família. Não pôde reconhecê-la pela distância em que já se achava, mas, vendo uma mulher, a rival de Eulália acreditou no camarada.

 

A generosidade extrema não a comoveu. Só um pensamento a dominou: foi que Eulália vivia feliz, podia atravessar a província e abastada a ponto de dividir com quem sofria; não obstante a miséria, vigilante como uma alfândega, espiar à beira da estrada, pedindo a todos uma contribuição penosíssima de lágrimas e de sofrimentos.

 

De onde lhe poderiam vir os recursos senão do vigário Paula? Conhecia-a bastante, sabia que ela fraqueara diante da sedução, mas não se rebolcaria facilmente na prostituição. Era por força Paula.

 

E Mundica amava-o ainda. Se não lhe dera as primícias da sua formosura, compensava-as com uma paixão que irrompia do ardor tumultuoso da mocidade. Traíra-lhe o segredo porque fora por ele ofendida no egoísmo da paixão, e agora com a separação sentia que o amava ainda mais.

 

Amá-lo-ia Eulália? Não o podia amar tanto quanto ela o amava, e, não obstante, Eulália fora a preferida, podia viver na abastança, enquanto ela acabava de ser ameaçada mortalmente pela fome.

 

Amélia ocupara-se imediatamente em socorrer a velha e fazer calar as crianças. Mundica, porém, hesitou em servir-se das provisões que lhe foram dadas pelo camarada; e só depois de longo meditar assentou-se junto de sua irmã e pôs-se a partilhar da refeição.

 

A desgraçada - disse ela sorrindo - veio dar-me forças para a vingança.

 

Amélia estremeceu ao ouvir sua irmã e murmurou:

 

- Você tirou o gênio de meu pai, até me faz medo.

 

- É que ainda está criança, não compreende o que isto é. Eu tenho coragem de matá-la.

 

Logo que terminou a refeição, Mundica foi ter com sua mãe e pôs-se a encorajá-la.

 

- É preciso que cheguemos a Quixadá, minha mãe; partiremos amanhã, não é verdade?

 

- Sim, partiremos amanhã.

 

- E lá nos encontraremos - resmungou Mundica -, havemos de ver quem vence.

 

No dia seguinte, pela manhã, as duas rivais saíam das pousadas em que haviam passado a noite.

 

Durante a jornada, Mundica, que por largas horas conservara-se calada, rompeu de improviso o silêncio.

 

- Vou pensando no caso do abarracamento.

 

- É o que você sempre nos arranja; já lá na paróquia você, por ser linguaruda, deu ocasião à barulhada.

 

- Eulália esteve também parada no abarracamento e, com certeza, esteve lá na noite em que o Cassiano deu por falta do dinheiro.

 

- E o que tem ela com isto?

 

- O vigário Paula esteve também lá. Eu aposto em como o vigário, que estava hospedado na casa do padre Belmiro. era ele.

 

- Pode bem ser - respondeu Amélia distraidamente.

 

Um longo silêncio seguiu-se à breve troca de frases, e só ao meio-dia, quando pararam para descansar, recomeçaram a conversação.

 

- Se eu encontrasse com Eulália, na posição em que estive no abarracamento, feliz e respeitada, sabe você o que eu fazia?

 

- Não - respondeu Amélia - mas devia ser por força uma maldade.

 

- Havia de procurar todos os meios de comprometê-la, e, se ela mandasse meter o chiqueirador em pessoas da minha família, havia de procurar perdê-la.

 

- E ela ainda tem mãos para nos dar esmolas.

 

- Eu, por exemplo, se viesse acompanhada de meu amante, pedia-lhe que se introduzisse de noite na casa do comissário.

 

- E depois? - perguntou Amélia corando.

 

- Depois dizia-lhe que ouvisse o que se conversava, e, finalmente, que sabendo que em uma lata estava o dinheiro, ele o roubasse para que a minha inimiga passasse por ladra.

 

- Mas Eulália era incapaz de proceder assim.

 

- Mas, como não se deu isto, fui eu quem roubou Cassiano.

 

- Não foi você, mas também não foi Eulália.

 

- Veremos; a justiça de Quixadá há de decidir isto.

 

- Mas o que vai você fazer, minha irmã? - perguntou Amélia estremecendo.

 

- Fazer com que Eulália diga de onde lhe vem o dinheiro com que dá esmolas. Ao menos ela e o vigário hão de confessar publicamente que são amantes.

 

 

IX

 

A vila de Quixadá sussurrava cheia de espanto e de horror, na hora em que Mundica entrou por ela ao encalço de Eulália.

 

O povo aglomerava-se em frente à casa da autoridade e comentava calorosamente um fato que parecia estar fora da natureza humana. De quando em quando, toda a multidão agitava-se, investia contra a casa e proferia uníssona uma sentença medonha:

 

- Morra a assassina!

 

A prudência e a energia das pessoas, que guardavam a porta, continham a explosão indignada, e a onda popular, que continuava a engrossar, recuava tumultuariamente,

 

- Deixem estar que há de se fazer justiça, descansem, tenham paciência.

 

- Qual justiça, nem meia justiça - bradavam os exaltados; - isto é pegar dela e estrafegá-la.

 

- A autoridade há de cumprir com a sua obrigação; a justiça não será menos severa por ser demorada.

 

- Vejam a cara daquele demônio; está mesmo com um ar de fera!

 

- Que entranhas!

 

- Que monstro!

 

- Morra a assassina!

 

E, como todos quisessem colocar-se junto das janelas da casa do subdelegado, surgiam da grande massa protestos e palavras ásperas e desavergonhadas.

 

Sentado em frente a uma mesa, tendo ao lado um homem já idoso que estava a escrever, o subdelegado, um quarentão reforçado, de modos brandos, mostrava-se impaciente e acenava freqüentemente, recomendando aos homens da porta inteira prudência.

 

- Pode-se começar o interrogatório - disse o homem que escrevia.

 

- Olhem para ali; que horror! - gritaram os circunstantes que estavam à janela. - Pobre criança!

 

- Ela chegou sempre a comê-la?

 

- Se comeu! Foi ontem que ela praticou o crime e só hoje é que se deu por ele, por um acaso.

 

Queria fazer como as jibóias, hein? Enquanto tivesse o que comer, não deixaria o lugar.

 

- E era capaz de fazer o mesmo com o outro filho.

 

- Ah! eram dois?

 

- Eram sim; o outro, que ainda é de peito, está lá dentro. Eu o vi, já anda um bocadinho.

 

A autoridade impôs silêncio aos comentadores, mandando repetir que se ia proceder ao interrogatório da ré e das testemunhas.

 

As perguntas da lei foram formuladas então pausadamente, e a ré respondeu-as a soluçar.

 

Chamava-se Maria, e era casada com um Virgulino da Silva, de Inhamuns. Não sabia dizer onde parava o seu marido; acompanhara-a de Inhamuns ao B. V. com destino ao Aracati, mas em caminho, morrendo-lhe o pai, decidiu demorar-se naquela paróquia, de onde desapareceu.

 

- E não sabe que destino tomou?

 

- Não; ele saiu com muitos outros, entre os quais um feiticeiro que brincava com cascavéis. Não sei se é vivo ou morto.

 

- Sabe de que é acusada?

 

A mísera ré meneou afirmativamente a cabeça, que escondeu entre as mãos, a soluçar compungentemente.

 

- Que demônio! - ponderavam os circunstantes. – Quer nos enternecer com as lágrimas. Causa asco.

 

- Responda - exclamou o magistrado -, é preciso que você responda com a sua própria boca.

 

- Sei, sim senhor - suspirou a desventurada.

 

As suas palavras, proferidas com grande esforço, pareciam trazer consigo parte do coração. Os próprios exaltados sentiram-se comovidos, e olhando para a mulher, vendo-lhe as faces escaveiradas, os olhos encravados profundamente nas órbitas, vermelhos das lágrimas, os vestidos sórdidos e muito rotos, os próprios exaltados murmuraram:

 

- O que é verdade é que, para uma mãe fazer o que preciso estar doida.

 

Outros, porém, acudiram logo:

 

- É mesmo por maus bofes; doido não diz coisa com coisa, e ela responde que nem uma letrada.

 

- Diga então qual o crime de que é acusada - ordenou a autoridade dirigindo-se à ré.

 

- Vossa Mercê bem sabe qual foi; eu não posso repetir...

 

- É o remorso, malvada! - gritaram os circunstantes.

 

- É preciso dizer  insistiu a autoridade -, eu só posso tomar o que você responder.

 

- Matei meu filho! - resmungou  desventurada.

 

- E que idade tinha ele?

 

- Quase cinco anos.

 

- Foi levada por alguma raiva?

 

- Não.

 

- Alguém a obrigou a praticar semelhante ato?

 

- Não, foi a minha desgraça.

 

- Mas qual foi esta desgraça?

 

- A fome.

 

- Não tente iludir a justiça em nenhuma das circunstâncias do crime, porque a sua punição será ainda maior.

 

- Para mim é um benefício morrer, com tanto que amparem aquele infeliz que lá está dentro.

 

- Diga como foi levada a praticar esse crime.

 

Maria pôs-se a expor circunstanciadamente as peripécias da retirada até o encontro com as crianças que choravam junto ao cadáver materno, crianças que ela tentou trazer consigo, porém que morreram ambas na mesma noite.

 

A autoridade deteve-a neste ponto que pareceu uma circunstância agravante.

 

- As crianças, que tentou socorrer, morreram então na mesma noite.

 

- É verdade. Eu as havia deitado na mesma rede com os meus filhos e de manhã encontrei-as mortas.

 

- Mas acredita que se possa dar naturalmente este fato? Não teria você feito com elas o mesmo que fez com o seu próprio filho?

 

- Não, meu senhor; eu não as matei. Morreram e eu chorei por elas. Foram essas crianças a causa da minha desgraça.

 

- E de que morreram as crianças?

 

- Não posso dizer; eu as havia alimentado.

 

- Pois se você teve entre o último povoado e esta vila o que comer e o que dar a outrem, como precisou de matar o seu filho por ter fome?

 

- Eu vou contar a Vossa Mercê o que se passou.

 

A desgraçada calou-se por algum tempo, e depois da pausa referiu a história desta parte da retirada.

 

Era natural e simples. No mesmo dia em que deixaram a árvore, e sob ela os cadáveres da mãe e das duas crianças, Maria viu-se abandonada pelos seus que, para agravarem-lhe a temerosa situação, deixaram-lhe ficar não só a criança que ainda vivia, mas também a outra que fora vítima. A marcha, que já era penosíssima com o peso de uma só criança, tornou-se quase impossível, e em breve a fome e o cansaço vieram impossibilitá-la de todo.

 

Não conhecia a estrada, e, para qualquer lado que se voltasse, via sempre a mesma perspectiva hostil da natureza: a esterilidade abraçada com a solidão.

 

Por onde e para onde caminhar? Quantas léguas faltariam ainda para que chegasse à vila? Não sabia; a única certeza que tinha era a de trilhar uma estrada, de cujas margens a assolação pregava o desânimo.

 

A fome e o cansaço acobardaram-na; porque, prosseguir na jornada, quando não se podia abrigar da soalheira e nada tinha para comer, era expor a vida dos filhos. Já não tinha forças para carregar ambos nos braços e nem era possível obter do pequeno mais uma caminhada. Resolveu, pois, esperar que a misericórdia do céu guiasse para o lugar, onde parara, algum caminheiro e que a piedade deste lhe viesse em socorro.

 

O dia, porém, passou desfazendo-lhe todas as esperanças; nem um só passageiro pisou o chão da estrada e no entanto a morte caminhava para ela e para os filhos com os passos cruéis da fome, que se fazem sentir no corpo humano como a dor de uma queimadura continuada.

 

Quis aleitar o filho menor e os seios não lhe deram nem uma gota de leite; insistiu com o maior para que comesse as raízes que tinham sido a sua alimentação durante dias, não quis também aceitar.

 

- E então - perguntou a autoridade comovida - que resolução tomou?

 

- Durante toda a noite - prosseguiu a ré na sua narração, sem prestar ouvidos à pergunta - o choro das crianças atordoou-me. Quando extremamente fatigadas as pobrezinhas calaram-se, o eco ficara a azoinar-me e a fazer-me delirar. Vossa Mercê não sabe o que é para um coração de mãe ouvir chorar os filhos com fome - exclamou a desventurada.

 

- Bem - interrompeu-a o juiz - não é disto que se trata; a justiça quer saber como você teve coragem para matar o seu próprio filho.

 

- Ora como! - comentaram os circunstantes. - Como qualquer mataria a outra qualquer criança, como provavelmente ela matou as duas que encontrou sem mãe nem pai.

 

- E as comeu também com certeza; veja se aquilo é corpo de quem tem passado tanta fome como ela está dizendo.

 

- Comeu os pequenos e quando acabou a carniça passou ao próprio filho.

 

- Tomou gosto e pôs-se na ceva. Dizem que a carne do homem tem um bom paladar.

 

- Credo! Nem é bom falar nisso.

 

- Silêncio! - bradou o juiz. - É preciso que a justiça ouça a delinqüente.

 

A mulher do bandido, como se estivesse completamente alheia ao que se passava, reatou ainda uma vez a sua narração.

 

Ao amanhecer reparou para o semblante dos filhos. Os traços dos esfaimados estavam neles profundamente gravados. Vieram-lhe então à lembrança a mãe e os dois filhos que havia encontrado em caminho. Ia ter a mesma sorte deles e, não obstante, não a merecia. Os três surgiam como espectros na sua imaginação; via a mulher com os braços hirtos, os dedos cravados no solo e parecia-lhe que o cadáver adquiria uma mobilidade sobrenatural, que lhe dava ao corpo os meneios de serpente, ao mesmo tempo que lhe marcava o rosto com a ira das onças enfurecidas...

 

- É o remorso que a persegue... - resmungou o juiz.

 

.... Desvairada pelo horror de semelhante quadro, começou a pensar tumultuariamente sobre o destino que lhe restava. Partir ou ficar era irremediavelmente morrer; porém deveriam morrer todos? Tinham os seus dois filhos o direito de exigir-lhe a vida, quando ela ia deixar ainda outros na orfandade?

 

A consciência respondeu-lhe que não, e a desgraçada preparou-se para abandonar os dois infelizes. Melhor fora havê-lo feito logo, mas o coração prendeu-a, não teve força para arrancar dos seus braços o pequenino; a própria desgraça soldava-o de encontro ao seu seio.

 

Uma recordação fatal veio-lhe então à memória. Lembrou-se de que para as bandas do Crato uma mulher havia comido o filho. A princípio esta recordação horrorizou-a, mas a pouco e pouco foi avassalando-a, porque tinha por si a fome. A lógica adamantina do crime sugeriu-lhe argumentos poderosos: se ficasse, todos morreriam, se abandonasse os filhos, eles morreriam. Era trocar morte por morte, mas com uma diferença, a de que podia salvar a si e a um dos filhos.

 

Empolgada por este horroroso pensamento lutou durante horas para fugir-lhe ao guante. Suplicou de joelhos ao céu que fizesse aproximar alguém, porque sozinha já não podia defender-se das sugestões fatais do crime. Em vão foram proferidas as suas súplicas: só um caminheiro aproximou-se, mas este, longe de trazer uma palavra de consolo, um afago de piedade, mudo, indiferente, apenas serviu para agravar-lhe o estado mental. Era o sol que, dardejando uma irradiação ardente, parecia dar-lhe razão ao pensamento mau.

 

Olhou então para os dois, que, prostrados, já sem forças para chorar, arquejavam um sono agitado que parecia um acesso febril mortal. Uma voz imperiosa que parecia vir da própria natureza, disse-lhe então: salva-te matando, porque a morte é a única solução que te resta.

 

A razão mergulhou-se-lhe em trevas; não refletiu mais, não sentiu nem a mais leve pressão do sentimento de maternidade. Estava convencida de que era forçoso que um dos seus filhos morresse, mas não quis escolher por si mesma, entregou à sorte a sentença. Dois pedacinhos de pau, o maior simbolizando o mais velho, o menor o caçula, serviram de forma ao veredicto. Fechou os olhos, sacudiu-os nas mãos covas sobrepostas e depois depondo-os no chão tateou até tocar em um deles. Era o maior...

 

A multidão silenciara ouvindo a descrição da cena pavorosa e estremecia comovida até as lágrimas.

 

... No seu olhar estampou-se o batalhar de sentimentos opostos que a desvairava e a criança, que se havia assentado acordando sobressaltada, teve tanto medo que se foi abraçar com o irmãozinho. Ela fitou-o com a gula do tigre e, gatinhando como ele, com movimentos largos, mas sem ruído, foi parar a pequena distância. Tornou-o a fitar e como se uma jibóia esfaimada se intumescesse dentro em si, empregando toda a sua elasticidade para dar força e precisão ao bote, encolheu-se e de um salto agarrou pelos cabelos a mísera vitima, levantou-a até a altura dos lábios, cobriu-a pela última vez de beijos, como a jibóia cobre a presa de baba, e perdeu de todo a cabeça. Quando voltou aos sentidos regularmente, estava entre as mãos das pessoas que a amarravam e a conduziram à vila.

 

Pairava em todos os semblantes uma impressão dolorosíssima. A própria autoridade, que se esforçava por manter urna severidade convencional, mal podia conter as lágrimas, que lhe eram arrancadas pela vibração pungente das palavras da narradora.

 

Só depois de uma longa pausa, durante a qual a mulher do bandido soluçava comoventemente, voltou-se às formalidades legais. Começou o depoimento das testemunhas.

 

Eram duas. Passando pela estrada, viram levantar-se de um casebre um pouco retirado uma réstia de fumo. Aproximaram-se para pedir que os deixassem ai preparar o almoço. Veio recebê-los a acusada, cuja fisionomia profundamente aterrada os intimidou.

 

- É uma doida - pensaram pois que não dava resposta a nenhuma pergunta, e com um olhar extremamente brilhante, esgarado, observava e examinava tudo em torno.

 

- Bem - disseram -, deixe-nos apenas tirar fogo; nós seguimos viagem.

 

Quiseram entrar para o interior, mas a acusada pôs-se-lhes diante, impedindo-lhes o passo. Admirados de ver uma cearense negar até uma brasa de fogo aos seus semelhantes, mais se lhes aprofundou a convicção de que tinham diante de si uma pobre louca.

 

Retiraram-se, mas de pequena distância voltaram para observar a mulher singular. Souberam então a causa que motivava a proibição formal à entrada no interior da casa.

 

Ardia vivo, no meio do compartimento da casa, o qual devia ter sido a cozinha, um grande brasido sobre o qual chiava um pedaço de carne. De costas para ele, acocorada defronte do cadáver nu de um menino, a mulher, munida de uma pequena faca, descarnava-lhe uma das coxas, cortando com a frieza de um carniceiro as carnes de um boi.

 

O espanto, a confusão chumbaram os pés das testemunhas ao solo e quedos no lugar de onde observavam, sem voz ao menos para impedir que a operação prosseguisse, puderam ver por longo espaço a vítima, já com o rosto escaveirado porque lhe haviam sido cortadas as bochechas e os lábios, entregue à alucinação ou a perversidade da assassina.

 

- E como conseguiram prendê-la?

 

Ao lado sobre uns trapos dormia uma criança, um quase esqueleto que por acaso acordou a chorar. A mulher, correndo precipitadamente para ela, tomou-a nos braços, e, manchando-a com o sangue da vitima, deitou-a no colo, e pôs-lhe nos lábios o seio, cobrindo-a carinhosamente de beijos.

 

Passou-lhes então pelo pensamento uma idéia medonha. Quem poderia afirmar que essa temível facínora não tinha em vista repetir na mísera criança o crime que já havia perpetrado contra a outra?

 

O exagero do horror que lhes causou esta previsão transformou-lhes a primeira impressão num acesso violento de coragem, e de um salto, estando sobre a assassina, seguraram-na de modo a tolher-lhe inteiramente os movimentos.

 

Aterrorada pela prisão, ela não confessou logo que havia assassinado o menino. Disse que ele morrera de fome e que só porque ela também tinha fome e via o seu filho menor prestes a morrer, serviu-se das carnes do morto para comer.

 

Esta explicação, porém, não foi aceita e elas, testemunhas, reso1vendo deslindar o caso diante da autoridade, amarraram a mulher e transportaram o cadáver do pequeno.

 

Ouvido o depoimento, a autoridade perguntou à acusada:

 

- Qual dos dois depoimentos é o verdadeiro: o que nos fizeram as testemunhas ou o que fez aqui?

 

A desgraçada mãe não respondeu; continuou a soluçar como se não tivesse ouvido.

 

Longe, porém, de irritar-se com o silêncio da infeliz, a autoridade, lendo na sua atitude humilhada a grande, a indizíve1 dor que a acabrunhava, limitou-se a dizer:

 

- O cadáver mostrará se houve ou se não houve assassinato; tragam-no para aqui.

 

A curiosidade popular, que era tamanha como o espanto que lhes causava o caso insólito, amotinou-se ouvindo as palavras da autoridade e, apesar da resistência dos guardas da porta, a onda de povo encheu completamente a sala.

 

Só com imensa dificuldade dois homens puderam passar do interior da casa para o meio da sala, com uma rede ensangüentada, que depuseram no chão.

 

- Cerquem esta mulher e ninguém lhe ponha a mão. A justiça há de fazer o seu dever - bradou o subdelegado que veio, acocorando-se em frente da rede, abri-la diante da curiosidade geral.

 

Ao ver ó corpo da criança barbaramente mutilado, cortadas as bochechas de modo que ficaram a descoberto os parietais, os maxilares, os dentes encravados numas gengivas já roxeadas, uma das coxas quase toda descarnada, a multidão teve um assomo de indignação contra a autora do crime, e tão violento que só o respeito de que gozava a autoridade evitou que ele fosse fatal.

 

- Morra a fera!

 

- Façamo-lhe o mesmo que ela fez à criança!

 

- Deite-se ao fogo esta mãe desnaturada!

 

- Morra a perversa!

 

A autoridade, que oscilava à mercê das impressões, mudou também de semblante, e a expressão de piedade tornou-se-lhe em clara demonstração de má vontade à ré.

 

Depois de examinar o pescoço e o crânio do assassinado, vendo no primeiro os sinais do estrangulamento e no segundo sobre o temporal uma grande mancha roxa, o subdelegado resmungou:

 

- Não há dúvida, sufocou-o perversamente.

 

E dirigindo-se à acusada:

 

- Disse-me que havia agarrado pelos cabelos do seu filho, não é verdade?

 

A desgraçada meneou a cabeça afirmativamente.

 

- Depois, conforme se vê pelos sinais, apertou-lhe a garganta com as mãos, não é verdade?

 

O mesmo gesto foi reproduzido pela mísera mulher.

 

- Há também um sinal roxo sobre uma das fontes. Você, para apressar a morte do pequeno, bateu-lhe com a cabeça em algum lugar, não é exato? Talvez em um portal?

 

O gesto horripilante foi ainda uma vez repetido e o povo acompanhou-o com um estrepitoso - morra!

 

Desta vez a autoridade não teve mais força para conter o movimento de indignação geral e a massa precipitou-se de encontro à assassina. Nenhum dos braços ultrizes, porém, chegou a tocar no seu corpo, porque uma mulher, tendo nos braços o esquelético filho da esposa do bandido Virgulino; ajoelhando-se-lhe em frente, suplicou, debulhada em lágrimas e levantando a criancinha como única arma:

 

- Não matem esta desgraçada, porque matam com ela uma inocente!

 

 

X

 

Os guardas, aproveitando-se da parada da multidão no seu ímpeto vingativo, puxaram a assassina para o interior da casa da autoridade, que, se postando na porta, impediu a invasão.

 

Todo o despeito popular limitou-se então a protestos contra a proteção com que se tratava uma fera, que havia assassinado para comer o próprio filho.

 

- Se lhe parece, deixe em liberdade o demônio.

 

- Mande-a enroupar e montar casa; ela merece.

 

Estas e outras invectivas à autoridade não foram, porém, respondidas e o ajuntamento foi a pouco e pouco se desfazendo.

 

Quando a multidão rareou, duas mulheres encontraram-se face a face; uma trazia nos braços o filho da assassina, outra segurava pela mão uma criança.

 

Um olhar de cólera foi trocado entre elas, mas a que trazia nos braços o filho da assassina, como se de súbito se arrependera de haver correspondido à provocação da outra, quis voltar sobre os seus passos.

 

Eulália, que era a que tentou voltar, foi porém detida pela outra, a vingativa Mundica, que veio postar-se-lhe diante.

 

- Eu recebi a esmola - murmurou a filha do sacristão o venho dar-lhe os agradecimentos.

 

Eulália calou-se e buscou desviar-se para seguir.

 

- Escute - acrescentou Mundica, travando-lhe o braço -, não pense que me mete medo com o seu desprezo. Eu recebi a esmola, mas quero saber de onde você a tirou para dar-ma.

 

- Deixe-me em paz, Mundica, eu nunca a ofendi; por que há de você querer maltratar-me?

 

- Não, nunca me ofendeu - sorriu Mundica -, mas a verdade é que eu estou na miséria e que você vive feliz.

 

- E que culpa tenho disto? Deixe-me sair, queixe-se de quem é a causa da sua desgraça.

 

- Quer sair, não? Sairá; porém, antes de tudo, há de dizer de onde lhe vem o dinheiro que tem.

 

- Deram-mo.

 

- E a pessoa não tem nome?

 

Eulália calou-se. Nem a sua dignidade permitia-lhe que respondesse a Mundica, nem devia pronunciar o nome de Virgulino, principalmente agora que tão lamentosa desgraça havia caído sobre a sua família.

 

- Cala, não é assim? Pois eu sei como lhe veio às mãos esse dinheiro...

 

Julgando que, por qualquer circunstância, Mundica tivesse conhecimento da sua estada na vendola e das suas relações com o bandido, Eulália não pôde esconder uma comoção violenta, que, por sua vez, não passou despercebida a Mundica.

 

- Pode dizer-me qual dos dois foi o que se incumbiu do roubo?

 

- Largue-me, pelo amor de Deus - murmurou Eulália forcejando por livrar o punho da mão de Mundica; - você está acostumada às brigas, eu não.

 

- Mas está acostumada ao roubo... Fale, grite, chore, não me foge; eu quero deslindar o caso diante do subdelegado. Você não passa de uma ladra!

 

A injúria foi vibrada em voz tão alta que chamou a atenção dos poucos circunstantes que ainda se achavam no lugar, e demais disso assustou de tal forma a mísera injuriada que ela murmurou, humilhando-se:

 

- Você bem sabe que eu não sou capaz de furtar, Mundica. Eu não mereço que você me faça mal, só por haver tirado do que tinha para repartir consigo.

 

- Eu também faria o mesmo, se fosse por minha causa que outra pessoa estivesse quase morrendo de fome. Boa caridade, minha ladra.

 

À medida que a atenção convergia para o grupo, Mundica alterava o tom, de modo que pudesse ser ouvida.

 

- Homem, aquilo creio que é estralada nova; elas estão a se chamar ladras.

 

- Não, uma delas é que é a ladra; não a viu quase ajoelhar-se diante da outra?

 

Diversas pessoas se aproximaram e Mundica, triunfante, continuou:

 

- Pode pedir até pelas cinzas de meu pai, eu não hei ficar enxovalhada por sua causa. Vamos à presença da autoridade.

 

E puxou pelo braço da outra, obrigando-a a reentrar na casa do subdelegado.

 

Ao passo que Mundica gesticulava, levantava estrepitosaente a voz e fazia requebros canalhas, Eulália, traspassada vergonha e de receio, limitava-se a chorar.

 

- Então o que temos? - perguntou o subdelegado.

 

- Foi esta mulher que furtou no pouso de... uma carteira do comissário, com mais de um conto de réis.

 

- Eu?! - interrogou Eulália admirada. - Eu?! – repetiu a sufocar-se em soluços.

 

Mundica sentiu falecer-lhe a coragem para prosseguir na acusação, tanto mais porque ela parecia-lhe agora de todo o ponto caluniosa. Mas o desejo de vingança, o grito selvagem do ciúme, veio logo fortalecê-la e a odienta rival acrescentou:

 

- Você mesma, não podia ser outra.

 

A autoridade, que simpatizava com Eulália por vê-la oferecer-se para tomar o encargo de cuidar do filho da assassina, interveio em favor da infeliz.

 

- E que prova tem você para fazer uma acusação destas?

 

- A prova é que esta moça era filha do professor de B. V. que morreu pobre como Jó; que ela saiu da paróquia muito pobre, que a família dela ficou tão pobre que talvez já tenha morrido à fome, e que ela do pouso de... para cá tem dinheiro e tanto que pode dar esmolas.

 

- Mas isto não é prova, pode ser que lhe dessem dinheiro...

 

- Mas se, na véspera da saída dela do pouso, sumiu-se uma carteira do comissário?...

 

- Isto ainda não é prova.

 

- Mundica acusa-me de ter tirado a carteira, mas eu não estive no abarracamento nem fui à casa do comissário; como, pois, havia de furtar? Ela bem sabe que a minha educação não foi essa.

 

- Nem a minha. Você tirou o dinheiro para me fazer mal. E de mais corram a nós duas, e veja-se quem é que traz dinheiro.

 

- É o que se deve fazer - ponderaram os circunstantes; - não há testemunhas nem pró nem contra, o dinheiro é quem fala a verdade.

 

O subdelegado mandou que ambas mostrassem as algibeiras dos vestidos e Eulália, sem relutar, tirou do bolso a carteira que lhe tinha sido dada por Virgulino.

 

- Eu tenho dinheiro nesta carteira, mas não é a quantia que sumiu-se ao comissário.

 

- É que você já deu destino ao que falta.

 

O dinheiro foi contado, mas com grande satisfação de Eulália reconheceu-se que a quantia não excedia a cem mil-réis.

 

- Já vêem que não é a quantia de que fala aquela mulher - ponderou o subdelegado.

 

- Vossa Mercê não sabe quem é esta rapariga - exclamou Mundica; - desde que ela foi amante do vigário de B. V., tem cometido todos os crimes. ~ tão boa que a família não a quis junto a si.

 

Eulália, que não havia ainda perdido o recato da mulher honesta, não sabia responder às acusações de Mundica, senão admirando-se da perversidade que as gerava, e a sua causa começou a perigar. Os circunstantes aceitavam todos, como prova de que Mundica dizia a verdade, o fato de se encontrar a carteira em poder de Eulália.

 

Observaram uníssonos:

 

- O melhor é retê-la até que prove que não é culpada.

 

O subdelegado lançou um olhar penetrante a Eulália, que tiritava debulhada em lágrimas. Dir-se-ia que esse olhar, como o brilho de uma lâmpada sobrenatural, tentava dissipar toda a sombra em que porventura a acusada se quisesse ocultar, e irradiar no íntimo da consciência dela.

 

- Como obteve este dinheiro? - perguntou ele. - Diga quem lho deu.

 

Eulália abaixou os olhos e prorrompeu em soluços.

 

- Isto é o que ela não pode dizer - sorriu Mundica; - foi pilhada com a boca na botija.

 

- Não furtei - respondeu humildemente Eulália - deram-mo.

 

- Tem a boca dura como um poldro xucro - ponderaram os circunstantes. - Não confessa; cadeia com ela.

 

- Esteve ou não no povoado quando sumiu-se o dinheiro? - perguntou a autoridade.

 

- Estive - murmurou Eulália -, mas não conheci o comissário.

 

- Não esteve arranchada no abarracamento?

 

- Não; passei dois dias na casa da irmã do sr. vigário.

 

- Quando chegou ao povoado já trazia o dinheiro?

 

- Sim, senhor.

 

- Mas, não era tão pobre em B. V.? Como pôde conseguir tamanha soma?

 

“É que o vigário deu-lha” - pensou Mundica; - "hei de perdê-la, desgraçada. Há de pelo menos provar a cadeia."

 

- Saí de B. V. sem um vintém, mas em caminho encontrei com um homem, a quem havia prestado um pequeno serviço e ele deu-me esta carteira.

 

- E qual foi o serviço que mereceu tamanha recompensa? Eulália calou-se e os circunstantes resmungaram:

 

- Está bem arranjada a desculpa, mas não pega, neste tempo não há quem faça disto.

 

- Se não diz quem lhe deu o dinheiro, eu me vejo obrigado a mandá-la deter até que se justifique. Você não tinha eira nem beira em B. V.; não podia também arranjar esta soma em viagem porque não há hoje meios de fazê-lo. Entretanto na sua passagem desapareceu um dinheiro; é sua obrigação dizer a verdade para que a autoridade saiba o que deve fazer.

 

O nome de Virgulino veio pairar à flor dos lábios da infeliz, porém a vergonha evitou que ele fosse proferido.

 

- Eu não posso deixar de tomar uma providência muito séria, minha filha, fale; defenda-se.

 

- Eu falo pela minha ama, sr. juiz - exclamou da porta o camarada, que tinha ficado perplexo ouvindo a acusação feita a Eulália. - Esta mulher - disse apontando Mundica - era amante do comissário de... Há cinco para seis noites, quando ela se retirou da casa do comissário, este deu por falta de um conto de réis, e deu-a como ladra desta quantia.

 

- Eu não nego que assim fosse - acudiu Mundica- mas o que é verdade é que eu não tive nem com que comprar um pires de farinha, e outra retirante, como eu, tem até para repartir com os outros.

 

- Com você, que é uma ingrata, que estava a morrer de fome e a quem ela deu metade do que trazia para socorrer à família expulsa de... por sua própria causa, Mundica.

 

Mundica sentiu-se momentaneamente confundida, mas o sangue-frio voltou-lhe de pronto e inspirou-lhe uma evasiva feliz.

 

- Eu não falo sem provas. Quando fui acusada pelo comissário, não invoquei o nome de Eulália, o que serve para mostrar que não é por ódio e muito menos por ingratidão que eu falo. Sabia que ela estava no povoado... mas não quis lançar sobre ela a pecha de que eu tanto me horrorizava. Mas hoje, que ela se apresenta com dinheiro, eu estou no meu direito obrigando-a a explicar a origem da sua fortuna.

 

- Ela não atribuiu a Eulália o crime, quando foi acusada no abarracamento? - perguntou a autoridade ao camarada.

 

- Não - respondeu este -, mas também é verdade que, logo que o fato tornou-se público, o comissário fez retirar a golpes de chicote Mundica e a sua família.

 

- Diga-me, onde está a sua família? Quero vê-la para poder fazer o meu juízo - disse a autoridade; - mandá-la-ei chamar.

 

- Eu não sei onde ela se acha.

 

- É o que eu já disse: desde que se fez amante do vigário Paula, brigou com a família para andar mais à solta.

 

- É verdade o que esta mulher está dizendo? - perguntou a autoridade a Eulália.

 

- É exato que eu me separei dos meus parentes, porém não fui por eles expulsa, nem lhes quero mal por isso.

 

A autoridade, visivelmente contrariada, porque certa da inocência de Eulália, via-a entretanto comprometida no juízo geral, e murmurou:

 

- Não tenho remédio senão tirar isto a limpo, e, para fazê-lo, ambas vocês ficarão às minhas ordens.

 

- Tenha pena de mim por esta pobre criança - soluçou Eulália; - a prisão vai prejudicá-la, e o sr. juiz não há de consentir que por uma calúnia sofra eu e este desgraçadinho.

 

- Disse que conhecia o vigário Belmiro e tanto que pousou na casa da sua irmã.

 

- Dois dias.

 

- Ele informará a seu respeito, qual o seu procedimento, a sua entrada e saída do povoado.

 

Eulália, comovendo-se inexplicavelmente, soltou um ai aflito ao ouvir as últimas palavras da autoridade e proferiu com um soluço:

 

- Estou perdida, meu Deus, eu não me despedi da família quando me retirei de lá!

 

Esta declaração de Eulália foi considerada uma circunstância agravante pelas pessoas presentes, que, por este simples fato, decidiram-se logo a favor de Mundica.

 

- Não há dúvida - ponderaram; - ela que fugiu alguma razão teve.

 

- Deixe ficar aí a criança - disse o subdelegado dirigindo-se a Eulália; e, voltando-se para dois dos circunstantes -. vocês façam-me o favor de conduzir estas duas mulheres até a cadeia.

 

A ordem do subdelegado foi cumprida pelos circunstantes e por Eulália, que entretanto demorou-se em abraçar e beijar o filho da assassina.

 

- Não sei por que - sorriam os circunstantes -, mas a verdade é que os criminosos têm sempre uma grande predileção pelos outros.

 

Mundica saiu desembaraçada e a sorrir, ao passo que Eulália mal podia mover-se. A ordem de prisão pesava-lhe sobre o caráter como se fosse um rochedo que lhe houvessem prendido aos pés.

 

Na porta da casa estava parada a família de Mundica, que se lhe dirigiu com a desenvoltura de uma virago:

 

- Não tenham medo, eu vou presa, mas não me hei de demorar muito lá. E depois, mais vale um gosto...

 

- Que gênio soluçou Amelinha. - Não sei de quem é que ela puxou tanta perversidade.

 

- Até logo - exclamou alegremente Mundica.

 

O homem que seguia Eulália impeliu-a brandamente para fazê-la caminhar e o subdelegado, que chegara à porta, murmurou com azedume apontando Mundica:

 

- Se os ânimos não estivessem hoje exaltados, eu havia de ensiná-la.

 

Acompanhadas pelos circunstantes, Eulália e Mundica puseram-se a caminho; a primeira insultada e a segunda felicitada pelos comentários gerais.

 

- Quem não deve, não teme.

 

- O crime é quem a faz andar devagar; não pensou que se viesse a descobrir tão cedo.

 

Quase à porta da cadeia, que ficava a pouca distância da casa do subdelegado, os olhares de Eulália e de Mundica encontraram-se com o de um cavaleiro, que era desconhecido para todos, mas que entretanto mostrava conhecer algumas pessoas do ajuntamento.

 

O pajem, que seguia o cavaleiro, veio por ordem dele informar-se do que se passava e perguntar, ao mesmo tempo, onde podiam ser encontrados o pároco e o subdelegado.

 

- Ambos em casa - responderam; - quanto ao que está vendo é a prisão de uma ladra.

 

O cavaleiro dispunha-se a galopar para apressar a chegada à casa da autoridade, quando um clamor o deteve:

 

- Lá vai ele acompanhando a assassina do próprio filho, a fera.

 

Adiantando-se do grupo, o cavaleiro dirigiu-se a galope até a porta da cadeia, e entregou ao subdelegado uma carta da parte do vigário Belmiro.

 

- Nem de propósito; o senhor vem de lá da freguesia?

 

- Parti ontem.

 

- E estava lá quando foi feito um roubo ao comissário?

 

- Feito por uma tal Mundica, não é verdade?

 

- Ela nega, e atribui a uma outra, chamada Eulália, o crime.

 

- É uma infame, aquela perdida; juro-lhe em como é uma calúnia, para tomar uma vingança miserável contra a outra. Queira ler a carta.

 

O subdelegado rasgava a obreia que fechava o papel, quando o grupo aproximou-se.

 

- Deixem em liberdade esta moça - disse ele assinalando Eulália; e dirigindo-se a esta: - pode retirar-se.

 

O cavaleiro, que havia dado as costas ao grupo, olhou de através para ver a direção tomada por Eulália.

 

- Conduzam esta outra para dentro, e esperem até que decida qual o destino que lhe devo dar.

 

Houve geral perplexidade da multidão, ainda despeitada por não ter podido efetuar justiça bárbara na pessoa da infanticida.

 

- Que vergonha: mosca-morta com uma assassina e cruel com uma inocente - murmuravam.

 

O subdelegado, que havia terminado a leitura, teve um movimento de surpresa e caminhou para o desconhecido.

 

- Queira perdoar-me qualquer desatenção; não tinha a subida honra de o conhecer, sr. vigário.

 

- Queira perdoar-me o vestuário; sirvo-me deste meio para evitar um escândalo. Pela carta sabe que fui torpemente caluniado em B. V., e para maior tristeza minha, com esta pobre menina que V. Sa. acaba de pôr em liberdade.

 

- A outra argumentou com esta circunstância.

 

- Ah! Ela tem razão, era filha do meu sacristão, e pensavam ela e o pai que tudo quanto pertencia direta ou indiretamente à igreja lhes pertencia.

 

Sorriram ambos, e o subdelegado perguntou:

 

- E a respeito do furto do dinheiro, o que hei de eu dizer?

 

- Que, felizmente, já apareceu a quantia furtada. Tem aqui V. Sa. uma prova evidente para dar, é uma carta do próprio comissário, que comunica ao vigário Belmiro haver encontrado a latinha no lugar que foi designado pelo seu hóspede.

 

- E este hóspede, era vossa reverendíssima?

 

- Exatamente; havia saído à noite para espairecer e passei pela casa do comissário, que, como sabe, mora na mesma rua em que reside o vigário. Vi então dois vultos dirigirem-se para a extremidade da rua e aí enterrarem no areal um objeto. Quando ouvi que o comissário tinha sido furtado, lembrando-me do caso, comuniquei ao vigário.

 

- E foi encontrada a quantia exata?

 

- Pode afirmá-lo sob palavra de honra. O pajem que me acompanha é do lugar; ele deve conhecer a Mundica, sabe do fato e pode já referi-lo.

 

- Bem me pareceu que a tal Mundica mentia, e que era ela a verdadeira autora.

 

- Eu não juro que fosse ela, mas juro que não foi Eulália.

 

- Não ficou averiguado então.

 

- Eu fui a única testemunha, e não pude reconhecer os vultos, quando procediam ao enterramento do furto.

 

- Neste caso, nada se deve também fazer à Mundica.

 

Paula, que temia o encontro com Mundica, porque tinha certeza da sua perseguição, ponderou com um suspiro:

 

- É certo que Mundica pernoitava na casa do comissário; que ambos dormiam no quarto em que estava o dinheiro; que à noite Mundica pediu ao comissário que lhe desse dinheiro para que ela se retirasse temporariamente do lugar; é certo também que o comissário mostrou-lhe o dinheiro que tinha em seu poder e que na mesma noite deu-se o roubo.

 

- É, pois, quase certo que não podia ser senão Mundica a autora do furto, porque ninguém senão ela podia saber onde estava o dinheiro.

 

- É pelo menos o que parece.

 

- Neste caso, o melhor é deixá-la ficar aí de molho, até que venham notícias de lá.

 

- Eu não faria assim; perdoe-me V. Sa., eu dava apenas exemplo. Em épocas de miséria tudo é possível e não se pode ser severo. Detinha-a por uma semana.

 

E consigo pensava Paula:

 

"É o tempo necessário para que Eulália siga até Baturité, e daí por diante não tenho nada mais a temer".

 

- É o que vou fazer - disse o subdelegado, e, apontando a Paula o caminho da casa: - queira esperar-me lá; tenho muito que fazer aqui.

 

"Bem, cheguei uma vez a tempo" - pensou Paula, que, distanciando-se do grupo, dirigiu o olhar para o lado que Eulália havia tomado.

 

Ela caminhava apressadamente e o vigário, como se fosse pela força de uma torrente, seguia a mesma direção. No seu olhar brilhante a paixão tocava rebate ao coração deveras amargurado, convidando a dessedentar-se nas carícias Eulália, a escrava submissa de outrora, não ousaria negar.

 

- Não é na casa do subdelegado que Vossa Mercê pousar?

 

- É - respondeu Paula contrariado.

 

- Então já estamos quase à porta; é ali. Paula teve um sobressalto semelhante ao de quem é de e acordado, e, para não ter de parar, observou:

 

- Devemos ir primeiro entregar a carta ao pároco; depois pensaremos na casa do subdelegado.

 

- Se Vossa Mercê quer ir à casa do vigário, temos de voltar; já lá ficou.

 

Vendo que para guardar conveniências era obrigado a parar, porque se continuasse a seguir Eulália todos o perceberiam, Paula resignou-se a voltar em procura do vigário, a quem principalmente vinha recomendado.

 

À porta, não podendo resistir ao desejo que tinha de falar à Eulália, de conciliar-se com ela, de pedir-lhe, enfim, a dedicação do passado, Paula perguntou ao pajem:

 

- Reparou naquelas mulheres que iam presas?

 

- Uma era a Mundica.

 

- A outra seguiu por ali; não deve ir longe; você acompanhe-a e venha dizer-me onde ela está pousada.

 

Durante a manhã inteira Eulália ocupara-se em procurar pela vila a família, e foi com este fim que se dirigiu à casa da autoridade, para onde a maioria da população era atraída pela notícia do crime descomunal da mulher de Virgulino.

 

Aí a esperavam, além de uma desilusão, os sofrimentos que lhe ocasionou a sua presença em tal lugar, e quando, por uma razão que não sabia explicar, viu-se livre da prisão, a infeliz caminhou a esmo, apressada como se ouvisse após si os passos da justiça.

 

Na caminhada que levava, embarafustou pela feira, sem reparar nos ditos e nos olhares que a sua beleza, embora machucada pelo tormento, provocava. nos circunstantes. Não reparou também em um homem que, sentado em uma das saídas da feira, com o queixo fincado nas palmas das mãos, amargurava-se em silêncio, como uma fermentação de plantas venenosas.

 

Depois de haver passado por ele, o homem levantou-se como alucinado, e puxou-a bruscamente por um dos braços:

 

- É a minha boa ama - exclamou ele. - Eu estava aqui parafusando como havia de convencer esta gente de que a minha ama era inocente.

 

- Estou felizmente livre, meu amigo - respondeu Eulália - e quero certificar-me de que não estão mais aqui minha tia e minhas irmãs. Quer você acompanhar-me?

 

- Até que Vossa Mercê possa sair da vila; para adiante não, porque tenho também família e devo cuidar dela.

 

- Volta então?

 

- Amanhã, uma vez que a minha ama já não corre perigo. Eulália, depois de repetir os sinais da sua família e de recomendar ao camarada a maneira pela qual havia de dirigir-se a ela, caso a encontrasse, separou-se do seu honrado companheiro.

 

- Assim tenho a certeza de que não fica um único canto da vila sem ser examinado, e se elas estiverem aqui eu as encontrarei por força.

 

A pesquisa recomeçou com todo o ardor da piedade fraternal de Eulália, mas em vão, porque já d. Ana e as sobrinhas haviam deixado a vila.

 

O tratamento que era dado aos retirantes aconselhou à prudente senhora não demorar-se ai. Ainda na véspera da chegada, um sério conflito se havia travado entre a comissão, os seus empregados e os famintos, que, açulados pela fome, arrombaram o armazém do governo e tentaram assassinar um dos comissários. A punição do delito foi tremenda severidade e de justiça. Não só os chefes do assalto foram presos e metidos no tronco, mas as próprias mulheres foram vergastadas em público. Para que o exagero da pena chegasse ao máximo, mandaram prender todos aqueles que eram acusados pelos empregados, de modo que muitas pessoas, que não haviam tomado parte no acontecimento, foram castigadas.

 

Além disso corria a fama de que a beleza das mulheres o aferidor das necessidades das famílias, e os empregados, provê-las, exigiam dos chefes que fossem as filhas, as esposas e as irmãs que as relatassem.

 

D. Ana julgou mais acertado vender os poucos objetos que lhe restavam e pôr-se de novo a caminho e sem demora. Não podia ser mais infeliz do que tinha sido, e além disso a estrada, muito mais habitada do que o interior do sertão, acenava-lhe como um abrigo em caso de penúria. Partiu, pois, demora em busca da esperança derradeira, que lhe ficara do passado de felicidade: encontrar-se com o velho Monte na capital da província.

 

Só à tardinha Eulália convenceu-se de que não podia descobrir a família em Quixadá, e, desanimada, fatigada, hesitou sobre a deliberação que devia tomar. Deveria seguir ou permanecer?

 

As hipóteses encontroavam-se no seu espírito, julgava impossível que d. Ana pudesse já haver passado pela vila, quando, além das meninas menores, tinha ainda a caçula para demorar-lhe a marcha. Por outro lado a estrada geral para a vila não dava ocasião a que os viajantes se desgarrassem, e portanto não era possível que d. Ana se houvesse desviado. Não podia ser também que estivesse ainda na vila, abrigada em qualquer casa, em que chamassem a comiseração para tamanha desgraça?

 

Esta hipótese, que era a menos justificável, mas que se fortalecia nos sentimentos generosos de Eulália, sobrepujou a todas, e a infeliz resolveu demorar-se na vila.

 

- Eu partirei amanhã, visto que a minha ama já não corre perigo - disse o camarada ao saber da resolução de Eulália.

 

Este aviso impunha à moça a obrigação de pagar na mesma ocasião os serviços do camarada, e Eulália, que estava na feira, onde viera encontrar-se com o seu companheiro, levou a mão à cintura.

 

- Ah! Ainda não fui buscar a carteira na mão do subdelegado. Espere-me um pouco, e, enquanto eu vou, arranje por aqui um lugar em que possamos pousar.

 

Quando Eulália se afastou, o pajem de Paula, que, ora a cavalo, ora de pé, a havia acompanhado sempre, aproximou-se do camarada e perguntou-lhe com a familiaridade própria dos sertanejos se aquela moça não era uma das que tinham sido presas.

 

Recebendo resposta afirmativa, o pajem, querendo informar-se do destino que Eulália ia tomar, entabulou uma rápida conversação com o camarada.

 

- Foi uma alhada de mil diabos, hein? Quase que a pobrezinha vai parar no tronco.

 

- Mas Deus protege os seus, e, como ela é uma pérola, achou quem a defendesse.

 

- É verdade; por fortuna, o homem a quem eu venho acompanhando sabia do negócio da Mundica, e pôde deslindá-lo.

 

- Aquela é que é uma peste! Passa fora, demônio! Aquela Mundica é mulher para dizer que Deus não é Deus.

 

- Má casta de gente. Eu não sei como a sua ama tem coragem de ficar aqui morando, quando a Mundica também fica. Mais dia menos dia, arma outra estralada...

 

- Agora ela já está conhecida, a peste da odienta, e além disso a ama só se demora aqui uns dias, para ver se encontra a família.

 

- Mas neste tempo mesmo...

 

- Quando a ama voltar, eu ainda hei de ver se lhe dou um jeito. Ela foi à casa do subdelegado, e não tarda aí. Ainda veremos se ela fica.

 

- Pois fale com ela, homem, diga-lhe que é bom ter cautela, e que é melhor fazer mais umas léguas, e ir descansar em Baturité.

 

- Havemos de ver isto - respondeu amavelmente o camarada, e perguntou ao pajem: - você que é mais sabido por aqui, não me dirá onde a gente poderá pousar aí por uns dois ou três dias? Está tudo isto tão mudado com a seca, que é custoso arranjar-se até quem dê uma sede de água.

 

- Pagando, acha-se sempre, vamos perguntar em qualquer venda.

 

Caminharam alguns passos e perguntaram em uma pequena vendola; mas, desde que o camarada informou que Eulália vinha só, negaram recebê-la. A mesma recusa foi feita em diversas casas, até que afinal o pajem ponderou:

 

- Homem, o melhor é não procurar muito; por aí há casas de algumas pessoas que não são muito lá para que se diga, mas que sempre servem para dormir. Vamos bater em uma delas?

 

- É o único recurso.

 

- Dentro em pouco estava arranjada a pousada para Eulália, e o pajem se despedia do camarada.

 

- Vou para a casa do subdelegado; lá no povoado, na casa do vigário, ficamos amigos, está dito?

 

- Dito! - respondeu o camarada apertando-lhe a mão.

 

Eulália, que não se demorou na casa da autoridade, encontrou-se ainda com o pajem a pequena distância da feira, e, admirada pelo cumprimento profundamente respeitoso que este lhe dirigiu, perguntou ao camarada quem era aquele homem.

 

- Um conhecido lá do povoado, e como sabe que eu estou ao serviço de Vossa Mercê, saudou-a.

 

Depois de haver exposto a dificuldade que tivera em arranjar pousada, o camarada disse constrangido a Eulália a casa em que ela devia pernoitar.

 

- Não faz mal - ponderou Eulália resignadarnente -, em qualquer lugar se dorme.

 

Encaminharam-se para a casa, que ficava perto da feira.

 

Eulália entrou com a repugnância da honestidade naquela morada do vício. Duas mulheres mal trajadas, de modos bruscos, filhos de uma afetação canalha, vieram recebê-la à porta, e cumprimentá-la por entre baforadas dos cachimbos que tinham entre dentes.

 

- É como se a casa fosse sua, moça - disse uma delas; - moramos aqui nós duas: a Candinha e eu, que sou a Nenê; veja os cômodos, para dizer onde se há de armar a rede.

 

Eulália, agradecendo o oferecimento, entrou na saia, que tinha por única mobília uma rede encardida, duas peles de cabrito, duas almofadas em que havia rendas já principiadas e uma meia dúzia de tamboretes. Um quadro, representando a crucificação de Cristo, com um grande aparato de centuriões de lança ao ombro em atitudes teatralmente ameaçadoras, decorava a sala.

 

- Eu fico aqui mesmo, não precisam ter maior incômodo - disse Eulália.

 

- Oh! Gente! - exclamou a Candinha. - Pois há de ficar na sala ?! Vote que até parece...

 

E riu desenvoltamente cuspindo por entre os dentes, com um chilrado canalha.

 

- Olhe que de noite, quando estivesse à fresca, podia alguém espiar - acrescentou ela - e você talvez não gostasse.

 

- Não, dona - ponderou Nenê, que, notando a confusão de Eulália, lançou um olhar repreensivo a Candinha; - não se avexe com a gente, temos quartos lá dentro onde pode ficar a seu gosto. Venha ver.

 

Eulália, que mal podia levantar os olhos, tão corrida estava, obedeceu e seguiu as duas moças, que a levaram para um quarto espaçoso, nos fundos da casa.

 

- Agrada-se deste?!

 

- Serve, sim, senhora; é só por um ou dois dias; qualquer lugarzinho chega.

 

- E como é só para dormir...

 

- Sim, senhora, é só para dormir.

 

- Pois então, é tomar conta a gosto.

 

- Está numa casa de moças solteiras - disse Candinha -, mas está tão guardada como na sua própria casa.

 

- Pode dormir descansada; trouxesse ouro em pó, não lhe havia faltar uma pitada.

 

- Na nossa casa há pouco, mas o que há para duas chega para três.

 

- Já jantou?

 

Eulália, que estremecera a princípio amedrontada pelos modos das duas mulheres, cobrou mais coragem e acolheu, com a sua boa vontade para com todos, os protestos e os oferecimentos que lhe eram feitos.

 

- Não quer mandar entrar o homem? Ele que se abolete por aí em qualquer canto, isto de homens dormem bem até sobre um espeto.

 

Chamaram pelo camarada, que entrou, e repetiram-lhe o oferecimento que haviam feito a Eulália.

 

- Minha ama sabe que eu devo seguir viagem amanhã, e, portanto, é só dar as suas ordens.

 

- Falaremos mais tarde - disse Eulália.

 

As duas mulheres saíram para arranjar o jantar para Eulália e o camarada, que ficaram sós.

 

- Para mim - disse o camarada - fica mais cômodo dormir aí em qualquer puxada. Posso levantar-me com a madrugada para seguir viagem, mas se minha ama quiser posso ficar aqui.

 

Eulália não respondeu.

 

- Tem algum receio? - acrescentou o camarada. - Desconfia que essas mulheres possam fazer-lhe alguma coisa?

 

- Não, parecem boa gente.

 

- Quase sempre são umas infelizes, e aquele rapaz, que foi quem me trouxe aqui, não me deu má nota a respeito delas.

 

- Eu verei se preciso ou não de si.

 

As mulheres trouxeram o jantar sem demora, e, pedindo desculpas, convidaram Eulália a servir-se dele.

 

- É de muito longe? - perguntou Nenê a Eulália.

 

- De umas 20 ou 30 léguas.

 

- Credo! E fez todo este viajão com essas cores? Nem parece retirante.

 

- E as senhoras são daqui mesmo?

 

- Somos: perdemos desde muito crianças nosso pai e nossa mãe; ficamos em companhia de uma madrinha, que morreu quando eu estava com 17 e Candinha com 13 anos. Por isso é que nos vê aqui sozinhas.

 

- E não têm parentes?

 

- Temos sim, porém eles nos deixaram por nossa conta.

 

Eulália, olhando para o camarada, que estava de pé a contemplá-la, disse para testemunhar-lhe a confiança que depositava nas mulheres.

 

- Quando acabar de jantar pode ir cuidar da sua vida.

 

Reatada a conversação, Nenê e Candinha desfiaram com a ingenuidade sertaneja todas as circunstâncias da posição que tinham. Acharam-se completamente sós no mundo, eram moças e diziam que eram bonitas. Houve quem se oferecesse para ajudá-las e aceitaram. Depois estas pessoas faltaram com as suas palavras e a necessidade veio bater-lhes à porta, porque as rendas e os labirintos, que faziam ainda hoje, não davam nem para pagar metade do que elas comiam num mês.

 

- Cada um tem a sua sorte - murmurou Nenê -, nós seguimos a nossa.

 

A sinceridade com que foi feita a narração comoveu profundamente a mísera Eulália, que antevia o seu destino nas palavras da moça.

 

Automaticamente apertava de encontro à cintura a carteira que lhe fora dada pelo bandido, como se temesse que a fatalidade viesse misteriosamente esvaziá-la e obrigá-la a cair no mesmo momento na degradação que ela piedosamente lastimava.

 

- Vai para o Ceará, não é verdade? - perguntou Candinha com respeitoso comedimento, nascido dos modos de Eulália.

 

Recebendo resposta afirmativa, perguntou com interesse:

 

- E tem lá parentes?

 

- Não, tenho amigos.

 

As duas moças olharam-se tristemente, e como percebessem que Eulália notara o mútuo olhar, acrescentaram para disfarçar:

 

- Então não há de passar pelo que temos passado aqui.

 

"São umas pobres de Deus", pensou Eulália, e, quando se despediu do camarada, agradeceu-lhe não só os serviços que dele havia recebido na viagem como o que lhe acabava de prestar.

 

À noite, a simpatia que de pronto nasceu no coração de Eulália pelas desgraçadas aumentou. Haviam-na deixado só, a pretexto de a deixarem descansar, e, dentro em pouco, soando na sala uma voz de homem, Eulália ouviu que Nenê recomendava-lhe que abaixasse a voz.

 

Durante a noite a casa inteira silenciou como se não fosse habitada. É que uma extraordinária reserva havia imposto temporariamente moderação à libertinagem. Todavia o vício não levantou daí a sua tenda, e se Eulália houvesse ousado o limiar do quarto, teria visto entrar cautelosamente na sala um homem que, sendo desconhecido para as duas moças, era não obstante recebido por elas.

 

Este desconhecido sentou-se na rede encardida, que era um dos ornamentos da sala, e Candinha sentou-se junto dele, com um requinte irrisório de acanhamento.

 

Envoltos na claridade crepuscular que espargia na sala vela de carnaúba colocada sobre um dos bancos em um cantos do recinto, os dois guardaram por algum tempo

 

Nenê foi em bicos de pés espreitar o corredor e, de volta, fez um sinal a Candinha, que abriu os lábios num sorriso acariciador para o desconhecido.

 

- Moram sós? - perguntou ele, tomando nas suas as mãos de Candinha.

 

- Sozinhas, com a graça de Deus - respondeu Candinha.

 

- Não temos a quem dar contas.

 

- É muito bom viver só.

 

O silêncio tomou de novo lugar entre o desconhecido e a moça, que, embaraçada e começando a entediar-se com a frieza do hóspede, levantou-se e foi ter com a irmã, que estava de costas para a sala, debruçada na janela.

 

- Veja se o desemburra: é um matuto muito peco - disse Candinha. - Está ali calado como uma pedra.

 

- Pois fale-lhe você, tente saber quem ele é, anime-o.

 

Candinha pós em prática a lição que recebera, mas apenas conseguiu saber que o desconhecido era de B. V., que se dirigia ao Ceará, e que só se demoraria mais um dia na paróquia. Não pôde dirigir a conversação ao ponto que visava.

 

Percebia-se claramente no olhar e no semblante do desconhecido que a sua visita à casa das duas moças não passava de um meio para chegar a um fim, que entretanto ele temia desvendar.

 

- Sabem que eu não sou aqui da vila, não é verdade? Pois bem, eu não sei se acertei, ou se me enganei vindo a esta casa à procura de uma pessoa que se hospedou aqui.

 

As duas irmãs olharam-se despeitadas, e Nenê, com um gesto amuado, respondeu:

 

- Veio certo, mas a pessoa não é o que o senhor pensa. A afirmação de Nenê fez com que o desconhecido resfolegasse à larga e o semblante se lhe desanuviasse. Perdendo o ar reservado que tinha guardado desde que chegara, passou o braço pela cinta de Candinha, que foi suavemente constrangida a sentar-se sobre os joelhos dele, e acenou para Nenê.

 

- Vamos ficar muito bons amigos; falando é que os homens se entendem.

 

- Está tão caído agora - murmurou Candinha -, não parece o mesmo bitu.

 

- Em primeiro lugar, aqui têm vosmecês isto - disse o desconhecido, apresentando duas notas do tesouro às moças; - falemos agora no nosso negócio.

 

Embora estivesse falando em voz muito baixa, abaixou ainda mais a voz, e acrescentou:

 

- Esta rapariga que aí está dentro é minha conhecida velha...

 

- Não temos nada feito - murmurou Nenê. - Pode guardar o seu dinheiro, se entende que nos compra com ele. A moça que se hospedou aqui não tem nada com a nossa vida.

 

- Eu bem o sei. Vi-a pequena, cresceu nos meus braços. Hoje é infeliz, e eu, que sou amigo da família dela, que posso ler no seu coração, devo prestar-lhe o auxilio que estiver nas minhas mãos.

 

- Espere quando ela sair amanhã; nós não podemos consentir que ninguém vá ter consigo.

 

- Há outro meio, uma vez que já se conhecem - ponderou Candinha -, nada mais simples: se ela ainda estiver acordada, pode-se pedir-lhe que venha até cá.

 

O alvitre de Nenê foi rejeitado pelo desconhecido mesmo antes de ter sido de todo formulado, e Nenê acrescentou:

 

- Se o senhor é conhecido dela, por que não quer que ela venha aqui? Pode guardar o seu dinheiro; somos pobres, mas não precisamos dele por semelhante preço.

 

A altiva recusa de Nenê, que foi secundada pela irmã, chegou até ao arremesso do dinheiro; mas, longe de irritar como que lisonjeou o desconhecido.

 

- Eulália há de agradecer-lhes muito esta nobre ação -murmurou ele; - eu hei de referir-lhe tudo. Não tenham medo de deixar-me chegar até junto dela; não lhe desejo mal.

 

- Não o podemos saber - murmurou Nenê -, não o conhecemos de todo.

 

- Eu sou o vigário da freguesia em que Eulália nasceu, um seu amigo, um velho amigo de seu pai.

 

As duas mulheres, interditas pela revelação, não sabiam o que decidir. A profissão do desconhecido era a maior garantia que lhes podia ser dada do caráter, das intenções e da natureza da missão que ele queria desempenhar junto de Eulália.

 

Para assegurar a boa predisposição em que as via, Paula chamou a atenção das duas perdidas para a sua barba curta, e fê-las reparar no alto da sua cabeça, em que o disco da coroa não havia desaparecido de todo.

 

Uma única dúvida foi sugerida por Nenê, que buscava descarregar inteiramente a sua consciência - o motivo da fuga de Eulália, o qual foi explicado facilmente por uma fraqueza com um rapaz, que havia fugido depois de a ter seduzido.

 

- Não notam - acentuou ele -, que, em tamanha penúria da província, quando as estradas se alastram de cadáveres de pessoas que morrem à fome, quando nas próprias vilas e cidades a alimentação escasseia, Eulália pôde atravessar incólume tão difíceis caminhos, tão ingratas paragens?

 

O argumento produziu o efeito esperado pelo espírito fino

 

do vigário, que mal podia conter o coração, que pulsava com a violência da saudade e do desejo de reconciliação com a sua vitima. Não obstante, uma vaga hesitação, uns visos de temor transpareciam no ar das duas moças, que o encaravam com a agudeza da dúvida.

 

- O meu encontro com Eulália - continuou Paula – é um descanso grande para si. Notícias falsas fazem-na crer que a miséria bateu também às portas de sua família e que, deixando a paróquia, erra por essas estradas mendigando como retirante. Quero dissipar-lhe este pesar, livrá-la do remorso que lhe causa a idéia de que ao seu erro prende-se tão desastrada conseqüência. Negar-me-ão ainda o aproximar-me de Eulália?

 

As duas moças não responderam mais. A nobreza dos intentos que Paula se atribuía desarmou-lhes a resistência, e Nenê pediu apenas licença para ir ver se Eulália ainda estava acordada.

 

- Não lhe declare o meu nome - pediu Paula com empenho; - a vergonha de encarar comigo talvez me proibisse de prestar-lhe um grande serviço.

 

Nenê, que se afastara e voltara em bicos de pés, conduziu Paula até o corredor que ia terminar justamente na porta do quarto de Eulália, que, deitada na rede, olhava fixamente para o teto, absorta em seguir, talvez, uma esperança risonha.

 

- Ela está ali - murmurou; - pode entrar.

 

Paula caminhou cautelosamente, contendo até a própria respiração. Sua alma, repassada pelo ante-sabor da alegria com que contava, fazia-o preparar cuidadosamente a encenação teatral da sua aparição, para que não falhasse o efeito.

 

Nenê e Candinha, de pé no corredor, acompanhavam-no com os olhos, e a primeira resmungou

 

- Eu não tenho muita fé neste homem; se ele quiser violentar a moça, não sai daqui senão para a cadeia.

 

Caminhou direito à porta da rua, trancou-a e, guardando a chave, veio deitar-se na rede da sala, ao passo que a irmã recolhia-se ao quarto.

 

Paula começava a empurrar brandamente a porta do aposento de Eulália, e logo, entrando sem ruído, cruzados os braços sobre o peito, os olhos descaídos num desmaio piedoso, os lábios trêmulos, a fisionomia velada por uma tristeza sincera, foi parar junto à rede em que Eulália repousava.

 

A pobreza do aposento revestia o quadro de uma solenidade tristíssima. O chão do quarto, ondulando com as depressões das pisadas, estava levemente escavado em um dos contos, e fazia vir à imaginação a lembrança de uma nesga de cemitério em que houvesse uma cova recentemente fechada. Também a imobilidade de Paula, diante da quietude de Eulália, lembrava um coveiro que, apaixonado por um cadáver e horrorizando-se com a idéia de entregá-lo aos vermes, o contemplasse, como se quisesse enterrá-lo na irradiação do olhar.

 

O vigário parecia de todo absorto da sua contemplação; do semblante de Eulália como que partia uma corrente imânica a atraí-lo. De feito, os sofrimentos que a haviam emagrecido e descorado filtravam-lhe no semblante um quê indefinido de santidade; o próprio desleixo do vestuário, deixando-lhe transparecer as formas ainda belas, dava-lhe um recato e a respiração cadenciadamente exalada, com as longas pausas dos sonos sem remorsos, dizia que, apesar de todas amarguras, aquele espírito respirava uma tranqüila honestidade.

 

O encantamento de Paula, embora profundo, só durou alguns minutos: Eulália, que apenas madornava, descerrou as pálpebras morosamente, e encarou-o com um olhar que era um misto de sobressalto e dúvida.

 

Mas, já acostumada a conviver com esse olhar e atitude, que eram a atalaia dos seus delírios, que reproduziam a imagem de Paula nos primeiros tempos dos seus amores, a vítima não proferiu uma única palavra. Julgando ter diante de si a visão permanente dos seus sonhos, limitou-se a esconder os olhos na mão espalmada e a fronte nos punhos da rede. A mão correu dos olhos até os cabelos, com um movimento pesado, como se Eulália quisesse apagar da cabeça as pegadas de um horrendo pesadelo. O esforço foi, porém, baldado; desta vez não se tratava de uma larva da imaginação, mas da realidade.

 

O enleio da vítima encorajou propiciamente o vigário, que foi cair de joelhos diante dela.

 

- O que me quer mais o senhor? - tartamudeou ela.

 

- Por que vem perseguir-me até na miséria?

 

- Quero que o seu amor por mim, Eulália, não seja mais um tormento; que se regozije com a certeza de que é ardentemente correspondido.

 

Eulália percorreu com uma vista de olhos suspeitosa todo o aposento. Á dúvida a esmagava, porque não podia crer que tivesse junto a si o seu algoz. Mas de pronto acudiu-lhe à memória a conversa que ouvira na igreja do último pouso, o que lhe deu a certeza de que já não dormia. Uma reminiscência da fascinação de outrora assomou-lhe no espírito através das mágoas pungentíssimas, e um esquecimento momentâneo de todo o passado amolentou-a inspirando-lhe desejos de condescender.

 

- Deixe-me em paz - soluçou ela; - é tarde agora: eu já não o amo.

 

- Não creio - murmurou Paula tomando-lhe as mãos nas suas; - diga antes que já não devia amar-me. Teria razão, Eulália; pareci esquecê-la, ser indiferente às dores que a acabrunhavam, mas, sabe-o Deus, compartia longe de si o quinhão de angústia que me tocava na sua má sorte. Dia por dia, hora por hora, passei eu isolado a agravar com o pensamento o horror do nosso fadário, e, sem esperança de encontrá-la, rasgava pelo remorso a ferida que a saudade abrira dentro em mim. Perdoe-me, Eulália, o meu arrependimento é sincero; gerou-o no silêncio e no desespero a dor de consciência de haver condenado à morte o meu próprio filho. Peço-lhe por ele: para uma mãe não há crime que não possa ser resgatado pela invocação do filho. Perdoe-me por ele, Eulália.

 

À medida que estas palavras, bulhando e encontroando-se, nos lábios de Paula, eram ouvidas por Eulália, uma reação indomável se operava no ânimo da moça. Quando o vigário calou-se, ela já não respirava: a indignação a sufocava e entontecia. As lágrimas que lhe haviam brotado com as primeiras palavras, extinguiram-se, e os olhos adquiriram um brilho tigrino.

 

Como fera enfurecida, ao ver o filho pequeno preso em uma gaiola de domador raiva em silêncio a sua cólera que nada pede apaziguar, assim Eulália, recalcando no íntimo a ira que lhe causara a súplica, ficou a encarar com o vigário. Depois tirando-se com um movimento brusco de entre as mãos do amante, murmurou com uma acentuação cruciante:

 

- Deixe-me em paz: eu tenho vivido bem na miséria, não me queira perverter de novo. As minhas afeições são outras.

 

- Não se procure iludir, nem iludir-me - suspirou Paula; o coração desmente-lhe as palavras.

 

- Não - respondeu com firmeza; - eu já não o amo, não quero amar; as minhas afeições são outras.

 

- Veja bem o que diz, Eulália; eu vim com o coração transbordando de esperanças pedir ao amor a minha redenção. Vim para lavar do meu passado a mancha ignominiosa que o denegriu; queria reconciliar-me com o bem e divorciar-me para sempre dos meus erros de outrora. A sua recusa, porém, fecha-me a porta a esta esperança, abre-me de novo o caminho para a indiferença e o mal. Qual será a sorte do nosso filho, Eulália, se você afasta-me de si?

 

- A sua sorte já não me incomoda mais - soluçou Eulália.

 

Paula, que não tinha desviado os olhos do rosto de Eulália, fitou-a sobressaltado, e, levantando-se de um salto, travou violentamente dos punhos da sua vítima.

 

- Diga-me o que é feito dele - exclamou com uma entoação desesperada; - a vingança aconselhou-a a matá-lo?

 

- É exato - respondeu afetando calma e perversidade; - fiz o que o senhor aconselhou-me que fizesse. Não disse que eu ainda o amava? Pois bem, obedeci-o.

 

- Miserável! A desgraça fê-la vil como as outras.

 

Um arremessão brutal, dado pelos pulsos vigorosos de Paula, impeliu Eulália, que cambaleou até que se pôde apoiar na parede. Mas a coragem com que resolvera arrostar as explosões do gênio irascível do seu ex-senhor não sofreu o menor abalo.

 

- Continue a sua obra e complete-a. O seu amor teve por começo um crime, cevou-se de crime e deve acabar por um crime. Eu estou na casa de umas mulheres perdidas, compradas talvez pelo seu dinheiro; não tenho defesa, nem a quero; não pode haver melhor lugar para que o senhor se veja livre para sempre de mim.

 

- Pode insultar à vontade. A sociedade em que ultimamente tem vivido dá-lhe direito a que assim proceda. Quantas vezes já tem entrado na prisão?

 

O insulto fez com que Eulália ficasse por largo tempo silenciosa, arquejando de cólera e de vergonha, mas afinal tornou ela energicamente:

 

- Nenhuma. Hoje, porém, uma mulher que o senhor conhece queria acabar a obra pelo senhor começada. Nenhuma, porém, nunca fiz por isso. Há assassinos que andam sãos e salvos, sem que ninguém sequer suspeite de que, sob a requintada hipocrisia dos modos delicados, esconde-se um miserável que faz emboscadas a pessoas desarmadas. Não é muito que eu ainda não tenha entrado na prisão pelo crime de ser infeliz.

 

A repulsa calma e enérgica, vibrada com a superioridade de quem está convencida da justiça da sua indignação, caiu como uma chuva de metal incandescido sobre o coração de Paula, que doía ao mesmo tempo de humilhação e de ira.

 

Por duas ou três vezes resfolegou extensamente e ensaiou passos para precipitar-se sobre a vítima, e, não obstante a alucinação que o desvairava, conteve-se.

 

Um fenômeno principalmente o surpreendia. Eulália aparecia sempre nas suas cismas como a fascinada amante de outrora, a qual, ainda mesmo ameaçada de perder o filho, defendia-se com rogativas e lágrimas. A imaginação, desdobrando-se sobre tais recordações, dava uma encenação sedutora ao seu encontro com Eulália. Algumas lágrimas - e eram sinceras - bastariam para lavar todas as ingratidões e delir todos tormentos. A eloqüência de suas palavras, acreditava ele, a própria confiança de Eulália, a sua ingênua sinceridade. Mas de repente o castelo dourado se esboroa, em vez da amante apaixonada de outrora encontra com a mulher ultrajada, com a mãe ameaçada, que resoluta e calma não recua diante da sua cólera explosiva e nem ao menos hesita em provocá-la.

 

- Quem tem razão é a senhora - bradou Paula; - eu sou é o culpado. Adeus!

 

Eulália não respondeu, mas não deu nenhum sinal de alegria pela despedida de Paula: conservou-se como estava, fria e altiva.

 

O vigário caminhou até a porta, e, antes de transpô-la, relanceou um olhar a Eulália, que nem o percebeu. Impelido pelo despeito, atravessou rapidamente o corredor e a sala, diante de cuja porta esbarrou, que tinha sido trancada, e chave Nenê guardara para que, no caso de urgência pudesse prestar auxílio a Eulália.

 

Paula, sofrendo mais esta contrariedade, tentou obrigar a porta ceder, mas não levou a cabo o propósito, visto que Nenê que dormia numa rede a alguns passos apenas, acordada pelo barulho, veio ao seu encontro.

 

- Com os diabos ! - disse Paula. - Estão ambas a dormir, e quase me obrigam a passar mal a noite.

 

- Era só chamar, sem fazer cerimônia. Já se vai?

 

- Não queria, mas se continuam a dormir...

 

- Não se tinha o que fazer.

 

- Pois eu fico por aqui esta noite; lá agora não saio senão com a madrugada.

 

- E então? - perguntou Nenê admirada. - O que arranjou lá por dentro: conseguiu o que queria?

 

- Mudemos de assunto; tratemos de outras coisas mais divertidas. Candinha! - chamou Paula em voz bem distinta.

 

- Ó Candinha!

 

- Pode chamar à vontade; não dá uma nota; aquilo quando ferra, não se acorda assim, é preciso certo jeito.

 

- Pois eu vou chamá-la.

 

Nenê alumiou, mostrando o quarto, e Paula, que não passara o limiar, saiu logo que Nenê se retirou, e caminhou para o quarto de Eulália, que se trancara por dentro, desde que se viu livre da importuna solicitação e das injúrias cruéis.

 

A vela continuava acesa, e Paula, espreitando pela fechadura, pôde ver o que se passava lá dentro. Eulália, que não podia deixar de ter-lhe ouvido a voz, estava sentada na rede e, com os olhos alevantados para o teto, soluçava compungentemente.

 

- Abra por um instante - suplicou ele. - Abra.

 

Eulália voltou-se para a porta, mas, em vez de atender ao pedido, soprou a vela.

 

- Vingativa - murmurou Paula. - Mas eu hei de vencê-la, seja como for. O ciúme talvez ma entregue hoje mesmo. Vejamos.

 

Voltou à porta do quarto de Candinha, e, entrando por ele a tatear a escuridão, foi afinal esbarrar com a rede em que dormia a perdida.

 

- Afinal acertei - acentuou ele de modo a poder ser distintamente ouvido. - Acorde, senhora preguiçosa. Então pensava que eu havia de dormir ao tempo? Oh! Nenê, diga-me cá: não tem em casa nada que se possa beber?

 

Nenê, acudindo ao chamado, respondeu que não, mas que se podia obter, se ele quisesse.

 

- Pois arranje lá isto; quero uma noite de pândega. Vou pagar-lhes o enjôo de ainda agora.

 

- Ele ainda me amará? - perguntava-se Eulália, soluçando. - Ou será mais uma infâmia que planeja?

 

A noite escoou-se aturdida pelas estroinices de Paula, que ao romper do dia retirou-se pensando consigo:

 

- Se eu insistir, ela não me resistirá.

 

Mas enganou-se ainda uma vez.

 

O meio de que lançou mão para reduzir Eulália a ceder a sua nova sedução, só produziu efeito momentâneo; a reflexão impediu que a vítima se continuasse a imolar à sua paixão carnal.

 

Às primeiras palavras trocadas entre o vigário e Nenê, o natural orgulho da beleza sublevou-se, e, num assomo de indignação, Eulália, saltando da rede com uma elasticidade felina, veio até a porta, disposta a exigir de Paula o mesmo respeito que ela tributava ao mútuo passado. O egoísmo do amor ferido impelia-a a este passo, mas a altivez da honestidade deteve-a, e a infeliz limitou-se a defender-se do contato do seu repulsivo ex-amante.

 

Em vão, num exagero orgíaco, Paula atropelou o silêncio a noite; em vão soaram as gargalhadas báquicas das duas irmãs meio ébrias e a voz do vigário ecoou dizendo licenciosidades de sátiro. Eulália limitou-se a chorar, e a maldizer-se, agitada pela dúvida tremenda:

 

- Ele ainda me amará?

 

Cada palavra de Paula trazia-lhe à memória uma cena do passado, dissolvida em carícias e dedicações, esbatendo-se em um colorido vivaz sobre sonhos de uma felicidade inextinguível. Então as brutalidades, as crueldades de Paula apareciam aos olhos de Eulália como conseqüências perdoáveis da paixão, que ela avaliava pela sua, que tinha passado os limites excesso para acampar de todo na alucinação.

 

Arrastada por essas recordações, quase que se resignava dar ganho de causa ao vigário. O coração pedia-lhe o esquecimento de todas as mágoas e aconselhava-a a que fosse arrancar dos braços das duas perdidas o algoz da sua mocidade.

 

Pela madrugada, Eulália, extenuada pela luta, sentia-se aniquilar pela idéia da submissão, mas providencialmente o vigário começou a despedir-se.

 

- Se ele vier ter comigo - pensou Eulália -, eu o perdoarei.

 

Mas Paula, que não mediu perfeitamente a extensão que devia ter o recurso brutal de que lançara mão, não se lembrou de ir novamente ao quarto de Eulália. A vergonha do ato que acabava de praticar desviou-o dali, e, longe de ter uma frase carinhosa, proferiu uma indignidade ao retirar-se.

 

- Basta de fingimento! - exclamou ele afastando Candinha de si. - Vocês todas são as mesmas. Muita festa, muita promessa, mas a verdade é que só amam o dinheiro.

 

- Volte que verá claramente que não tem razão.

 

- Eu as conheço, mesmo as que não vivem como vocês. Tenho exemplo; quando encontram alguém que faça as despesas, esquecem os amores puros do passado.

 

- Que infâmia - soluçou Eulália, percebendo que o vigário se referia à carteira que servira de acusação contra si; - julga-me já perdida.

 

- Mas nem todas lêem pela mesma cartilha...

 

- Veremos; como é só de passagem, vá lá; até logo.

 

Retirou-se plenamente satisfeito consigo mesmo. Tinha infligido a Eulália um castigo tão cruel como a sua repulsa, e, ao passo que à infeliz restava apenas a incerteza, Paula voltava com a certeza de que no seu primeiro encontro com Eulália seria vencedor.

 

Não me resistirá; há afrontas que são testemunhos de amor. Não me resistirá.

 

Dentro em si, Eulália, lembrando-se do pensamento cobarde que tivera na hora da despedida de Paula, tremeu pela própria dignidade. À noite ele voltaria e de certo repetiria as mesmas cenas. O que faria ela? Ceder? Era desarmar-se inteiramente diante dele, e por sua vez tornar-se indigna diante da própria consciência.

 

- É preciso que eu saia, que eu fuja daqui.

 

A resolução, porém, teve de estender-se a todo o povoado. Não conseguiria hospedar-se em uma casa honesta; não era casada. Não podia também hospedar-se no abarracamento de retirantes, porque o existente era composto de pequenas casas e estas fechavam as portas a todos os estranhos.

 

Logo pela manhã, pois, saiu afetando a maior cordialidade para com as suas hospedeiras; foi até a feira para ver se descobria noticias da sua família, e, desenganando-se de poder consegui-las, decidiu recomeçar imediatamente a marcha para a capital.

 

"Como é grande o ladrão Virgulino comparado com um ministro de Deus", pensou Eulália, abrindo a carteira, não só para deixar na casa em que dormira a quantia com que devia pagar a hospedagem, mas também para munir-se de provisões.

 

Todavia, no seu espírito pairava triunfantemente a imagem do segundo, a ponto de ser-lhe impossível resistir a informar-se dele.

 

Na feira, ao ver o pajem, dirigiu-lhe a palavra, a pretexto de saber notícias do camarada que a acompanhara.

 

- Já viu hoje o seu amigo? - perguntou ela. - Seguiu sempre para o pouso?

 

- Não o vi, e é sinal de que já bateu as alpargatas.

 

- O senhor e o seu amo é que não vão tão cedo, não é verdade?

 

- Eu devo voltar amanhã; o homem a quem me viu acompanhar é que não sei quando seguirá. Veio recomendado ao subdelegado, que é quem o está hospedando, e quem, com o vigário, há de arranjar-lhe condução para seguir viagem.

 

Eulália desejava saber dos pormenores da viagem de Paula, mas notando que por sua vez o pajem tentava obter dela o destino que ia tomar, apressou-se em retirar-se, tomando como causa a obrigação em que estava de visitar a mulher que assassinara o próprio filho.

 

Consolada com a certeza de que teria ocasião de ver antes de partir aquele mesmo que era a causa de seus medonhos sofrimentos, tomou a rua que marginava a prisão e em que residia também o subdelegado, e, como visse que o pajem a seguia de longe, alegrou-se ainda mais, porque Paula seria avisado da sua passagem e assim ela realizaria o seu intento - poder vê-lo.

 

De feito, da porta da prisão distinguiu o vulto de Paula, que veio colocar-se à janela para que a visse na volta, e Eulália apressou-se em fazer-lhe a vontade.

 

"Agora posso partir - pensou ela -, não me perseguirá e nem eu deixarei de levar viva dentro de mim a sua imagem, que é o meu castigo e a minha ventura."

 

À noite Eulália estava muito distante da vila e abrigava-se numa casa abandonada, lastimando e aplaudindo ao mesmo tempo a coragem com que fugira de Paula, que, iludido pelo bondoso olhar que a moça lhe deitara ao passar, contava com a vitória. À mesma hora em que Eulália pensava nele, Paula entrava alegre pela casa das duas perdidas.

 

- Boa noite! - exclamou ele. - Como vai o pássaro? Ainda muito espantado?

 

- Saiu desde manhã e ainda não voltou à gaiola. Creio que fugiu - respondeu Nenê - mas não se perde nada.

 

- Doida - resmungou Paula, levando a mão aos cabelos. - Para vingar-se, condena-se ao martírio.

 

Em vão Nenê e Candinha buscaram acordar no vigário a mesma febre da véspera; conservou-se por largo tempo sentado e silencioso, até que se retirou cabisbaixo e acabrunhado por uma pergunta que de continuo lhe dominava a reflexão.

 

- O que devo eu fazer para salvar Eulália?

 

Durante a noite não achou solução e, no dia seguinte, deixando a vila, ainda não atinara com a resposta.

 

 

 

XI

 

Poucos dias depois da retirada de Eulália e do vigário a vila alvorotou-se, como se dentro dela convulsasse uma revolução.

 

Feliz nos tempos normais da província, a pequena vila era agora uma das mais flageladas. A própria excelência do seu clima de outrora concorreu para agravar-lhe a situação, porque a convertia num hospital de moribundos.

 

A anasarca, que parecia ter assentado o seu quartel-general na cidade vizinha, emigrara dali para a vila, e batia a todas as portas com a fatalidade da morte. Acompanhavam-na as febres fulminantes e o grande cortejo de moléstias produzidas pela penúria em que viviam os retirantes.

 

Agora as condições tristíssimas agravaram-se, porque o novo presidente da província, indignado pelas delapidações escandalosas, resolvera suspender as remessas de gêneros para o interior e chamar para a capital e cidades mais próximas aqueles a quem a seca reduzira à miséria.

 

Tal ordem recebida na vila exacerbou os ânimos, e os adversários políticos e os interesses lesados, trabalhando na sombra, conseguiram dar começo a um movimento popular.

 

Os retirantes, em massa, acometeram o armazém em que se guardavam os socorros públicos, e à viva força dividiram os despojos do assalto, com os quais deviam prover-se durante a retirada para a capital.

 

Em vão as autoridades procuraram descobrir quem tinha sido o amotinador que havia conseguido emprocelar a onda estagnada dos famintos; vários nomes de influências políticas eram repetidos, mas a acusação contra eles não podia ser seriamente feita, visto que, era sabido, eles não se comunicavam diretamente com os retirantes.

 

Quem quer que era o motor do acontecimento inesperado, sabia esconder-se perfeitamente na treva.

 

Entretanto os cabeças do movimento andavam bem às claras pela vila. Eram dois indivíduos vestidos de couro, um de cerca de 30 anos, o outro ainda muito novo e que vestia luto. Os seus modos humildes e reservados não chamavam a atenção, mas quem cravasse perspicazmente o olhar nos seus semblantes reconheceria facilmente que os dois retirantes, muito novos na vila, em nada se pareciam com a massa geral.

 

As autoridades, porém, que durante o dia tinham-se exclusivamente ocupado em efetuar prisões daqueles que se mostravam mais exaltados, passaram descuidadamente por junto dos dois indivíduos, cuja extrema submissão captava simpatias longe de inspirar suspeitas.

 

- Se V. Sa. quiser - dirigiu-se um deles ao subdelegado -nós estamos prontos para qualquer serviço.

 

- Bem, fique com esses três homens guardando a cadeia. Revezando as sentinelas o trabalho não é grande.

 

Investido desta autoridade, o que se dirigira ao subdelegado aproximou-se do outro para comunicar-lhe o bom êxito da empresa.

 

- Vai tudo às mil maravilhas; dentro de poucas horas minha mulher estará salva.

 

- Se descobrem o que desejamos fazer? Não estamos de uma vez para sempre perdidos, Desempeno?

 

- Você está ficando medroso, Diabrete; tem calafrios por dá cá aquela palha. Vá embora se receia, eu cumpro com o meu dever.

 

- Você bem sabe que eu não temo, porém quando a gente está quase com o pescoço na corda do carrasco, é preciso muito cuidado. Se estivéssemos os dois lá dentro a tomar conta, não havia nada a temer, porém você só é difícil.

 

- Eu preciso mais de si lá fora, entre os retirantes, aconselhando-os que venham soltar os companheiros de barulho que foram presos; será nesta ocasião que eu tratarei de libertar a minha desventurada amiga. Conto consigo?

 

- Conte - exclamou o Diabrete, apertando estreitamente a mão de Virgulino. - Faça, porém, as coisas com jeito, porque eu tenho muito medo da justiça. Ainda não fiquei curado do último susto.

 

Virgulino, sorrindo desdenhosamente, murmurou:

 

- Criança.

 

- É verdade, e é bom de dizer quando se vê as coisas de longe.

 

As palavras do Diabrete referiam-se a sucessos que se haviam dado com a quadrilha dos Viriatos.

 

O ódio de Pedro passou da temeridade à loucura e dois grandes combates foram por ele planejados para aniquilar inteiramente os seus inimigos, que tinham conseguido o malogro do primeiro plano do roubo da venda e assassinato de Virgulino.

 

Emissários foram por ele mandados às autoridades para que se efetuasse a captura dos dois principais chefes conhecidos da quadrilha, e, como complemento desta medida, Pedro resolveu dar combate aos Viriatos no mesmo dia em que o sobressalto os pusesse em debandada.

 

O plano audacioso foi posto em prática e produziu em parte o resultado que inimigo irreconciliável tinha em vista.

 

A perícia do Onça, porém, evitou que a quadrilha fosse aprisionada, e, ainda que a liberdade dos seus companheiros lhe custasse a vida, o Onça a conseguiu. No campo do combate ficaram os cadáveres dos dois chefes Pedro e Onça, que, travados em um combate singular, disputaram palmo a palmo a fama dos seus dois criminosos grupos.

 

O resto da quadrilha dos Viriatos salvou-se ganhando as alturas dos Cariris, enquanto que o Diabrete, desligado dela pela morte do pai, veio juntar-se a Virgulino na vendola das vizinhanças de B. V., onde partiram em procura da família do segundo.

 

A rápida sucessão dos acontecimentos causou ao rapazola um temor inexplicável, porque sabia que para toda parte tinham sido expedidas precatórias a fim de que fossem capturados os bandidos da quadrilha. Era por isso que recomendava a Virgulino a maior discrição no plano, que haviam tramado para libertar a infanticida, que tanto horror causara à vila.

 

Tinha razão para assim insistir. Estava com Virgulino quando este soube da inqualificável desgraça que sobreviera à sua família, e tamanho foi o seu abalo que a pessoa que lhe comunicara o fato ponderou-lhe:

 

- Homem, o caso é de espantar e causar pena, mas para incomodar tanto é preciso que seja a uma pessoa da família.

 

- Nem a conhecemos - interveio prontamente o Diabrete.

 

- O sentimento do meu companheiro é nascido das muitas dores que a sorte o tem feito sofrer.

 

Quando a sós com o Diabrete, Virgulino tomara uma resolução tremenda. Entendeu que o crime de sua mulher devia ser logo punido e quis ir imediatamente à prisão para atravessá-la com a sua faca de bandido. Muito custou ao Diabrete conter-lhe este primeiro ímpeto, que não deu lugar a mais uma cena lastimosa porque o rapazola proferiu uma terrível ameaça.

 

- Mate-a, está no seu direito, mas saiba que irá substituí-la na prisão, e aos seus filhos não ficará na terra nem mais um protetor, e a miséria e a fome será o futuro de todos eles. Faça você como entender melhor.

 

Virgulino moderou-se e, fundindo em lágrimas parte da grande dor que o alucinava, ficou a pensar no destino que devia tomar e que devia dar à sua mulher.

 

- Se eu pudesse arranjar algum meio de a salvar... -pensava ele. - Se eu a pudesse furtar, se eu ao menos a pudesse envenenar...

 

Todas as idéias que lhe acudiam, breve se dissipavam, porque eram de todo inexeqüíveis. No entanto a mais ousada, a mais audaciosa, que lhe atravessou o espírito, foi a que dominou-o e por fim foi posta em prática.

 

O desgosto popular contra a ordem do presidente da província, mandando suspender os socorros públicos, cresceu com as horas que se escoavam. Todos murmuravam, censuravam, e. alguns já cheios de um entusiasmo que vinha mais da paixão partidária que do amor pelos seus semelhantes, propalavam calúnias contra as intenções presidenciais.

 

Havia um ponto em que todos os calmos, como os exaltados, concordavam: que era de todo impossível terminar bruscamente com os socorros, porque equivalia a condenar toda a população retirante à morte pela fome.

 

A comissão incumbida do serviço, porém, entendeu justamente o contrário do modo de entender geral.

 

O presidente não tem confiança na comissão, e a esta cumpre abandonar desde logo o cargo. Demais, o que ele quer é que os retirantes vão todos para a capital, para que o trabalho da distribuição de socorros seja feito sob os seus próprios olhos.

 

- Mas isto não quer dizer que, havendo no armazém do Estado gêneros, vocês não os queiram distribuir com os retirantes, que se querem pôr a caminho.

 

A comissão não atendeu, ferida nos seus brios, sabendo além disso que o novo presidente não fazia a respeito da generalidade dos comissários senão um justo juízo: que o patriotismo já tinha produzido demais e o móvel da persistência devia ser agora alguma coisa bem diversa ao amor à pátria.

 

O que pelo menos era verdadeiro e incontestável era que a mortalidade dos retirantes crescia na razão direta do dispêndio com os socorros, o que de alguma sorte justificava a fama de que as comissões eram os verdadeiros retirantes socorridos.

 

Virgulino e o Diabrete, recém-chegados no lugar, aturdidos em parte não só pela notícia da desgraça particular, como pela ameaça tremenda que era feita à massa dos necessitados pelos comissários, puseram-se a observar miudamente, com o olhar e critério dos bandidos.

 

- Isto era um momento, se nós tivéssemos quem nos seguisse. Que bela presa, Diabrete!

 

- Faziam-nos em cisco.

 

- Se tivessem tempo; era fazer causa comum com os retirantes e tudo estava feito.

 

- Hoje é só haver quem dê um grito, que eles seguem logo.

 

Virgulino, ao ouvir as palavras do Diabrete, teve um estremecimento demorado; tomou-o de uma comoção profunda, que  não tinha nenhuma razão de ser na frase dita.

 

Diabrete reparou no abalo sofrido pelo companheiro, mas atribuindo-o ao próprio estado moral em que a notícia fatal o deixara, não o interpelou.

 

Caminharam na direção do abarracamento, mas sem que para lá os conduzisse outra intenção além da curiosidade.

 

Aí parecia que tinha transbordado um mar tempestuoso; havia um movimento geral, brusco e ameaçador; o vozear unia-se numa zoada ruidosíssima, e gritos de indignação partiam de todos os lados.

 

Todavia a falta de coragem e de iniciativa continha nos da ordem a população, e deixava às autoridades confiança bastante para que não tomassem providências.

 

Diante deste espetáculo, Virgulino comoveu-se ainda mais, então, como já não se pudesse conter, disse para Diabrete:

 

- Houvesse um homem de coragem que se pusesse à frente deste povaréu, e esta vila podia voar pelos ares.

 

- Infelizmente não o há, e estes desgraçados hão de esbravejar aqui à toa, até que morram todos de fome ou os lancem fora da vila.

 

- Eu estou perdido, não é verdade? - perguntou Virgulino depois de uma longa pausa. - Não sobrevivo à desgraça que me feriu sem que possa salvar Maria, para salvar o meu pobre filho...

 

- E o que quer você fazer?

 

- Pôr-me à frente dos retirantes, levá-los até o armazém, causar um rebuliço na vila para que durante ele possa salvar Maria.

 

Diabrete pareceu acovardar-se diante da ousadia da empresa, mas dentro em pouco a abraçava e com tanto entusiasmo, como se dela fosse o autor.

 

Os dois não demoraram o ousado cometimento. Embora desconhecidos, permearam a multidão e, comunicando-se com todos os grupos mais exaltados, chegaram a conseguir o que desejavam. A multidão arregimentada caiu como um raio dentro da vila e, precipitando-se de chofre sobre o armazém de víveres, fez voar portas e janelas em estilhaços. Os gêneros, tomados como despojos do assalto, foram arrastados para a rua, e aí divididos no meio de uma confusão que degenerou em conflito.

 

Virgulino e Diabrete, que só tinham em vista prender a atenção das autoridades para o lado do armazém, a fim de que eles pudessem assaltar a cadeia, dirigiram-se para esta.

 

O cálculo, porém, foi frustrado. A excitação pública, a que dera lugar a prisão da infanticida, obrigou o subdelegado a manter a cadeia sempre perfeitamente guardada, para que a mulher não fosse assassinada. As sentinelas tinham tido ordem terminante de matar a quem quer que ousasse querer resistir-lhes.

 

Diante da atitude das sentinelas, Virgulino e Diabrete recuaram, porque entenderam que não deviam perder a ocasião que tão azada se lhes oferecia, e esperaram que os acontecimentos lhes viessem em auxílio.

 

De feito, a confusão que produziu a divisão dos gêneros ocasionou a prisão de vários retirantes que se mostravam como cabeças, e a necessidade de reforçar a guarda da cadeia deu lugar a que Virgulino se oferecesse e fosse de boa vontade aceito para tal fim.

 

Embora a dificuldade da empresa, Virgulino começou desde logo a pô-la em prática, captando a simpatia dos companheiros por meio de oferecimentos, que são a maior recomendação entre aquele povo essencialmente hospitaleiro.

 

Diabrete, por sua vez, entregava-se ao seu trabalho, que, embora menos arriscado, era muito mais difícil do que o de Virgulino. A astúcia, porém, conseguiu o que parecia quase impossível. Diabrete pôs-se a espalhar por entre os grupos a nova de que estavam surrando na cadeia a quantos retirantes prendiam e que a vila já se estava armando para vir sobre os outros.

 

- O que é preciso fazer? - perguntavam todos.

 

- Assaltar a cadeia; arrasá-la se tanto for preciso para tomar os presos e depois sair logo da vila.

 

O plano foi imediatamente acolhido, e a onda da miséria, ululando o seu rancor concentrado contra os comissários, foi bater de encontro à cadeia.

 

Virgulino, ouvindo a grita dos assaltantes, correu para o interior da cadeia, que era uma casa baixa, cujos quartos serviam de prisões.

 

Os guardas vendo-o correr pensaram que ele ia proteger os fundos da casa e um dos três seguiu-lhe no encalço, enquanto os outros trancavam as portas.

 

Virgulino, porém, já havia parado diante da prisão da sua mulher e entre ela e ele trocaram-se os primeiros cumprimentos:

 

- Você aqui? - perguntou Maria.

 

- Eu, sim - respondeu ele. - Avie-se; arranje a criança é preciso....

 

As pisadas do outro guarda não o deixaram acabar a frase e o mergulharam num despeito profundo.

 

- Estamos perdidos - pensou ele -, não é possível salvá-las.

 

- Todo cuidado com esta, pensou muito bem - exclamou guarda. - Que se safem todos, não importa, porém esta, não; vá ver se guarda os outros, esta fica por minha conta.

 

- Sim, sim - respondeu Virgulino automaticamente; recobrando logo o sangue-frio. - Duvidam, porventura, de mim? Não serei eu bastante corajoso para defender esta entrada?

 

- Como quiser, ficaremos então os dois; sempre faremos muito mais.

 

Não havia nada a objetar e tanto mais porque o guarda cortou logo toda a evasiva de que Virgulino se pudesse servir.

 

- Os outros são retirantes que se meteram no barulho, não podem ficar presos senão alguns dias; têm sempre de sair, e se há de ser amanhã, seja hoje.

 

- Mas...

 

- É o mesmo; estamos perto um do outro; ali é a prisão da ladra, de uma tal a quem chamam Mundica. Eu vou para ali.

 

Estava irremediavelmente malogrado o plano de Virgulino; qualquer movimento seu seria percebido pelo outro, que, segundo ordens recebidas, podia disparar a arma sobre quem ousasse querer tocar na assassina.

 

Um milhão de pensamentos revolutearam-lhe no cérebro, e qual deles o mais temeroso. Afinal decidiu-se por um que, por ser o mais horroroso, era o mais eficaz. O companheiro, conforme se depreendia das suas palavras, tinha inteira confiança em Virgulino e este podia portanto aproximar-se dele. Assim o fez. De um salto, dado com a elasticidade e a certeza de um último recurso, Virgulino caiu sobre o guarda com a polida faca desembainhada, a qual enterrou-lhe no lado esquerdo. O companheiro não teve forças senão para soltar um ai soturno e deu em terra com todo o peso do corpo.

 

O bandido não perdeu tempo; enquanto a sua vítima arquejava nas últimas contorções da vida, meteu o ombro robusto à porta da prisão, e como esta não cedesse logo retirou-se a alguma distância e dai correu e atirou-se com toda a força de encontro à porta, que estalou e abalou-se.

 

O esforço do infeliz duplicou-se com o terror que a própria ação lhe causava.

 

Ouvia-se o barulho dos assaltantes às portas da cadeia, e o som dos seus empurrões hercúleos para arrombar as portas e as janelas. Dentro também começara um barulho infernal, porque os presos, e principalmente Mundica, pediam socorro e clamavam que já havia morrido um guarda.

 

- Cala-te, infame mulher, cala-te, ou morres também -gritou Virgulino, a quem já parecia inteiramente impossível a salvação da mulher.

 

A ameaça produziu felizmente o efeito desejado, e afinal o bandido pôde tirar da prisão a malsinada esposa.

 

Uma nova dificuldade veio amedrontá-lo. Doida sinceramente pelo crime praticado, Maria não tinha tomado alimentos durante os dias que tinha estado na prisão e o sobressalto, a comoção, reunidos à fraqueza em que se achava, não permitiam-lhe dar um passo.

 

Virgulino tomou-a nos braços possantes e saiu a correr com ela, mas justamente neste momento a onda assaltante acabava de penetrar na cadeia e já embarafustava pelo corredor para dar liberdade aos companheiros.

 

Ao vê-la, ainda Virgulino teve um assomo de sangue-frio e exclamou:

 

- Eu já levo aqui uma, que quase morreu de susto; vamos aos outros.

 

Falando à medida que corria, chegava ao fim de uma pequena cerca de pau-a-pique, e levantou sobre ela a mulher.

 

- Atire-se com Deus, Maria, ganhe forças, ou estamos de todo perdidos.

 

- E o nosso filho, Virgulino, o nosso pobre filho?

 

- Eu vou buscá-lo; agora não custa.

 

Mal acabara de dizer estas palavras, Virgulino ouviu desmentida a sua esperança; um grito uníssono partiu da multidão,

 

- Morra a assassina, morra a assassina, morra o infame que a quer salvar.

 

Felizmente para Virgulino, só aqueles que estavam para dentro da casa podiam saber onde estava a assassina, visto só eles tinham podido ouvir de Mundica a narração do sucedera. Isto fazia com que os assaltantes que estavam junto da porta não se precipitassem logo no quintal, o que teria como conseqüência a imediata captura de Virgulino e da esposa. Mas, ao contrário, todos querendo penetrar ainda para tomar parte no arrombamento das prisões, causavam uma enorme confusão, e impediam a prontidão dos movimentos, que era agora essencial.

 

- Pelo cercado, pelo cercado! - gritaram por fim, e repetiram por vezes o grito.

 

Já era tarde. Virgulino vendo-se ameaçado pelo grito -morra a assassina! - saltou também a cerca e, tomando nos braços a esposa, correu até que pôde deixá-la em lugar seguro na estrada geral que era caminho de Baturité.

 

- O nosso filho - murmurou ela. - Perderemos ainda este?!

 

- Não me fales nos filhos - arquejou Virgulino. - Deixe-os comigo e saberei fazer por eles o que você não soube.

 

Pôs-se a correr na direção da vila, e rápido e lépido como se não tivera acabado de transportar tamanha carga, e sempre correndo, veio incorporar-se à massa dos retirantes.

 

- Fogo! - gritaram na multidão. - Deitaram fogo na cadeia.

 

Virgulino, como se tivera um acesso de loucura, repetiu a fuzilar raios do olhar:

 

- Fogo! Deitaram fogo à cadeia. Não, não devem fazer, não é justo, não é direito.

 

E ia impelindo diante de si aqueles que não se afastavam para dar-lhe passagem.

 

Desta sorte abriu caminho até junto da cadeia, que já se enredava em vivas labaredas e cujo vigamento começava a estalar entre os braços rubros das chamas.

 

Virgulino olhou desvairado para aquele tremendo espetáculo, para aquela cena que punha em sobressalto a vila inteira, porque toda ela era ameaçada pela brutalidade do furor dos retirantes.

 

- Meu filho - exclamou finalmente o bandido. - Não morrerás sozinho.

 

Com a celeridade da alucinação internou-se nas chamas e nelas desapareceu com geral assombro dos circunstantes, que só depois tiveram voz para exprimir a sua comoção.

 

Passaram alguns minutos, longos como séculos, e afinal uma nova comoção mais violenta do que a primeira avassalou o coração da multidão.

 

Virgulino, semelhante a uma aparição das tremendas justiças religiosas, das medonhas punições de além-túmulo, assomou entre as labaredas e as rompeu de novo, com uma coragem indizível.

 

Fora das chamas que haviam-lhe queimado o rosto e em parte o tronco, o ousado pai entregou à primeira pessoa que dele se aproximou a criança que fora buscar e que trazia embrulhada na sua véstia de couro.

 

- Morta - exclamaram os circunstantes, olhando para a criança. - Está morta.

 

O pai tomou-a de novo nos braços e, aproveitando-se da perplexidade solene causada pela sua ação inqualificável, caminhou para o ponto em que deixara a mulher.

 

Grande número de pessoas o seguiu de longe, e, ainda que vissem claramente que ele era o marido da assassina ninguém ousou destratá-lo.

 

Virgulino parou finalmente junto de Maria, e com a voz muito sumida disse-lhe:

 

- Vê? Está aqui, fui buscá-la entre as chamas.

 

A mulher não respondeu, e o desgraçado insistiu na sua observação, agora sacudindo o corpo da mulher. O mesmo silêncio.

 

- Maria - exclamou ele, precipitadamente -, Maria!

 

Olhou em redor de si, e, como daí descobrisse as labaredas do incêndio, bradou lamentosamente:

 

- Oh!  Ela adivinhou a nossa desgraça.  E fui eu a causa de tudo.

 

Ajoelhou-se a chorar sobre os dois cadáveres e a comover os que se aproximavam do quadro tristonho. Assim jazeu por longo tempo, até que o subdelegado, mais para arrancá-lo de junto dos entes que lhe causavam aquela dor do que para cumprir a lei, chegou-se a Virgulino e deu-lhe voz de prisão como protetor de uma evasão.

 

- Sim - murmurou ele -, estou pronto. - E tirando do bolso um revólver, aplicou-o contra o ouvido, e desfechando-o exclamou: - Vamos!

 

 

XII

 

A agitação da vila não cessou, apesar da comoção que a todos causou o pungente espetáculo dado pela família do bandido. Longe de acomodarem-se, os retirantes, mais exacerbados pela desgraça daqueles companheiros de infortúnios ameaçaram levar a fogo e a ferro várias casas da vila e só se acalmaram com a promessa formal de que todos os gêneros que restavam lhes seriam entregues.

 

- É do imperador - gritavam eles. - Mandou que nos dessem, é nosso.

 

A prudência das autoridades conformou-se com a exigência e todos os gêneros foram distribuídos, mas sem que presidisse à divisão a eqüidade que só a calma poderia manter.

 

Só 36 horas depois dos medonhos sucessos que puseram fim ao estádio dos retirantes na vila, partiram estes, a princípio unidos como um exército, e enveredaram pela estrada que leva a Baturité.

 

Para aí dirigiram-se também Eulália e o vigário Paula, e este já começava a trilhar as terras afortunadas da serra, que pareciam um grande oásis perdido no meio do imenso deserto da província.

 

À medida que subia, Paula rejuvenescia e revigorava-se. Os males dos meses passados dissolviam-se no verdor embalsamado dos plantios, que lembravam uma parasita disforme vicejando às expensas da maioria da vegetação morta da província.

 

Aquele amontoado de morros, que se sucediam com a gradação dos cones de uma pinha enorme, muito verdes, cintados pelos vastos leitos fulvos das estradas, afogados numa abundância palaciana de luz, acordavam no coração deprimido do vigário imagens em que ele já nem ousava pensar.

 

A viração, brincando nos cafeeiros, punha no ar, de mistura com o soar rítmico dos farfalhos, um banho de perfume em que aquele espírito conturbado lavava-se e bracejava numa aspiração de sensações tranqüilas. E coisa singular: a lembrança de Eulália, que até então encarnara-se-lhe no pensamento, como que ia amortecendo, como se ela fosse uma aparição da noite, que se dissipasse com a claridade triunfal da aurora.

 

Uma transformação muito semelhante apoderou-se de Eulália, desde que pisou o solo da serra. Em caminho perguntara pelos seus e deles tivera indícios e, mais do que isso, uma esperança risonha.

 

- Pode seguir em paz; daqui a Baturité ninguém morre de fome.

 

- Chegarão, pois - pensava Eulália. - Lá ou no Ceará reunidos, todos poderemos fugir à tortura que o destino nos infligiu.

 

E o coração dilatava-se-lhe num bem-estar insólito. A voz dos pássaros filtrava-lhe no espírito e aí entoava uma aleluia às suas alegrias; diziam-lhe que estava terminado o martírio, que em poucos dias receberia o prazer de ter junto de si, senão no mesmo teto, ao menos ao alcance dos olhos, a caçula, as irmãs e a velha tia.

 

Só uma dúvida vinha turbar-lhe o contentamento; era uma pergunta que insistentemente subia-lhe da consciência aos lábios:

 

- E receber-me-á minha tia?

 

Não resolvia por si; a maneira por que a honrada senhora pensava acerca da honestidade fazia-a estremecer e, na deficiência de uma resposta cabal, apelava para o acaso. Tomava raminhos à beira da estrada e, desfolhando-os a repetir ao despegar cada folha - sim ou não - alegrava-se ou entristecia-se com o horóscopo.

 

As impressões porém, não tinham estabilidade, boiavam e afundavam-se na inconsciência feliz, que era o resultado da brusca mudança das perspectivas, que lhe enlevavam os olhos e o pensamento.

 

No último dia de jornada, Eulália, que já havia parado em alguns povoados, demorou-se por algum tempo na Conceição e aí teve indícios da família. Havia dois dias que passara; devia, portanto, estar com certeza em Baturité.

 

Todo o longo sofrimento indenizou-se com esta certeza, e foi quase alucinada de alegria que à tarde desceu em demanda da cidade.

 

A noite, porém, a surpreendeu em meio caminho, nas alturas da Cruz. A sombra, que lançavam na estrada os cafezais e as matas, causou-lhe medo, e Eulália experimentou de novo a incômoda impressão de quem se vê só numa estrada.

 

Seguiu quase a correr, descendo a íngreme ladeira como se fosse intento seu não parar. Embaixo um panorama esplêndido desdobrou-se diante de si. Uma situação perfeitamente cultivada estendia-se com os seus canaviais viridentes, cheios de ruído, com os seus cafezais e mandiocais verde-negros dominando um grande espaço. Sobre um pequeno tabuleiro a casa, iluminada, surgia sonora de gargalhadas e gritaria de crianças. Próximo a ela, num curral espaçoso, o gado meneava os chocalhos, ruminando tranqüilamente. A pouca distância do curral, um vasto telheiro mostrava-se inteiramente iluminado por enorme fogueira.

 

- São felizes - pensou Eulália. - Não negarão uma telha a quem precisa.

 

Caminhou até o telheiro, que ficava mais perto da estrada e em que oscilavam diversas redes, impelidas por pessoas que conversavam.

 

- Sabem dizer-me se o dono da casa dá pousada? -perguntou Eulália.

 

- A quem pede - respondeu um velho que estava sentado sobre um forno de bulandeira. - A casa é de quem quer dormir.

 

- Posso então pousar aqui?

 

- Sem cerimônia, moça - tornou o velho -, e principalmente se for bonita.

 

Todos riram-se, e a própria Eulália sorriu da jovialidade do velho, que, sendo o dono do sítio, julgava-se obrigado a vir todas as noites alegrar por um momento os seus hóspedes forasteiros.

 

- Pois foi o diabo; ontem saiu uma leva que parecia um pedaço do mundo. A tal ordem do presidente há de dar-lhe na cabeça; cai a província inteira na capital e Deus queira que não haja muito que lastimar.

 

- Mas quem sabe se não é história dos comissários?

 

- Não, eu também recebi ofício; é a verdade. Baturité não tem hoje duzentos retirantes.

 

Eulália estremeceu. O seu coração anteviu logo que a família Queiroz não ficara na cidade, uma vez que os seus recursos não lhe davam para viver independentemente dos socorros.

 

- Foi um alvoroço dos meus pecados - continuou o velho.

 

- Estavam na cidade mais de 8 mil pessoas e de uma hora para outra ficaram sem um grão de farinha.

 

- Virgem!

 

- Aquilo estourou como um morteiro; quase que vai tudo pelos ares; as mulheres então cortavam o coração.

 

- Que calamidade!

 

- Mas também não havia outro meio; os retirantes não comiam nem metade do que lhes era enviado.

 

- Ah! A seca tem sido inverno para muita gente.

 

- É a verdade. Deram-se cenas muito tristes; ontem e hoje pela manhã encontraram-se muitas crianças abandonadas pelos pais, e algumas até recém-nascidas. Parece que já não há sentimentos no povo.

 

- É a desgraça, meu senhor.

 

- Hoje quem vai para Baturité precisa de ter coração duro; senão volta de lá sem um dez réis. Gente que tinha com que passar está aos paus.

 

- Mas aqui ao pé da serra?

 

- Pois então! A serra não dá para todos e nós que aqui moramos já não podemos. Fomos forçados até a impedir que subissem retirantes para cá. Daqui para baixo, para cima ninguém, que não vá de passagem. Se não fizéssemos assim, morreríamos também de fome.

 

A conversação, como era natural, desfez a alegre impressão que o aspecto da serra, a sua vegetação sadia e forte Causara a Eulália.

 

A imaginação pintava-lhe, no meio do torvelinho da revolta, a sua desventurada família, sem pão, sem amparo, ao alcance da mão do primeiro ousado que entendesse desrespeitá-la.

 

Não havia exagero nessa dolorosa previsão; as infelicidades tinham descido sobre as fracas mulheres em cardume, como enorme revoada de corvos. As afrontas, as injúrias como que as elegeram por campo de manobras e de espanejamento de seus horrores.

 

Não era, pois, muito que no meio de um tumulto, quando.. de par com a cegueira da indignação, anda a perversidade escolher vítimas, d. Ana e as indefesas meninas fossem escolhidas.

 

Trabalhada por este pensamento, Eulália não cerrou as pálpebras durante a noite, e ergueu-se com os primeiros raios da aurora. Embora para si, filha do sertão, o romper do dia tivesse na serra atrativos infinitos, não se demorou a partir. Cantavam os pássaros alegremente, vinha um longínquo rumor de cachoeira embalar numa sensação de paz e de confiança os habitantes e os hóspedes do sítio e convidá-los ao descanso mas para Eulália o próprio festejo da natureza era uma intimação de retirada.

 

“Estarão ainda em Baturité?" - pensava. – “Elas são tão medrosas. Talvez tenham seguido, ou estejam prestes a partir."

 

A dúvida fazia dobrar a velocidade da caminhada e tornava-a indiferente para o que via em torno. Não se demorava a olhar para as perspectivas que as subidas e descidas de ladeiras desenrolavam por todos os lados.

 

Não reparava, à margem das estradas, nas casas de palha dos moradores, que, surgindo de entre o verdor das folhas das canas, e atapetando-se com a folhagem das batateiras e das aboboreiras viçosas, falavam de fartura e de tranqüilidade.

 

O seu alvo era a cidade, o seu desejo era atingi-lo já, se fosse possível, e apenas quando a ingremidade das ladeiras obrigava-a a demorar-se encarava com os ribeiros para invejar-lhes a rapidez extraordinária com que coleavam por entre as plantações e sumiam-se para logo surgir adiante com a mesma celeridade.

 

Só depois de longas horas de caminho, com os pés magoados pelos acidentes do solo e pelas dificuldades da estrada pedregosa e bronca, Eulália pôde desafogar num suspiro de satisfação. Ao dobrar uma das curvas da estrada sinuosíssima, apareceu-lhe de improviso a cidade.

 

O sol matinal, tornando ainda mais negra a encosta da montanha, a cujo sopé, sob uma pequena elevação, jaz a cidade, fazia sobressair a cor dos telhados e de algumas fachadas da sua casaria, alinhada em poucas ruas. A estrada até agora quase sempre silenciosa e solitária enchia-se de rumor de cargueiros, que subiam, cantando numa toada tristonha, muito pausada, estrofes inspiradas pela vida agrícola e pastoril.

 

“Vou saber notícias da cidade" - pensou Eulália, e dirigiu-se ao comboieiro.

 

- Lá embaixo está uma epidemia  respondeu o homem; - a doença tem atacado muita gente.

 

- Tem morrido muitas mulheres?

 

- É onde a doença faz o seu roçado, e nas crianças então não falemos.

 

- Santo Deus ! - exclamou Eulália, e foi com as lágrimas a merejarem-lhe que perguntou: - E como se chama essa doença?

 

- Ora, é muito de ver! Quem vem de cima não sabe o nome da doença dos retirantes?! É a fome...

 

E o comboieiro afastou-se cantando num barítono afinado:

 

O sol nasce igual p’ra todos,
Mas o home' o dividiu;
Para o pobre o sol em pino
Foi o quinhão que caiu.

 

 

 

Eulália, sobressaltada com a lutuosa nova, desceu, quase correr, a ladeira e, ganhando a estrada larga que vai desembocar na cidade, dirigiu-se para uma ponte, formada de um grosso tronco atravessado sobre um ribeiro que passa pela base da elevação em que assenta a casaria.

 

Um homem, vestido como os sertanejos, de camisa sobre as ceroulas, com um grande chicote na mão, tomou-lhe o passo.

 

- É de cima? - perguntou secamente e como recebesse resposta afirmativa: - De que lugar da serra?

 

Eulália hesitou na resposta. A presença do homem na entrada da cidade explicava que ele estava ali de sentinela, ou que era talvez algum malfeitor. Respondeu, pois, mentindo serenamente:

 

- Do alto da Cruz.

 

- Bom, pode subir a ladeira; se fosse retirante passava aqui por baixo; hoje deitamos fora o resto dessa praga.

 

- Como? - perguntou Eulália dolorosamente impressionada.

 

- Ora, como? Não havia o que dar-lhes para comer, estavam ai a fazer motim e a referver como bicharia. Manda-mo-los andar; quem for dono da alhada que os ature.

 

- Mas, puseram para fora todos, todos?

 

- Todinhos, moça, e você que é da terra deve gostar disso e não estar aí quase a chorar. Olhe que lá diz o ditado: livra-te dos ares que eu te livrarei dos males.

 

- Desgraçadas - murmurou Eulália -, o que será feito delas?

 

Deu alguns passos, mas de chofre voltou e perguntou ao guarda da ponte:

 

- E hoje puseram para fora muitas mulheres?

 

- Todas quantas estavam aí por essas baiúcas. Talvez pelo mato estejam algumas acoitadas.

 

- Não as encontrarei, pois; desventurada de mim, talvez não as torne a ver.

 

- Não vale a pena ter dó dessa gente; é uma canalha -exclamou o guarda. - Demais podem estar no Ceará em três dias, e o mato ainda tem muito croatá e raiz de mandacaru para que eles comam.

 

- Obrigado; não quero ouvir mais nada - exclamou Eulália.

 

E acrescentou baixinho:

 

- Que homem sem coração l

 

Entrou na cidade, que mergulhava no silêncio que segue as grandes comoções. O olhar dos guardas e das autoridades, mais do que ele a própria desconfiança, fizeram-na recear que lhe fizessem alguma violência.

 

Percorreu a rua em que havia diversas palhoças, residências marcadas aos retirantes, e viu-as fechadas. A feira, que era em todos os povoados o ponto de reunião dos esfaimados filhos do sertão, estava também deserta, e dois negociantes, conversando, deram-lhe uma noção exata do que se havia dado.

 

- Foi uma caçada em regra; hoje não se vê um só, nem se acharia um para remédio, ainda mesmo caminhando uma légua.

 

- Graças; eles eram capazes de fazer voar isto tudo.

 

Certa de que não encontraria ainda a família, Eulália decidiu-se imediatamente a partir, e mais uma vez recorreu à bolsa do bandido para comprar provisões.

 

A cidade, que tão agradável impressão lhe causara, parecia-lhe agora tristíssima e de um aspecto pronunciadamente hostil. A esperança que a embelezava, ao desvanecer-se envolvera a cidade na cor sombria dos padecimentos de Eulália que, sem poder conter mais a tristeza que a acabrunhava, pôs-se de novo a caminho apesar da soalheira.

 

Durante mais de 30 horas de jornadas sucessivas a mísera retirante caminhou, penetrando em cada povoado, e procurando neles a família.

 

Cada esperança dissipava-se numa desilusão, mas nem assim a coragem dedicada de Eulália extinguia-se: as decepções duplicavam-lhe a constância.

 

No terceiro dia chegou à vila de Pacatuba, que ao sopé da serra deste nome vegeta numa tristeza de cegonha.

 

Era a hora da chegada do trem: quase noite. O espetáculo da miséria desenrolou-se em toda a amplitude ante os seus olhos.

 

Dir-se-ia que o solo tinha-se aberto para expelir um vômito imundo nas cercanias da estação. O silvo da locomotiva semelhante às palavras mágicas de um evocador, acordava em toda parte seres de uma aparência fenomenal. Mulheres andrajosas, descuidosas da compostura, umas carregando crianças nuas, opiladas, com grandes ventres e braços e pernas atrofiados, corriam para junto do trem e, cercando-o com a impertinência e a gula das harpias de Virgílio, coagiam os passageiros a dar-lhes esmolas.

 

Era um coro tristíssimo aquele. A miséria exagerava as suas tristezas, pensando que era preciso ainda maior horror para que os felizes se comovessem.

 

- Veja, meu senhor, esta criança: eu já não tenho mais leite para dar-lhe.

 

- Eu tenho perdido aqui quase todos os meus filhos, mortos à fome.

 

- Esmola para um cego.

 

A polícia intervinha para conter a vozeria da desgraça, com a qual a inclemência muitas vezes se divertia, atirando moedas de cobre no meio da mó e deleitando-se com o alvoroto e as lutas, que se travavam tão encarniçadas que tornavam necessário o castigo.

 

- Quanta miséria, Santo Deus - meditou Eulália a ver esta cena compungente; - e ainda há pessoas que se distraem em torná-la mais evidente.

 

De pé sobre a plataforma da estação, espionava miudamente a multidão e, como sentisse o coração pulsar-lhe violentamente, interpretando este resultado da viva impressão que recebera como um horóscopo de que encontraria a família, demorou-se até que o ajuntamento dissolveu-se.

 

- Nada - disse ela, indo postar-se na rua que comunica a estação com o povoado; - ainda aqui não os poderei talvez encontrar.

 

O desalento avassalou-a então; temeu que a precipitação da viagem a tivesse feito demorar-se menos do que fora necessário para uma estreita pesquisa nos povoados intermediários a Baturité e Pacatuba.

 

Resolveu, pois, ficar o dia seguinte na vila para que a consciência não a acusasse de haver passado precipitadamente por aí.

 

Ainda uma vez a desesperança veio enlutar-lhe o coração, porque, de par com a impossibilidade de encontrar a família, torturava-a a notícia de que mais de 100 mil retirantes enchiam agora a capital.

 

- Como encontrá-las no meio deles? - perguntava a si mesma, sem saber responder.

 

Entretanto, devia partir para chegar ao ponto terminal da viagem, que deviam fazer suas irmãs, onde contava achar lenitivo às suas saudades, ou desenganar-se para sempre.

 

Na manhã do segundo dia, Eulália, tomando o trem que gala para a capital, sentia ao mesmo tempo levantarem-se dentro de si duas grandes esperanças: o encontro com a família e o encontro com Irena e o velho Monte. Teriam eles sobrevivido à enorme desventura que os acometera? O seu infortúnio não podia ser tamanho que de um golpe a despojasse de todas as suas afeições.

 

O trem partiu com uma celeridade vertiginosa, quase tamanha quanto desejava a ansiedade de Eulália.

 

A planície, coberta de uma vegetação amarelenta, aqui e ali semeada de pequenos grupos de carnaubeiras, fugia para trás do comboio com uma rapidez inqualificável e, de espaço em espaço, uma estação; obrigando a locomotiva a silvar e a parar, como que lhe dava maior força para recomeçar a carreira.

 

Em uma dessas estações, em que sempre uma onda de retirantes vinha esmolar, o que desafiava muito a atenção de Eulália, o trem demorou-se mais do que em todas as outras.

 

Estava-se em Arronches, que parecia ser o quartel-general da miséria; meninas que teriam, no máximo 13 anos, tinham estampados nos rostos e nos colos descarnados os estigmas perdição. Grandes círculos dartrosos gravavam nos semblantes tristonhos daquelas infelizes a condenação eterna dos encarregados dos socorros!

 

- Veja - diziam os passageiros, chamando a atenção recíproca; - aquela menina não chega a ter 12 anos, e no entanto em que estado lá se acha.

 

- Aqui a perdição faz concorrência à fome.

 

Eulália sentia-se tão profundamente comovida, que já não podia olhar para o ajuntamento, e alegrou-se quando ouviu o primeiro sinal de partida. Estava debruçada em uma das janelas do vagão e relanceou ainda uma vez o olhar para aquele transbordamento da desgraça.

 

Soou o último sinal de partida e, de envolta com ele, um grito dolorosíssimo:

 

- Mana Eulália! Minha irmã!

 

Eulália voltou-se como doida, e respondeu por outro grito.

 

- Chiquinha! Eu vou já, eu vou já.

 

Quis dar um passo, mas o arranco de saída do trem fê-la cair sobre o banco. A alucinação da alegria fê-la, porém, insistir no seu propósito, e caminhou até a plataforma. Era já muito tarde; o comboio desfilava e punha entre ela e a irmã o obstáculo invencível do rápido movimento.

 

- Pare! Pare, pelo amor de Deus! - gritou Eulália com acentuação desesperada.

 

Uma gargalhada estrepitosa dos passageiros respondeu ao apelo insensato, e Eulália, atingindo ao último grau da alucinação, tentou precipitar-se.

 

O recebedor de bilhetes deteve-a, porém, segurando-a bruscamente e vibrando uma afronta à sinceridade do sentimento que motivara o temerário procedimento.

 

- Se está bêbada, vá cozinhar.

 

E impeliu-a para dentro do vagão.

 

Eulália foi cair sobre um dos bancos e ai ficou, inerte e perplexa, a encarar com um olhar estúpido o seu brutal salvador.

 

A violência da decepção que acabava de sofrer arrebatou-lhe os sentidos e, imóvel, muda, conservou-se até que o trem parou na estação terminal.

 

Aí o modo grosseiro pelo qual foi sacudida pelo recebedor fê-la acordar do espasmo.

 

- Ia fazendo-a boa; estava com o diabo no corpo em Arronches, bem?

 

Eulália não respondeu; saiu cambaleando e tomou o leito da estrada na direção de Arronches.

 

- Não pode andar por aqui - bradou-lhe um vigia; - se quer levar o diabo, é outro falar. Para fora, não seja besta.

 

Eulália, sentindo-se agarrada pelo braço, voltou e foi sentar-se, lavada em lágrimas e sufocada em soluços, junto à estação.