OS RETIRANTES
José do Patrocínio
SEGUNDA PARTE
A Retirada
I
Em outubro de 1877 a improbidade
ostentava-se já na província com o desavergonhamento dos cães vadios e havia
comissários do governo que podiam zombar da calamidade, que torturava a
população, porque tinham-se locupletado bastante para atravessá-la.
Foi
a certeza de tais abusos o que levou o presidente a escassear as remessas de
gênero e provimentos de dinheiro para o interior, visto como a impossibilidade
da fiscalização fazia com que eles quase nada aproveitassem aos desgraçados.
A
conseqüência da medida foi incomensuravelmente desastrada. A fome deu alarma
nas cidades, vilas e povoados, como nos mais humildes casais esparsos pelos
tabuleiros e pelas charnecas do sertão, e o povo, rápido e ruidoso como a
enxurrada, afluiu às estradas em demanda do litoral e da sede do governo.
Nessa
corrente geral entraram os destroços da paróquia de B. V.
A
retirada efetuou-se por um semicírculo em cuja curva tinha por extremidades as
cidades de Fortaleza e de Aracati. Poucos, porém, foram aqueles que se
dirigiram para a segunda cidade da província, porque as relações estreitas,
mantidas entre ela e a paróquia, apontavam-na como um lugar onde os retirantes
pouco melhoravam de sorte. Fortaleza foi o alvo geral.
Cerca
de duas léguas de B. V. uma vendola espiava sobre a ondulação da
estrada, que, conduzindo a vários pontos povoados comunicava a pequena paróquia
com a cidade de Quixeramobim, a vila de Quixadá, a cidade de Baturité e,
finalmente, com a capital.
A
vendola, embora muito conhecida, havia uns dois meses chamava a atenção dos
transeuntes, que se dirigiam ao velho vendeiro gabando-lhe o fornecimento.
-
Você foi quem aproveitou com a seca, velho Inácio; lavou a cara do negócio.
-
Qual? Atamanquei isto; como sempre há maior feira, deu-me na vontade.
De
fato, a vendola parecia ter tomado para modelo as melhores da cidade, e o seu
fornecimento bastava para satisfazer todas as necessidades mais urgentes dos
viajantes. O movimento aí era também digno de nota; havia tardes em que mais de
20 cavaleiros desencilhavam os seus animais sob a meia água da frente e desciam
as cargas para pousar.
Uma
circunstância, que passou despercebida para todos, foi a coincidência dos
assaltos freqüentes dos Viriatos, por extensão de oito léguas, com a
prosperidade do velho Inácio.
Esses
bandidos, que vestidos de pele e ferozes como os touros barbatões, levavam o
espanto e a miséria onde quer que farejavam algum dinheiro ou provisão de
gêneros; que atacavam os comboios e assassinavam os seus condutores, poupavam
entretanto a vendola, apesar da temeridade do velho Inácio, que escolheu
justamente uma fase anormal para dar mostras de abastança.
-
Você tem algum patuá que o defenda, homem? Olhe que o tempo não está para fazer
arreganhos de riqueza.
-
Tenho a graça de Deus, que é quem defende os pobres.
-
A desgraça não escolhe pobres nem ricos quando quer ferir: tome cuidado, velho
Inácio.
O
vendeiro encolhia os ombros desassombradamente e respondia quase sempre:
-
Vocês sonharam aí com os Viriatos e andam a dar com a língua nos dentes sem
saber o que dizem. Por aqui não os há, descansem, porque se os houvesse havia
muita gente que não seria mais orgulhosa.
- E os roubos?
- Com as estradas sempre atulhadas de gente, como pôr-se a
culpa neste ou naquele?
No domingo tão fatal ao povoado, como era costume
encheu-se a vendola; mais de 30 cavaleiros, chegados em grupos, apearam-se e
puseram-se a beber enquanto velho Inácio dava ordens para que se apressasse o
almoço.
Três cavaleiros singulares chegaram por último quando já
sob a meia água os pratos de louça branca estavam estendidos em frente aos
fregueses de Inácio.
- Vivam o Onça e o Diabrete!
- Viva o Desempeno! - bradaram todos indo ao encontro dos
recém-chegados.
- Boa súcia - respondeu o Onça -, hoje não se faz nada, o
dia é para a folia.
- Veja respondeu um dos do grupo desembainhando a faca que
trazia sob a véstia -, esta ainda não riu hoje, está tão séria como ontem.
- Nem estas - acrescentaram os outros puxando igualmente
das suas facas; - olhe, elas não se riem.
- Cá a minha - ponderou um rapazola de olhar expressivo -,
ainda nem lavou a cara; está com a ramela de ontem.
Mostrou então a faca ainda tinta de sangue, e, chegando-a
às narinas, acrescentou:
- Isto cheira a bom dinheiro; só a prata velha; quem me
dera apanhá-la!
- Bom, velho Inácio, nós também temos barriga; apronte-nos
lá para um canto algum bocado.
O Onça e os outros dois recém-chegados apearam-se por sua
vez e, atravessando a vendola, isolaram-se da massa dos gárrulos companheiros.
- Lá vão para o conchavo - começaram cá fora a murmurar.
- Eles são os que põem e dispõem das nossas vidas e sem
nos dar satisfação.
- Ordem de cima.
- Ordem do diabo; nós não somos animais para não ser
ouvidos, nem cheirados.
-
Mas já nos veio mal por eles? Não tem tino?
-
Ora qual; andam por aqui e nem ao menos a gente sabe com quem fala; é ir para
ali e para acolá, mais nada.
-
É sempre com aquelas máscaras.
-
Isto é o que me aborrece.
Os
três recém-chegados, uma vez fora das vistas do velho Inácio e dos seus
hóspedes, desafivelaram as máscaras, que tanto incômodo causavam aos que os
seguiam. Estas máscaras eram uns bonés de couro curtido, que escondiam-lhes as
cabeças até os supercílios e dos quais caía uma asa que só deixavam-lhes a
descoberto os olhos, o nariz e a boca.
Esses
três homens, desconhecidos para todos os outros, eram Virgulino, o Feiticeiro e
seu filho, o primeiro conhecido por Desempeno, os dois chamados o Onça e o
Diabrete.
-
Então quando chegará o dia da paróquia? - perguntou Virgolino. - Daqui lá é um
pulo.
-
Não se apresse; deixe aquela gente não contar mais com a missa; por ora não há
que fiar, pode estar à espera. Você sabe que o padre é fino.
-
Isto há de ficar ainda no rol dos esquecidos.
-
Não se afervente; por vir tarde não perderá, cobraremos velhos e novos.
-
Pode-se entrar com os almoço?
-
Já lá vai, é um instantinho, velho Inácio.
Os
três colocaram de novo os bonés e o pequeno abriu a porta.
-
Então para onde se atiram hoje? - perguntou o velho Inácio.
-
Hoje é só alguma coisinha aí pela estrada, não há nada de maior, é dia de
descanso.
-
Eu no seu caso hoje não fazia nada; os rapazes lá fora estão-se alegrando
muito...
-
Pois diga-lhes que bebam à vontade e que depois sumam-se até de noite. Você
estenda redes para nós.
O
velho Inácio não fez a menor reflexão à ordem recebida, e os cavaleiros só
demoraram o tempo indispensável para terminar o almoço.
O
Onça e o Desempeno reataram a conversação, por entre as garfadas de quem traz
bom apetite.
-
Você não tem ninguém no povoado e por isso não lhe bate o coração; aposto que
não se daria o mesmo, se deixasse mulher e filhos, parentes e amigos?
-
Tudo isto nada vale, quando o homem não tem nada para dar-lhes. Eu vivi do
veneno das cobras e hoje vivo do sangue dos homens, que é mais venenoso do que
o dente das cascavéis. Por que vivo assim? Porque sou malvado, toda a gente,
diz; mas ninguém sabe que eu sou pai e que errei de casa em casa sofrendo
quanto o diabo enjeita para um dia ver a mulher morrer à míngua, sem ter
ninguém que a viesse cuidar na hora do parto.
-
Está bom, não falemos em tristezas: você avexa-se com elas demais e eu quase
desacoroçôo da vida.
-
Fique certo, Virgulino, de que eu não fui convidá-los para virem comigo, só
para fazê-los bandidos dos Viriatos. Bandidos são todos os homens em certa hora
da vida. Eu fui chamá-los para dar-lhes com que alimentar as suas famílias;
tomamos aos que têm e não querem dar aos que morrem à fome. Os juizes e os
ricos podem nos condenar; os pobres chamarão ao que fazemos igualar as
necessidades.
-
Mas há quem enriqueça com o que nós todos ganhamos.
-
Há, mas dá-nos com que segurar o dia de amanhã.
-
E os perigos por que passamos?
-
Perigos há-os em toda a parte. O homem que trabalha pode cortar-se com a enxada
e morrer; ser atravessado ou esmagado pela árvore que derrubou; ser mordido
pela cobra, enrodilhada na moita, e morrer. O homem, que tem o ofício de
roubar, não corre maior perigo do que a morte. Em que é ele diferente dos
outros?
-
Mas antes morrer pelos primeiros trabalhos; não se morre amaldiçoado.
-
E o que importa a bênção ou maldição a quem morre? A terra come igualmente a
todos, não rejeita os maus, como nós rejeitamos a comida mal feita.
-
Bem, bem, à nossa saúde; eu não quero zangá-lo.
Beberam
todos e o Diabrete, que não dera uma única palavra durante o diálogo,
levantou-se para sair.
-
Vá colocar-se ali perto, veja quem vem e onde estão os outros. Ninguém passe
por aqui, sem que saibamos quem é.
O
rapazinho afastou-se e os dois chefes de quadrilha foram deitar-se nas redes,
que lhes armara o vendeiro num quarto vizinho.
-
Desarreie os cavalos, ouviu? E peie-os aí por perto.
A
venda silenciou e os dois chefes puseram-se a dormir descansados. A ousadia do
viver aventuroso e celerado dos Viriatos mostrava-se em toda a sua plenitude
nos modos, palavras e finalmente no descuido temerário do Onça. Percebia-se em
toda a sua latitude a paixão com que os bandidos dos Cariris praticavam os
crimes monstruosos, que apavoravam a memória da província. Dir-se-ia que esses
facínoras eram feitos de lascas da cordilheira, tão duros e bárbaros eram nas
suas correias, cujo rastro era a cinza do incêndio, ou o sangue do morticínio,
quando algum ousado pretendia opor-se ao bom êxito dos seus assaltos. É que os
sequazes, recrutados no mais horroroso da miséria, não tinham os corações
virgens para as grandes dores, e pelo contrário, familiarizados com elas, pouco
se impressionavam de vê-las reproduzidas em outros.
Com
as mãos molhadas de sangue, ainda sentindo a voz das vítimas ecoar as últimas
súplicas, dormiam sossegadamente como quem acaba de praticar uma boa ação.
Embalava-os a maternidade bruta e lerda da ignorância.
-
Então vai isto a emendar pés com cabeça? - gritou à porta do quarto o vendeiro.
- Olhem que o sol já está cochilando.
-
Eh! - bocejou o Onça espreguiçando-se. - Deixa-o ir; a noite é mais nossa
amiga.
-
Mas é preciso que a rapaziada não venha achá-los dormindo. Põe-se para aí a
grazinar.
-
Tem razão; há muita linguazinha que deve ser cortada - ponderou o Onça, -
olhando fito para o vendeiro. - Não concorda, Inácio?
-
Eu sei lá - respondeu o velho perturbado. - O que você manda é o que se faz.
-
Acabam-se os falatórios.
-
Ora, eles rosnam só, mas obedecem; deixa-os ao menos desafogar.
-
Desafogam demais... Uma coisa, velho Inácio: não passou ninguém por aí?
-
Nem viva alma.
-
Os diabos têm faro.
-
Mas se passasse era o mesmo, aqui não se pode fazer nada.
-
Isto é o que se há de ver.
-
Se houver alguma coisa descobre-se logo que esta venda não é minha. Já se
murmura por vê-la assim.
-
Eu sei o que faço - respondeu secamente o Onça, e levantando-se seguiu até a
porta da vendola, onde quedou a olhar para as árvores semimortas.
Pouco
depois da sua chegada aí, o Diabrete surgiu no terreiro e veio apressado parar
em frente e falar-lhe.
-
Meu pai, aí vem uma mulher.
-
Sozinha?
-
Sim, senhor.
-
É alguma retirante...
-
Pode ser, mas vem muito asseada. A toalha é muito alva.
-
Melhor para ela, deixa-a passar em paz. Espreite para ver se não vem mais gente
e venha para casa.
-
Eu já vi que ela vem sozinha.
-
Veja melhor, e se a mulher pedir alguma coisa, mande-a aqui ter comigo.
Cerca
de meia hora depois, uma mulher com um vestido de cor muito viva, uma toalha
alvíssima pendente da cabeça, andando vagarosamente, parava na estrada defronte
da vendola e hesitava sobre se devia ou não chegar.
O
Onça deu um assobio entre dentes, que servia de sinal a Virgulino, e ambos
foram disfarçadamente ao encontro da transeunte.
Desde
que relancearam os olhos sobre ela, os dois facínoras olharam-se surpreendidos,
como se tivessem conhecido a mulher, cujo rosto se escondia quase todo sob a
toalha. Virgulino, que sofreu com maior intensidade a impressão produzida pela
fisionomia tristonha da transeunte, dirigiu-lhe a medo uma pergunta:
-
Boa tarde. É mesmo deste lugar?
-
Boa tarde - respondeu ela com uma voz muito fraca - sou sim, senhor, dali de B.
V.
- E para onde vai?
- Para este mundo de Deus, até que encontre uma casa para
trabalhar.
- Hoje, moça - interveio o Onça -, é difícil.
A transeunte estremeceu, como se no tom da voz do Onça
houvesse alguma ameaça contra si, e só respondeu tristemente.
- Paciência!
- E onde vai dormir hoje?
- Debaixo das árvores - murmurou a infeliz. - Aí há sempre
lugar para os pobres.
- Inácio - gritou Virgulino -, lá entre a sua gente há
lugar para uma pessoa?
- Até para cinco.
- Então, moça, vá dormir lá na casa daquele homem. Sempre
é mais abrigado.
A recém-chegada olhou surpreendida para os dois bandidos,
cujas feições era impossível descobrir, ocultas como estavam sob as máscara de
couro, e murmurou:
- Queiram perdoar-me; porém eu não posso ficar aqui, devo
ir pousar mais longe; B. V. está ainda muito perto.
- Dentro desta casa é o mesmo que estar muito longe;
ninguém, a não ser seu pai ou sua mãe, virá tirá-la daqui. Fique; veja que não
poderá andar muito, é quase noite, e as estradas agora não são seguras.
- Infelizmente já não tenho pai, nem mãe - disse a
recém-chegada; - e nada tenho a perder, não quero ficar.
- Fique - suplicou Virgulino; - lembra-se de uma noite, na
paróquia, quando uma família de retirantes era posta para lado da igreja pelo
vigário, porque um dos homens tinha uma cruz na testa... Lembra-se?
- Sim. Então ainda meu pai era vivo.
- Lembra-se que foi o velho Rogério Monte quem agasalhou
os desgraçados?
- Também já não mora no povoado...
- Ao sair da igreja, quando todos resmungavam porque o
velho era bom para com os infelizes, lembra-se das pessoas que abraçaram o
velho, achando que ele fazia bem?
- Sim, lembro-me, e até de que os homens depois fugiram e
abandonaram a sua família, o que tanto dó nos causou.
-
Mas esqueceu-se de que os desgraçados não rejeitaram a casa de Rogério Monte,
nem as esmolas que davam à família deles aquelas duas moças, que eram chamadas
os anjos de Deus, Eulália e Irena. Fique na casa de um amigo, de um parente
daquela pobre gente, D. Eulália!
A
entoação do pedido era tão humilde e acariciadora que Eulália sentiu
invadir-lhe uma confiança extrema pelos mascarados, que até então
inspiravam-lhe medo. Olhou-os, enxugando as pálpebras arroxeadas, e murmurou
com uma inflexão tristíssima:
-
Eu sou muito desgraçada...
-
Nós o compreendemos, d. Eulália - respondeu Virgulino; - não tenha medo, está
entre infelizes. Venha conosco.
Seguiram
os três para a puxada coberta de palha, que ficava para os fundos da vendola, e
onde a família de Inácio recatava-se quanto era possível dos hóspedes
estranhos, que freqüentemente vinham bater, alta noite, à porta, e incomodavam
o velho para lhes dar pouco.
A
bondade e expansão do acolhimento mantiveram a confiança de Eulália, que
durante toda a noite só teve uma ocasião de sobressaltar-se com algumas frases
que ouvira à voz roufenha do Onça. É que o chefe do grupo dos Viriatos, ao qual
cabia a exploração das circunvizinhanças de B. V., conhecia bem os seus
subalternos, e queria evitar que o mais leve desacato fosse ofender a mísera
hospedada. Tomou então a precaução de postar de sentinela à porta o Diabrete, a
quem incumbiu de guardar a entrada e repelir a quem ousasse tentá-la, depois de
avisado.
"Quem
serão estes homens mascarados?" pensou Eulália; mas, apesar do cuidado que
a perturbava, e do leve temor que começava a sentir, adormeceu prostrada pela
fadiga da jornada e da violência que fizera ao coração, abandonando a paróquia.
Durante
a noite, por diversas vezes, o Onça e o Desempeno vieram cautelosamente escutar
à porta da puxada, e, finalmente, certos de que Eulália dormia, foram
acomodar-se.
-
Bem - disse Virgulino deitando-se -, eles estão bêbados como uma cabra; não se
levantam.
- E que o façam e vão para lá que o Diabrete não é de
graças.
- Mas que diabo levaria esta moça a dar este passo?
- Coisas da vida; alguma criançada. Em tempo de fome tudo
é possível; meu pai contava histórias muito tristes das outras secas.
O sono fez ponto final à conversação dos dois chefes, e a
vendola mergulhou-se em profundo silêncio, até que a madrugada veio, com os
seus assopros furtivos e a sua claridade iriante, descerrar as pálpebras dos
sequazes dos Viriatos.
Virgulino, impaciente por saber notícias do povoado,
andava como uma pêndula de uma para outra extremidade da puxada, enquanto o
Onça distribuía os seus soldados para diversos pontos.
Eulália apareceu, enfim, à porta, com a sua toalha à
cabeça, e despedindo-se da família de Inácio:
- Muito obrigada - murmurou ela ao ver os dois mascarados;
- Deus lhes há de pagar tanta bondade.
- Já então? - perguntou o Onça. - É muito cedo, não pode
partir.
- Devo - respondeu Eulália -, é preciso que eu parta; se
bem pareça que não sentiram a minha partida - acrescentou baixinho.
Onça, depois de dar-lhe algumas provisões, deixou-a partir
e limitou-se a apontá-la à família, proferindo uma frase poucas vezes usada por
ele.
- Faz-me pena; é muito desgraçada.
Virgulino, porém, acompanhou a forasteira, visivelmente
perturbado, e, quando já não podiam ser ouvidos pela família de Inácio e pelo
Onça, lançou delicadamente a mão ao braço de Eulália e disse-lhe com voz
submissa.
- Saiba que eu não a deixo ir assim; a senhora e sua amiga
salvaram a vida dos meus parentes, eu hei de salvar a sua.
- Mas eu não tenho nada - respondeu Eulália forcejando
para sorrir; - estou boa.
- Não tente disfarçar - continuou Virgulino -, é a morte o
que a senhora deseja, para ocultar o seu erro, mas a senhora não pode matar o
seu filho.
-
Nem quero! - exclamou a infeliz - Quero salvá-lo, porque tenho sofrido muito.
-
E como quer ir por essas estradas por onde nunca andou, sem recursos, sem um
guia, sem ter ao menos uma rede onde durma? Escute, d. Eulália, volte para o
povoado, eu vou acompanhá-la para junto dos seus; a senhora não sabe o que é
viver fora da família, eu dou hoje tudo para viver com os meus filhos.
-
Não posso voltar - soluçou Eulália; - os meus seriam os primeiros a
desprezar-me; deixe-me ir, eu conto com a misericórdia de Deus.
A
resolução que acentuou estas palavras era tão firme que Virgulino não ousou
resistir. Puxou precipitadamente o guarda-peito e arrancou do cinturão uma
bolsinha de couro, que obrigou Eulália a segurar.
-
Daqui ao primeiro pouso são oito léguas - disse ele -, e lá já não terá ninguém
por si. O desgraçado da noite da igreja pede-lhe que aceite esta bolsa, por
amor de seus filhos. Esconda-a consigo.
Eulália
afastou-se soluçando, e Virgulino, que a acompanhara com o olhar, murmurou por
fim:
-
Não morrerá, porque nós a seguiremos.
O
Onça, que tinha seguido com o olhar o jogo da rápida cena da despedida, meneou
a cabeça desconsoladamente e disse para o vendeiro:
-
Lá está o Desempeno na sua choradeira da família. Decididamente, para a nossa
vida, não há como homens desapegados de tudo.
-
Eu não sei o que me bacureja que esse cabra ainda faz alguma.
-
Não tenho receio - sorriu o Onça pegando no cabo da faca; - antes que ele meta
a cara eu o limpo.
Eulália
tinha-se afastado e Virgulino de pé, como que atraído pela retirante, olhava
para o lado da estrada por onde ela seguia.
-
Vou acordá-lo - disse o Onça, e, caminhando para o seu companheiro de assalto,
foi bater-lhe no ombro, a resmungar. - Não sei o que parece isto! Você está aí
como uma rapariga que vê partir o noivo.
-
É que a pobre moça causou-me dó; lembra-se dela no povoado? Era a companheira
da filha de Rogério Monte e tinha muita piedade por meus filhos.
-
Está bem, já pagamos em parte a dívida; agora cuidemos da vida.
-
Hoje? E para onde iremos se tudo isto espremido não dá uma gota de sumo?
-
Isto é aqui; mas, se ganharmos algumas léguas a coisa muda de figura. Além
disso você precisa distrair-se.
Virgulino
abaixou os olhos e só depois de uma longa pausa durante a qual o Onça passeava
de um para outro lado, respondeu a sorrir.
-
Olhe que às vezes tenho medo de mim mesmo; aborreço a vida e dá-me vontade de
fugir.
-
Nós conhecemos o Ceará palmo a palmo e os nossos cavalos correm bem...
-
Já o sabia - respondeu contrariado; - felizmente nunca hão de correr contra
mim. Estou pronto para o que você quiser e até posso indicar um lugar, onde
podemos fazer muito.
-
Qual?
-
As vizinhanças de Quixeramobim.
-
É um queijo daqui lá...
-
Mas é bom; vemos por ali os que navegam por essas estradas, e na volta apuramos
algum resto de gado.
-
Vou pensar - respondeu o Onça -, em todo o caso, amanhã sem falta temos
serviço.
Virgulino
não teve coragem para objetar, ainda que o seu fim, indicando a cidade de
Quixeramobim, fosse acender no Onça o desejo de partir imediatamente, o que
daria ensanchas de socorrer Eulália. Sabia que as suas reflexões podiam
produzir até a anulação da boa vontade do chefe, que, se descobrisse o
verdadeiro objetivo do conselho, não o receberia, só para que, mesmo
indiretamente, nenhuma mulher tivesse relação com a sorte da quadrilha.
-
Pois então falaremos logo; eu vou dar um giro e, se você consente, levo comigo
o Diabrete.
"É
algum pedido", pensou o Onça, e chamou pelo filho. "Sempre é bom ver
o que estão fazendo por aí esses pacholas."
O
Diabrete não se fez esperar, e ao lado de Virgulino pôs-se a caminho pela
estrada, que se dirigia para o norte da província.
Durante
algum tempo caminharam silenciosos, sugando nos toscos e negros cachimbos
imensas baforadas. A vegetação depauperada, imóvel no meio da claridade da
manhã, lembrava uma linha de sentinelas sonolentas, que os estivesse
espreitando.
A
estrada alva de areia e de seixos, subindo uma colina, parecia uma baioneta
enristada cravando-se no coração do arvoredo amarelento.
-
Como este lugar é triste - observou o Diabrete -, parece um cemitério, tão
descampado para aquela banda, tão sem água, tão sem gente! Eu, se pudesse,
partia hoje mesmo daqui.
-
Também eu, mas só amanhã é que o seu pai há de decidir.
-
E que não passe de amanhã, senão faz-se aí um falatório e vai tudo em poeira.
Virgulino
sorriu da bravata do rapazola e, batendo-lhe amigavelmente no chapéu, exclamou:
-
Voute! poltrão; você não tem nem a coragem de repetir estas palavras ao Onça.
-
Mas juro em como não dormimos mais amanhã aqui. Aposto o que quiser, se duvida.
Eu quero sair daqui, porque este lugar é mais feio que um olhar de cascavel, e
eu quando quero, quero.
-
Aposto - disse Virgulino que buscava pelo interesse estimular o filho do chefe;
- se você o fizer tomar para os lados de Quixeramobim, tem uma faca de prata.
-
Está feito - respondeu Diabrete, estendendo a mão a Virgulino; - apronte o
bolso.
-
Salvei-a - murmurou Virgulino; assim pudesse salvar também os meus filhos, não
seria mais infeliz.
-
Arrependeu-se? - perguntou o rapazinho, reparando tão silêncio do companheiro.
- Ainda é tempo de desfazer.
-
Nem pensava nisto; é outra coisa que está a fazer arderem-me os miolos.
Continuaram a caminhar silenciosamente, com a ligeireza
própria dos cearenses. Mais de uma hora decorreu-se depois que saíram da
vendola, e no entanto o Diabrete não sabia para onde iam e nem ousava
perguntar, porque os soldados dos Viriatos iam para onde os mandavam os chefes,
ou acompanhavam-nos sem saber, nem inquirir em que sítio deviam jogar com a
vida no perigo dos noturnos assaltos.
- Vamos numa boa marcha - ponderou o pequeno; - neste
andar, em menos de quatro dias, estávamos em Quixeramobim.
- O que me admira é não encontrar ninguém. Os marrecos
foram para longe; talvez lhes cheirasse a dinheiro algum adormecido por aqui, e
eles não lhe perderão a pista.
Continuaram a caminhar apressadamente, porém cerca de meia
hora depois Virgulino ponderava a si mesmo:
“Não pode ser; Eulália não pode ter caminhado tanto, deve
ter ficado por ai. Talvez se escondesse de vergonhada, quando sentiu os nossos
passos”.
- Sabe o que mais? - disse alto. - Vamos almoçar, visto
que não encontramos nenhum deles. Virão mais tarde.
- Isto é presa por força.
- Ou malandrice. Talvez se metessem pela capoeira e se
pusessem a dormir.
- É bem possível.
- Vá você lá por aquela beirada, que eu vou por esta. Veja
se descobre algum rasto.
Puseram-se a marginar a estrada, olhando fixamente para as
folhas secas que atapetavam o chão, rendilhado da sombra do arvoredo.
- Creio que perdemos o nosso tempo - ponderou Virgulino -,
não entra gente aqui há mais de um mês.
- Sempre é bom ver e assobiar para avisar alguém que
esteja perto.
Os assobios cabalísticos da quadrilha ecoaram em vão por
muitas vezes, e de espaço a espaço.
- Não estão, eu logo o vi! E Eulália - resmungou Virgulino
- também desapareceu.
- Bem dizia eu que era bom procurar - exclamou o Diabrete,
depois de dar umas centenas de passadas e acenando com a mão, acrescentou
quando Virgulino aproximou-se:
- Por aqui arrastaram
alguém.
II
Virgulino, com a impaciência do cão ao descobrir a pista,
esgueirou-se por entre as árvores, seguido pelo rapazola, que não deixou de
notar tamanha sofreguidão do companheiro, mas limitou-se por muito tempo a
acompanhá-lo, sorrindo.
Internaram-se durante mais de dez minutos e, entretanto,
nenhum barulho veio dar-lhes esperança de que não seria muito longa a
caminhada. Só eles, roçando nos galhos dos arbustos, perturbavam a inação e o
profundo silêncio da natureza, que se abrasava, muda e imóvel, nos raios
ardentes do sol. O assobio cabalístico sibilou em vão por três vezes anunciando
a vizinhança de um chefe. O eco desdobrou-o por toda a circunvizinhança, mas
ninguém respondeu.
- Foram meter-se em casa de Judas - ponderou o Diabrete -,
ou então já acabaram com a festa e nós nada mais temos para ver. Já não tenho
mais vontade de ir adiante.
- Pois eu seguirei o rasto até descobrir onde eles estão,
ande embora até de noite. Se quiser pode voltar, Diabrete, e seria até melhor,
porque o Onça não nos esperará para o almoço.
- E se o nosso amigo precisar de algum auxílio?
- Não hei de precisar, não - respondeu Virgulino, sorrindo
tristemente à observação pedantesca do companheiro; arranjar-me-ei como puder.
- A presa não há de ser grande e não vale a pena esta
fadiga.
- É por ela ser pequena que eu devo procurá-la para
defendê-la. Vá, Diabrete, eu já não preciso de si; diga lá ao Onça onde estou.
- Então com licença; esta caminhada tem-me feito apetite;
até logo.
Virgulino
seguiu com maior afã o rasto que se tornava de vez em quando mais vivo, porque
se mostrava sobre os claros de solo deixado pela folhagem caída. Via então
distintamente que alguém tinha sido arrastado por aí, e esse alguém, pensava o
bandido, não podia ser senão Eulália.
Havia
caminhado mais de meia hora, quando pareceu-lhe ouvir gemidos, e, apressando
mais o passo, verificou, dentro em pouco tempo, que não se enganara. Ainda que
exalados por uma voz fraca, os gemidos se tornavam mais e mais distintos. O
assobio do chefe de novo sibilou, mas não foi respondido, e o chamado por
Eulália, proferido em voz muito alta, não obteve também como resposta mais do
que os gemidos, que se tornavam mais distintos.
A
poucos passos mostrava-se o quadro que Virgulino, pela alteração do semblante,
mostrava temer presenciar. Eulália estava caída sobre uma poça de sangue, na
inconsciência da dor, sem cuidado pela compostura.
-
Miseráveis! Não respeitam nem as mulheres; mataram-na! - bradou Virgulino, que,
ajoelhando-se junto à desmaiada, repetiu por vezes o seu nome, para ver se a
chamava ao uso dos sentidos.
Debalde
insistiu. Eulália, com os dentes cerrados, as pálpebras entrefechadas deixando
ver nos olhos o brilho amortecido do desmaio, não o pedia ver nem ouvir.
Paralisava-a e insensibilizava-a o quebrantamento causado pela perda do filho,
de quem recebera a coragem para voltar costas ao crime, e defender-se
heroicamente com a sua própria desonra. Tinha abortado.
Com
o respeito de um irmão carinhoso, o bandido consertou as roupas da sua
protegida, tornou-as mais folgadas, e procurou em seguida descobrir a bolsa de
couro, que ele mesmo havia dado à forasteira.
-
Bem; ao menos terá vingança, d. Eulália - murmurou Virgulino; - eu saberei
desmascarar o infame que a insultou.
Levantou
nos braços fortes o corpo de Eulália, cuja cabeça foi ajeitada sobre o ombro
robusto do bandido, que fez-se de volta para a estrada, a transportar com o
desvelo da gratidão a mulher, que também teve por ele piedade em uma hora
aflitiva.
Só depois de mais de uma hora de caminhada, coberto de
suor, ofegando de cansaço, chegou à estrada larga com a sua carga tão cuidadosamente
zelada. Um sussurro de vozes veio dentro em pouco tomar-lhe o passo e de
novo o voluntário protetor da mísera retirante foi esconder-se no capoeirão.
- Bem bonita vendinha, porém má catadura de toda aquela
gente, não lhes pareceu?
- É verdade, não há ali uma cara que seja conhecida.
-
Para serem também retirantes, estão muito asseados.
- São talvez gente de marinheiros, de filhos de fora, que
vêm fazer comércio no sertão.
- Deixa-os lá; a grande verdade é que foram eles quem nos
deram alguma coisa para matar a fome.
Um grupo de mulheres, carregando grandes trouxas sujas na
cabeça, e os filhos menores no braço, passava pela estrada e conversava, como
se depreendia das suas frases, a respeito das pessoas que tinham visto na
vendola.
Virgulino, que se havia sentado, não só para se esconder
melhor, como também para descansar, despiu a véstia e, sobre ela deitando
Eulália, tentou levantar-se para ir ver quem eram os conversadores, cujas
frases só lhe chegavam em sussurro. Mas os gemidos da infeliz não tinham
cessado, e o bandido, receando que os ouvissem, deteve-se, conchegando de
encontro ao peito aqueles lábios descorados.
- Deus os ajude, seja quem for; não podem ser malvados,
porque respeitam os pobres.
- Deus a ouça, minha mãe.
A estrada voltou ao silêncio e ao abandono, e Virgulino,
retomando nos braços o corpo da enferma, recomeçou a caminhada na direção da
vendola.
O assobio da quadrilha ecoou por três vezes na solidão do
caminho, e Virgulino apressou-se em respondê-lo, bendizendo o Onça, que mandava
alguém ao seu encontro.
A alegria tornou-se ainda maior, quando viu a pouca
distância o próprio chefe acompanhado pelo Diabrete e mais dois companheiros.
Ainda de longe, com a voz entrecortada pelo cansaço, exclamou Virgulino:
- Venham ajudar-me, soam bem chegados; eu havia de custar
muito a dar conta da mão.
- Então que diabo de novidade é esta? - perguntou o Onça.
- A nossa visita de ontem, que foi atacada por um diabo.
- Ajude ali, depressa, canalha - gritou o Onça para os
seus subalternos -, não vêem vocês um superior a trabalhar?
- Está fora de si.
- Havemos de saber quem é o engraçado desta festa.
- Eu espero - respondeu Virgulino; - você bem sabe que não
é dos nossos usos atacar mulheres que não têm defesa.
Um dos sequazes do Onça tomou dos braços de Virgulino o
corpo de Eulália, e os dois chefes, encaminhando-se para a vendola, reataram a
conversação.
- Não viu ninguém aí pelo caminho?
- Senti vozes, mas, como não queria que me vissem,
escondi-me.
- Fez bem, se havia de ficar com o coração cortado.
- Ah! São muitos desgraçados, então?
- Sim, uma porção de mulheres que perderam os maridos
ainda ontem, numa briga que houve em B. V.
- Perguntou-lhes você por minha família?
- Por todos... - respondeu tristemente o Onça.
- E o que disseram elas?
O Onça estacou, como se fora de chofre tomado de um
insulto paralítico e, franzindo os sobrolhos, encarou com Virgulino
repreensivamente. Depois, sorrindo, encolhendo os ombros e respirando alto,
silabou demoradamente:
- Você dá um belo exemplo aos seus inferiores! Que tem
você com os retirantes da paróquia? Os Viriatos não têm família, enquanto os
liga o juramento ao seu chefe.
- Sim, tem toda a razão; estejam nossos pais, mães, filhos
e mulheres morrendo à fome, não devemos nem lembrar-nos deles! Tem razão,
juramos.
Calaram-se ambos, e silenciosos prosseguiram até a
vendola; Inácio, que aí estava à porta, levou a mão cova aos olhos, e com a sua
voz bajulatória exclamou:
-
Olé, isto é presa de nova espécie, por aqui nunca tínhamos visto igual. E eu
também guardo-lhes cá uma surpresa.
-
Venha ela, e mande-me tratar desta infeliz; é a nossa hóspede de ontem.
-
O almoço está à espera, Desempeno - disse o vendeiro; - não valia a pena
demorar tanto para tão pouco.
O
Onça acompanhou Eulália até a puxada, e lá ficou a recomendar todo o desvelo
pela infeliz à família admirada de ver tais assomos de filantropia em corações
de homens tão brutais. Mas ninguém ousava perguntar aos homens, que só
conheciam pela voz o segredo deste procedimento novo.
Os
bandidos, que estavam a descansar sentados sob a meia-água, estranharam também
o ato dos dois chefes, e reparando na tristeza do semblante de Virgulino:
-
É boa! - resmungou o rapazola que na véspera gabava a sua faca. - Vêm ainda a
tempo essas virtudes, ganham o reino do céu.
A
conversa e os comentários aumentaram entre ele quando ficaram em liberdade, por
se terem retirado também Virgulino e o Diabrete, e o velho Inácio, que lá
dentro exagerava a perfeição do almoço.
-
Esta carne assada está sem o que se lhe diga, e o arroz cheira que faz água na
boca. Entre neles com vontade, que logo desemburra. O Onça esteve engasgado
comigo, mas, logo que meteu o dente no naco, mudou como da água para o vinho,
desembuchou todas as queixas. - Vá, Desempeno, tome um gole por cima e verá.
Vá, eu deixo-o à vontade.
Virgulino,
porém, não compartiu a prazenteria comunicativa do velho vendeiro e sentou-se,
taciturno, a desamarrar a máscara que o desfigurava aos olhos mais perspicazes.
-
O velho foi desabrido com você, feriu-o muito, mas eu não estou pela história.
-
Ele tem razão - respondeu Virgulino - eu jurei. Ainda muito meu amigo é ele,
socorrendo d. Eulália. Lembra-se você dela no tempo em que estivemos no
povoado?
-
Se me lembro ! Ela e a outra de cabelos louros, boas moças!
-
Que falta vão elas fazer à pobreza?!
-
Não - respondeu o Diabrete; - em B. V. já não há gente. Fugiu todo o
povo; tem passado muito e o resto vem por aí roncando que parece uma ventania.
-
Oh! Que desgraça, Santo Deus! Que desgraça a minha! Hei de ver partirem os
meus, sem que lhes possa dizer uma única palavra!
O
Diabrete abaixou os olhos e murmurou com entoação sentida:
-
E não poderá mesmo, porque eles não passarão mais.
-
Morreram então?
-
Não - acudiu o rapazinho -, mas já vão longe a esta hora. Aquelas vozes, que
você sentiu, eram deles. Eu quando vi os seus pequenos, quando vi a sua mulher
tão magra e tão abatida, tive vontade de dizer-lhes: olhem, eu sou o filho do
Feiticeiro, o meu pai e o Virgulino estão aqui; entrem, nós agora temos
dinheiro, não precisamos de ração: comam, bebam. Mas o olhar do velho fez-me
calar e recuar, porque a sua mulher como que reconheceu a voz do meu pai. Não
pude ter senão a alegria de encher bem de bolachas as mãos dos pequenos, de
carregar de farinha e de carne as moças e sua mulher, e lá dei um pouquinho de
vinho à velhinha, a vovó, que mal pode já com as alpargatas, mas que ainda
assim estira o andar para ganhar tempo.
Virgulino
pôs-se a soluçar convulsivamente, enquanto as lágrimas lhe escorriam em fio, e
o pequeno continuou:
-
Lá morrer de fome, não morrem não, eu o juro, porque ainda por cima o velho
passou para mão da velhinha algumas notas; mas ser tristeza, é; eu ainda me
lembro quando morreu minha mãe; o velho mesmo arrancava os cabelos aos maços.
-
E hoje não consente que eu veja os meus. Hei de dar ao diabo esta vida;
matem-me se quiserem, mas eu não fico mais nesta maldita sorte.
-
Espere, eu vou ver se arranjamos a ida para Quixeramobim; assim está tudo
feito.
-
Como você é bom, Diabrete! Não parece filho do Onça.
-
Psiu, ele aí vem, coma para agradá-lo.
Virgulino
dera apenas algumas garfadas com a displicência de quem está profundamente
magoado, quando assomou à porta o Onça, chamado por Inácio.
- Lá está acomodada a menina; a velha disse que não há de
ser nada, que a põe boa em menos de 15 dias.
Inácio parou à porta a um sinal do Onça que o detinha
enquanto Virgulino se mascarava.
- Então qual é a surpresa? - perguntou ele. Você também já sai à estrada?
- Olá! Entre para falar com o chefe - gritou Inácio
voltando para fora.
- De onde vem ele?
- Do Icó.
O portador, que era um homem robusto, acaboclado e de
modos rudes, aproximou-se e entregou ao Onça uma pequena bolsa de couro,
pronunciando três palavras, que era a senha da quadrilha.
- Vivo, luto e venço.
- Vá em paz - respondeu o chefe e fez sinal a Inácio e ao
recém-chegado para que se retirassem.
Abriu então vagarosamente a bolsa e tirou de dentro dela
uma pequena placa de folha-de-flandres, pintada de amarelo de um lado, e
mostrou-a a Virgulino e ao Diabrete.
- Partir já - exclamou Virgulino, olhando fito para o
Onça.
- Mas não diz para onde, é só um aviso - ponderou o
Diabrete.
Onça
voltou na palma da mão o outro lado da senha pintada de vermelho:
- Para onde está o chefe - murmurou ele e acrescentou em
voz alta: - Inácio, diga ao portador que faça-se depressa na volta, e aos
outros que se preparem a fim de seguir para o Icó.
- Eu não posso obedecer - disse Virgulino
levantando - esta ordem é cruel para o pai que sabe que os seus filhos andam ao
desamparo por estas estradas fora.
O Onça, afastando rapidamente a vestia, levou as mãos à
tinta e dai as retirou armadas por um par de revólveres, fazendo alvo para o
desventurado pai.
- Você sabe que eu sou seu amigo, Virgulino,
mas sabe também que eu sou seu chefe e que os Viriatos não se retiram deixando
soldados seus. Escolha: ou morre ao primeiro movimento ou obedece. Vamos,
responda e lembre-se de que faço-lhe saltar os miolos, e mais a todos os seus
parentes, que não se acham longe daqui.
- Obedeço - respondeu o mísero pai; - meus filhos não têm
culpa da minha loucura.
- Saia então.
O chefe foi obedecido, e quando ficou só, murmurou entre
dentes:
- Antes o veneno das cobras, ele não me ofendia o coração.
III
Horas depois o Onça e Virgulino entravam na puxada e
recomendavam de novo a enferma à família de Inácio.
- Façam esta obra de caridade - disse Virgulino; - ela há
de saber ser agradecida.
- Ouça, Inácio; tratem-na bem porque eu pago, posso pôr e
dispor e tenho com que - ponderou o Onça. - A sua mulher já me disse que não
havia perigo, conservem-me, pois, aqui a moça até que voltemos. Até a vista.
Quando iam montando a cavalo, Virgulino, dirigindo-se ao
primeiro chefe, lembrou-lhe a meia voz uma de suas promessas, por uma pergunta:
- Os malvados que maltrataram a d. Eulália ficam impunes?
- Não; mas não posso já, já, saber; o Diabrete virá no
meio do farrancho para ouvir as conversas.
- Há um meio: eu dei a d. Eulália a minha bolsa, e não a
encontrei em seu poder, quando achei em tão desgraçado estado a pobre moça.
- É um meio de descobrir: descanse que o exemplo há de
escarmentar os outros. Eu o prometo.
A cavalgada destilou por detrás da vendola por uma picada,
que através do capoeirão comunicava a estrada de B. V. com outra, que se
ia entroncar com a que se dirigia para o ponto que a numerosa cavalgada tinha
por alvo.
- Estamos livres por algum tempo - murmurou Inácio; - é
pelo menos um mês de descanso, se não lhes levar o diabo.
-
Eu bem vos aconselhei quando quisestes fazer este negócio, agora é sofrer.
-
Tem razão, mulher, tem razão, mas, o que quer? A ambição é sempre assim. Hei de
acompanhar a procissão até o fim, não posso mais remediar.
Pouco
durou a conversação do velho com a esposa, porque um grupo de retirantes de B.
V. veio interrompê-lo para comprar provisões. Após, chegarem outros e
outros, e Inácio não pode mais abandonar o balcão durante o dia. À tardinha,
uma família chamou a atenção do velho vendeiro. Era uma senhora idosa, que
vinha precedida por duas meninas, a mais velha das quais teria 11 anos, e uma
mocinha de 14 a 15 anos, que carregava, deitada sobre o ombro, uma menina de
quatro anos.
Todas
elas traziam trouxas à cabeça, mas, ao contrário da maioria dos retirantes, não
vinham imundas e repelentes.
-
É uma venda, minha tia - disse a mocinha para a velha senhora; - talvez o dono
queira comprar algum do nosso ouro e assim tenhamos com que obter alguma coisa.
-
Talvez - respondeu a velha senhora; - eu vou lá. Encaminhando-se para Inácio, a
idosa retirante apresentou-lhe umas argolas de orelha e uns pares de brincos de
criança, pedindo-lhe que os comprasse.
-
Não é o meu ramo de negócio - disse o vendeiro -, e mesmo agora não é tempo
para negociar com estes objetos, a não ser por pouco mais de nada.
-
Chega para matar a fome a quatro infelizes; aquelas que ali estão? Se chega,
meu senhor, é uma grande esmola que me faz.
Inácio
tomou os objetos e, pondo-os na palma da mão, sopesou-os e examinou-os
miudamente, perguntando por fim.
-
São de ouro mesmo?
-
Devem ser, meu senhor - respondeu a senhora, em cujo semblante lia-se o
temor de uma repulsa; - comprou-os pessoa entendida, que não se deixaria
lograr.
-
Isto é que ninguém pode saber, os marinheiros mascates passam por esses sertões
muito ouro falso. Só quem é do ofício pode conhecer.
Voltou
a seu exame atento aos objetos, enquanto a senhora o olhava de soslaio com uma
súplica dolorosa no marejamento de lágrimas, que já se lhe nivelavam com o
bordo das pálpebras.
- Não parecem maus,
não, é verdade - continuou Inácio
-, mas eu não entendo disso. Pelo sim,
pelo não - acrescentou olhando penetrantemente para a velha, que o encarou a
estremecer - pelo sim, pelo não... veja se lhe agrada o preço.
Foi
direto a uma barrica que estava encostada a uma armação, e por duas vezes
voltou com as mãos cheias de bolachas, as quais pôs-se a contar.
-
Uma, duas, três... dez... vinte, e uma, e duas, e quatro, e mais estas duas de
quebra para aquela pequenita. Serve-lhe assim?
-
Muito obrigada - murmurou a velha senhora, que pela primeira vez experimentava
o amargor da miséria e o rigor da fome. - Deus há de levar-lhe em conta dos
seus pecados.
Inácio,
que esperava que a sua freguesa regateasse, exigindo melhor e maior preço para
a sua mercadoria, ficou boquiaberto a olhar para a mulher, que mostrava tamanho
desapego, e, em vez de revoltar-se contra a sua usura, bendizia-o, invocando o
nome de Deus a favor dos seus pecados. O seu espantou aumentou, quando, depois
de haver recolhido as bolachas, a boa senhora tentou sair.
-
Não - disse Inácio -, eu não quero ficar com os seus objetos, e foi por isso
que lhe propus o negócio.
-
Ai! meu senhor - soluçou a infeliz, debulhando-se em lágrimas - tenha piedade
de umas pobres de Deus. Eu não lhe peço por mim que estou velha e não me
importo de ser chamada quando o nosso Redentor for servido, mas por aquelas
meninas que ali vê, filhas de um homem que nunca negou um bocado aos que
precisavam.
-
Não é possível fazer obras de caridade nesta época -disse Inácio; mas,
envergonhando-se logo da sua crueldade, perguntou: - Quem era esse homem que
nunca negou um bocado, e que deixou a família sair com tamanhas necessidades?
-
Era o professor de R. V. Não o acuse pela nossa miséria; ele já não
existe.
Inácio,
como todos os vizinhos da paróquia, conhecia o nome de Francisco de Queiroz, e,
ouvindo pronunciá-lo, estremeceu, como o pungisse um remorso.
- E a senhora é gente dele?
- Sua irmã - respondeu d. Ana - e aquelas são suas filhas.
- Mulher - gritou Inácio, indo até a porta do fundo da
vendola - vem cá fora, para fazer um negócio.
- Graças, meu Deus - disse d. Ana, com olhar que alevantou
para o teto.
Os
dois consortes segredaram ao fundo, e Inácio, dirigindo-se em seguida a d. Ana,
disse-lhe:
- O negócio fica
fechado assim. As bolachas, um quilo carne, dois litros de farinha, e, como
Vossa Mercê não encontra casa nesta redondeza, senão daqui a oito léguas, a não
ser B. V., tem pousada por esta noite, ali naquela sala.
E apontou para os aposentos em que tinham estado os dois
chefes.
D. Ana nem teve voz para agradecer ao vendeiro, tamanha
foi a sua alegria, e, da porta, chamou com um aceno de mão as suas sobrinhas.
A família de Inácio veio colocar-se no fundo da venda a
olhar muito comovida para o mísero grupo, que, pelos modos, feições e palavras,
provava não pertencer à vasa de ociosidade e de descuido pela vida; vasa que
aproveitava os fundos sulcos da seca para entornar-se como praga fatal por
sobre toda a província.
- Não repara que aquela mocinha é muito parecida com a que
está lá dentro? - perguntou uma das filhas de Inácio.
- É verdade; quem sabe se elas não são parentes? Era
perguntar.
A suspeita, cochichada entre as raparigas, passou à esposa
ao próprio vendeiro, fazendo com que à hospitalidade espontânea se associasse
logo uma idéia de lucro.
-
Vossa Mercê não tem mais nenhum parente? Mais nem sobrinha ou filha, dona? -
perguntou Inácio.
- Tive mais uma sobrinha, porém esta morreu, há já algum
tempo, vítima das moléstias da paróquia.
-
Pois havia de jurar que tinha visto uma irmã daquela mocinha - e assinalou
Chiquinha. - Veio hospedar-se aqui.
-
E o senhor foi bom para com ela, hospedou-a, não? - perguntou d. Ana arrastada
pela comoção.
-
Fiz o que me mandaram por essa infeliz, que parecia não ter mais ninguém no
mundo.
-
E quem mandou socorrê-la? Não disse que ela parecia não ter mais ninguém na
Terra?
-
Às vezes aparecem como por encanto homens benfazejos, e a pobrezinha encontrou
um desses.
-
Ah! Então ela não é de todo desgraçada: tem quem a socorra.
-
Por ora...
-
E o que é feito dela?
-
Partiu, só, desamparada, por esse mundo de fome e de crimes.
D.
Ana e as sobrinhas não puderam conter as lágrimas, traindo assim claramente o
segredo que a boa senhora queria guardar inviolável.
-
Vossa Mercê tem pena da pobre moça, e, não obstante, não a viu. O que faria se
a visse arrastando-se por essa estrada, mordida pela fome e pelo cansaço...
Desgraçada,
desgraçada - murmurou d. Ana.
-
... atacada pelos bandidos, desrespeitada por eles, perdendo pelo terror...
-
Basta, meu senhor, basta Nós nada temos
com essa moça, mas vamos também desamparadas, e quem sabe o que nos acontecerá?
Faz-nos muito medo semelhante história.
O
vendeiro, apesar das negativas de d. Ana, certificara-se de que a protegida do
Onça e de Virgulino era sua parenta ou pelo menos sua conhecida íntima. Não
dirigiu mais a palavra a d. Ana, mas, com uma piscadela de olhos, chamou a
atenção da esposa e das moças para as recém-chegadas.
-
Entrem para cá e acomodem-se - disse a esposa. - É casa de pobres, mas dada de
bom coração.
A
fadiga alquebrava a família Queiroz, e ela não esperou que o bondadoso convite
se repetisse. A noite não as encontraria ao desabrigo, e recolheu dos lábios da
tia carinhosa e das irmãs de Eulália bênçãos para Inácio e para os seus.
Talvez
neste momento, a esposa do abençoado vendeiro fizesse jus ao quinhão que lhe
cabia nas preces da família. Durante o dia tinha cercado de solicitude a rede
em que jazia a enferma, que só muito tarde voltara confusamente a si, envolvida
no olhar da zelosa enfermeira.
-
Teve um mau sonho, não é verdade? Esteve muito insofrida, mas não admira,
porque a fraqueza produz sempre isto. Olhe; é preciso tomar alguma coisa.
Eulália,
abrindo muito os olhos enevoados pelo torpor, fitou atentamente a sua
hospedeira, e depois observou tudo quanto via em torno com as minúcias da
incredulidade. Depois do exame, sorriu e apertou a mão que havia apenas
abandonado à mulher do vendeiro e murmurou:
-
Pois eu era capaz de jurar que era verdade. Há pesadelos bem cruéis.
-
Eu já os tenho tido horríveis.
Eulália
continuou a relancear os olhos por toda a saia, como se julgasse que o pesadelo
começava agora. Percorria de alto a baixo as paredes apenas embaçadas, de uma
das quais pendia uma espingarda entre apetrechos de caça, e de outra um quadro
tosco, esfumaçado, emoldurando um registro da Senhora da Conceição, espancando
em derredor como um foco intenso de luz, nuvens sobre as quais esvoaçavam e
pairavam anjinhos da compleição de crianças fortes e sãs, sorrindo com a
alegria delas.
-
Eu era capaz de jurar que se tinha dado realmente.
-
É que foi muito mau o sonho, não foi?
-
Foi... imagine a senhora - respondeu ela sorrindo, e, exprimindo-se
demoradamente com uma voz muito fraca, começou então a contar a cena que a
prostrara.
Tinha
se despedido de manhã e recebera provisões e uma bolsa que lhe deram os seus
protetores, os dois mascarados. Aventurou-se à estrada deserta, que retorcia-se
pela extensão dos capoeirões como um ornato de grega sobre as ramagens de um
corpinho de chita. Ia pensativa e triste evocando da solidão todas as
recordações da sua ridente vida de outrora, esbatidas à vontade naquela tela
indefinida. Oito léguas, pensava, devia caminhar para encontrar uma pousada; a
noite viria surpreendê-la antes, sacudindo os guizos das cascavéis,
aguçando-lhes nos dentes venenosos o apetite de morte, e, entretanto ela teria
de afrontá-la sozinha. Se aparecesse alguém, que tivesse igual destino, que
fosse também para a capital, refletia, caminhara mais depressa, com a agilidade
da coragem!
Foi
sob o influxo desse pensamento que viu ao longe um homem vestido de couro,
deitado à sombra e à beira do caminho. Aproximou-se dele e perguntou-lhe, ainda
que ele fingisse dormir, qual a direção que devia tomar. O homem respondeu-lhe
com uma acentuação brutal que passasse quieta o seu caminho, e ela,
estremecendo de susto, seguiu.
Um
pouco adiante, porém, deu de face com o semblante medonho desse indivíduo,
aliás ainda muito moço, e a sua voz fez envermelhecerem-lhe as faces, como se
ele a houvesse esbofeteado. O silêncio foi a resposta ao insulto e o estímulo
ao crime. Ah! É orgulhosa, exclamou o facínora e, de um salto, despojou-a da
bolsa e das provisões.
O
terror avassalou-a e faltaram-lhe os sentidos para testemunhar toda a infâmia
da agressão. Lembrava-se apenas de que tinha aberto os olhos uma vez, e que não
viu mais ninguém junto a si. Apenas as árvores do capoeirão
cercavam-na silenciosas, deixando de quando em quando cair sobre si alguma
folha, que lhe causava a sensação suave do contato de mão amiga. De novo,
perdeu os sentidos, e só agora os recobrava.
- Já
vê que não passou de um pesadelo quanto contou; nessas estradas não há ladrões,
nem assassinos.
-
Graças, meu Deus - suspirou Eulália, e, voltando-se para a mulher de Inácio,
acrescentou: - uma boa notícia para
quem tem de caminhar desprotegida.
Tentou
então levantar-se, mas, com um requinte de solicitude, a velha enfermeira
deteve-a, murmurando:
- Os
seus protetores não consentem que a senhora retire-se de entre nós.
-
Não é possível, eu devo seguir hoje mesmo.
-
Eles não querem; ordenaram que não a deixássemos sair.
- Eu
os convencerei de que devo seguir o meu caminho.
- Já
não estão aí, partiram para o Icó.
-
Mas então deixem-me ir; eu agradeço de todo o coração tanta bondade, mas
preciso seguir.
-
Pode fazê-lo - respondeu a velha, em cuja mente passou uma inspiração
triunfadora -, mas a fadiga matará o seu filho. Repare bem e trema pela sorte
dele.
Eulália
apertou ainda mais a mão da sua interlocutora e, olhando-a de face, prorrompeu
em soluços. O amor de mãe vencera-lhe o temor de envergonhar-se diante dos
seus, que porventura lhe viessem ao encalço.
Fácil
foi à enfermeira convencer a doente de que era necessário ficar alguns dias em
repouso, para salvar o ente querido, que a encorajara na fuga aventurosa. A
própria desgraça, que já lhe havia sobrevindo, servia de argumento poderoso, e
Eulália resignou-se a obedecer, porque as dores que se lhe despertaram com o
acordar, assim a aconselhavam.
O velho Inácio, tomando conhecimento da submissão da
doente, volveu de novo a reflexão para a família Queiroz.
- E as parentas? - perguntou ele. - Deixamo-las ir? A
esposa não soube responder. Era preciso ver que não tinham recebido ordem do
Onça nem do Desempeno para acolhê-las. É verdade que a natureza da proteção que
dispensavam a Eulália mostrava relações íntimas, porém quem sabia se as mesmas
razões os levariam a socorrer a família inteira? O melhor era deixar o resto por
conta da d. Ana: oferecer-lhe a casa e, se ela insistisse em seguir viagem,
fazer-lhe a vontade.
-
É o meu entender - respondeu a velha -, o mais é tomar trabalhos sem a gente
saber se pode ou não com eles.
Alta
noite, o sono dos moradores e dos hóspedes da venda foi interrompido por um
latido impertinente de um cão, que de quando em quando arranhava a porta do
fundo da saleta, em que estava agasalhada a família do vendeiro.
- O negócio amanhã começa com a madrugada - disse Inácio à
sua mulher; - temos gente lá na varanda.
- Vão ser uma canseira estes dias, até que se esgote toda
a gente do povoado.
- Estava quase indo abrir para ver quem é.
- Já se pode imaginar: alguns pobres que querem comprar
bolacha; os remediados e os ricos não deixam de bater, e também não viajam em
horas mortas.
-
Tem razão; o cachorro há de cansar, e eles que esperem até de manhã.
Logo
com os primeiros rubores do dia, Inácio levantou-se e veio abrir a porta da
vendola; porém, ao contrário do que esperava, achou a varanda deserta.
-
Bom; já se puseram a andar, é que não tinham essas urgências ou não sabem o
caminho, e neste caso hão de voltar.
A
família Queiroz, apesar do cansaço da jornada, começou a aprontar-se, desde que
ouviu barulho na vendola. Chiquinha, que era quem se incumbira especialmente da
caçula, para livrar d. Ana de tão penoso trabalho, tratou de acordá-la, e
endireitá-la para a caminhada do dia. A criança, porém, acordando estremunhada,
pôs-se a choramingar e a negar-se aos cuidados da irmã.
Eulália,
que ouviu o choro, levantou-se precipitadamente e chamou pela esposa do
vendeiro.
-
Desculpe-me, minha boa senhora, mas eu lhe ficaria devendo um grande favor se
me dissesse quem dormiu hoje aí.
-
Umas pobres mulheres, que trazem uma criancinha muito galante.
A
fisionomia de Eulália perturbou-se ainda mais com a resposta, e a infeliz toda
trêmula, querendo levantar-se para sair apesar das recomendações terminantes da
sua enfermeira, perguntou sofregamente:
-
E ninguém as acompanha?
-
Ah! Pensava que elas vinham sós, e como está nesta circunstância, teve dó
delas? Felizmente acompanham-se de alguém; descanse, não esteja a
sobressaltar-se que lhe pode fazer mal.
As
lágrimas romperam em chuva nos olhos de Eulália, que soluçava ofegando, como se
neste momento houvesse recebido algum golpe violento.
-
Por que chora assim? - perguntou a velha enfermeira, para quem não era
desconhecida a causa do sofrimento da moça. - Não tem razão para isso.
Falta-lhe alguma coisa aqui?
-
Não - respondeu Eulália. - Choro por uma tolice muito simples, por uma tolice;
a voz da criança que está chorando parece muito com a de uma outra de quem fui
muito amiga na paróquia.
A
velha enfermeira, impressionada, com a piedade de mãe, que era, entendeu ser
ocasião oportuna de sondar o coração de Eulália, para dar-lhe o consolo que a
sua voz tentaria em vão verter naquela alma.
- Diga com sinceridade, minha amiga; não tem nenhum
parente que a possa amparar?
- Não - respondeu Eulália -, nem um só!
- E amigos?
- Também não, porque iria envergonhá-los.
- E se eles a quisessem ver e amparar?
- Eu negar-me-ia, porque hoje morreria de vergonha ao
encará-los e preciso de viver para o meu filho.
- Quer então continuar só e sem ninguém?
Eulália
meneou a cabeça afirmativamente e a interlocutora continuou:
- Olhe, minha amiga; não sabe ainda o que é a vida, o que
vai de desgraças por este mundo fora. Tenho ouvido coisas que fazem arrepiar os
cabelos; dizem que as próprias mães já não se importam com os filhos, tamanha é
a miséria que todos sofrem. Se os seus parentes, se os seus amigos a quisessem
consigo, eu, no seu caso, aceitaria.
- Não, minha senhora, não; eu apenas iria aumentar-lhes as
necessidades. Prefiro morrer a causar-lhes mais tormentos; para mortificar-me e
entristecê-los, já fiz bastante: deixei-lhes a lembrança de minha vergonha.
- E então por que queria tanto saber quem era a criança
que chorava?
- Porque pedir-lhe-ia que ma deixasse ver, talvez pela
última vez, o seu rosto, e assim fortalecer-me no meu tormento. Desde que a família
vem acompanhada, eu já sei que não é quem penso; a de quem eu falo, só teria
hoje por companheiro a sua honradez.
- Eu imagino quanto tem sofrido, minha boa filha - disse a
velha retirando-se e enxugando os olhos.
Na
vendola Inácio insistia com d. Ana para que demorasse mais a sua partida.
- Por essa madrugada, é uma pressa desnecessária; esta
casa é dada de bom coração e bem vê que não incomoda. Demore-se por hoje,
descanse mais as meninas; olhe que daqui ao primeiro lugar povoado são oito
léguas, e por essas estradas só se encontram casas desertas. Ao menos deixe
passar a força dessa gente que por aí vem; pode algum desalmado atrever-se e as
senhoras não têm um homem para defendê-las.
D.
Ana, depois de assegurar ao velho Inácio de que entre os retirantes de B. V.
não temia encontrar inimigos, agradeceu muito o agasalho e pediu que ele e
a sua família não se escandalizassem com a sua partida.
-
Precisamos chegar ao Ceará; lá teremos abrigo.
-
Bem, minha senhora - disse Inácio, e, beijando a face da caçula, deixou-lhe na
mãozinha as jóias que na véspera havia recebido de d. Ana, que não viu a ação
generosa do velho; - Deus as acompanhe.
Inácio
caminhou para a porta da vendola e, dando volta à chave, acrescentou:
-
Fico triste, por irem tão sós..
A
porta abriu-se violentamente, e estirou-se aos pés de d. Ana um cão negro e
robusto, que a festejava batendo a cauda e rosnando.
-
Agora já não estou tão sozinha, posso partir descansada.
O
velho Inácio conservou-se de pé na porta, enquanto a família afastava-se, e só
quando a viu desaparecer, murmurou:
-
Bem, fiz hoje uma boa ação; estou contente comigo.
IV
A
estrada e o ambiente, saturados de sol e calor, formavam uma engrenagem de onde
os transeuntes saíam esmagados.
Os
sombrios e maltrapilhos caminheiros, cheios da heroicidade do instinto da vida,
não desanimavam, porém; seguiam sempre com a resignação e o passo tardo dos
bois encangados, submissos à voz do carreiro e ao morder do aguilhão.
A
família de Virgulino, que fora uma das primeiras vistas na vendola, estava já
distanciada cerca de quatro léguas daquela paragem, e resoluta, sobranceira ao
cansaço, seguia sempre, ainda que as crianças, amolentadas pela soalheira,
causassem-lhe grande medo pelo estado precário da saúde.
-
Eles disseram que passadas oito léguas acharemos pousada - diziam as moças
recordando as palavras do Onça e dos outros bandidos; - não há de faltar muitas
léguas, andemos.
O
incitamento produzia um efeito benéfico e as infelizes continuavam cobrando
alento do próprio temor que tinham de que a noite as viesse surpreender no meio
da solidão. Todavia o esforço não conseguiu senão adiantá-las mais duas léguas,
e à tardinha um quadro tristíssimo veio lançar o espanto entre estas
desgraçadas.
A
estrada muito fulva, formando um ângulo muito agudo em ambas as extremidades,
parecia um elo de cadeia enormemente alongado trancando o passo ao transeunte.
Uma
nuvem espessa de urubus pairava, parte na extremidade fronteira, parte pousava
no solo e nos arbustos do capoeirão.
-
O que será aquilo? - perguntou a velhinha que mal se podia arrastar de cansaço.
- Parece um agouro.
-
Há de ser algum animal morto; não se lembra que quando viemos de Maria Pereira
perdemos o nosso cachorro na viagem?
-
Com certeza é isto mesmo - concordaram todos -, o pior é a fedentina.
Ao
lado do caminho viam-se já grandes montes de cascas secas de croatá, orquídea
venenosa, que entretanto serve de alimentação aos famintos.
-
Não reparam - ponderou a mulher de Virgulino - como por aqui a fome já chegou
tão forte aos viajantes? Vejam quanto croatá chupado.
-
É mais uma porção de gente que vai ter inchação; quanta desgraça por esse mundo
de Deus!
A
voz da velhinha tomou uma acentuação profundamente e acrescentou:
-
Vocês, minhas filhas, terão de ver tudo isso, eu felizmente já tenho os pés na
cova e creio que nem chego ao Ceará.
As consolações para
dissuadir a velhinha afluíram a todos lábios; não obstante, a impressão não
deixou de ser dolorosa, e uma das moças perguntou:
- Chegaremos hoje ao
pouso?
- Eu já não tenho pernas - disse a velhinha - e, além
disso, aí vem a noite; por meu parecer ficaríamos mesmo à beira da estrada
debaixo de qualquer pé de pau.
- Não, não é preciso, não pode faltar muito - advertiu a
esposa do Virgulino -, havemos de chegar.
O mau cheiro começou a se fazer sentir incomodativamente,
e ao mesmo tempo as crianças, obrigadas a andar para que as mulheres pudessem
descansar, choramingavam.
- Que lugar tão triste - exclamaram todos -, faz medo.
Cerca de uns duzentos passos as exalações fétidas tresandavam, e, para mais
incomodar os transeuntes, os urubus, espantados pela presença desses
inesperados hóspedes, levantavam ruidosamente o vôo.
A família apertou o passo para mais depressa furtar-se das
pútridas emanações, mas não deixou de olhar para o lado onde os urubus
assinalavam o foco.
Uma cruz toscamente feita destacava-se no meio de um claro
formado pelo capoeirão, e junto a ela, meio coberto pela folhagem, o cadáver de
um homem mostrava parte dos intestinos, sob a véstia entreaberta.
A comoção e o temor, produzidos pelo horrendo quadro,
emudeceu o grupo, que se limitou a tomar nos braços as crianças para acelerar
ainda mais a marcha já fadigosamente forçada.
- Viu? - perguntavam-se em voz baixa. - É horrendo; vamos
ver se chegamos ao pouso....
Dobraram o passo, mas a velhinha, que não
podia resistir a tamanho esforço, deu sinais de invencível cansaço e começou a
retardar e a distanciar-se.
- Já é noite - observou por fim -, e nós não podemos
chegar a nenhum pouso hoje; fiquemos por aqui mesmo.
- Mais um bocado - respondia o grupo; - estamos de certo
muito perto, temos andado tanto...
- Paremos; se houvesse algum pouso perto os
urubus não estariam comendo um corpo humano.
A objeção da velhinha era irrespondível e as
afoitas companheiras tiveram de ceder diante deste golpe decisivo da realidade.
-
Não havemos de dormir no meio da estrada; caminhemos até a primeira árvore.
A
marcha fadigosa continuou com tanta celeridade quanta era possível obter depois
de tão penosa jornada. As árvores, porém, pareciam ter desaparecido todas da
face do solo. Só o capoeirão, mordido pelas soalheiras, amarelo, silencioso,
quase despido de folhagem, estendia-se para ambos os lados, repassando o
coração da mísera família da mesma tristeza da sua solidão e esterilidade.
-
Até a primeira árvore - repetiam de quando em quando.
A
claridade crepuscular diminuía mais e mais, e a noite descia com a desesperança
sobre a estrada e sobre os corações.
O
terror, invadindo os espíritos crédulos, povoava os arredores de espectros e
rumores sobrenaturais, e a família conchegava-se cada vez mais, como se assim
quisesse fortalecer-se contra o desânimo.
-
Não posso mais comigo - arquejou a velhinha -, morro; sigam vocês com as
crianças, eu as acompanharei de longe.
Pelo
silêncio da família julgar-se-ia que ela havia acedido, mas o retardamento do
passo demonstrou que naqueles corações não havia ainda guarida para semelhante
egoísmo.
A
noite, porém, indiferente a tamanho sofrimento, avassalava rapidamente os últimos
clarões do dia, e, de mistura com ela, a sombra do mato marginal aumentava o
temor das caminheiras. O crepúsculo mortiço, como um olhar de idiota,
assemelhava-se, porém, a um abraço longo de pai em hora de despedida, tão pouca
era a vontade que tinha de furtar-se da contemplação das míseras mulheres.
-
Vejam, vejam, lá; uma árvore, lá está ela, é talvez um cajueiro, vejam.
-
Mais um bocadinho de coragem, minha mãe; está ali uma árvore - disse a mulher
de Virgulino dirigindo-se à velhinha; - amanhã não caminharemos senão muito
tarde.
A
velhinha limitou-se a menear afirmativamente a cabeça e as moças, encorajadas
pelo abrigo, apressaram a marcha.
De
fato uma vetusta maçaranduba abria, não longe, a copa vastíssima que parecia um
docel auriverde esquecido no meio da vegetação moribunda. A ramagem pendida,
meneando-se morosamente ao sopro da tarde, que se fazia comparar ao resfolegar
arquejante da natureza descansando da fadiga canicular, acenava às caminheiras
com a bondade insinuante da hospitalidade espontânea.
-
Não repara, mamãe? Podemos até pendurar as redes nos galhos.
-
Achamos uma boa casa; descansaremos à vontade.
Estas
ponderações da súbita coragem, que lhes assomou ao ânimo, aumentaram a alegria
geral por uma circunstância que não teria valor em outra qualquer ocasião, mas
que no presente era de uma importância máxima. O vagido fraco de uma criança
ecoava, derramando no espírito da etenuada família o contentamento expansivo do
encontro de companheiros no meio da solidão.
-
Não somos os primeiros a chegar - ponderou sorrindo a mulher de Virgulino -, já
há donos deste lado da casa.
-
Tomemos conta do outro e façamo-nos amigos dos nossos vizinhos.
Foi
extasiada nos transportes de tão justa alegria que a mísera gente hospedou-se
debaixo da velha árvore, a sentir-se feliz como viajantes fidalgos que pudessem
apear-se às portas de um palácio. As próprias crianças pareceram reanimar-se e
perderam o ar tristonho, a acentuação profunda de enfado que lhes embaciava o
semblante. As moças começaram logo a atar as longas cordas das suas redes nos
braços da corpulenta maçaranduba, que sussurrava como a voz dos vassalos de um
hospedeiro, que conversassem acerca dos hóspedes recém-chegados.
Só
depois de algum tempo, a atenção da esposa do bandido, que era a mais forte das
companheiras e que se estava ocupando de aprontar a refeição, voltou-se para o
choro da criança. Tinha necessidade de lume e lembrou-se de remover a
dificuldade de obtê-lo indo pedi-lo aos próximos vizinhos.
-
Quem vem comigo até aquela casa? - perguntou a sorrir; - precisamos de fogo e
não temos.
-
Prontas, nós ambas, e para fazer calar a criança levaremos bolachas para
dar-lhe.
As
três caminharam na direção do choro da criança e só pararam na distância de uns
20 passos, reparando que era uma outra criança quem acalentava a chorosa.
-
Como chegou aqui esta pobre gente! - ponderou Maria, a esposa do bandido. -
Dormem a gosto, enquanto o filho esgoela-se de modo que já está rouco.
-
Estão com um sono de ferro, ou cansados a mais não ser - respondeu uma das
irmãs; - vejam que fome não traziam esses desgraçados.
-
O pior é que eu não vejo fogo e parece que perdemos o tempo vindo cá.
-
Eu falava sempre - observou a irmã; - acordava-os por amor da criança.
Deram
mais alguns passos e foram parar junto do grupo formado por uma mulher ainda
moça e pelas duas crianças. A mulher, deitada de lado, muita espichada, com os
braços estendidos de modo a formar um ângulo obtuso com o resto do corpo, tinha
os dedos enterrados no chão arenoso e deixava a descoberto, sobre os frangalhos
de uma camisa enegrecida, os seios muxibentos. Sentada muito conchegada a ela,
a mais velha das crianças, que devia ter cerca de cinco anos, muito magra e
coberta apenas pelos farrapos de uma camisola, tentava ajeitar a que chorava,
que não teria mais de seis meses, aos seios maternos.
-
Que sono - observou ainda uma vez Maria; e, levantando a voz, timbrou
vigorosamente um pedido de licença.
-
Ela não quer ouvir - respondeu a criança; - eu estou chamando-a desde de tarde
para dar a maminha ao maninho e ela não se importa.
-
É que está doente, filhinha; espere que eu a acordo já.
Maria
inclinou-se por sobre a desconhecida e pôs-se a sacudi-la pelos quadris,
chamando-a com acentuação cada vez mais forte. O trabalho foi inútil, a mulher
não se moveu, imobilidade que surpreendeu desde logo as recém-chegadas.
-
Eu não disse que ela não se importa? - ponderou a criança. - O maninho já está
rouco e mamãe não quer ouvir, pensando que é manha dele.
Maria
tomou nos braços a criancinha e pôs-se a aleitá-la, ao passo que as suas irmãs
davam à outra as bolachas, que Pêra este fim haviam trazido, segredando-se:
-
Está bem mal esta infeliz mulher e talvez seja fome.
-
Você já está aqui há muito tempo, filhinha? - perguntou Maria à menina que
devorava as bolachas com a sofreguidão própria dos famintos.
-
Desde ontem, depois que deixamos lá atrás morto o papai.
-
Então o seu papai morreu? E onde morreu ele?
-
No meio do campo, aí mesmo na estrada e lá ficou.
A
lembrança do cadáver, que servia de pasto aos corvos, avivou-se, toda esbatida
no horror do quadro visto pelas moças, que limitaram-se a trocar olhares
compadecidos.
-
Mamãe - continuou a criancinha - esteve junto de papai dois dias, mas ontem de
tarde nos trouxe para aqui. Hoje de manhãzinha deu-me o resto de croatá, e,
depois de dar de mamar ao maninho, andou a comer folhas e a chupar umas raízes.
Depois ela me disse que estava ficando tonta e que havia de ser sono, queria
dormir e me deitou junto de si. Quando eu acordei, porque o maninho chorava,
ela já estava assim.
Uma
das moças abaixou-se e tentou afastar os braços da mulher, mas a frialdade, que
sentiu ao seu contato, fê-la levantar-se de um salto, como se a tivesse
impelido uma força oculta.
-
Não está dormindo, não, Maria, ela está morta - gritou toda trêmula.
A
mulher do bandido não se mostrou perturbada como suas irmãs, que logo se
afastaram; tomou pela mão a orfãzinha, que rompera em soluços ouvindo o grito
fatal, e voltou a reunir-se à sua família.
O egoísmo do instinto de conservação, brutal,
feroz, mas sem imputabilidade, recebeu-a aí com o mais pronunciado desagrado.
- Nós já somos tantos, Maria - resmungou a
velhinha -, e você bem vê que é impossível tratar agora de filhos alheios.
-
Eu tenho dois peitos - respondeu a boa mulher - e o meu leite chegará para
ambos. Quanto a estazinha ela não come tanto que eu não lhe possa dar um bocado
do que tocar aos meus filhos.
-
É verdade - disse uma das irmãs -, mas você não poderia carregar as três, e nós
já não podemos com as nossas, quanto mais com as cargas alheias.
-
Bem, eu ficarei - respondeu resolutamente a esposa do bandido; - há de passar
alguém que se condoa desses infelizes.
A
resposta de Maria impôs silêncio pela sua nobreza, e nenhuma das parentas da
heróica mulher ousou objetar-lhe, mas também, como se desde aquele momento a
houvessem segregado da família, nenhuma dirigiu-lhe a palavra durante a
refeição e nem tampouco ao deitarem-se, irritadas por verem desde então
começados o sacrifício grandioso. Maria, depois de aleitar a filha e a pupila,
deitou-as com a outra menina na sua rede, e, muito satisfeita, deitou-se
embaixo sobre andrajos que estendeu no solo.
O
luar momo e indiferente, como se representasse a absoluta impassibilidade da
natureza, inundava o capoeirão e, coando-se por entre a ramagem da maçaranduba,
revestia de um crivo de luz e sombra o corpo de Maria e o cadáver da mãe
desventurada. Pairava um escárnio pungente nesse brilho igualitário, que não
distinguia entre a morte e a heroicidade, entre a imobilidade do cadáver e
ataxia do mártir.
Na
tristeza ingênua ao local sentia-se alguma coisa que tinha a atitude de um
terra-nova negro, acocorado na sombra, lambendo o focinho com a larga língua
vermelha num acesso de gula, a rosnar muito atento para alguém que comesse. Era
o instinto de conservação da família, que, malgrado o ressonar de todos, velava
solícito espreitando os órfãos que dormiam na satisfação do quilo de uma longa
fome agora extinta.
Horas depois da quietação geral, quando as
fadigas das jornadas deliam-se já num sono profundo, a velhinha, a que mais
cansada se mostrara, revolveu-se na rede e sentando-se, fitou demoradamente o
lado em que repousava a esposa do bandido. Mas a superstição, a ouriçada
habitante da treva e a solidão, ergueu-se-lhe talvez diante, e a velhinha
voltando-se bruscamente para a banda em que jazia o cadáver, mergulhou-se
rápida e perturbada no leito.
Não
obstante, minutos depois, reagindo contra si mesma, levantou-se e, descendo
cautelosamente, foi, esgroviada e trôpega, com um lençol imundo ao pescoço,
parar junto da boa mulher, a quem chamou repetidas vezes para certificar-se de
que estava completamente adormecida. Maria não respondeu e nem ao menos rompeu
por instantes a uniformidade do resfolegar.
"Bem,
dorme profundamente - pensou a velha e caminhou para a rede em que dormiam as
crianças.
Abriu-a, fitou os três rostos serenos, mas
hesitou e ficou a tiritar de modo a ter necessidade de agachar-se para não dar
em terra. Reanimou-se, porém, com um assomo subitâneo de coragem, e,
erguendo-se, tirou jeitosamente uma das crianças e caminhou até o meio da
estrada, onde o luar resplendia em toda a inteireza do seu brilho.
O
olhar hostil, minucioso como um microscópio, cravou-se então no semblante da
criança que, não sentindo-se magoada, prestava-se ao necessário exame. Depois
desta precaução, a velha sentou-se cavando um colo em que deitou a criança,
pôs-se a dobrar muitas vezes o lençol até que converteu-o num espesso quadrado,
pouco maior do que o rosto do menino.
A
lua, alumiando com a sua claridade elétrica este grupo, deixava ver-lhe as
feições, ambas maceradas, uma, porém, calma como a inocência, a outra
perturbada como o crime.
O lençol foi então aplicado e ajeitado
delicadamente sobre o rosto da criança, mas para logo a velha, segurando-o com
uma das mãos pelas extremidades, apertou-o vigorosamente e, com mão posta sobre
a boca, de encontro às narinas da vitima indefesa, sufocou-lhe os fracos
vagidos.
Quando os movimentos desordenados da asfixia
cessaram, a velha, deitando sobre a estrada o lençol, sacudiu por vezes a
vitima e depois, segurando-a pela cinta, ergueu-a até a altura dos olhos. A
cabeça, os braços e as pernas da infeliz criança penderam no relaxamento da
morte.
Um
longo suspiro foi assoprado pela velha assassina que, levantando-se, dirigiu-se
de novo à rede, mas agora com tanta presteza que parecia haver remoçado com a
alucinação do crime.
O cadáver foi posto ao lado da filha de Maria,
e a outra órfã veio tomar no colo da velha o lugar deixado pelo irmão.
A estrada foi de novo teatro de uma cena igual
à que acabava de desdobrar com o máximo requinte da perversidade, e outro
cadáver veio colocar-se ao lado da inocentinha, que era a causa inconsciente do
duplo assassinato.
Desembaraçando-se da miseranda carga, a velha
perdeu de chofre a força que a animava, e não pode ganhar a rede senão
arrastando-se. Aí, porém, esperava-a o remorso, hirto, inexorável, fatal, e ela
sem poder deitar-se, sem poder desfazer em lágrimas o peso grande que lhe esmagava
o coração, conservou-se sentada durante toda a noite, a encarar, com a atenção
de um tigre esfaimado, o sarcófago das vítimas, onde, entretanto, o ambiente
continuava a pôr nos pulmões da filha de Maria ruídos de vida.
A
madrugada, na sua suntuosidade de luz eletrizada pelos calores estivais, veio
encontrá-la na mesma atitude, que traía já a insônia do idiotismo.
-
O que tem vosmecê, minha mãe? - perguntou a moça que na véspera se mostrara
mais infensa à ação bondosa de Maria.
- Nada - respondeu a velha -, estou ouvindo se
respiram, por aquelas bocas, que devem acabar o sustento dos meus netos.
- Deus há de nos dar meios de poder arranjar
tudo melhor; descanse, vosmecê precisa de dormir.
- A noite foi muito comprida...
- Muito, mas a caminhada foi igual; veja se
dorme, é preciso, minha mãe.
A velha não respondeu, mas estremecendo como
se tivesse acordado de um espasmo nervoso e se encontrasse em lugar
desconhecido, pôs-se a reparar em torno de si.
- Veja como passou mal a noite; não tenha mais
susto; estamos todos vivos. Vamos, descanse.
E a moça, aproximando-se dela, constrangeu-a
carinhosamente a deitar-se. De junto da rede olhava com acentuada contração de
má vontade para a irmã, a quem foi acordar logo que a velha aquietou-se.
- Maria - disse ela - você vai matar nossa
mãe.
- Eu?! - exclamou Maria, erguendo-se
estremunhada.
- Que lhe fiz eu?
- Meteu-lhe medo tomando essas duas crianças.
Nós já fizemos o que podíamos; demos-lhes do que tínhamos. Podemos ainda
repartir com elas o que temos para as nossas crianças. E depois?... Eles que
sigam a sua sorte. Não somos os únicos que passamos por estas estradas; outros
que possam carregá-los hão de socorrê-los.
- Não - respondeu resolutamente -, não os deixarei; sigam
vocês adiante; levem vocês os outros seus sobrinhos, porque o pequeno fica bem
acomodado na minha cintura. O outro, que já não tem mãe, e que morreria se eu o
deixasse, irá nos meus braços; a pequena caminhará. Eu chegarei também, louvado
seja Deus.
- Não fale em Deus, mãe sem coração; Ele a castigará pela
morte de meu infeliz sobrinho. Antes a morte levasse aqueles dois demoninhos,
como levou-lhes a mãe! Mas eu tenho fé em que eles não durarão muito, e então
você não terá nem filho nem protegidos. Deus há de ouvir-me, pelo sofrimento de
nossa pobre mãe.
O coração materno de Maria estremeceu de pânico
supersticioso, ouvindo a ameaça, a praga horrorosa da irmã; mas a boa mulher,
vencendo o egoísmo que sentiu despertar-se-lhe inclemente e cego, respondeu
resolutamente:
- Seja, mas ao menos não se dirá que eu, sendo
mãe, neguei um pouco do meu leite e da comida de meus filhos a crianças que sem
isto morreriam de fome.
Caminhou
para a rede e, pondo-lhe a mão sobre os punhos, acrescentou:
- Eles morrerão comigo, e a morte não deve
doer muito quando a gente morre por motivo tão santo.
E
com a delicadeza peculiar às mães extremosas, Maria abriu a rede e, tomando nos
braços envolto em andrajos o cadáver do pupilo, veio, sorrindo, apresentá-lo à
irmã.
- Veja se era possível deixar esse coitado ao desamparo; já parece um defuntinho - disse, e, suspendendo-o para aproximá-lo aos seus lábios, ajuntou: - mas o meu leite ainda está forte e ele ficará tão forte como o meu próprio filho.
O
beijo hospitaleiro, com que Maria queria afagar o mísero órfão, fê-la, porém,
extinguir o sorriso que tinha nos lábios e reparar para o rosto da criança. Não
proferiu uma única palavra, apesar da certeza dolorosa de que tinha nas mãos um
cadáver, e, com grande satisfação da irmã amuada, cujo semblante alegrou-se notando-lhe
a perturbação, correu até a rede e por um dos braços tentou levantar a menina.
O corpo inanimado da infeliz, erguido violentamente, caiu inerte logo que Maria
o abandonou, e a boa mulher bradou com uma entoação indescritivelmente sentida:
- Ai! As pragas destas bruxas mataram as
coitadinhas; ambas, ambas estão mortas!
A espectadora desta cena, bufando um escárnio,
resmungou:
- É capaz de ficar doida esta desgraçada; não
se incomodaria se visse o filho morto, contanto que se salvassem os dois feiosos.
Maria,
porém, com igual precipitação largou no solo o cadáver do pequenito e tomou nos
braços o filho, beijando-o sofregamente e sacudindo-o, como se na sua
imaginação já se lhe afigurasse vê-lo morto. A criança abriu os olhos
sonolentos, começou a chorar, mas, reconhecendo-a e sentindo nos lábios o
contato acariciador do seio materno, calou-se.
-
Ria, ria, malvada - gritou ela para a irmã; - este vocês não matarão com as
suas pragas sem que eu as mate também.
As
outras irmãs e pessoas da família acordaram precipitadamente e a velhinha
perguntou a tartamudear:
-
Vivem ainda estes dois demoninhos, não é?
- Morreram - gritou a filha -, mataram-nos.
Fizeram bem - respondeu tranqüilamente a
velha; eles matariam os meus netos.
Maria,
aleitado o filho, conduziu chorando os cadáveres dos dois pequenos até junto do
da pobre mãe e veio pedir à: irmãs que a coadjuvassem para prestar um último
serviço aos desventurados.
Engenharam uma cruz com uns galhos secos da
árvore e depois foram buscar, no interior do capoeirão, braçadas de espinhos
com que cobriram os restos da esposa e dos filhos para que não tivessem a mesma
sorte do corpo do esposo. Ao menos os urubus gulosos de podridão não
profanariam aqueles despojos humanos.
O
sol nascente veio servir de brandão a esta solenidade tristíssima, e subindo
cada vez mais, ainda rubro como um ferro em brasa, projetou um raio sobre o
algodão encardido em que reatara o sono o filho da boa Maria, como se nele
coroasse a virtude materna.
A
família começou então a preparar-se para a partida, entrouxando as roupas
andrajosas nas redes sórdidas, e guardando cautelosamente as migalhas que
restaram da refeição matinal.
-
Graças a Deus - murmuraram as moças -, vamos ao menos como chegamos.
-
Vocês têm o coração de pedra - soluçou a esposa de Virgulino; - estamos comendo
a esmola que nos deram e vocês ficam contentes por não terem que reparti-la com
os que tinham igual necessidade. Daqui ao Ceará é longe e Deus permita que não
tenhamos de saber outra vez o que é a fome.
-
Rogue bem pragas, você as sofrerá também.
Deram
finalmente os primeiros passos da grande jornada, que as devia conduzir ao
povoado, que lhes fora indicado na vendola e onde deviam encontrar alguns
recursos.
A
velhinha, que vinha por último no grupo, vendo os netos caminharem a rir,
parou, como que para fazer também demorar dentro em si a agradável impressão
que lhe causava o quadro e resmungou:
-
Fossem dez, fossem vinte, fossem mil, eu os mataria todos!
Um
estremeção violento abalou-lhe o corpo e ela seguiu apressada até incorporar-se
ao grupo.
Quem passasse ao pé dos três cadáveres veria
sob os espinhos a mãe com os dedos cravados no solo, muito esticada como se
quisesse arrastar-se para ir empolgar a assassina.
V
Os
bandidos, estacionados na vendola, foram uma providência para as desoladas
famílias que deles se aproximaram.
Graças
a eles a família Queiroz não experimentou, durante o seu trajeto até o pouso,
os rigores da fome. Também dos lábios de d. Ana e das sobrinhas elevavam-se
continuamente aos céus bênçãos aos desconhecidos, sempre que as míseras
mulheres viam à beira da estrada cadáveres apodrecendo ao sol e servindo de
pasto aos bandos de corvos.
No
pouso, porém, as circunstâncias da desditosa família agravaram-se e a miséria,
com todo o seu cortejo de horrores, confundiu-a com o resto da onda de
retirantes transbordada da paróquia de B. V.
A
princípio, o povoado em que se havia agora aglomerado a imunda enxurrada da
desgraça, pareceu um oásis abençoado no meio do deserto. A comissão de socorros
públicos tinha pelos desvalidos solicitude fraternal, e estes bendiziam o
destino por lhes haver feito deparar com esse refúgio aos seus sofrimentos
tremendos. Mas, pelo começo de novembro, o deserto veio suprimir este único
abrigo e expulsar daí os miseráveis retirantes, vibrando contra eles os mais
pavorosos flagelos.
Primeiro
atirou sobre o lugar uma enfermidade semelhante à cólera e que trazia
fatalmente a morte dentro em três dias, em seguida estancando as poucas fontes
de que se abastecia a localidade.
À tarde, em torno das cacimbas, travavam-se
lutas ardentes de que freqüentemente resultavam ferimentos e mortes. É que
aqueles que conseguiam encher uma pequena vasilha tinham por esta ração o
cuidado de um avaro pelo seu ouro.
O egoísmo da conservação mantinha a mais
estreita espionagem para que houvesse igualdade na divisão, e não obtivesse
tamina senão uma pessoa de cada família.
Durante
as horas da maior aglomeração, entre todas as mulheres uma sobressaía a todas
nas reclamações que de contínuo fazia. Não se contentava com se prover da sua
ração, aí ficava de pé a denunciar e a exigir que se verificasse se este ou
aquele não pertencia à família de um outro, que já havia obtido a sua porção de
água.
- Vá com Deus, Mundica - diziam os circunstantes cansados
de questões provocadas pela moça; - você gosta muito de tirar rusgas.
Mas a filha do sacristão Marciano continuava
imperturbável até que todos se retiravam, levando a questionar todo o tempo da
tamina.
A indisposição contra a Mundica era geral, mas
ninguém ousava acentuá-la, porque murmurava-se que um dos membros da comissão
de socorros tinha zelo demasiado pela moça e por todos os seus.
D. Ana sempre que voltava da fonte repetia às
suas sobrinhas:
- Eu, se pudesse tirar água em outra parte,
não iria mais à fonte. Aquela Mundica anda sempre a buscar ocasião de tomar
vingança contra nós. E um precipício.
A penúria aumentava dia a dia, e crescia com ela o temor
da honrada senhora que, para não dar pretexto à inspeção importuna de Mundica,
deixava-se por último no tomar da sua ração de água.
- Há gente que fica sempre para o fim e, em
vez de uma, tira duas, três vasilhas - disse Mundica, vendo d. Ana à espera.
- Pois faça você o mesmo - disseram alguns dos
circunstantes -, é fácil.
- Vamos esperar mais longe; hoje ela quer
pegar conosco por força - segredou d. Ana à Chiquinha -, e eu não quero trocar
palavras com tal mulher.
A tia e a sobrinha quiseram afastar-se, mas a
caçula, que chorava com sede, pôs-se a soluçar pensando que não teriam ração
naquela tarde. Em vão tentaram consolá-la e conduzi-la, a criança não atendeu.
- Tire um pouquinho da minha água, d. Ana -
disse uma das conhecidas da paróquia: - depois Vossa Mercê pagar-me-á.
D. Ana aceitou o oferecimento e a caçula
pôs-se a beber.
-
Vejam aquele conluio - gritou Mundica; - vem a velha, a sobrinha, cada uma leva
a sua ração e, ainda por cima, outros tiram água para dar-lhes. Desta maneira
não é admiração que fique tanta gente sem ter nem um gole para uma criança de
peito.
- Está enganada - respondeu a mulher que
obsequiara d. Ana; eu emprestei um nadinha da minha ração.
A
vingativa rapariga tirou, da resposta decisiva que recebeu, argumento para
confirmar o que afirmara, e discorreu chamando em seu auxilio testemunhas de
todos aqueles que ela sabia respeitarem-na, pela circunstância de ser a amante
de um dos comissários.
-
Não é verdade que eu já tenho falado. Romualdo? -perguntou a um dos guardas da
fonte, e voltando-se para outro: - não tenho eu notado sempre, Silvestre?
Os guardas que viam na menor hesitação o ódio
de Mundica a perseguição e, finalmente, a perda dos lugares, que lhes garantiam
os víveres para as famílias, responderam prontamente:
- Ser verdade, é, mas a gente fechava os
olhos, porque, fim de contas, uma panela de água de mais ou de menos era o que
secava a fonte. Demais era sempre por último.
- Qual a mesma coisa! - exclamou a filha do
sacristão.
- Isto é um furto aos outros, e aqui não deve
haver proteção para ladras. Eu lá as conheço desde B. V.
- Olhe que o melhor é você calar-se, Mundica -
ponderou a mulher; - se houve alguém conhecido em B. V. foi você.
- E o que tem você com isto? A história não é
consigo, seu caminho para não arrepender-se.
-
Eu vou mesmo, não tenho filha moça e se tivesse, não era para fazer o mesmo que
você faz.
- Diabos me levem, se você amanhã não amargar
o que está para aí a ladrar, e depois aquelas comborças que a salvem...
O silêncio da família
Queiroz irritou a agressora, que obrigar as agredidas a falar, continuou:
- Eu sei que há de haver quem repare em me
ouvir dizer isto daquelas santas, mas é que não as conhecem. Aquela velha, que
ali vêem tão beata no rosto, entregou a sobrinha mais velha ao vigário e depois
veio para praça gritar.
- Pode dizer o que lhe vier à boca - soluçou
d. Ana, e chamou as sobrinhas para se retirarem.
- Vejam se ela tem coragem para negar, vai-se
embora; ao menos neste ponto mostra vergonha.
- Em B. V. todos conheciam, como mulher
do vigário, você e não a sobrinha de d. Ana; todos sabiam que foi o velho
Marciano quem entregou a filha, e não a irmã do professor. Camborça é você -
gritou a mulher que fora involuntariamente causa do falatório de Mundica.
Todos os excessos, a que pode chegar uma
língua desenvolta, foram proferidos pela filha do sacristão, certa do seu poder
e da sua influência sobre a massa que a ouvia. A penúria geral fortalecia-a com
o temor comum, de que uma detenção pela favorita do comissário condenasse
famílias inteiras à morte pela fome.
Só a mulher que cedera a água às suas antigas
amigas da paróquia ousou fazer frente à poderosa Mundica.
- Fale para ai, mulher à-toa - exclamou por
fim; - você tem passado de dono em dono como um pangaré micuento; fale até que
vá cair nalgum monturo.
Mundica, atirando fora a toalha e a vasilha
que tinha sobre a cabeça, arremessou-se de encontro à mulher, não que recuou
diante da agressão, mas antes respondeu-a desfechando-lhe um murro no ombro.
- Perdida por um, perdida por mil - bradou
ela, e, contrastando com a cobardia da multidão perplexa em face de tanto
atrevimento, atracou-se com a insolente provocadora.
Dentro em pouco a Mundica, que cravara os
dentes no braço da destemida mulher, jazia por terra e era vigorosamente
esbofeteada.
- Deixem, deixem que ela me faça sinais, eu
mostrarei o que há de acontecer - gritou a agressora agora acovardada.
Como se só neste momento houvessem reparado na
cena, os dois guardas que riam, como quase todos, das atitudes e gestos das
duas lutadoras, puxando pelos seus rebenques - arma com que faziam a policia
dos retirantes - arrancaram à força de golpes a mulher heróica de sobre a
amante do comissário.
- Não é ela, eu não tenho
nada com ela - bradou a vingativa filha do sacristão: - as criminosas estão
ali.
Assinalou então as míseras d. Ana e suas
sobrinhas, que se haviam detido em vão, para acomodar sua defensora.
-
Fora com aquelas comborças! - gritou Mundica. - Fora com aquelas víboras!
- Fora, comborças! - repetiu a multidão, que
via no partido das desgraçadas a fome e o desamparo. - Fora, com D. Ana e
Chiquinha, aturdidas pela injúria que lhes era vibrada pelo clamor uníssono de
mais de duzentas pessoas, não tiveram forças para retirarem-se, e limitaram-se
a abraçar-se e a confundir as suas lágrimas e soluços.
-
Olhem aquelas descaradas; ainda querem ficar! Não vêem? Querem ficar! Fora,
comborças!
Os dois guardas caminharam até junto das duas
infelizes, e, cegos pela subserviência, impelidos pelo temor da perda do
emprego, repassados do egoísmo da conservação, levantaram os chicotes e, desfechando
os golpes sobre as costas das duas indefesas, exclamaram:
- Vamos! Arreda para fora, cambada; aqui não
há vigário como o de lá; todos são tão bons como tão bons.
Magoadas pelos golpes brutais, d, Ana e
Chiquinha separaram-se e correram, deixando entregue aos vaivêns da multidão a
mísera caçula, que soluçava e tentava acompanhá-las na carreira precipitada.
A grita, perseguindo insistentemente as
fugitivas, as impeliu até a porta da sua mesquinha morada, onde um afago as
esperou espontâneo e expansivo. Partiu ele do Amigo, o cão leal que preferiu à
comezaina de alimárias mortas e ao tripúdio na podridão acompanhar os seus
donos e comungar com eles a penúria e a vergonha.
Era ele o braço forte da casa. Ainda que as
fomes repetidas o houvessem emagrecido, conservava-se corajoso e incansável,
retribuindo com requintes de generosidade as pequenas ingratidões da família.
Às vezes, quando a ração era menor, d. Ana e suas sobrinhas não se apiedavam do
olhar ávido do Amigo, que assentado sobre as patas traseiras, agitando as
orelhas, lambendo com a língua muita vermelha o focinho negro, suplicava-lhes
um bocado. O Amigo, porém, não as esquecia nunca. Sempre que ia à feira e que
podia afrontar as cóleras dos vendedores de carne, que desancavam os cães a cacetadas
e pedradas, abocanhava algum pedaço e, em vez de devorá-lo, trazia-o para casa
com a inteireza de um criado fiel.
Ao verem o único amparo que lhes restava, as
duas fugitivas pararam de súbito e olharam-se arquejando, como se a dignidade
de ambas aconselhasse-lhes uma vingança. Mas o cão fitou-as, rodeou-as, e
depois de farejá-las, correu para o lado da fonte.
A multidão ria a bom rir, assobiando e
chasqueando das pobres mulheres, que representavam a honestidade fugindo
acossada pelo impudor.
- É como se lhes tira o fogo.
- Não há nada melhor para acalmá-las.
- Está bom, com esta lição elas nunca mais se
hão de encrespar; perdem a proa.
- Não vê - exclamou Mundica -, isto é o
começo; eu as conheço desde pequenas e sei das suas maretas.
O Amigo internou-se na mó latindo
furiosamente, como se ele só quisesse dar combate a todos que o cercavam. Os
olhos vermelhos, o ar de resolução, a ousadia do corajoso companheiro da
família Queiroz assombraram, e um grito repetido por todos estrugiu
propiciamente.
- Está danado! Ê um cão danado!
Dentro em pouco a aglomeração dissolveu-se
pelo pânico e o Amigo corria ao encontro do grito fraco da mísera caçula.
D. Ana e Chiquinha, que muito mais que a
afronta das vergalhadas sentiam a perda da infeliz companheirinha, ao verem-na
de volta à casa, proferiram ambas a deliberação única a tomar:
- Vamos deste maldito lugar!
E d. Ana acrescentou:
- Antes que a vingança daquela fera se estenda
até esta coitadinha.
Na manhã seguinte as desgraçadas filhas e irmã
do honrado Queiroz deixavam o pouso insultadas e indefesas.
VI
A cena da fonte foi a conversação de todo o
dia, e a fama do poder de Mundica circulou não só pelo abarracamento dos
retirantes, mas até pelos interiores mais recatados das casas do lugar,
despertando viva curiosidade.
O próprio vigário, que era um qüinquagenário,
sentiu desejo de conhecer essa formosura que assim se impusera ao ânimo do seu
amigo comissário, um homem viúvo e que merecia a geral consideração.
“Deve ser uma flor” - ponderou o pachorrento
vigário Belmiro d'A... -, hei de ir vê-la para ver se a trago ao seio da
igreja.
À tarde conseguiu encontrar-se com o
comissário e foi com ele até o abarracamento, a conversar indiferentemente
sobre a seca. Chegados, porém, o vigário, cuja reserva a respeito da
conversação obrigada do dia lisonjeava muito o comissário, acometeu-o de
frente.
- Onde é que está a favorita?
O tom de que se serviu, porém, era tão doce,
tão atencioso e sacerdotal, que o surpreso comissário apenas pode desculpar-se
com uma negativa banal.
- Ora, todos têm a sua fraqueza - disse o
vigário; - afinal de contas você comete a penas um pecado venial.
O comissário, cedendo à amabilidade do pároco,
conduziu-o até o cubículo em que residiam Mundica e a sua família.
- Cá está o sr. vigário, Mundica - disse o
amante enfatuado pelos gabos que ouvira à beleza da preferida; - vem
repreendê-la, como eu já o fiz hoje, pela sua briga de ontem.
Entraram os dois, e Mundica, com a afetada
docilidade a que se afizera para domar os ímpetos do vigário Paula, veio
cumprimentá-los.
- Contam sempre demais, sr. vigário; deve-se
sempre partir ao meio o que se ouve.
- Mas ainda assim...
- É porque Vossa Mercê não sabe; são queixas
velhas.
Toda a família da amante do comissário veio
fazer sala a tão ilustre visita, e a velha mãe, vaidosa por gozar um momento da
sua vida de outrora, ouvindo em casa a voz de um padre, mostrou um por um todos
os filhos.
- Esta já está mocinha, já mulher também.
- E bem mostra que é irmã da Mundica -
acrescentou o comissário, sorrindo-se para o vigário.
- É uma família de formosuras - ponderou
judiciosamente o qüinquagenário, que passou a sua boceta à velha mãe.
A visita foi pouco demorada e os dois hóspedes
retiraram-se sem que a repreensão, que dera-lhe pretexto, fosse formalmente
feita. De volta para o povoado o pároco, buscando rodeios evangélicos,
desfiando frases sentimentais, chegou finalmente ao que parecia ser o alvo das
repetidas considerações que fazia sobre a família.
- E, diga-me cá, a pequena, a Amelinha também
já terá a desgraça de ser como a irmã?
O comissário, fingindo não compreender a razão
da pergunta, respondeu distraidamente:
- Homem, para lhe dizer a verdade, não sei; o
que me parece é que ela não o é, porque não pôde; porém, mais dia menos dia...
- É; em tempos de calamidade é muito difícil
que a pobreza possa conservar-se pura. Lá diz o rifão: "Quando a
necessidade bate pela porta da frente a virtude sai pela dos fundos”.
- Se efetuar-se o que se diz do novo
presidente, eu não lhe dou uma semana. Aquela gente não conta muito com estas
coisas. De brio eram a d. Ana e a tal Chiquinha, e essas morrerão à fome antes
que cedam a honra.
- Para estas épocas não servem...
- Está claro, por melhor que seja o coração,
não gosta de ver orgulhosos na miséria. Eu não sei o que vai ser delas. É
verdade que, de uma hora para outra, muda-se tudo, e a Chiquinha não deixa de
ser bonita. Boa noite.
- Boa noite, eu já sei que tem ainda muito que
fazer no abarracamento.
Riram-se ambos e separaram-se.
O vigário, que estava próximo à casa,
dirigiu-se para ela pachorrentamente pensando consigo que era bem bom ser como
o comissário, um viúvo rico e respeitado. Quanto a si era pároco, devia
manter-se pelo menos cauto, sem sequer lançar um olhar indiscreto, e quando
muito saboreando no silêncio algum pomo caído da árvore da vida.
Abeirava a entrada da sua habitação, absorto
neste cogitar, quando um homem todo vestido de couro com um lenço de Alcobaça
atado ao rosto, tomou-lhe o passo e cumprimentou-o pelo nome.
- Boa noite - respondeu o vigário com a secura
do mau humor de quem já está cansado de dar pousada a desconhecidos.
- Vossa Reverendíssima pode dar pousada a um
colega?
- Esta casa recebe sempre como irmão os
membros do meu santo ministério..
Contrastando com a cordialidade das palavras,
o olhar do pároco fitou penetrantemente o desconhecido, a quem fez entrar
guardando alguma distância. Dentro, via-se nas feições de Belmiro d’A... um ar
de incredulidade e o passar célere de um pensamento assustador.
"É talvez um ladrão, ou algum impostor
que invoca o nome da minha classe para desfrutar-me.”
O desconhecido, porém, ainda que percebesse o
embaraço do seu hospedeiro, conservou a imperturbabilidade de quem fala a
verdade.
- Vossa Reverendíssima não pode acreditar que
eu seja seu colega, e é de feito incrível que um sacerdote da nossa santa
religião veja-se reduzido à miséria de andar descalço. Leia, porém, estes
papéis e convença-se.
Passou um maço de papéis ao vigário, que,
negando-se polidamente o suficiente para prolongar uma insistência, pôs-se a
ler.
- É então o vigário Paula, de quem tenho
ouvido falar? Ali de B. V., não? Disseram-me, com efeito, que havia
abandonado a paróquia.
- Que remédio; a calúnia pode tudo neste mundo
e eu fui uma das suas vítimas.
Desfiou longamente, adulterando-os, os fatos
que agitaram tão desastradamente a paróquia de B. V., e tanta foi a
perícia com que o fez que Belmiro d'A... comoveu-se até as lágrimas.
- É um povo endemoninhado - comentou o
qüinquagenário; - merece bem a calamidade que o tortura.
- Em dobro - murmurou Paula - e eu, onde quer
que os veja, hei de fazer-lhes a guerra que a nossa santa igreja aconselha.
Árvore que não dá bons frutos corta-se pela raiz.
- E eu que me condoía tanto da sorte dos que
estão por aqui pousados.
- Ah! Eles estacionaram aqui? - perguntou
Paula perturbado. - Pois bem - acrescentou
, espere pelas conseqüências, não lhe dou muito tempo que não haja
barulho.
- Eles já deram o pano de amostra; ontem duas
das mulheres já obrigaram os guardas do abarracamento a acabar com uma briga e
por meio dos rebenques.
- E os chefes das famílias consentiram?
- São de famílias sem chefes, uma d. Ana e
uma... Mundica, gente à-toa.
Os nomes das duas mulheres, tão conhecidos de
Paula, fizeram-no estremecer e o pároco, reparando na comoção do colega,
perguntou-lhe:
- Conhece-as?
- Ah! Bem sabe que nós os vigários conhecemos
todos os fregueses.
- Pois foi com elas o fato.
Paula abaixou a cabeça e pôs-se a olhar
consternadamente para o solo, enquanto Belmiro d’A... narrava outros
acontecimentos da sua paróquia. Quando houve uma pausa, perguntou o hóspede:
- E a d. Ana foi também castigada com
rebenque?
- Ela e a filha foram as escovadas, porque
foram as que provocaram o conflito.
- É impossível - exclamou Paula; - se as
conhecessem não lhes fariam esta injustiça, são incapazes.
- Pode ser - respondeu Belmiro d'A... - mas o
caso é que elas chucharam e bem caladinhas.
- Pois eu hei de vingá-las.;
- Seria em vão tentar; a Mundica é a amante do
comissário e já vê que é ela quem tem sempre razão.
- Deve ser assim - murmurou Paula, mordido
pelo despeito -, as mulheres como estas são as que encontram defensores. D. Ana
e sua sobrinha são honestas. Sabe o colega dizer-me onde elas estão?
- Partiram, segundo ouvi do comissário; sabiam
que nada mais teriam no abarracamento.
- Víbora, eu te castigarei - resmungou Paula
pensando em Mundica.
Certo de que tratava com um colega, o pároco
Belmiro esmerou-se na hospitalidade e em breve anunciou a Paula que não
tardaria a ceia.
- Quem sabe se não queria tomar primeiro um
banho? -. perguntou.
- Sem incômodo.
Temos tido uma falta de água enorme; a fonte
não dá para que cada retirante possa ter uma panela de água por dia. Mas isto
não quer dizer que eu não tenha até para dar de beber e lavar o meu cavalo.
- Em compensação cuida das almas desses
desgraçados - ponderou Paula no seu tom irônico; - falta-lhes água, mas lhes
falta a palavra de Deus.
- Já está posta a água, e lá no quarto
encontrará roupa branca e chinelos. Sempre hão de agradar-lhe mais do que esta
véstia de couro e trazer os pés descalços.
Isto é um acolhimento de Marta a Jesus.
- Se quiser barbear-se, tem lá estojo.
- Quanto a isto agradeço-lhe, fiz voto de
conservar-me assim até que fale ao bispo.
- Sempre faz mais efeito.
Riram-se e Paula entrou para o quarto de onde
voltou pouco depois vestido com a roupa do colega, rindo-se com a satisfação de
quem se sente bem.
- A mortalha é menor que o defunto - disse
Belmiro - mas ainda assim não deixa de servir.
- Muito a gosto.
- Vamos à ceia.
A mesa do pároco estava resplandente
confrontada com a penúria geral, e Paula acentuou bem a impressão de que
recebera com tanta magnificência.
- É uma hospedagem real.
- É unicamente a boa vontade de um pobre
colega. Sirva-se dessa galinha ensopada, não deve estar gorda, mas também só
temos por aqui o milho do governo.
- Pois é o suficiente para engordar bem a
criação.
- Qual, os retirantes são uns miseráveis
esfaimados que comem quanto milho vem. Aos meus cavalos só posso dar ração duas
vezes ao dia.
- Desta maneira o pobre animal talvez não
resista à seca...
- Não pode ser mais; temos de dar a essa gente
todas duas rações por semana, e é preciso que vá um pouco de milho para o
mugunzá. Há de ver como esses demônios estão nutridos, ao passo que os meus
pobres animais emagrecem.
"Este é que faz bem", pensou Paula;
"eu não tratei de arranjar-me, trabalhei para o bispo."
- Aquele assado, padre, não deve estar mau,
porém beba deste vinhozinho que é assim, assim.
- Porto, hein? Tem disto por cá?
- É do que vem para a dieta dos doentes, e eu
fiquei com as sobras. Também eles nunca tiveram tais dietas, não lhes faz
nenhuma falta. Prove.
- Não o bebia, há mais de ano; lá por B. V.
já não aparecia nada semelhante. Boa pinga - disse Paula, escorropichando o
cálice.
- Se não houvesse estes achegos, colega, não
havia quem aturasse a canalha que tem descido do sertão. É para fazer cabelos
brancos. Sujos na vida, hediondos na morte; vivem na imundícia como as varejas,
e morrem como gado pesteado. Eu não tenho outra vida senão ungi-los e
encomendá-los. São uma praga.
- E não há esperança de que se ponha uma
barreira a este dilúvio de gente?
- Nós temos alguma esperança; com a falta de
água é quase certo que eles emigrem.
- O melhor é apontar-lhes a capital, que vão
para lá.
- Aqui eles não ficam nem mais uma semana; a
fonte não dá água para tanto tempo e o povoado não há de morrer à sede por amor
de uma canalha.
- Quanto aos de B. V., juro sobre os
santos Evangelhos, não valem uma pitada de farinha.
- Nem a Mundica? - sorriu o qüinquagenário. -
Por esta eu era capaz de dar um saco.
- Eu também não me negaria, para matar algum
tempo.
- Você está mais que autorizado a dizer, eu já
sei que foi o feliz...
- Infelizmente não; já era país descoberto.
- Mas você tratou-a então como país
conquistado.
- Lá isto não contesto, mas era o meu direito.
- E a irmãzinha? O que me diz? Tem um arzinho,
um não sei quê...
- Pode-se aproveitar para espairecer depois de
uma confissão.
Continuaram a mastigar, a beber e a alegrar-se
conversando sobre as moças do abarracamento, mas o vigário Paula conservava-se
impressionado, apesar da licença das palavras do colega. Com a sua habilidade
natural foi conduzindo de novo a conversação à briga de Mundica e d. Ana, e
afinal ao ponto em que desejava tocar.
O colega confessou alguma vez a família de d.
Ana?
- Não; ela mostrava-se muito esquiva para a
igreja, e eu só vim a saber o nome da velha ontem depois da briga.
- Então não conhece ninguém da família?
- Não; sei apenas que ela compõe-se da velha,
de uma mocinha dos seus 15 anos, duas meninas já crescidas e uma pequena.
- E quem lhe disse é pessoa que as conhecesse
bem?
- Foi o comissário, que sabe o número das
pessoas de todas as famílias, porque tem de distribuir as rações.
- Afiança-me então que não havia mais ninguém?
- Afianço pela informação do comissário, mas
você que é da paróquia e que conhece a pequenota mais velha...
- Infeliz
- murmurou Paula - Talvez esteja morta.
- O que é que me diz da mocinha?
- Que é uma virtuosa menina, e que hei de
fazer-lhes o bem que puder.
- Então é deitar-se a correr pela estrada
fora; porque no andar que levam, com as costas a arder, devem estar longe.
Paula reconcentrou-se. A frieza do colega
irritava-o, porque vinha contrastar-lhe a espontaneidade da compaixão, para com
aquelas a quem havia condenado a tão profundos sofrimentos. Em vão o Rev.
Belmiro prodigalizava ditos com pretensões à graça, Paula apenas sorria e
respondia ao que era obrigado.
- Ite, missa est - exclamou por fim
Belmito, levantando-se.
- Deo gratias, - respondeu Paula
e acompanhou o colega, que o conduziu à porta do quarto.
- Durma em paz, amanhã mostrar-lhe-ei a gente
da terra. Há de gostar de ver, depois da ausência, a formosa Mundica.
- Agradeço-lhe o favor, mas não posso aparecer
a todos, antes de haver falado com o sr. bispo. Não quero dar azo a que a
calúnia de novo se levante.
- Faz muito bem, mas eu cá não lhes dava a
menor importância. O que pode valer uma queixa de retirantes?
As últimas palavras do vigário Belmiro ficaram
ressoando como um suave consolo nos ouvidos de Paula.
A crueldade de Mundica, porém, a barbaridade
da sua vingança, que se estendia de Eulália a toda a família Queiroz, o valimento
de que ela gozava junto do comissário, que era rico e respeitado, assomaram na
memória do foragido como tremenda ameaça. Demais a consciência não cessava de
acusá-lo pelo desbarato da paróquia, e noites inteiras passava-as ele a
debater-se contra larvas que vinham afear-lhe a insônia. ,O espectro de Antão
Ramos, principalmente, não o deixava descansar, perseguia-o de contínuo,
pedindo-lhe conta do destino da sua família, para quem o malsinado vendeiro
acumulava em ouro os remoques e humilhações, que lhe custavam a usura. Horas e
horas, com a impassibilidade de uma pêndula, a sua consciência levava a
perguntar-lhe pela mulher de Antão Ramos e pelos filhos, e a imaginação,
tremendo juiz que não dorme, que não se suborna, desdobrava-lhe quadros
medonhos como resposta.
A visita que por ele tinha sido feita à
vendola, quando Antão Ramos desanimara no meio da empresa do incêndio do
engenho; aquele quadro de felicidade doméstica - a mãe e o filho são e robusto,
o pai a convalescer entre carícias - transfigurava-se numa cena horrorosa. A
mulher deixava-se cair encostada a um arbusto desfolhado, à beira da estrada
afogada em sol, deitava nos lábios da criança o seio nu, mas este estava árido
como um rochedo, e o quadro era agora triste, porque era a esterilidade amamentando
um esqueleto. Para maior horror, Paula via ainda por detrás de si o espectro
inexorável de Antão Ramos, que o segurava com o aperto do remorso e o
violentava a contemplar a consciência da sua obra.
- Hei de vingar-me! - exclamava o desgraçado acordos
medonhos pesadelos. - Nela e nos seus.
A vingança, porém, espaçava-se. É certo que
Marciano já não existia; que entre os destroços da carnificina Paula o vira,
mas não era só ele o autor da sua perdição. Dias e dias tinha-os passado
espreitando as estradas para encontrar Mundica, e vira perdidas as suas
emboscadas, em que por vezes correu o perigo de ser reconhecido... Hoje a
encontrava, forte e poderosa, e perguntava-se assombrado o que devia fazer para
saciar a sua vingança, cujo desejo era tamanho como o de Mundica para com
Eulália.
Uma chegada inesperada deu-se na mesma noite a
oito léguas de distância da localidade em que Paula cogitava nos meios de
prejudicar a sua ex-amante.
O velho Inácio, ouvindo um assobio, correu à
porta com a precipitação do subalterno que vai receber o chefe.
- Homem, esta chegada de sopetão causa-me
susto e alegria: novidade no povo ou caça gorda?
- Uma trapalhada - respondeu Virgulino,
apeando precipitadamente; - antes de tudo notícias da d. Eulália.
- Sempre triste, quase à morte, a arrastar-se
pela casa, a chorar sem consolar-se.
- Já soube então da desgraça?
- Logo que melhorou, não foi possível
enganá-la e, como parece que só vivia para o filho, sofreu um golpe, que por
pouco não a levou para a cova.
Virgulino tratou de espairecer a impressão que
lhe causaram as palavras do velho, e, mudando bruscamente de tom, pediu com uma
prazenteria afetada que lhe dessem de jantar.
- Venha isto depressa: comi de manhã e só
agora paro; venha comida para meia dúzia.
- Bravos - exclamou o velho - já vejo que não
nos traz más novas; o apetite é o companheiro da alegria.
- Olhe, não precisa dizer quem está, por hoje,
amanhã tenho tempo para falar com a dona. Sempre é ocasião - resmungou - para
dar más notícias.
Inácio não demorou em vir ter com o seu chefe,
na saleta, que era destinada aos superiores da quadrilha, e, para merecer-lhe
uma palavra amiga, deu-se logo pressa em comunicar-lhe que a família de Eulália
tinha sido acolhida por ele da melhor maneira.
- Conheceu lá em B. V. a família da
dona, não é verdade?
- A d. Ana e quatro sobrinhas.
- Estão de luto.
- Não estavam, quando lá estive.
- Pois estão agora; conheci pelos rostos; têm
todos os mesmos traços, e conhecendo-as não tive mãos a medir; dei-lhes o que
pude. Fiz bem ou mal?
- Muito bem, velho Inácio; eu dou por elas até
a vida.
- Eu logo percebi.
Virgulino pôs-se a jantar sem responder á
tagarelice do velho, que se estendeu em gabos ao próprio procedimento.
- Elas não me disseram nada - acrescentou ele
-, nem cá a dona confessa que tem parentes, mas eu disse comigo:
são negócios de família e todos têm lá as suas
razões. Eu é que não posso fechar os olhos e fingir que não vejo o que é claro
como água, e por isso fiz o que me deu na cachola. A senhora velha veio
oferecer-me uns ouros e deixava-os comigo por um dez réis de mel de furo.
Percebi que grande necessidade havia para que uma mulher sabida não desse
apreço a ouro e não tive mais auto de pergunta, dei o que pude: comida,
pousada, matalotagem.
- Pena é que não possamos, dentro em pouco,
continuar a fazer o mesmo - murmurou Virgulino, que empurrara os pratos para o
lado; - isto está para findar.
- Como para findar? - perguntou Inácio, que
veio acocorar-se em face do chefe.
- É uma história muito comprida; mande vir
primeiro café.
O vendeiro saiu ansiando de curiosidade e
voltou depois de uma breve demora.
As palavras de Virgulino feriam-no fundo.
Estava velho, e havia longos anos vegetava
tranqüilamente na sua vendola. As velhas prateleiras, os caixões vazios, as
garrafas e botijas vazias, que apenas serviam para o cenário do pequeno teatro
em que estreitamente ganhava para subsistir, tudo que ali estava, a velha
balança de conchas de folhas-de-flandres, os copos esverdeados, o balcão tosco
e encardido, queimado pelos tições de fogo, os bancos desconjuntados em que os
ociosos vinham deitar-se para passar a sesta; tudo fazia parte de si, do
ambiente indispensável para que respirasse bem a sua velhice.
Um dia o Onça entrou-lhe pela casa com o
atrevimento dos bandidos, e riu-se desaforadamente da sua pobreza.
- Tem família, velho? – perguntou-lhe o Onça.
Como lhe respondesse afirmativamente, o
celerado sacudiu os ombros e apontou-o a um dos companheiros com uma exclamação
compassiva.
- Era ver que tinha família. Morre para aí,
mais dia menos dia, e afinal os filhos ficam a dormir sob os pés de pau e a
comer raízes.
- Sua alma, sua palma - respondeu o outro.
Mais tarde, Inácio, que se assustara com os
modos do Onça, e que se pusera à espreita, ouviu dizer:
- Este lugar é magnífico; se o velho quisesse
fazer negócio, eu dava-lhe até dois ou três contos de réis.
A ambição fê-lo esquecer todo o seu passado de
tranqüilidade e de honradez, e desde aquele momento resolveu aceitar a proposta
que lhe fizesse o Onça, fosse embora a perpetração de um assassinato.
O chefe de um dos grupos dos Viriatos não era
homem de recuar diante de nenhuma empresa; o dente das cascavéis tinha-o
ensinado a arrostar a morte e aquela alma obcecada não conhecia nem mesmo o
temor do túmulo. Dirigiu-se sobranceiramente ao velho Inácio, por uma frase
concisa como o golpe de um estilete, a qual o velho nunca mais esqueceu.
- Vou lhe propor um negócio, é segredo entre
nós; se você der à língua, morre.
Propôs-lhe que lhe cedesse a vendola, mas
continuasse a figurar como dono. Os Viriatos vinham fazer excursões por ali e
precisavam de um lugar e de uma pessoa contra a qual não recaísse suspeita. Não
podiam achar outro em melhores condições, nem ponto mais seguro. Inácio,
conhecido por todos como um velho trabalhador, econômico e sério, garantiria
com a sua continuação na vendola a paz e a vida da quadrilha.
- Quer aceitar? Tem dois contos de réis! - e
como o velho hesitasse - Mais um, e não paga o que comer. Serve?
No mesmo dia o velho irrefletido recebia das
mãos do Onça o preço de toda a sua vida de probidade, e assentava praça nas
fileiras da reserva do exército dos Viriatos.
A nova de que ia dissolver-se a quadrilha
causava-lhe portanto dupla dor. De um lado, o despertar da vida criminosa que
desde então começou a levar, sem outra contrariedade que não fossem alguns
assomos de mau humor do Onça, que eram rápidos e afinal rendiam gorjetas. De
outro lado a possibilidade de que o segredo, guardado por ele tão discretamente
viesse a divulgar-se, e assim os seus cabelos brancos aparecessem publicamente
manchados pela poeira de correrias de ladrões, de quem ele era o couto.
- Cá está o café, Desempeno, cá está, tome-o e
fale-me pelas 11 mil virgens.
- Está quente, meu velho - sorriu Virgulino
chupando um gole; - isto não é por ora sangria desatada.
- Se quer preparar-me para o golpe - resmungou
o velho - eu estou pronto para o que der e vier.
- Qual! Não é nada para desanimar. Nós somos
muito felizes, não caímos assim. Escute.
O velho Inácio colocou-se em frente do
bandido, e posse a ouvir sem pestanejar.
- Lembra-se de que nos mandaram chamar a toda
pressa? - perguntou Virgulino. - Era para dar um assalto em regra nas beiradas
do Crato. Foi bonito! Velho Inácio, coisa limpa! Era chegar, amordaçar e
apanhar o que havia, e tudo ligeiro como a correnteza de um rio cheio. Começou
a brincadeira ali pelas oito horas da noite e, ao romper do dia, tínhamo-nos
aviado por mais de uma légua em redor. Estávamos todos alegres e era caso para
a maior alegria...
- Dia de muito, véspera de pouco.
- O Pedro, aquele endemoninhado, cuja língua o
Onça tantas vezes quis cortar, veio transtornar tudo.
- Aquele pernóstico! Aqui é que ele nunca me
entrou - disse Inácio, levando a mão ao peito; - não sei o que me palpitava cá.
A conversação demorou-se por algum tempo sobre
as qualidades de Pedro. Era um rapazola, muito blasonador e espinhado. Gastava
a maior parte do dia em contar proezas, e aí mesmo na vendola, Inácio tinha-lhe
ouvido dizer que a sua faca ainda cheirava ao sangue derramado no assalto da
véspera. Poucos eram os companheiros que o estimavam e muitos relevavam que, de
há muito, era plano dele dividir a quadrilha e proclamar-se chefe de um grupo.
Temerário até a loucura, tinha na sua curta vida de bandido ações bastantes
para captar a boa vontade dos companheiros pela valentia, e por isso mesmo
estes, receosos de cegarem-se por esta eminente qualidade do rapazola
afastavam-se dele alegando os seus defeitos.
Pedro percebia a animadversão geral; mas não
desanimava e sobretudo, para conservar-se inabalável na sua empresa de
coroar-se chefe, odiava de morte não só os cabeças de turmas, mas também o
chefe supremo da quadrilha.
- Pois o Pedro - continuou Virgulino -
incumbiu-se de tornar um dia triste o da nossa maior felicidade. Havia muito
tempo - acrescentou ele - denunciavam-no sempre como pouco fiel. Diziam muitos
companheiros que ele guardava sempre para si metade do que podia obter nos
assaltos.
- Infame! - exclamou o velho. - Como se todos
não corressem igual risco.
- O Onça - prosseguiu o chefe -, quis muitas
vezes castigá-lo; mas eu detinha-o sempre e fazia com que não se criassem ódios
entre nós. Enfim, no Crato, a coisa foi feita sem jeito, e um dos companheiros
viu-o esconder um faqueiro de prata, que só ele dava para um homem ficar
contente consigo. O Onça não esteve mais para deter-se, e o castigo não se fez
esperar.
- Sem desfazer nos outros, aquele Onça é que é
sempre um pedaço de homem.
- Para dar um exemplo aos outros, o nosso chefe
deu-lhe sentença de morte se ele não declarasse onde havia escondido o que já
havia roubado aos companheiros. A certeza de que morreria fê-lo confessar, e a
primeira coisa que soubemos foi que a minha bolsa estava com ele, e, portanto,
que foi quem atacou d. Eulália.
- Veja que valentão que dá assaltos a uma
mulher que vai sozinha por uma estrada!
- O Onça não lhe pôde perdoar isto, e,
mandando amarrá-lo, fez o que nunca se tinha feito entre os Viriatos: surrá-lo.
- Isto é que é saber governar. Aconteça o que
acontecer, a surra já ninguém lha tira e ele precisava bem dela.
- No dia seguinte, meu velho, você talvez não
dissesse o mesmo lá no Crato. Pedro conseguiu o que talvez fosse
impossível conseguir em toda a sua vida:
dividiu o povo dos Víriatos. Mais de 60 companheiros fugiram com ele e deixaram
espalhadas pela estrada cruzes para dizer-nos que nos faziam guerra de morte.
- Se o medo é este, Desempeno, eu não o terei
nunca. Pinga de urubu não mata rês gorda.
- Aquilo é falso como Judas, e de emboscada
pode fazer-nos todo mal possível.
- Faz a alguns, não faz a todos.
- E se em vez de nos combater a punhal, ele
for à justiça?
O velho Inácio ficou estatelado a olhar para
Virgulino. A justiça era a sociedade inteira, e justamente diante desta não
queria o velho Inácio aparecer tal como era. Fizera-se criminoso para garantir
a felicidade dos seus, tinha filhas e o futuro delas foi o conselheiro mau, que
o levou à transação ignóbil com o Onça. Ouvir falar em justiça, era para ele a
evocação de todo o seu passado iluminado na sua pobreza pela honestidade,
tranqüilizado na sua parcimônia vizinha da penúria pela consciência de que
ninguém o amaldiçoava.
- É verdade que Pedro tem uma ambição imensa,
e talvez ela o convença de que o melhor caminho não é ir à justiça - respondeu
Virgulino.
- Acertou, ele não cai nesta.
- Mas - acrescentou Virgulino - ele pode muito
bem pensar que, denunciando-nos, fica-lhe mais campo para as suas façanhas.
- É também certo murmurou Inácio. - A verdade é que o diabo do cabra dá-nos água
pela barba.
- Há de custar, mas para isso é preciso andar
depressa. Esta venda, por exemplo, deve desaparecer daqui.
- Eu nada posso dizer.
Estas palavras foram proferidas com tamanha
tristeza que o bandido não pôde furtar-se à fraqueza de comover-se.
- Isto não quer dizer que você não a possa
reabrir mais tarde, se nós conseguirmos dar caça ao Pedro. Nestes três dias, o
mais tardar, tenho notícias.
O velho Inácio baixou os olhos submissamente.
Quando, seduzido pelo preço que lhe oferecera o Onça, vendeu a sua propriedade,
a alucinação momentânea não lhe deu tempo de meditar e por isso mesmo nada
sentiu. Demais soube logo que não teria de sair dali e, por isso,
não teve ocasião de avaliar a estima que tinha à vendola e ao torrão em que ela
estava situada. Agora que recebia ordem de abandoná-la, embora com a esperança
de que a ausência seria temporária, todos os seus sentimentos sublevavam-se,
Parecia-lhe que a vendola e as árvores e tudo da localidade estava assentado e
arraigado no próprio coração, e que as palavras de Virgulino eram golpes cruéis
desfechados para arrancá-los.
- Mil raios partam aquele traidor! - bradou o
velho.
- Eu não sei o que vai ser esta novidade para
a minha velha.
- Eu também não tenho coragem de dizer a d Eulália
que ela deve partir.
- Ela será a primeira a pedir.
- Mas eu terei de consentir, e depois que
perdi a esperança de reunir-me aos meus, essa moça tomou-lhes o lugar.
A conversação, arrastando-se de tristeza em
tristeza, continuou por algum tempo, mas acabou bruscamente por uma observação
de Virgulino.
Seja o que for, enquanto eu tiver mãos hei de
fazer valer a minha faca e o meu revólver. Depois, ninguém me conhece e eu
saberei fugir.
- Eu sou infelizmente conhecido de todos -
resmungou o velho Inácio e fitou atentamente o seu chefe.
Separados, Virgulino alquebrado pela fadiga
fechou-se por dentro, tirou a máscara com que se disfarçava e adormeceu
prontamente, como se nenhum sentimento o oprimisse. Inácio, porém, retirara-se
vagarosamente, parando, levantando os olhos para o teto, como quem vai
cogitando de coisas' tristes. Não se recolheu logo, ficou a passear pelo
terreiro, e por duas vezes veio até a porta da saleta, diante da qual estacava
e ficava a mirar-se com o olhar de quem duvida da sua própria ação.
- É preciso que, a sofrer, soframos todos, não
haja desconhecidos entre nós.
Virgulino dormia já profundamente, quando o
velho Inácio foi acomodar-se repetindo a sua frase igualitária, que por si só
era um crime gravíssimo diante dos estatutos da quadrilha.
Na manhã seguinte, ao encontrarem-se, o velho
Inácio tinha o semblante de tal maneira demudado que o chefe não pôde furtar-se
a perguntar-lhe a causa.
- A justiça ainda vem longe, velho, não vale a
pena adiantar sustos e pesares.
- Você fala assim, Desempeno, porque ninguém
lhe poderá dizer fora daqui: você é dos Viriatos. Esta máscara...
- É verdade; mas não a deixarei antes de ver
que tudo está perdido; ao passo que você pode hoje mesmo abandonar-nos.
Inácio não teve coragem de levar mais longe a
sua queixa temerária, porque o tom de Virgulino, ordinariamente despretensioso,
adquirira a altivez própria de um rude superior.
- Como está a d. Eulália? - perguntou o
bandido. – Já se levantou?
- Ainda não sabe que você está conosco.
- Melhor, diga-lhe você primeiro que os meus
negócios vão mal, que eu estou aqui muito desanimado. Eu afasto-me; não tenho
coragem para ser o primeiro a dar-lhe causa para dizer que parte.
Internou-se pelo capoeirão, que perto da casa
amarelecia e desfolhava-se ao rigor persistente do verão. Caminhou a esmo, sem
destino, como se fugisse para não mais voltar; mas, afinal, sentindo-se
fatigado, reparou para as árvores em roda, e, sentando-se a olhar e a
desmanchar o cigarro, disse distraidamente:
- Estou perto da Encruzilhada, bem longe da
vendola.
De feito, a alguma distância de Virgulino,
duas picadas se cortavam e, aí bifurcando-se uma e a outra dividindo-se em
três, formavam uma espécie de leque espalmado por entre a vegetação, em face do
qual o viajante pouco prático difícil poderia atinar com a direção.
- Aqui é preciso uma sentinela - murmurou
Virgulino batendo na cinza do cigarro; - se não andarmos alertas, estamos
perdidos.
Sucederam-se os minutos, os quartos, as horas
e, não obstante, o bandido persistiu, ora sentado, ora deitado, já fuzilando
fogo no isqueiro, já cortando com a ponta da faca os arbustos em roda.
Dir-se-ia que ele tinha sido acometido de um ataque de idiotismo, ao vê-lo
assim esperar sem causa e por tanto tempo em um lugar, onde não podia contar
que passasse uma só presa, porque as picadas só eram conhecidas dos mateiros e
dos bandidos.
Cerca de cinco horas depois da parada de
Virgulino, uma pessoa apareceu no extremo visível do caminho, e o bandido, que
tinha os olhos voltados para este lado, sorriu e murmurou:
- Dizia-mo o coração, miserável! Enganou-me!
Vai pagar a tua ousadia!
Rápido e sem ruído como o rastejar de uma
cobra, Virgulino levantou-se e foi postar-se em um dos ramais da encruzilhada,
acocorado como um tigre, e com a faca desembainhada.
O caminheiro, andando com a ligeireza
cearense, em breve ganhou a grande distância que o separava do ponto em que
Virgulino se emboscava, e, chegando em face da encruzilhada, parou a olhar para
as árvores. Esta demora, que dizia claramente que o apressado caminheiro
aplicava instruções que recebera acerca do caminho, alegrou muito ao emboscado,
que sorria, enquanto o caminheiro, tirando o isqueiro, fuzilava fogo.
De um salto, Virgulino, que havia embainhado a
faca veio cair sobre o desconhecido, desfechando-lhe sobre a omoplata um murro
formidável, que o fez vacilar e para logo cair ao choque do corpo do agressor.
- Onde ia você? - perguntou, apontando ao
peito do agredido o revólver engatilhado: - Fale ou morre!
Houve uma hesitação da parte do caminheiro, e
Virgulino continuou:
- Não procure ocultar que pertence aos
rebeldes do Pedro; só eles poderiam ensinar-lhe este caminho, que vai dar
justamente numa entrada falsa da venda: responda ou eu faço-lhe fogo!
Fingiu que ia apertar o gatilho, e
acrescentou:
- Morre por sua conta; eu bem lhe dei meios de
salvar-se.
- Não descarregue, que eu lhe direi tudo;
entrei apenas há três dias para o serviço de Pedro e não quero morrer já.
- Fale então.
A voz trêmula do emissário revelou, a
titubear, o plano grandioso de Pedro. Entraria ao lusco-fusco pela cerca e
ir-se-ia esconder na vendola, e à noite assassinaria Virgulino e em seguida o
velho Inácio, que seria acordado e chamado pelo assobio da quadrilha dos
Viriatos.
- E depois? - perguntou Virgulino.
- Eu obrigaria a família do velho a dar-me o
que tivesse e deitaria fogo à casa.
- Infame traidor! Enganou-se por esta vez -
exclamou o chefe e perguntou: - onde está esse infame?
- Não posso dizer - respondeu o caminheiro; -
você, que é chefe, sabe que eu prefiro morrer a denunciar meu chefe.
- Mas o seu chefe sou eu, e você não faz mais
do que me dizer onde pára um rebelde.
- Não, o meu chefe é Pedro; mate-me se quiser,
mas não ouvirá de mim nem uma palavra que o condene.
- Morra, pois que assim o quer.
A detonação ecoou longe, mas a bala não
ofendeu o agredido, porque Virgulino propositalmente desviara a pontaria.
- Vamos, responda, não me obrigue a mandá-lo
para a casa do diabo; salve-se enquanto é tempo.
- Não - insistiu o agredido; - não denuncio o
meu chefe.
Virgulino olhou fixamente para o bandido e
exclamou:
- Você é um homem de coragem, não deve morrer!
O caminheiro, que se conservou estoicamente
severo ante as ameaças, encolheu desdenhosamente os ombros, vendo que o chefe
detinha-se em face da sua coragem.
- Veja em que fica? - disse
ele. - Abrevie isto.
Virgulino, que continuava confuso pela ousadia
deste homem - principalmente porque, desarmando-o, reconheceu que ele vinha
atacar a uma casa de bandidos e trazia por única arma a sua faca -, não se
irritou com a provocação e ao contrário ponderou-lhe amigavelmente:
- É pena que você desperdice tanta coragem com
tão ruim chefe. Perde o seu tempo: não demorará muito que Pedro morra ás nossas
mãos.
- Tanto pior para mim e para ele, morreremos
ambos. Cada palavra do desconhecido fazia-o subir mais no conceito de
Virgulino, que rola em tamanha calma a sua própria energia. Não seria ele quem
o matasse; não queria corresponder à coragem com uma ação covarde. Resolveu,
pois, conservá-lo preso até que notícias dos seus companheiros de quadrilha
dissessem-lhe se devia ser piedoso ou cruel com os soldados de Pedro.
- Vamos para a venda – disse-lhe; - lá hei de
dar-lhe a resposta.
O desconhecido não resistiu á ordem e
levantou-se a resmungar:
- É indiferente para mim morrer lá ou aqui.
Vamos.
Durante a caminhada, Virgulino, que não
desengatilhara a arma e não se distraíra um só momento para não perder o menor
movimento do seu prisioneiro, ia entretanto pensando no golpe que devia sofrer
quando chegasse à vendola. Eulália o viria receber talvez, e desde logo ficaria
resolvida a sua partida. Esta idéia triste quase o decidiu a desfechar o tiro
sobre o desconhecido, visto que assim podia demorar-se mais. Não era uma
infâmia, pensava ele, viera para assassiná-lo à traição. Mas a altivez de
caudilho dos Viriatos demoveu-o logo, fazendo-o lembrar-se de que nunca assim
procedera.
Chegaram finalmente à cerca e o assobio do
chefe chamou o vendeiro, que apareceu sem demora.
- Traga-me uma corda - disse Virgulino; -
temos aqui um freguês.
Inácio, satisfazendo o mandado do chefe,
voltou pronto, e os dois amarraram sem resistência os braços do desconhecido,
cruzados sobre as costas.
- É um soldado de Pedro; bem me parecia que
ele não tardaria a nos mandar visitar.
O velho Inácio custou a conter a impressão
dolorosa que lhe causara a noticia.
A presença do emissário era uma prova de que
Pedro tinha as vistas postas sobre a vendola, e por conseqüência que ele, o
velho senhor e amigo da mesquinha propriedade, teria de perdê-la em breve.
- Eu não o poupava - ponderou o velho; - quem
ao inimigo poupa nas mãos lhe morre. Cabia-lhe bem um tiro nas costelas.
- Tudo há de ser feito pelo melhor, não tem
dúvida; este já não perde o trabalho. Por ora vamos dar-lhe o que comer.
O prisioneiro foi conduzido para a saleta do
chefe, que, amarrou-lhe também os pés,
e, satisfeito por não ter visto Eulália, e assim poder adiar por mais um dia a
sua partida, saiu de novo recomendando o desconhecido aos cuidados do Inácio.
Eulália, porém, ouvira não só o assobio, mas a
voz de Virgulino, e veio procurá-lo à saleta, onde apenas encontrou o
desconhecido.
A presença deste homem, que, amarrado e
cabisbaixo, olhou-a com uma súplica, fê-la estremecer e recuar.
- Não tenha medo de mim que não lhe posso
fazer nada, moça - murmurou o desconhecido. - Quem é o forte aqui é o amigo do
seu pai.
A curiosidade e a piedade, que lhe despertou o
bandido, fizeram com que Eulália parasse e perguntasse por Virgulino, seu protetor.
- Saiu, foi talvez fazer emboscada a alguém
que venha descuidado. é o ofício dele e o meu.
As palavras do bandido agravaram as suspeitas
que, desde o primeiro encontro com o chefe, tinham atravessado o espírito de
Eulália. A máscara que escondia o rosto de Virgulino, o seu modo de trajar
comparado com a sua prodigalidade fizeram com que ela pensasse que havia alguma
coisa misteriosa do seu protetor. Mas estas suspeitas desvaneceram-se
espontaneidade do acolhimento que dele por duas vezes recebera, e sem que a
mais leve sombra de interesse tivesse vundo diminuir o merecimento de tais
atos. Agora, porém, as suspeitas irrompiam quase com a pujança da certeza.
Ficou a olhar perplexa para o desconhecido, a
perguntar-lhe com os olhos o que não ousava pela voz.
- Sim, está na estrada com certeza. Lá é que é
o lugar dos ladrões. Faça-se você também de criança, não sabe, hein? Pois
admira; ele que se apresente em qualquer parte para ver se o conhecem logo ou
não.
Corrida de temor e de vergonha por se achar em
casa de ladrões, Eulália saiu precipitadamente, deliberada a partir no mesmo
instante. O velho Inácio, porém, muito risonho embargou-lhe o passo, e Eulália,
que, amedrontada pelas palavras do bandido, perdera toda a confiança nos seus
hospedeiros, dissimulou a indignação.
- Passear com este sol é perigoso, Eulália.
Não me disse que está com vontade de seguir viagem para o Ceará? Olhe que para
navegar por essas estradas é preciso ter pernas.
- Andava em procura do meu protetor, ouvi-o
falar ainda agora.
- Esteve aqui, mas saiu logo; não tarda por ai
nem um minuto.
- Parece que ele anda a se esconder pela beira
da estrada...
- É que não tem coragem de ouvir de Vossa
Mercê a notícia de que quer nos deixar. Como sabe os perigos que se corre em
andar hoje por esses caminhos, tem pena.
- Ele então sabe que há muitos perigos?...
Como sabe?
- Pois se ele navega por elas dia e noite com
o seu negócio...
Eulália, deixando-se
calculadamente prender pela conversa, ficou e foi para a palhoça esperar melhor
ocasião para retirar-se despercebidamente. A hora do jantar ofereceu-lhe o
momento que ela já começava a considerar impossível. Negando-se a ir para a
mesa, saiu furtivamente e enveredou pela estrada que se dirigia para o norte da
província.
A sua caminhada, porém, não foi longa; o velho
Inácio, terminado o jantar, veio procurá-la com a costumada solicitude, que era
a de um fâmulo fiel e dedicado. Chamou-a, procurou-a na vizinhança da casa e,
desanimando de encontrá-la, assobiou dando sinal a Virgulino.
- A d. Eulália anda por ai a procurá-lo.
Disse-me que você talvez estivesse escondido à beira da estrada, e é provável
que seguisse por ela.
Virgulino caminhou quase a correr, espiolhando
com o seu olhar de bandido as margens do caminho, mas toda a sua perspicácia
foi inútil; não encontrou o menor vestígio da passagem de Eulália.
- É que já voltou - pensou ele, e, dando de
mão à pesquisa, retrocedeu para a vendola.
Vinha apressadamente, mas calmo porque lhe
aprazia toda demora do encontro com a sua protegida. Todavia estava magoado;
era agora seu dever procurar Eulália, falar-lhe para a piedade não fosse por
ela julgada desprezo.
Um incidente desviou-lhe por alguns momentos a
atenção.
Inácio tentara, como Virgulino, arrancar do
desconhecido a denúncia de Pedro, e insistiu com ele com a impertinência do
pânico. Parecia-lhe fora de dúvida que a vida do traidor importava a perda da
quadrilha dos Viriatos, e por isso era também coisa decidida para si que era
dever seu e de seus companheiros tratar de obter o segredo, que guardava o
refúgio do chefe rebelde.
- Está uma bonita sorte - ponderou ele ao
prisioneiro; - parece mais um escravo do que um homem livre.
- A traição pode tudo: talvez que se o seu
chefe, velho sem-vergonha, em vez de se esconder como a cobra enroscada no
caminho, tivesse comigo uma briga cara a cara, não fosse eu quem aqui
estivesse.
- É verdade; grande covardia a do Desempeno;
heróis são vocês que sempre oferecem luta cara a cara. Você vinha aqui
justamente para fazer isto.
A ironia doeu ao prisioneiro mais do que se o
houvessem desfeiteado. Um rápido pestanejar e o tom da sua voz o exprimiram.
- Mas nós somos o menor número, os fracos;
podemos servir-nos de todos os meios.
- E por que é então que você se envergonha? –
perguntou Inácio; - se é coisa líquida, como lhe custa a fazer?
O desconhecido não respondeu; ao contrário,
perdendo a altivez colérica com que olhava para o velho, cravou no chão os
olhos, como se o peso do vexame fosse para si irresistível.
- Vamos - continuou Inácio; - você não é para
fazer parte da quadrilha de Pedro, porque é um homem de brio. Para aquele
miserável, só os cães como ele. Os cães que tenham coragem para atacar
mulheres, para as afrontar na sua honra, para insultar os fracos e indefesos.
Não assim você que tem vergonha de qualquer ato de covardia, mesmo quando é
para com o chefe de seus inimigos. Vamos, amigo, faça a vontade ao Desempeno,
venha para nós, que não abandonamos os nossos na hora do perigo. Ele, porém,
como teve cara para trair amigos, terá para vendê-los.
Quando Inácio acabou a sua estirada de
entusiasmo, que se aumentava tomando o silêncio do prisioneiro por
aquiescência, este replicou-lhe por um laconismo pungente:
- Todo o medroso tem a língua comprida; fale
até se esbofar.
- Eu quero a sua felicidade.
- Pois eu quero o sangue de vocês todos, e, se
não bebê-lo eu, beberá alguém por mim.
O velho vendeiro mediu até o fundo do coração
do desconhecido o ódio intenso que lhe deviam os Viriatos. A sua última frase
traduziu-o pela entoação rancorosa, e completou-o por um sorriso escarninho.
- Então você prefere a morte, não é?
- O que quiserem, menos chamá-los meus
companheiros.
- Porém, que mal lhe fizemos nós? Poupar-lhe a
vida.
- Os Viriatos andam à noite, como as corujas
agoureiras, como as onças; assustam e matam sem ver a quem o fazem. Nenhum
deles por isso mesmo conhece as suas vítimas, nem é por elas conhecido, e no
entanto ficam da passagem dos bandidos rastros de sangue e de cinzas, resultado
dos assassinatos e dos incêndios.
- Ah! - exclamou Inácio. - Você tem-nos ódio
velho; está bem, falando é que os homens se entendem.
O vendeiro voltou as costas ao seu
interlocutor, e foi sentar-se na venda a meditar. Sabia bem que a generosidade
de Desempeno era inquebrantável e que ele não voltaria atrás a concessão que
tinha feito ao desconhecido; enquanto o retivesse prisioneiro, fosse qual fosse
o crime praticado, não o mataria.
Inácio não pensava do mesmo modo; entendia que
se tratava de uma questão grave a cuja solução não podia ser outra senão o
extermínio de uma das quadrilhas: ou os Viriatos ou Pedro.
- Com os diabos - pensava ele; - o cabra teve
como primeira idéia mandar-nos desta para a melhor; hoje mesmo à noite devíamos
ficar todos espichados, e nós é que havemos de poupar a vida àquele mesmo que
veio para roubar a nossa! Não entendo e não consinto.
Olhava para a larga faca que tinha sobre o
balcão, muito polida, luzindo como um olhar guloso, mas não ousava pegar dela
para vibrá-la contra o desconhecido, porque sabia que a sua pagaria a vida
traiçoeiramente roubada.
- E há de viver - resmungou juntando as mãos
-, e talvez venha a matar-nos. Um assalto liberta-o, e nós seremos vítimas.
Não, não há de viver.
Saiu e, chegando à palhoça, ordenou que lhe
dessem o jantar para o prisioneiro. Quando lhe entregaram o prato, o velho,
muito trêmulo, veio de novo à vendola e de uma das prateleiras tirou uma
pequena boceta, que estava cheia de umas bagazinhas rubras. Machucou com o cabo
da faca algumas delas e, misturando-as à comida, entrou na saleta e depôs o
prato junto ao prisioneiro. Voltou ao negócio, e, tomando a garrafa de vinho e
um copo, dirigiu-se amigavelmente ao desconhecido:
- Enquanto não vem o dia da briga, sejamos
bons camaradas.
- Pois não; eu tinha mesmo necessidade de comer
e tomar trago à saúde de Pedro.
O corajoso emissário virou de um gole o copo
que lhe apresentado e pôs-se a comer com o apetite produzido por uma longa
jornada.
- Que tal, hein? Ao menos bem temperado nós
comemos; de fome é que não se morre - disse Inácio.
- Não é mau, não; podia ser pior.
O velho seguia com o olhar os bocados tirados
pelo prisioneiro, e ia-se gradativamente alegrando.
- Enfim! - resmungou ele, ao tirar o prato. -
Deste estou livre.
Inácio não se enganava; meia hora depois o
desgraçado emissário estorcia-se com uma coragem lacedemônia, sem deixar fugir
um ai, e tinha no semblante todos os sinais do envenenamento. O velho, para
coonestar o crime, certo de que o desconhecido não podia mais evadir-se,
desamarrou-o, e chamou para a saleta toda a família.
Foi neste momento que Virgulino entrou, e
Inácio, com o sangue-frio de um velho envenenador, disse-lhe:
- Chegou a tempo, este desgraçado está
expirando.
- Como? - perguntou o chefe surpreso, e depois
de ver que nenhum ferimento dava causa à morte, acrescentou: - que ele
envenenou-se.
- Talvez - murmurou Inácio; - não há de ser
outra coisa.
A comoção do chefe, que demonstrava os seus
sentimentos generosos, foi presto sufocada pelo egoísmo da própria conservação.
- Foi melhor assim - disse ele depois de uma
pausa; -livrou-nos de recorrer a outro qualquer meio. Prestou-nos um grande
serviço.
- Se todos os companheiros do Pedro têm igual
sorte, não há muito que recear deles.
- Pois eu penso de modo contrário; veja qual o
ódio que ele nos tem, que passa logo aos que se lhe associam e os faz preferir
a morte a viver por uma graça nossa.
Inácio meneou a cabeça concordando com o chefe
e, olhando de través para o moribundo, perguntou:
- O que acha você melhor, Desempeno: deixá-lo
aqui, ou pô-lo lá na estrada? Eu não estragava caridade com semelhante bicho.
- Não - intervieram as filhas de Inácio; - é
um cristão e não deve ser atirado à estrada como um cachorro.
Virgulino compartiu a piedade das mulheres,
mas o moribundo como que se apressou em vir em auxílio do temor do velho em
conservá-lo por mais tempo na vendola. Teve uma contração fortíssima, mas logo,
esbugalhando os olhos injetados, e arregaçando os lábios sobre os dentes
cerrados, inteiriçou-se para não mais mover-se.
- Foi-se - exclamou Inácio; - vejamos se ainda
assim querem que ele fique. Dirão todos que ele foi morto por nós.
- Agora, sim; é preciso tirá-lo daqui. Vamos
conduzi-lo até a estradinha.
- Saiam vocês - bradou Inácio, vendo o
semblante da família; - isto é negócio nosso. Olhe cá, minha velha, uma sede
lavada; quero que este pé-rapado goze ao menos de um pouco de limpeza na hora
da morte.
Não demoraram a entregar a rede ao vendeiro,
que por sua vez apressou-se em arranjar o cadáver dentro dela.
- Pronto, meu chefe, fora com ele - sorriu o
velho; - não será ele quem nos faça mal; de um já estamos livres.
Virgulino curvou-se para enfiar a rede no
caibro que o velho tinha entre mãos, quando um grito de espanto e uma
exclamação dolorosa o fez olhar para a porta.
- O que tem, d. Eulália? - exclamou o bandido
saltando para junto da sua protegida prestes a desmaiar. - Não se assuste que
isto nada vale. Foi um retirante que veio morrer aqui de cansaço... Sossegue,
isto acontece todos os dias.
- Já passou - murmurou Eulália esforçando-se
para mostrar calma. - É que eu ando tão fraca e tenho ouvido falar muito em
morte que não posso ver um defunto.
- Vá para onde estão as suas amigas - disse o
velho com um tom acariciador -, nós voltaremos aqui num pulo.
Eulália obedeceu, e os dois, colocando nos
ombros a carga funerária, internaram-se pela estrada lateral, que desembocava
detrás da vendola.
Quando voltaram já era tardinha, e vinham
ambos sombrios. Eulália, que os esperava ansiosa, porque desejava obter de
Virgulino permissão para partir, arreceou-se de falar-lhe. Na sua imaginação a
bondade de seu protetor parecia-lhe agora um plano indigno, e, para não dar
ocasião a que ele o realizasse, justificando-o com qualquer ato seu, foi que
voltou, arrependendo-se da fuga. Ao ver agora o chefe, Eulália pensou consigo
que era chegado o dia em que ela devia começar a pagar os favores recebidos.
- Zanga-se pela menor palavra e faz disto
pretexto.
Conservou-se, pois, silenciosa, mas, vendo que
nem o mascarado nem o velho dirigiam-lhe a palavra, e, ao contrário, pareciam
evitá-la, resolveu-se a espreitá-los e escutá-los de longe.
- Não há dúvida que ela deve partir, ou fica
sabendo de todos os nossos segredos e você bem sabe o que são mulheres.
- É exato, velho Inácio; ela parece amedrontada
e eu aproveito a ocasião para conseguir que ela parta comigo.
- Consigo? E se vierem atacar a casa?
- Tanto faz um como dois; não durma você cá
dentro. Vão-se os anéis e fiquem os dedos. O certo é que eles não podem chegar
aqui hoje, e amanhã temos cá o Onça ou o reforço. Eu vou falar à d. Eulália.
Fica assentado.
Virgulino encontrou-se perto com a sua
protegida, que só se afastara mais depois de ouvir o final da conversa, e
alegre com a idéia da partida, ainda que temesse a companhia.
Poucas palavras trocaram para que resolvessem
que a viagem devia ser imediatamente.
- Aproveita-se a fresca da tarde e da noite; é
sempre melhor do que o sol do meio-dia.
Eulália limitou-se a concordar, embora
objetasse que não era preciso o incômodo que o chefe insistia em tomar. Tinha
medo, mas disfarçava o temor que lhe causava o companheiro, recordando-se das
palavras que lhe ouvira, nas quais parecia haver inteira isenção de qualquer
indignidade.
- Vá lá, seu maganão - exclamou Inácio ao ver
o chefe montado e Eulália a endireitar-se na garupa; - vai ser uma noite de
rosas.
Virgulino não respondeu senão por um olhar
repreensivo. Eulália, porém, corando muito, murmurou:
- O sr. Virgulino disse-me que me protegia,
porque eu prestei não sei que serviços à sua família, não é verdade?
- É sim senhora, d. Eulália, e estou pronto a
servi-la até a morte.
Calaram-se ambos, e Virgulino esporeou o
cavalo, o seu valente companheiro de correrias e assaltos, que em marcha certa
e uniforme enveredou pela estrada geral.
A noite veio dentro em uma hora envolver o
grupo, e Virgulino, que temia que a sua companheira se estivesse fatigando
muito, dirigiu-lhe a palavra:
- Não acha bom que descansemos um pouco?
Teremos feito uma légua, mas ainda falta mais de meia dúzia para chegar ao
pouso.
- Eu não estou cansada - respondeu Eulália
estremecendo, por julgar tais palavras um ardil do bandido; - gostaria mais de
seguir.
Virgulino, percebendo o temor que
involuntariamente inspirava, não objetou e, estimulando o animal, fê-lo prosseguir
na marcha cômoda e ritmada.
Eulália, à medida que se adiantava a noite, e
convencia-se da pureza das intenções do bandido, admirava-se de tamanha
generosidade, e teve ímpetos de abraçá-lo, quando pela madrugada Virgulino,
fazendo parar o animal, disse-lhe submissamente:
- Aqui é preciso que nós nos separemos; o
pouso fica a meia hora de caminhada, e Vossa Mercê pode chegar lá antes que o
sol clareie. Eu não posso ir mais longe.
- Obrigada - murmurou Eulália -, eu sei que se
o senhor me deixa é que posso seguir só.
Apearam-se ambos e Eulália, sentando-se,
pôs-se a olhar para Virgulino, que se mostrou perturbado.
- Quero pedir-lhe perdão - murmurou ela. - Fui
muito ingrata para consigo. Aquele homem, que morreu na casa do Inácio, fez-me
julgá-lo assassino - murmurou Eulália, continuou relatando a breve conversação
que tinha tido com o comissário de Pedro.
- Não tenho nada a perdoar-lhe, d. Eulália; eu
é que devo ser perdoado, pelos sustos que lhe causei. Aquele homem não lhe
enganou, eu sou com efeito um ladrão.
O epíteto foi acentuado com o desprezo com que
um inimigo de Virgulino o pronunciaria para aviltá-lo, e Eulália, tomando-o por
uma ironia proferida para magoá-lo, murmurou:
- Não; eu estou agora convencida de que o
senhor não é um ladrão. Um ladrão nunca é assim generoso!
- Sou um ladrão, sim - repetiu Virgulino -,
mas não fui eu quem procurou sê-lo... fizeram-me. Lembra-se da noite em que na
paróquia de B. V. apareceu uma família à noite, e o sacristão e o
vigário e outros deitaram-no fora, porque o chefe tinha na testa a cruz com que
se marcam os ladrões? Veja se conhece o homem de quem Vossa Mercê, sua amiga e
seus pais tiveram tanto dó?
Virgulino desatou a máscara que o disfarçara
por tanto tempo a Eulália, e continuou:
- Eu jurei nessa noite que não era um ladrão,
e juro-o ainda agora. Mas Vossa Mercê não sabe o que é trazer em si este sinal
cruel. É como que fechar o mundo à gente e obrigar a ser mau. Lembre-se do que
se passou naquela noite, pois é o mesmo em toda a parte. Os filhos, a mulher,
as irmãs, os parentes do desgraçado choram, morrem à fome, e a maior parte do
povo ri-se, atirando-lhes à cara o insulto pungente filho, mulher, irmã,
parente de um ladrão. B. V. deu-me abrigo, mas além da paróquia estava
todo o Ceará, e eu tinha de caminhar.
- Talvez achasse quem o socorresse como na
nossa paróquia.
- Talvez, mas havia anos que eu sofria e só
Vossa Mercê e sua amiga e seus velhos pais tiveram pena de mim!
O Feiticeiro chamou-me para ser o que todos
diziam que eu era, e eu vim para dar aos meus filhos algum dia o direito de
viverem contentes fora daqui.
- Contentes - pensou Eulália -, quem sabe se
eles viverão ainda!
- Eu sou muito desgraçado! d. Eulália, e
alegro-me por não ser de todo perverso. Adeus; reze a Deus para que desapareça
de mim o sinal que me faz tão mau, e diga aos meus filhos. se algum dia os vir,
que o seu pai comete crimes, porém nem por isso deixa de ser agradecido a quem
teve piedade dele!
O mísero bandido, atirando ao colo de Eulália
um pequeno embrulho, montou de novo a cavalo e partiu rapidamente, deixando a
moça enredada na confusão que lhe causava aquela natureza contraditória, que
aliava à nobreza de um cavalheiro a abjeção de um bandido.
Ficou por muito tempo a olhar para o lado em
que desaparecera o cavaleiro, absorta como se estivesse a sonhar acordada e,
quando distraiu-se, murmurou
- Que diferença entre o bandido Virgulino e
ele!...
Pronunciando esta última palavra, porém, como
se ela contivesse em si um mundo de fantasmas, Eulália teve medo de estar só e
levantou-se a olhar em torno de si. O embrulho, que Virgulino atirara-lhe ao
colo, caiu tinindo o som do bater de moedas de ouro. Olhou-o com desprezo; a
sua alma, afinada pela delicadeza moral de que o velho Queiroz dera provas não
querendo fazer parte da comissão dos socorros; a sua alma, educada em
extremados escrúpulos, rejeitou a esmola que vinha de uma fonte indigna.
- Antes morrer do que me servir de tal
dinheiro! - pensou ela, e deu alguns passos.
O cansaço da viagem, porém, dificultando-lhe
os movimentos, alquebrando-lhes o organismo, levantou a brutalidade dos
instintos sobre a delicadeza dos sentimentos. Vieram-lhe à memória todas as
narrações pavorosas que tinha do a respeito dos retirantes, que morriam em
grande parte de fome. Deixar a esmola de Virgulino era o mesmo que se suicidar.
Não teve coragem para persistir na sua resolução, e, deixando-se a olhar
desconfiada, guardou no seio o tesouro que lhe fora dado.
Pôs-se a caminhar apressadamente, enxugando as
lágrimas que lhe caíam em fio.
Vinha surgindo o sol, vermelho como uma brasa,
no meio da quietação mórbida da natureza.
Grupos e grupos, maltrapilhos e esgroviados
desfilavam praguejando contra o destino e contra os homens. Iam e vinham da
mesma direção: um pano grande de areia de cor intensamente hidrargirada, no
meio do qual havia uma escavação, em que manava um olho de água.
Nos que de lá voltavam reinava o mesmo
desgosto que mostravam os que para lá se dirigiam; todos eram acordes nas
lamentações e paravam para cruzar doestos e pragas às autoridades do lugar.
- É mesmo para fazer ferver o sangue de um
santo: os cavalos do sr. vigário têm mais direito do que nós!
- O comissário manda tirar barris e barris
para os seus amigos; os pobres que morram à sede.
- Há de dizer-se que a água é deles; que não
brota da terra para todos os cristãos.
- Uma pouca vergonha: família em que há mulher
bonita não sente faltas; a água aumenta logo pelos seus bonitos olhos.
- Corja, mil raios os partam!
- E o diabo do comissário é quem atiça o
vigário. Ainda este vá, porque precisa dos cavalos para levar o sacramento; mas
aquele velho delambido só para agradar os seus amigos; é um desaforo!
- Um cancro lhe roa o bandulho para que saiba
se é bom ou não sofrer.
Eulália, entrando no povoado, teve de
atravessar esses grupos, e ouvindo-os estremeceu pelo futuro que a esperava.
Envergonhada por se ver só, vestida tão
pobremente, com o vestido de chita com que saíra de casa, quase descalça,
cumprimentava a todos para ver se a curiosidade hospitaleira da província
dirigia-lhe perguntas, e assim tivesse ela ocasião de dirigir outras. Os grupos
desatentos, porém, passavam sem reparar em si.
Continuou, pois, a caminhar silenciosa até a
igrejinha que ficava no meio do povoado, e cujas portas abertas deram-lhe a
esperança de encontrar com quem falasse.
Entrou pela tosca nave coberta de telha vá e
foi ajoelhar-se entre umas dezenas de pessoas, que aí estavam. As queixas que
ouvira lá fora continuavam dentro do templo.
- É porque os pais de família não querem;
senão aquele velho descarado deixaria a comissão. Onde é que se viu uma vadia,
como a tal Mundica, ser dona de uma terra e governá-la assim?
- Qual, dona, os homens nada podem fazer; o
meu homem, que é entendido em política, diz que ninguém pode com o velho,
porque o partido dele está de cima e ele é quem é o chefe aqui.
- Forte peralta é a tal bicha!
- Uma atrevida!
- Veja o que ela fez com aquela pobre família
de luto, que dizem ser a de um professor?
- Ameaçou-a com chicote, não é?
- Qual ameaçou?! Mandou metê-lo, e a velha e
uma mocinha, se não quiseram ficar lanhadas, tiveram de fugir, deixando até
perdida, entre o povaréu, uma criancinha de uns quatro anos.
- Isto há de ter um fim, seja qual for; não
pode continuar.
- Do céu venha remédio; se não houver outro
recurso, faz-se na vadia o mesmo que ela mandou fazer à família.
- O que diz o vigário a isto?
- É um mole; quer estar bem com todos. Agora
então ninguém poderá obter dele nada. Está com hóspede.
- Não há de ser de grande importância, porque
o vigário ainda não saiu com ele a passeio.
- Pois as pessoas da casa não dizem o mesmo.
Na mesa eles tratam-se por colega, ainda que o hóspede tenha os cabelos da
coroa e a barba crescida.
- Então é segredo que eles querem guardar.
- Deve ser, porque o vigário nunca diz o nome
do hóspede. É colega para lá, colega para cá.
- Quer que lhe diga uma coisa? Se formos à
casa do vigário fazer uma queixa em regra, ele talvez tome providência agora,
para não parecer fraco aos olhos do outro.
- Nós conversaremos: a tal Mundica é que não
pode continuar aqui.
Eulália bebia com voracidade todas as palavras
das duas interlocutoras. O nome de Mundica, o padre que se escondia na casa do
vigário impressionavam-na vivamente.
- Quem sabe se não são eles? - pensava
Eulália. - Devem ter parado aqui.
Demais uma circunstância a sobressaltava com
uma suspeita pavorosa: Mundica tinha mandado açoitar a família de um professor.
Não seria esta família a sua?
A infeliz retirante não pôde mais conter-se e
dirigiu-se a uma das interlocutoras.
- A senhora não sabe o nome da família?
- Não perguntei, mas é fácil saber no
abarracamento.
- E você não é de lá - perguntou a outra
interlocutora -, não é retirante?
- Sim, senhora - respondeu Eulália cujas faces
quase sangraram de vexame pelo qualificativo; - mas ainda não entrei para o
abarracamento.
- É fácil, quando acabar a missa vá ter com o
vigário.
A campainha tangida repetidas vezes anunciou o
começo da missa e a igreja encheu-se do sussurro das saias das mulheres que se
ajoelhavam. O vigário Belmiro apareceu na capela-mor revestido de branco,
segurando com uma das mãos o cálice e pousando a outra sobre o véu e a bolsa.
- Vê? É aquele o sr. vigário, muito bela
pessoa; vá ter com ele.
Eulália agradeceu a indicação e ajoelhou-se
devotamente para suplicar aos céus que lhe afastasse o golpe, que as palavras
das duas mulheres lhe anunciavam iminente. As duas interlocutoras calaram-se
também por algum tempo, mas para logo começaram a cochichar.
- Lá está o comissário; quem dirá que ele é
quem é? Brejeiro!
- Homem que reza muito dá sempre em vadio; eu
tenho conhecido uns poucos assim.
- Eu só quero ver como ele se tira desta
alhada; não queria estar no pêlo dele.
- Ora, tudo se esquece, e, se ele tiver a repentiva
de pôr ao campo a vadia, ninguém lhe fala mais nas chicotadas.
- A verdade é que as mulheres que as levaram,
levaram e nem Santo Antônio as tira.
Depois de haver desfiado, pachorrento e
demorado, todo o latim da missa, o vigário Belmiro, fazendo profundas
reverências, retirou-se para a sacristia, acompanhado pelo comissário.
Eulália levantou-se logo para ir ter com
aquele que devia dar-lhe informações que a torturassem ainda mais ou que lhe
serenassem o ânimo. À porta da sacristia, porém, o sacristão deteve-a com uma
frase imperiosa e grosseira:
- Olá! Não vê que está aqui gente a conversar?
Espere, se quiser falar.
A moça não respondeu e esperou.
- Digo-lhe que não é mais possível demorar
esta gente - ponderava o comissário; - a água não chegará nem mais para uma
semana, vai diminuindo como se a chupasse uma esponja.
- Cava-se noutro lugar; não lhe parece que
Deus não há de permitir que esteja tudo seco por esta vizinhança de umas duas
léguas?
- Tem-se cavado tudo,
homem, nem tão descuidado sou eu, mas a água é uma pilha de sal. O que quer
você que lhe faça? Deus não há de permitir; mas lá se vai um ano de seca.
- Experimente sempre, teime, porfie; bem vê
que, se for por essas estradas fora, de todo o povaréu que está no povoado não
escapam cem pessoas.
- Por minha parte não faço mais nada; demais,
dizem que o novo presidente não quer que continuem as comissões no interior;
não estou para perder trabalho. De hoje até amanhã teremos notícias do Ceará e
o vigário verá se estou mentindo.
Mas, enquanto não chega, vai-se fazendo uma
obra de misericórdia.
- Eu não admito mais uma só pessoa no
abarracamento.
- Salvo se for mais bonita do que a Mundica,
não é verdade?
Riram-se ambos, e, como o vigário já se
houvesse desrevestido, dirigiram-se para a porta.
Eulália saiu-lhes ao encontro e formulou o
primeiro pedido ao vigário.
- Eu sou retirante - murmurou envergonhada -,
e venho pedir a Vossa Mercê que me mande entrar para o abarracamento.
- Filha, isto não é comigo - respondeu o
bonachão do Belmiro; - aqui está quem pode mandá-la para lá.
- É só por um ou dois dias - acrescentou
Eulália -, eu sigo viagem para o Ceará.
- É a cantiga de todos - sorriu o comissário;
- já não caio. Com muito gosto se não fosse ter de cessar com os socorros. De
hoje em diante é impossível.
- Eu peço porque não conheço ninguém aqui, e
não sei os caminhos para seguir viagem.
- Tanto pior para você, minha filha - observou
o comissário. - O que lhe hei de eu fazer? O que não tem remédio...
- Remediado está - disse o vigário, acabando a
frase.
- Venha comigo que eu lhe arranjarei onde
passar os dois dias. Serve-lhe?
Eulália meneou a cabeça afirmativamente e
acompanhou os dois poderosos da localidade. Toda a conversação das duas
mulheres afluía-lhe tumultuariamente à memória, impondo-se-lhe como verdade, e
Eulália mal podia conter a impaciência que a impelia a perguntar ao pároco o
nome do seu hóspede.
- Aqui está a casa onde vai ficar; entre -
disse o vigário e gritou da porta: - ó mana, ai vai uma filha de Deus para dormir
duas noites.
A mão carnuda de Belmiro foi bater no queixo
de Eulália acariciadoramente, e ele acrescentou:
- Agradeça-me, hein? Não seja ingrata.
Embora a liberdade tomada pelo pároco a
houvesse magoado, embora o pudor da mísera retirante se houvesse ofendido,
Eulália entrou com semblante alegre.
O que lhe importava não era o pensamento
oculto do pároco, mas saber se a família do professor tinha alguma relação com
a sua.
O dia, porém, passou desaproveitado para a sua
missão. Falou-se por diversas vezes no fato, que era o principal assunto de
todas as conversas, mas ninguém sabia o nome das mulheres que tinham sido
vitimas da violência brutal de Mundica e dos guardas do abarracamento. A noite,
mais propícia, preparou para Eulália a certeza que ela devia obter.
Mundica, assenhoreando-se dia a dia do ânimo
do comissário, preparava o caminho para estabelecer-se inteiramente ao lado
dele. Não passava um dia sem que, a pretexto de esmola, fosse à casa do
apaixonado viúvo e lhe exacerbasse a paixão com a prodigalidade de carícias. O
último acontecimento, porém, fechou-lhe de dia as portas da casa comissário,
que, para acalmar a opinião pública, aparentava ter-se afastado da amante, e de
tal forma que ele não visitava mais os cubículos por ela ocupados no abarracamento.
Os encontros foram, de comum acordo, mudados para adiantadas horas da noite, em
que Mundica saía do abarracamento acompanhada por um dos escravos do
comissário.
O vigário Paula, que para furtar-se aos olhos
dos seus paroquianos não acedera ao convite do colega para visitar de dia o
povoado e que premeditava uma desforra da sua ex-amante, saía também à noite e
só voltava muito tarde, fato que o pachorrento Belmiro assim explicava a
sorrir:
- Você é um destemido, Paula, pode dizer como
César: veni, vidi, vici.
E Paula com o seu ar de
hipócrita respondia-lhe satisfeito:
- O que se há de fazer? A sociedade impõe-nos
o recato das virgens.
As vizinhanças do abarracamento eram o ponto
em que Paula perdia as noites, não feliz como ele fazia crer ao colega, mas
emaranhando-se num dédalo de planos, que abortavam todos diante da ignorância
em que ele estava da morada de Mundica e do modo de fiscalização que se punha
em prática no abarracamento.
O acaso veio em auxílio do projeto do vigário
contra Mundica.
Desde a primeira noite, Paula colocara-se em
posição de poder estender o olhar por toda a frente do abarracamento e por
longo espaço da estrada que o comunicava com o povoado. Por duas noites foi em
vão tomar lugar no seu observatório; várias pessoas entraram e saíram, mas
nenhuma delas deu-lhe ao menos a esperança de poder ver Mundica. O insucesso
das suas pesquisas fazia desanimar e retirar-se arrependido de haver perdido o
tempo.
Na terceira noite, porém, antes de ir
postar-se no seu ponto de mira, dirigiu ao colega algumas perguntas que mais ou
menos o orientavam acerca da morada da sua ex-amante.
Chegado ao abarracamento, ao ver passarem,
como nas outras noites, diversas pessoas, pensou em falar com uma delas, mas
abandonou logo o projeto: se a maioria dos retirantes não o conhecia, havia
muitos a quem não seria possível enganar, embora disfarçasse a voz. O projeto,
porém, sugeriu-lhe outro e resolveu:
- Entrarei, como os outros entram; com estas
roupas, sou também um retirante.
Penetrou corajosamente na própria área do
abarracamento, que era uma linha de casinholas feitas de ramos secos e cobertas
de palhas; mas, quando já se adiantara muito da casa de Mundica, refletiu e
parou.
Se alguém me visse rondar-lhe a casa? Tem
inimigos e muitos, eles podem se aproveitar da circunstância, e depois, quando
se souber que eu estive na localidade, sobre mim cairá a condenação.
O impulso do ódio impediu-o de retroceder.
Demorou-se quedo por algum tempo e em seguida entrou num vão dos muitos que
separavam as casinholas.
- É impossível que eu não veja ao menos o
comissário, hoje. Ficarei até que venha a madrugada, se tanto for necessário.
Sentou-se e pôs-se à espera. Lembrava a
paciência da cascavel enrodilhada no caminho à espera de presa. Ninguém poderia
suspeitar semelhante emboscada; a própria respiração de Paula havia diminuído
de intensidade; dir-se-ia que ele fizera parar os pulmões e respirava apenas
pela epiderme.
Um sussurro, porém, veio restituí-lo à
atividade e à paixão que o agitava na empresa. A princípio a areia estalitou
sob passos cautelosos e depois duas vozes abafadas trocaram entre si uma frase,
ao passo que dois vultos passavam pelo vão.
- Por ora ninguém e nem quero que saibam, o
resto fica por minha conta.
- Se puder conseguir é coisa grossa; eu posso
jurar que ele trouxe do Ceará mais de um conto de réis.
Paula não pôde ouvir o resto da frase, mas
ouvira quanto bastava - o som da voz de Mundica. Saiu cautelosamente do
esconderijo, e, distanciado bastante, acompanhou os dois conversadores.
Os vultos saíram perto do local do
abarracamento e tomaram a estrada na direção do povoado, onde pararam quase na
extremidade da rua em que Paula se hospedava.
- Eu contava já com isto - murmurou ele; -
deve ser a casa do comissário. Perdi o meu tempo.
Parou, e já se decidia a voltar para casa,
quando viu que só Mundica entrara; o outro vulto continuara a caminhar.
Pensando em reconhecê-lo, Paula ia seguir-lhe ao encalço, mas, ao passar pela
casa em que vira a sua ex-amante entrar, empurrou por demais a porta. A porta,
porém, cedeu, e ao seu movimento, como se uma barreira se houvera erguido ante
si, Paula estacou.
Uma tentação invencível apoderou-se do ânimo
temerário e apaixonado do vigário, que maquinalmente entrou para logo parar
estupefato da sua própria ousadia. Felizmente a porta abria sobre um corredor
que estava às escuras, e, portanto, fácil era ao vigário voltar sobre os seus
passos, sem que fosse percebido. Tentou fazê-lo, mas, sentindo passos na rua, e
temendo que fosse o companheiro de Mundica, seguiu tateando e a pensar consigo
que estava perdido.
O temor de Paula tornou-se logo realidade.
A porta foi discretamente trancada e o
amedrontado vigário, que apenas teve tempo para ocultar-se por detrás de uma
porta, sentiu que alguém atravessava o corredor.
-Oh! rapaz - disseram de dentro a meia voz -,
venha acordar-me às matinas.
A pessoa que passava respondeu com a submissão
do escravo e seguiu.
Paula, por uma reação inexplicável do próprio
temor, encorajou-se, e, não podendo retirar-se logo, porque o ranger da chave
denunciaria a presença de um estranho na casa, caminhou vagarosa e
cautelosamente até que, entrando em uma sala, a claridade que escoava por uma
porta entreaberta o fez parar.
- Ouça, eu se zanguei-me com elas não foi porque
tenha desejo de fazer mal aos outros; é que elas foram a causa da morte de meu
pai.
- Mas devia ter feito as coisas de outro modo,
assim comprometeu-se e comprometeu-me.
- É porque o senhor quer; com pouco mais de
nada eu posso ir por algum tempo morar fora daqui e depois volto.
- Se fosse tão fácil eu não duvidava fazer,
mas infelizmente falta-me agora o melhor.
- O que é?
- O dinheiro...
- É o que não falta aqui - disse Mundica, ao
mesmo tempo que se espalhou no silêncio da sala o som de uma tampa de lata
brandamente percutida.
- Aí não há nada meu, abra e veja.
- E esta latinha?
- Leia o que tem em cima - dinheiro da
comissão -, este é sagrado. Sabe o que mais, vamos dormir.
- Você é bem mau, sr. Cassiano; eu ainda lhe
faço uma.
- Até ver não é muito, apague a vela.
Ouvindo o nome do comissário, e ao mesmo tempo
a afirmação de que na lata havia dinheiro, Paula foi avassalado por uma idéia
que nunca lhe ocorrera. Quedou por um tempo, que lhe pareceu uma eternidade, e
conservou-se atento como a dominar o estremecimento que lhe causava o horror da
idéia que concebera, até que a respiração compassada e tranqüila do comissário
e de Mundica assegurou-o de que estavam dormindo.
O ódio deu-lhe então o sangue-frio de que
precisava e, penetrando no quarto, abriu imperceptivelmente a lata maior e
conseguiu apanhar a menor.
Pouco depois estava fora da casa do
comissário, da qual saira pulando uma das janelas da sala de visitas, e a
passos largos palmilhou a rua até a casa de Belmiro. Dentro do quarto, acendeu
a vela e arrancou com a ponta da faca o fecho da pequena lata.
- Cá está o dinheiro - disse consigo -, amanhã
ela será uma ladra.
- Já sei que teve uma boa noite, colega -
exclamou a bocejar o vigário Belmiro, que, deitado na sala, acordava sempre que
Paula entrava.
- Uma excelente noite, colega, até amanhã.
Paula não se enganava a respeito do escândalo
que se daria, logo que o comissário desse por falta do dinheiro dos socorros.
A ação parecia abjeta aos seus próprios olhos.
A consciência não o absolvia, acusava-o de haver praticado um furto: ainda que
não tivesse a intenção de utilizar-se do dinheiro, não podia também entregá-lo
de pronto, porque seria justificar Mundica e engrandecê-la como vítima diante
daqueles mesmos que a houvessem condenado. Chamava-se, pois, a si próprio
gatuno, mas ao mesmo tempo regozijava-se com a idéia de ver Mundica expulsa da
afeição de Cassiano, e entregue à irrisão geral e talvez mesmo à prisão.
Ao almoço, conversando com Belmiro, mostrou-se
tão jovial que o pachorrento colega observou-lhe:
- Ora, pois, como o vejo mais alegre, quero
dar-lhe um conselho.
- Venha ele, meu padre, hoje ou ontem era
sempre bem-vindo.
- Vá lá - sorriu Belmiro agitando o indicador.
- Estas fazem mal; é preciso não ir com tanta sede ao pote.
- Não sairei mais; eu ontem já pensei nisto;
corro perigos apesar de disfarçado: do que eu preciso é de forças para a viagem
que deve ser amanhã ou depois, e a pé.
Belmiro, atribuindo a resolução do seu colega
à sua observação, insistiu em demonstrar-lhe que não tinha tido a intenção de
magoá-lo, e acabou oferecendo um dos seus cavalos e um pajem ao vigário Paula.
- Então partirei depois de amanhã; quero
convencê-lo que não me ofendi consigo; bem vê que estou alegre.
Bem diverso do estado de espírito de Paula era
o de Eulália. Hospedada na casa em que Belmiro a recomendara, não tendo senão
as consolações banais da hospitalidade indiferente, a mísera retirante sentia o
coração sitiado pela quase certeza de que o hóspede do vigário da localidade, a
amante do comissário e, sobretudo, as mulheres insultadas por esta eram o
vigário Paula, Mundica, d. Ana e as suas irmãs.
Desde o amanhecer quis logo sair para receber
em cheio o golpe que já lhe doía; mas, refletindo melhor, pediu à velha senhora
que a hospedara para mandar saber do vigário o nome das mulheres que haviam
sido chicoteadas. Ainda assim o golpe foi adiado, porque só depois da missa o
vigário poderia responder.
Como se houvesse uma intenção providencial de
delongar a dor imensa reservada à infeliz, o vigário demorou-se na igreja mais
do que tinha por costume e, com grande espanto do sacristão, fechara-se por
dentro na sacristia com o comissário.
O sacristão, intrigado por esta prova
momentânea de desconfiança que lhe era dada, explicou-a engenhosamente aos
fiéis que igualmente se espantavam de que o confidente do pároco fosse excluído
do colóquio.
- Isto há de ser negociata com a tal Mundica;
eu sinto-lhe o cheiro, porque não há outra razão para tal segredo.
Qual, é impossível; o sr. Cassiano está pelo
cabresto - ponderavam todos.
- É justamente aí que a besta empaca. Eu não
creio que ele esteja disposto a mandar embora a delambida, isto não; mas que
tenha outros fins tapar a boca do mundo.
- De que modo? Ninguém se deixará enganar; enquanto
a Mundica estiver aqui, o povo inteiro repetirá que ela é a senhora do
comissário.
- Pois ele aceitará o que dizem e pedirá à
igreja que lhe dê o direito de andar com ela por toda a parte. Fará da
retirante sua mulher.
- Ora esta agora! Havia de ter graça.
- Não era coisa do outro mundo; a paixão cega
o homem.
Quando o vigário e o comissário saíram da
sacristia, ao passo que este se conservava carrancudo, aquele escondia uma
risada sob o semblante de piedade, e, logo que se viu livre do olhar do comissário,
despregou a rir como um perdido.
- Então há alguma novidade? - perguntou-lhe o
sacristão. - Vossa Mercê ri enquanto o comissário quase chora?!
- Coisas da vida; ele anda em rapaziada e eu
conheço-me como velho.
- O passarinho bateu as asas?
- Não, mas levou alguma coisa no bico. Segredo
de cova, hein? - observou o vigário esforçando-se por ficar sério.
- Se eu não sei nada, como hei de guardar
segredo?
O vigário, abaixando a voz, contou que o
comissário, desde a estralada das chicotadas, havia mudado para tardas horas da
noite e em sua casa os seus encontros com Mundica, e que hoje dera por falta do
dinheiro da comissão de socorros.
- Está danado!
- É uma bucha - ponderou o sacristão. - E o
que vai; ele fazer agora?
- Vai ao abarracamento ter com ela e obrigá-la
a entregar o dinheiro.
- E se ela não o entregar?
- Ele mesmo não sabe o que fará. Está tremendo
de raiva. Eu é que não perco a festa; logo que acabe da missa, lá irei ter.
Esta resolução do vigário fez com que, só pelo
meio-dia, Eulália pudesse ter a certeza de que se temia. Como soubesse que o
vigário estava no abarracamento, perdeu o receio de ser aí insultada por
Mundica e seguiu para lá.
A massa dos retirantes sussurrava surpresa com
o acontecimento descomunal que veio tomá-la de assalto. O comissário, seguido
pelos guardas do abarracamento, dera busca em todas as casas do abarracamento e
afinal mandara também revolver todos os cubículos ocupados por Mundica, que não
podia conter as lágrimas.
O comissário, parando diante dela,
perguntou-lhe secamente.
- Você não entrega a latinha?
- Não está comigo, já lhe disse; nunca furtei.
- Bem - bradou ele, dirigindo-se aos guardas
-, ponham-me para fora a chicote esta ladra.
Em vão Mundica tentou obter com as
súplicas a revogação da cruel sentença; os mesmos guardas que havia poucos dias
obedeciam-na na afronta a d. Ana e Chiquinha, vibravam contra ela os
instrumentos ignominiosos, e a suposta ré era obrigada a fugir entre os apupos
da multidão.
- Fora também com o resto da súcia, nem mais
um minuto fique aqui no povoado um só parente da ladra.
Os guardas obedeceram e a família de Marciano
foi obrigada a sair no mesmo momento.
Eulália, que chegava no instante mais violento
da cena, vendo Mundica, teve a dolorosa certeza de que se tratava com efeito de
d. Ana e de suas irmãs.
Cambaleando como uma bêbada, pôs-se a andar
espiolhando para dentro dos albergues até que lhe perguntaram por quem
procurava. Murmurou então o nome de sua família, e obteve uma resposta
desdenhosa:
- Ah! Procure-as lá para aquela banda, há uns
quatro dias que partiram; talvez a fome a tenha feito demorar e possa
encontrá-las pelo menos mortas.
Eulália, impelida pela alucinação que lhe
causara a certeza do insulto recebido pela família, tomou automaticamente a
estrada apontada, mas o cansaço e a reflexão vieram logo detê-la. De que
serviria aventurar-se por desconhecidos caminhos sem alguém que lhe servisse de
guia?
A bolsa, que lhe fora dada pelo bandido,
lembrou-lhe que podia obter um guia, e Eulália, voltando ao povoado, não
regateou o pagamento.
Horas depois, a pé, suando ao ardor do sol,
embora já declinado, recomeçou a caminhada.
À medida que se adiantava, dobrava o terror
que lhe causava o amargo pressentimento das desgraças a que estava exposta a
sua família. O deserto, com o seu corpo pardacento, seco e ardente, havia-se
estendido a fio comprido por toda a circunvizinhança. As casas tinham sido
abandonadas, e as portas e janelas, desconjuntadas pelas ventanias freqüentes,
agravavam ainda mais a tristeza desses mesquinhos monumentos da prosperidade
extinta da província. A nudez substituíra a vegetação, e o verão deixara um
rastro negro sobre os lugares outrora cultivados, como se fora uma lápide
sobreposta aos mortos plantios.
- O que será feito delas? - pensava Eulália. -
Que forças há que possam resistir a jornadas longas por esta paragem
desabrigada?
- É preciso ir mais devagar - observava de
quando em quando o companheiro; - daqui ao Quixadá vão mais de 20 léguas.
Eulália, porém, apressava mais o passo quando
o camarada lembrava-lhe a grande distância que a separava do ponto povoado. A
sua imaginação media pela distância a extensão da penúria a que estavam
reduzidos os seus, e os pés reproduziam-lhe a agitação do espírito.
- Não lhe parece que duas mulheres, tendo de
carregar uma menina de quatro anos, e de medir o passo pelo de duas meninas,
não podem andar muitas léguas por dia?
- É exato; mas em três dias podiam estar perto
de Quixadá, a não haver contratempo.
- Podiam, se não tivessem necessidades; mas
estas devem obrigá-las a parar.
- Qual! A fome dá asas à gente; já podem estar
em Quixadá.
- Encontrá-las-emos lá então, mas é preciso
caminhar.
E dobrava a celeridade do passo, e tinha
desejos de deitar fora as provisões para que a necessidade a impelisse com
maior presteza.
A noite, porém, veio providencialmente
obrigá-la a parar, para que não ficasse logo extenuada.
Três léguas fizemos nós hoje - ponderou o
companheiro; - amanhã podemos andar pelo menos mais do dobro, e depois de
amanhã dormir perto de Quixadá.
O honrado camarada pôs-se logo a acender fogo
para preparar a alimentação; e Eulália, ao ver as labaredas crescerem, enquanto
o camarada desarrumando o mocó de viagem punha no chão as provisões, desatou a
chorar.
Passava-lhe pela imaginação o quadro medonho a
que necessariamente estariam reduzidas sua tia e irmãs, e a fartura em que ela
se via pungia-lhe mais do que todas as suas dores.
Rogério Monte, o padre Paula, Augusto Feitosa
surgiam todos diante de si e cada um dizia-lhe uma palavra amarga, que a sua
consciência comentava em silêncio, afeiando-lhe a sorte de d. Ana, Chiquinha e
suas irmãs.
Todavia, por maiores que fossem as torturas
que lhe causasse a cogitação, elas não reproduziam nem palidamente a sorte da
família.
Depois da inaudita violência, que foi obrigada
a sofrer sem reagir, d. Ana apenas teve tempo e recursos para arranjar
provisões para um dia. A boa mulher, que fora involuntariamente causa da cena
aviltante, prestou-se a vender-lhe as jóias e ir clandestinamente encher de
água as borrachas ou vasilhas de couro, que dariam, quando muito poupadas, para
que a família se arraçoasse por três dias. Com esta matalotagem seguiu viagem.
No primeiro dia não sofreu senão o cansaço e
apenas afligiu-a o horrendo temor da fome. Porém, a esperança, a eterna
companheira dos desgraçados, atenuava-lhe a angústia, e ela conseguia
espairecer e até rir-se, e falar alegremente às meninas para dar-lhes coragem.
- Agora restam-nos poucas léguas; não tarda
muito que não encontremos alguma casa habitada, e dizia-me o defunto mano que
esta gente por aqui era muito caridosa.
Tais palavras produziam o resultado esperado
por d. Ana: encorajar as meninas, que não cessavam de caminhar. A própria
caçula, com o seu descuido infantil, queria, de quando em quando, descer do
colo para andar também pelo próprio pé e ir brincando com o Amigo.
No dia seguinte, porém, as provisões, embora
poupadas, só podiam chegar para iludir a fome, e não obstante a casa habitada
não aparecia. O cansaço e o desânimo tomaram o lugar da coragem, e só a muito
custo d. Ana pôde conseguir que só se parasse com a noite.
Com a manhã do terceiro dia, a família viu
aparecer de novo em torno de si o deserto, mas agora agravado pela fome. As
meninas tinham já os pés disformemente inchados, e a caçula estava prostrada
pelas soalheiras e pelo começo da fome, cujos efeitos fatais d. Ana evitava
dando, de quando em quando, uma bolacha à pobrezinha.
De todo o grupo, só um dos entes se mostrava
corajoso e enérgico: era o Amigo. O nobre cão jejuava desde o pouso; havia
emagrecido muito e tinha os olhos vermelhos, de modo que a família começava a
recear que ele viesse a danar. Mas ainda assim não tinha perdido o porte
altivo; parecia um mártir a caminhar sereno para o suplício. Era o primeiro
sempre a sair e agora, como se percebesse que falecia a coragem aos seus
companheiros de infortúnio, corria até o meio da estrada, latia e vinha puxar
pelo vestido de d. Ana.
A jornada foi, afinal, encetada, mas a fadiga,
duplicando a fome, fez com que não se adiantasse muito para o estádio da
viagem, a vila de Quixadá.
À noite as meninas deitaram-se e adormeceram
extenuadas, e a caçula, que também ficara sem o que comer, queimada pelo sol,
ardia em febre. D. Ana e Chiquinha, sentadas uma em face da outra, choravam sem
trocar uma única palavra. O Amigo também parecia ter desanimado, e, ao clarão
das frouxas labaredas do fogo que as infelizes haviam com muita dificuldade
acendido, o nobre cão embebia nelas o olhar.
Durou por muito tempo o silêncio, mas afinal
Chiquinha quebrou-o bruscamente perguntando a d. Ana:
- Vosmecê lembra-se do que nos contou aquela
mulher a respeito do que ela e a família passaram?
D. Ana meneou afirmativamente a cabeça.
- Começaram comendo raízes do mato...
- É que elas conheciam as ervas de que podiam
aproveitar as raízes, porém nós...
- Mas depois - continuou Chiquinha - mataram a
besta que trazia as cargas e comeram-na.
- Nós não temos besta - sorriu tristemente d.
Ana -, portanto, não podemos fazer o mesmo. Temos de esperar com fome até que
encontremos algum croatá.
- Mas nós temos...
- O quê? - perguntou d. Ana interrompendo-a.
- O Amigo - respondeu Chiquinha, que abaixou
os olhos.
O cão, ouvindo o seu nome, pulou ao colo de
Chiquinha e deitou para fora a língua larga e vermelha, meneando-a com intenção
acariciadora.
- Eu não tenho coragem - murmurou d. Ana; -
era muita ingratidão!
- É a necessidade! - exclamou Chiquinha
enxugando as lágrimas. - Não é verdade, Amigo?
O nobre animal, que, afastado brandamente por
Chiquinha, havia-se espichado junto a ela, bateu com a cauda no solo e soltou
um latido festivo.
Dir-se-ia que neste movimento o Amigo fazia um
oferecimento da sua à vida da família e que lhes suplicava até a honra desse
holocausto.
D. Ana e Chiquinha, compreendendo assim a
atitude do Amigo, fundiram em lágrimas, que de há muito buscavam um pretexto
para correr livremente e com a abundância do tormento que lhes dava causa.
- Não, não! - exclamaram ao mesmo tempo. -
Seria um crime.
O Amigo, levantando-se de chofre, caminhou num
passo picado em torno das meninas adormecidas, farejando-as como se quisesse
confortá-las com o bafo. Voltou a esticar-se de novo aos pés de Chiquinha, a
ganir acariciadoramente, e, como as senhoras se conservassem imóveis, tornou ao
passeio em volta das adormecidas.
A caçula acordou estremunhada, e, com um choro
doloroso, repetiu com uma acentuação comovente:
- Não posso mais, eu morro de fome.
Os esforços de d. Ana e Chiquinha para
acalentá-la foram vãos, e dentro em pouco despertavam também, com o semblante
lastimoso do faminto, as duas meninas.
O Amigo, como se quisesse repreender as
senhoras que o poupavam prolongando assim a angústia das crianças, latiu alto,
parando hostilmente em face de Chiquinha.
A moça hesitou ainda, mas afinal, como se
fosse tomada de um acesso de loucura, levantou-se, e, tomando um dos tições,
chamou com uma castanhola o nobre cão, que a seguiu sem relutar.
Estavam abrigadas numa das muitas casas
abandonadas que marginavam a estrada, e Chiquinha, entrando para o
compartimento destinado à cozinha, amarrou com as cordas da rede o pescoço do
Amigo. O animal, levantando-se nas patas traseiras, estendeu para ela as
dianteiras e pousou-lhas sobre o ombro, como se a buscasse abraçar.
O choro da caçula, a sua triste queixa de que
ia morrer soaram com mais força. A moça, revestindo-se de uma heroicidade
semelhante à alucinação, passou em um dos caibros a corda e puxou-a até que o
fiel companheiro dos seus infortúnios começasse a sentir os primeiros efeitos
do estrangulamento.
D. Ana, ouvindo o latir engasgado do Amigo,
correu até o lugar da execução, mas Chiquinha longe de desanimar comunicou à
tia a sua resolução e dentro em pouco o corpo do nobre animal caia em terra,
inerte e sem vida.
- Vamos, minha tia, é preciso ter coragem, ou
senão veremos todas aquelas crianças mortas.
Horas depois, as duras carnes do Amigo faziam
calar a caçula, e, satisfazendo as duas meninas mais velhas, diminuía a dor das
duas senhoras.
No dia seguinte, quando Eulália chorava
lembrando-se de que à mesma hora talvez a sua família sofresse as
indescritíveis torturas da fome, d. Ana e suas sobrinhas dormiam com o peso do
cansaço o sono do apetite satisfeito, graças ao corpo do Amigo.
Eulália conciliou também o sono na sua pousada
e só pela madrugada voltou à tristeza dos seus pensamentos e à ousadia da sua
empresa. Metendo-se a caminho, a sua imaginação via em cada estremecimento, em
cada redemoinho de poeira, que se levantava na estrada, o passar da sua
família.
Talvez em vez de adiantar a jornada
retardava-a, e foi por vezes advertida pelo camarada, que pôde por fim obter
que seguissem em linha reta.
O dia findou sem que o menor vestígio deixasse
perceber a passagem da família; nem uma só pessoa apareceu de quem pelo menos
uma informação vaga servisse de incentivo à esperança.
Ao anoitecer, porém, quando o camarada já
exigia de Eulália que ela se recolhesse para não se afadigar muito, um
vislumbre de esperança veio indenizar-lhe em parte o sofrimento do dia.
Passavam por diante de um casebre, de frente
esburacada, já sem janelas e sem portas. Vinha de lá um berreiro de crianças.
- Ouve? Quem sabe se não são eles?
- É impossível, minha ama; eles devem chegar
hoje a Quixadá.
- Mas podiam ter ficado por aqui por causa das
crianças.
- Por isso mesmo não ficariam.
- Pois bem, vá saber quem é; devemos pousar
dentro em pouco tempo, e sendo boa gente...
- Podemos fazer ponto aqui.
- Ouça, pergunte se é a família de d. Ana
Queiroz, ou se a conhecem, mas não diga o meu nome.
O camarada dirigiu-se à casa, enquanto
Eulália, sentada a distância, aguardava, deleitando-se com a esperança de haver
enfim encontrado com a sua família.
Um quadro de miséria esbateu-se aos olhos do
companheiro de Eulália. Da porta da entrada viu no interior da casa uma família
inteira, composta de moças e de crianças agrupada em torno de uma velha, que,
recostada ao colo de uma das moças, ansiava a respiração dificultosa dos
moribundos.
Entrando com a precipitação da compaixão, o
camarada foi parar junto do grupo e proferiu a pergunta que a sua ama lhe
recomendara.
- Não - respondeu uma das moças; - somos uma
família que morre à fome.
- Mundica! - exclamou o camarada, reconhecendo
uma das moças. - Como é desgraçada!
- Conhece-me? - soluçou a filha do sacristão.
- Pois quando voltar ao povoado diga lá se fui eu quem roubou o comissário.
O homem, em quem palpitava um coração cearense
na plenitude da virgindade sertaneja, teve ao ouvir estas palavras uma
impressão indefinível. Sabia que a mais brutal das ofensas tinha sido por ordem
de Mundica praticada contra a família de Eulália. Talvez a esta mesma hora,
pensou ele, estivesse aquela a padecer o mesmo tormento, pois que era quase
impossível que, sem dinheiro e sem provisões, alguém atravessasse incólume as
estradas da província. Como, pois, socorrer as desgraçadas que ali via às
portas da morte? Além disso, embora sua ama viesse prevenida para socorrer os
seus, quereria ela abrir mão de alguma coisa para socorrer estranhos e
inimigos?
O desespero em que o emaranhavam tais
pensamentos fê-lo demorar mais do que o tempo que devia gastar para uma simples
pergunta, e Eulália, tomando a demora por um bom agouro, caminhou até junto da
casa.
- São elas, não é verdade? - perguntou ao ver
o semblante comovido do camarada que saía. - Sofrem muito?
- Sofre-se muito aqui, morre-se mesmo à fome,
porém não é a sua família.
- Pois fiquemos entre eles - murmurou Eulália
suspirando longamente a sua desilusão; - não pode haver melhor companhia.
O camarada baixou os olhos confuso, e, como
Eulália se encaminhasse para entrar no casebre, o leal companheiro veio
postar-se-lhe na frente.
- Vossa Mercê não deve entrar, faça pelo amor
de Deus uma obra de misericórdia às infelizes que lá estão dentro, mas não
entre, porque talvez se arrependa de ter querido praticar tão boa ação.
- Não me disse você que as pessoas que aí
estão dentro morrem à fome?
- É verdade, porém Vossa Mercê tem-lhes ódio.
- Eu?
- Sim, e não as perdoará nem na hora da morte.
- É então Mundica? E a família da malvada? -
interrogou Eulália arquejando.
O camarada abaixou os olhos; e ambos
conservaram-se por algum tempo em silêncio, mas afinal a vítima de Mundica
murmurou a soluçar:
- Avie-se para que encontremos outro pouso, e
dê à gente que lá está dentro metade do que trazemos.
O camarada, aturdido pela generosidade de
Eulália, entrou apressadamente na casa e foi entregar a Mundica o socorro
inesperado.
A ex-amante do comissário, entregando-se a
expansões de gratidão, e como invocasse os céus em paga da piedade que lhe
vinha em auxílio, observou-lhe o camarada:
- Antes de tudo, você deve pedir um perdão;
ajoelhar-se aos pés de uma pessoa a quem maltratou muito.
- Nunca ofendi ninguém que não me houvesse
ofendido antes, mas ainda assim farei.
- Venha então comigo; esta esmola, que acabo
de trazer-lhe, não é dada por mim; quem a dá é d. Eulália.
- Quem? Eulália?! - exclamou indignada. - Pode
levar outra vez o que me trouxe. Eu sabia que ela devia estar farta e feliz,
enquanto eu vivesse abandonada. Diga-lhe que nunca hei de curvar-me a ela, a
comborça.
O camarada no primeiro ímpeto de indignação
pensou iludir a ama e deixar Mundica e os seus entregues à penúria. Chegou a
dar alguns passos, mas o seu coração cearense deteve-o.
- Diga o que quiser, fera, come e quando tiver
mais força calunie, insulte e persiga a quem a salvou. Deus queira porém
que o dia de hoje não volte, e sem remédio.
Sem dar tempo à resposta de Mundica, o honrado
camarada saiu deixando a orgulhosa faminta irresoluta sobre a decisão a tomar.
Eulália, que se havia afastado, perguntou ao
ver chegar o camarada:
- Poderá salvar-se a família?
- Sim - respondeu ele; - Vossa Mercê foi o
anjo da guarda que lhes apareceu.
- Elas hão de pedir a Deus por quem lhes dá
esmola - ponderou Eulália pensando em Virgulino; - e isto servirá para
redimir-lhe os pecados.
- Elas amaldiçoarão o benfeitor - pensou o
camarada; - aquelas feras não agradecem.
E o camarada era quem tinha razão. Mundica
veio até a porta a fim de verificar se era com efeito Eulália quem vinha em
socorro da sua família. Não pôde reconhecê-la pela distância em que já se
achava, mas, vendo uma mulher, a rival de Eulália acreditou no camarada.
A generosidade extrema não a comoveu. Só um
pensamento a dominou: foi que Eulália vivia feliz, podia atravessar a província
e abastada a ponto de dividir com quem sofria; não obstante a miséria,
vigilante como uma alfândega, espiar à beira da estrada, pedindo a todos uma
contribuição penosíssima de lágrimas e de sofrimentos.
De onde lhe poderiam vir os recursos senão do
vigário Paula? Conhecia-a bastante, sabia que ela fraqueara diante da sedução,
mas não se rebolcaria facilmente na prostituição. Era por força Paula.
E Mundica amava-o ainda. Se não lhe dera as
primícias da sua formosura, compensava-as com uma paixão que irrompia do ardor
tumultuoso da mocidade. Traíra-lhe o segredo porque fora por ele ofendida no
egoísmo da paixão, e agora com a separação sentia que o amava ainda mais.
Amá-lo-ia Eulália? Não o podia amar tanto
quanto ela o amava, e, não obstante, Eulália fora a preferida, podia viver na
abastança, enquanto ela acabava de ser ameaçada mortalmente pela fome.
Amélia ocupara-se imediatamente em socorrer a
velha e fazer calar as crianças. Mundica, porém, hesitou em servir-se das
provisões que lhe foram dadas pelo camarada; e só depois de longo meditar
assentou-se junto de sua irmã e pôs-se a partilhar da refeição.
A desgraçada - disse ela sorrindo - veio
dar-me forças para a vingança.
Amélia estremeceu ao ouvir sua irmã e
murmurou:
- Você tirou o gênio de meu pai, até me faz
medo.
- É que ainda está criança, não compreende o
que isto é. Eu tenho coragem de matá-la.
Logo que terminou a refeição, Mundica foi ter
com sua mãe e pôs-se a encorajá-la.
- É preciso que cheguemos a Quixadá, minha
mãe; partiremos amanhã, não é verdade?
- Sim, partiremos amanhã.
- E lá nos encontraremos - resmungou Mundica
-, havemos de ver quem vence.
No dia seguinte, pela manhã, as duas rivais
saíam das pousadas em que haviam passado a noite.
Durante a jornada, Mundica, que por largas
horas conservara-se calada, rompeu de improviso o silêncio.
- Vou pensando no caso do abarracamento.
- É o que você sempre nos arranja; já lá na
paróquia você, por ser linguaruda, deu ocasião à barulhada.
- Eulália esteve também parada no
abarracamento e, com certeza, esteve lá na noite em que o Cassiano deu por
falta do dinheiro.
- E o que tem ela com isto?
- O vigário Paula esteve também lá. Eu aposto
em como o vigário, que estava hospedado na casa do padre Belmiro. era ele.
- Pode bem ser - respondeu Amélia
distraidamente.
Um longo silêncio seguiu-se à breve troca de
frases, e só ao meio-dia, quando pararam para descansar, recomeçaram a
conversação.
- Se eu encontrasse com Eulália, na posição em
que estive no abarracamento, feliz e respeitada, sabe você o que eu fazia?
- Não - respondeu Amélia - mas devia ser por
força uma maldade.
- Havia de procurar todos os meios de
comprometê-la, e, se ela mandasse meter o chiqueirador em pessoas da minha
família, havia de procurar perdê-la.
- E ela ainda tem mãos para nos dar esmolas.
- Eu, por exemplo, se viesse acompanhada de
meu amante, pedia-lhe que se introduzisse de noite na casa do comissário.
- E depois? - perguntou Amélia corando.
- Depois dizia-lhe que ouvisse o que se
conversava, e, finalmente, que sabendo que em uma lata estava o dinheiro, ele o
roubasse para que a minha inimiga passasse por ladra.
- Mas Eulália era incapaz de proceder assim.
- Mas, como não se deu isto, fui eu quem
roubou Cassiano.
- Não foi você, mas também não foi Eulália.
- Veremos; a justiça de Quixadá há de decidir
isto.
- Mas o que vai você fazer, minha irmã? -
perguntou Amélia estremecendo.
- Fazer com que Eulália diga de onde lhe vem o
dinheiro com que dá esmolas. Ao menos ela e o vigário hão de confessar
publicamente que são amantes.
A vila de Quixadá sussurrava cheia de espanto
e de horror, na hora em que Mundica entrou por ela ao encalço de Eulália.
O povo aglomerava-se em frente à casa da
autoridade e comentava calorosamente um fato que parecia estar fora da natureza
humana. De quando em quando, toda a multidão agitava-se, investia contra a casa
e proferia uníssona uma sentença medonha:
- Morra a assassina!
A prudência e a energia das pessoas, que
guardavam a porta, continham a explosão indignada, e a onda popular, que
continuava a engrossar, recuava tumultuariamente,
- Deixem estar que há de se fazer justiça,
descansem, tenham paciência.
- Qual justiça, nem meia justiça - bradavam os
exaltados; - isto é pegar dela e estrafegá-la.
- A autoridade há de cumprir com a sua
obrigação; a justiça não será menos severa por ser demorada.
- Vejam a cara daquele demônio; está mesmo com
um ar de fera!
- Que entranhas!
- Que monstro!
- Morra a assassina!
E, como todos quisessem colocar-se junto das
janelas da casa do subdelegado, surgiam da grande massa protestos e palavras
ásperas e desavergonhadas.
Sentado em frente a uma mesa, tendo ao lado um
homem já idoso que estava a escrever, o subdelegado, um quarentão reforçado, de
modos brandos, mostrava-se impaciente e acenava freqüentemente, recomendando
aos homens da porta inteira prudência.
- Pode-se começar o interrogatório - disse o
homem que escrevia.
- Olhem para ali; que horror! - gritaram os
circunstantes que estavam à janela. - Pobre criança!
- Ela chegou sempre a comê-la?
- Se comeu! Foi ontem que ela praticou o crime
e só hoje é que se deu por ele, por um acaso.
Queria fazer como as jibóias, hein? Enquanto
tivesse o que comer, não deixaria o lugar.
- E era capaz de fazer o mesmo com o outro
filho.
- Ah! eram dois?
- Eram sim; o outro, que ainda é de peito,
está lá dentro. Eu o vi, já anda um bocadinho.
A autoridade impôs silêncio aos comentadores,
mandando repetir que se ia proceder ao interrogatório da ré e das testemunhas.
As perguntas da lei foram formuladas então
pausadamente, e a ré respondeu-as a soluçar.
Chamava-se Maria, e era casada com um
Virgulino da Silva, de Inhamuns. Não sabia dizer onde parava o seu marido;
acompanhara-a de Inhamuns ao B. V. com destino ao Aracati, mas em
caminho, morrendo-lhe o pai, decidiu demorar-se naquela paróquia, de onde
desapareceu.
- E não sabe que destino tomou?
- Não; ele saiu com muitos outros, entre os
quais um feiticeiro que brincava com cascavéis. Não sei se é vivo ou morto.
- Sabe de que é acusada?
A mísera ré meneou afirmativamente a cabeça,
que escondeu entre as mãos, a soluçar compungentemente.
- Que demônio! - ponderavam os circunstantes.
– Quer nos enternecer com as lágrimas. Causa asco.
- Responda - exclamou o magistrado -, é
preciso que você responda com a sua própria boca.
- Sei, sim senhor - suspirou a desventurada.
As suas palavras, proferidas com grande
esforço, pareciam trazer consigo parte do coração. Os próprios exaltados
sentiram-se comovidos, e olhando para a mulher, vendo-lhe as faces
escaveiradas, os olhos encravados profundamente nas órbitas, vermelhos das
lágrimas, os vestidos sórdidos e muito rotos, os próprios exaltados
murmuraram:
- O que é verdade é que, para uma mãe fazer o que
preciso estar doida.
Outros, porém, acudiram logo:
- É mesmo por maus bofes; doido não diz coisa
com coisa, e ela responde que nem uma letrada.
- Diga então qual o crime de que é acusada -
ordenou a autoridade dirigindo-se à ré.
- Vossa Mercê bem sabe qual foi; eu não posso
repetir...
- É o remorso, malvada! - gritaram os
circunstantes.
- É preciso dizer insistiu a autoridade -, eu só posso tomar o que você responder.
- Matei meu filho! - resmungou desventurada.
- E que idade tinha ele?
- Quase cinco anos.
- Foi levada por alguma raiva?
- Não.
- Alguém a obrigou a praticar semelhante ato?
- Não, foi a minha desgraça.
- Mas qual foi esta desgraça?
- A fome.
- Não tente iludir a justiça em nenhuma das
circunstâncias do crime, porque a sua punição será ainda maior.
- Para mim é um benefício morrer, com tanto
que amparem aquele infeliz que lá está dentro.
- Diga como foi levada a praticar esse crime.
Maria pôs-se a expor circunstanciadamente as
peripécias da retirada até o encontro com as crianças que choravam junto ao
cadáver materno, crianças que ela tentou trazer consigo, porém que morreram
ambas na mesma noite.
A autoridade deteve-a neste ponto que pareceu
uma circunstância agravante.
- As crianças, que tentou socorrer, morreram
então na mesma noite.
- É verdade. Eu as havia deitado na mesma rede
com os meus filhos e de manhã encontrei-as mortas.
- Mas acredita que se possa dar naturalmente
este fato? Não teria você feito com elas o mesmo que fez com o seu próprio
filho?
- Não, meu senhor; eu não as matei. Morreram e
eu chorei por elas. Foram essas crianças a causa da minha desgraça.
- E de que morreram as crianças?
- Não posso dizer; eu as havia alimentado.
- Pois se você teve entre o último povoado e
esta vila o que comer e o que dar a outrem, como precisou de matar o seu filho
por ter fome?
- Eu vou contar a Vossa Mercê o que se passou.
A desgraçada calou-se por algum tempo, e
depois da pausa referiu a história desta parte da retirada.
Era natural e simples. No mesmo dia em que
deixaram a árvore, e sob ela os cadáveres da mãe e das duas crianças, Maria
viu-se abandonada pelos seus que, para agravarem-lhe a temerosa situação,
deixaram-lhe ficar não só a criança que ainda vivia, mas também a outra que
fora vítima. A marcha, que já era penosíssima com o peso de uma só criança,
tornou-se quase impossível, e em breve a fome e o cansaço vieram
impossibilitá-la de todo.
Não conhecia a estrada, e, para qualquer lado
que se voltasse, via sempre a mesma perspectiva hostil da natureza: a
esterilidade abraçada com a solidão.
Por onde e para onde caminhar? Quantas léguas
faltariam ainda para que chegasse à vila? Não sabia; a única certeza que tinha
era a de trilhar uma estrada, de cujas margens a assolação pregava o desânimo.
A fome e o cansaço acobardaram-na; porque,
prosseguir na jornada, quando não se podia abrigar da soalheira e nada tinha
para comer, era expor a vida dos filhos. Já não tinha forças para carregar
ambos nos braços e nem era possível obter do pequeno mais uma caminhada.
Resolveu, pois, esperar que a misericórdia do céu guiasse para o lugar, onde
parara, algum caminheiro e que a piedade deste lhe viesse em socorro.
O dia, porém, passou desfazendo-lhe todas as
esperanças; nem um só passageiro pisou o chão da estrada e no entanto a morte
caminhava para ela e para os filhos com os passos cruéis da fome, que se fazem
sentir no corpo humano como a dor de uma queimadura continuada.
Quis aleitar o filho menor e os seios não lhe
deram nem uma gota de leite; insistiu com o maior para que comesse as raízes
que tinham sido a sua alimentação durante dias, não quis também aceitar.
- E então - perguntou a autoridade comovida -
que resolução tomou?
- Durante toda a noite - prosseguiu a ré na
sua narração, sem prestar ouvidos à pergunta - o choro das crianças
atordoou-me. Quando extremamente fatigadas as pobrezinhas calaram-se, o eco
ficara a azoinar-me e a fazer-me delirar. Vossa Mercê não sabe o que é para um
coração de mãe ouvir chorar os filhos com fome - exclamou a desventurada.
- Bem - interrompeu-a o juiz - não é disto que
se trata; a justiça quer saber como você teve coragem para matar o seu próprio
filho.
- Ora como! - comentaram os circunstantes. -
Como qualquer mataria a outra qualquer criança, como provavelmente ela matou as
duas que encontrou sem mãe nem pai.
- E as comeu também com certeza; veja se
aquilo é corpo de quem tem passado tanta fome como ela está dizendo.
- Comeu os pequenos e quando acabou a carniça
passou ao próprio filho.
- Tomou gosto e pôs-se na ceva. Dizem que a
carne do homem tem um bom paladar.
- Credo! Nem é bom falar nisso.
- Silêncio! - bradou o juiz. - É preciso que a
justiça ouça a delinqüente.
A mulher do bandido, como se estivesse
completamente alheia ao que se passava, reatou ainda uma vez a sua narração.
Ao amanhecer reparou para o semblante dos
filhos. Os traços dos esfaimados estavam neles profundamente gravados.
Vieram-lhe então à lembrança a mãe e os dois filhos que havia encontrado em
caminho. Ia ter a mesma sorte deles e, não obstante, não a merecia. Os três
surgiam como espectros na sua imaginação; via a mulher com os braços hirtos, os
dedos cravados no solo e parecia-lhe que o cadáver adquiria uma mobilidade
sobrenatural, que lhe dava ao corpo os meneios de serpente, ao mesmo tempo que
lhe marcava o rosto com a ira das onças enfurecidas...
- É o remorso que a persegue... - resmungou o
juiz.
.... Desvairada pelo horror de semelhante
quadro, começou a pensar tumultuariamente sobre o destino que lhe restava.
Partir ou ficar era irremediavelmente morrer; porém deveriam morrer todos?
Tinham os seus dois filhos o direito de exigir-lhe a vida, quando ela ia deixar
ainda outros na orfandade?
A consciência respondeu-lhe que não, e a
desgraçada preparou-se para abandonar os dois infelizes. Melhor fora havê-lo
feito logo, mas o coração prendeu-a, não teve força para arrancar dos seus
braços o pequenino; a própria desgraça soldava-o de encontro ao seu seio.
Uma recordação fatal veio-lhe então à memória.
Lembrou-se de que para as bandas do Crato uma mulher havia comido o filho. A
princípio esta recordação horrorizou-a, mas a pouco e pouco foi avassalando-a,
porque tinha por si a fome. A lógica adamantina do crime sugeriu-lhe argumentos
poderosos: se ficasse, todos morreriam, se abandonasse os filhos, eles
morreriam. Era trocar morte por morte, mas com uma diferença, a de que podia
salvar a si e a um dos filhos.
Empolgada por este horroroso pensamento lutou
durante horas para fugir-lhe ao guante. Suplicou de joelhos ao céu que fizesse
aproximar alguém, porque sozinha já não podia defender-se das sugestões fatais
do crime. Em vão foram proferidas as suas súplicas: só um caminheiro
aproximou-se, mas este, longe de trazer uma palavra de consolo, um afago de
piedade, mudo, indiferente, apenas serviu para agravar-lhe o estado mental. Era
o sol que, dardejando uma irradiação ardente, parecia dar-lhe razão ao
pensamento mau.
Olhou então para os dois, que, prostrados, já
sem forças para chorar, arquejavam um sono agitado que parecia um acesso febril
mortal. Uma voz imperiosa que parecia vir da própria natureza, disse-lhe então:
salva-te matando, porque a morte é a única solução que te resta.
A razão mergulhou-se-lhe em trevas; não
refletiu mais, não sentiu nem a mais leve pressão do sentimento de maternidade.
Estava convencida de que era forçoso que um dos seus filhos morresse, mas não
quis escolher por si mesma, entregou à sorte a sentença. Dois pedacinhos de
pau, o maior simbolizando o mais velho, o menor o caçula, serviram de forma ao
veredicto. Fechou os olhos, sacudiu-os nas mãos covas sobrepostas e depois
depondo-os no chão tateou até tocar em um deles. Era o maior...
A multidão silenciara ouvindo a descrição da
cena pavorosa e estremecia comovida até as lágrimas.
... No seu olhar estampou-se o batalhar de
sentimentos opostos que a desvairava e a criança, que se havia assentado
acordando sobressaltada, teve tanto medo que se foi abraçar com o irmãozinho.
Ela fitou-o com a gula do tigre e, gatinhando como ele, com movimentos largos,
mas sem ruído, foi parar a pequena distância. Tornou-o a fitar e como se uma
jibóia esfaimada se intumescesse dentro em si, empregando toda a sua
elasticidade para dar força e precisão ao bote, encolheu-se e de um salto
agarrou pelos cabelos a mísera vitima, levantou-a até a altura dos lábios,
cobriu-a pela última vez de beijos, como a jibóia cobre a presa de baba, e
perdeu de todo a cabeça. Quando voltou aos sentidos regularmente, estava entre
as mãos das pessoas que a amarravam e a conduziram à vila.
Pairava em todos os semblantes uma impressão
dolorosíssima. A própria autoridade, que se esforçava por manter urna
severidade convencional, mal podia conter as lágrimas, que lhe eram arrancadas
pela vibração pungente das palavras da narradora.
Só depois de uma longa pausa, durante a qual a
mulher do bandido soluçava comoventemente, voltou-se às formalidades legais.
Começou o depoimento das testemunhas.
Eram duas. Passando pela estrada, viram
levantar-se de um casebre um pouco retirado uma réstia de fumo. Aproximaram-se
para pedir que os deixassem ai preparar o almoço. Veio recebê-los a acusada,
cuja fisionomia profundamente aterrada os intimidou.
- É uma doida - pensaram pois que não dava
resposta a nenhuma pergunta, e com um olhar extremamente brilhante, esgarado,
observava e examinava tudo em torno.
- Bem - disseram -, deixe-nos apenas tirar
fogo; nós seguimos viagem.
Quiseram entrar para o interior, mas a acusada
pôs-se-lhes diante, impedindo-lhes o passo. Admirados de ver uma cearense negar
até uma brasa de fogo aos seus semelhantes, mais se lhes aprofundou a convicção
de que tinham diante de si uma pobre louca.
Retiraram-se, mas de pequena distância
voltaram para observar a mulher singular. Souberam então a causa que motivava a
proibição formal à entrada no interior da casa.
Ardia vivo, no meio do compartimento da casa,
o qual devia ter sido a cozinha, um grande brasido sobre o qual chiava um
pedaço de carne. De costas para ele, acocorada defronte do cadáver nu de um
menino, a mulher, munida de uma pequena faca, descarnava-lhe uma das coxas,
cortando com a frieza de um carniceiro as carnes de um boi.
O espanto, a confusão chumbaram os pés das
testemunhas ao solo e quedos no lugar de onde observavam, sem voz ao menos para
impedir que a operação prosseguisse, puderam ver por longo espaço a vítima, já
com o rosto escaveirado porque lhe haviam sido cortadas as bochechas e os
lábios, entregue à alucinação ou a perversidade da assassina.
- E como conseguiram prendê-la?
Ao lado sobre uns trapos dormia uma criança,
um quase esqueleto que por acaso acordou a chorar. A mulher, correndo
precipitadamente para ela, tomou-a nos braços, e, manchando-a com o sangue da
vitima, deitou-a no colo, e pôs-lhe nos lábios o seio, cobrindo-a
carinhosamente de beijos.
Passou-lhes então pelo pensamento uma idéia
medonha. Quem poderia afirmar que essa temível facínora não tinha em vista
repetir na mísera criança o crime que já havia perpetrado contra a outra?
O exagero do horror que lhes causou esta
previsão transformou-lhes a primeira impressão num acesso violento de coragem,
e de um salto, estando sobre a assassina, seguraram-na de modo a tolher-lhe
inteiramente os movimentos.
Aterrorada pela prisão, ela não confessou logo
que havia assassinado o menino. Disse que ele morrera de fome e que só porque
ela também tinha fome e via o seu filho menor prestes a morrer, serviu-se das
carnes do morto para comer.
Esta explicação, porém, não foi aceita e elas,
testemunhas, reso1vendo deslindar o caso diante da autoridade, amarraram a
mulher e transportaram o cadáver do pequeno.
Ouvido o depoimento, a autoridade perguntou à
acusada:
- Qual dos dois depoimentos é o verdadeiro: o
que nos fizeram as testemunhas ou o que fez aqui?
A desgraçada mãe não respondeu; continuou a
soluçar como se não tivesse ouvido.
Longe, porém, de irritar-se com o silêncio da
infeliz, a autoridade, lendo na sua atitude humilhada a grande, a indizíve1 dor
que a acabrunhava, limitou-se a dizer:
- O cadáver mostrará se houve ou se não houve
assassinato; tragam-no para aqui.
A curiosidade popular, que era tamanha como o
espanto que lhes causava o caso insólito, amotinou-se ouvindo as palavras da
autoridade e, apesar da resistência dos guardas da porta, a onda de povo encheu
completamente a sala.
Só com imensa dificuldade dois homens puderam
passar do interior da casa para o meio da sala, com uma rede ensangüentada, que
depuseram no chão.
- Cerquem esta mulher e ninguém lhe ponha a
mão. A justiça há de fazer o seu dever - bradou o subdelegado que veio,
acocorando-se em frente da rede, abri-la diante da curiosidade geral.
Ao ver ó corpo da criança barbaramente
mutilado, cortadas as bochechas de modo que ficaram a descoberto os parietais,
os maxilares, os dentes encravados numas gengivas já roxeadas, uma das coxas
quase toda descarnada, a multidão teve um assomo de indignação contra a autora
do crime, e tão violento que só o respeito de que gozava a autoridade evitou
que ele fosse fatal.
- Morra a fera!
- Façamo-lhe o mesmo que ela fez à criança!
- Deite-se ao fogo esta mãe desnaturada!
- Morra a perversa!
A autoridade, que oscilava à mercê das
impressões, mudou também de semblante, e a expressão de piedade tornou-se-lhe
em clara demonstração de má vontade à ré.
Depois de examinar o pescoço e o crânio do
assassinado, vendo no primeiro os sinais do estrangulamento e no segundo sobre
o temporal uma grande mancha roxa, o subdelegado resmungou:
- Não há dúvida, sufocou-o perversamente.
E dirigindo-se à acusada:
- Disse-me que havia agarrado pelos cabelos do
seu filho, não é verdade?
A desgraçada meneou a cabeça afirmativamente.
- Depois, conforme se vê pelos sinais,
apertou-lhe a garganta com as mãos, não é verdade?
O mesmo gesto foi reproduzido pela mísera
mulher.
- Há também um sinal roxo sobre uma das
fontes. Você, para apressar a morte do pequeno, bateu-lhe com a cabeça em algum
lugar, não é exato? Talvez em um portal?
O gesto horripilante foi ainda uma vez
repetido e o povo acompanhou-o com um estrepitoso - morra!
Desta vez a autoridade não teve mais força
para conter o movimento de indignação geral e a massa precipitou-se de encontro
à assassina. Nenhum dos braços ultrizes, porém, chegou a tocar no seu corpo,
porque uma mulher, tendo nos braços o esquelético filho da esposa do bandido
Virgulino; ajoelhando-se-lhe em frente, suplicou, debulhada em lágrimas e
levantando a criancinha como única arma:
- Não matem esta desgraçada, porque matam com
ela uma inocente!
Os guardas, aproveitando-se da parada da
multidão no seu ímpeto vingativo, puxaram a assassina para o interior da casa
da autoridade, que, se postando na porta, impediu a invasão.
Todo o despeito popular limitou-se então a
protestos contra a proteção com que se tratava uma fera, que havia assassinado
para comer o próprio filho.
- Se lhe parece, deixe em liberdade o demônio.
- Mande-a enroupar e montar casa; ela merece.
Estas e outras invectivas à autoridade não
foram, porém, respondidas e o ajuntamento foi a pouco e pouco se desfazendo.
Quando a multidão rareou, duas mulheres
encontraram-se face a face; uma trazia nos braços o filho da assassina, outra
segurava pela mão uma criança.
Um olhar de cólera foi trocado entre elas, mas
a que trazia nos braços o filho da assassina, como se de súbito se arrependera
de haver correspondido à provocação da outra, quis voltar sobre os seus passos.
Eulália, que era a que tentou voltar, foi
porém detida pela outra, a vingativa Mundica, que veio postar-se-lhe diante.
- Eu recebi a esmola - murmurou a filha do
sacristão o venho dar-lhe os agradecimentos.
Eulália calou-se e buscou desviar-se para
seguir.
- Escute - acrescentou Mundica, travando-lhe o
braço -, não pense que me mete medo com o seu desprezo. Eu recebi a esmola, mas
quero saber de onde você a tirou para dar-ma.
- Deixe-me em paz, Mundica, eu nunca a ofendi;
por que há de você querer maltratar-me?
- Não, nunca me ofendeu - sorriu Mundica -,
mas a verdade é que eu estou na miséria e que você vive feliz.
- E que culpa tenho disto? Deixe-me sair,
queixe-se de quem é a causa da sua desgraça.
- Quer sair, não? Sairá; porém, antes de tudo,
há de dizer de onde lhe vem o dinheiro que tem.
- Deram-mo.
- E a pessoa não tem nome?
Eulália calou-se. Nem a sua dignidade
permitia-lhe que respondesse a Mundica, nem devia pronunciar o nome de
Virgulino, principalmente agora que tão lamentosa desgraça havia caído sobre a
sua família.
- Cala, não é assim? Pois eu sei como lhe veio
às mãos esse dinheiro...
Julgando que, por qualquer circunstância,
Mundica tivesse conhecimento da sua estada na vendola e das suas relações com o
bandido, Eulália não pôde esconder uma comoção violenta, que, por sua vez, não
passou despercebida a Mundica.
- Pode dizer-me qual dos dois foi o que se
incumbiu do roubo?
- Largue-me, pelo amor de Deus - murmurou
Eulália forcejando por livrar o punho da mão de Mundica; - você está acostumada
às brigas, eu não.
- Mas está acostumada ao roubo... Fale, grite,
chore, não me foge; eu quero deslindar o caso diante do subdelegado. Você não
passa de uma ladra!
A injúria foi vibrada em voz tão alta que
chamou a atenção dos poucos circunstantes que ainda se achavam no lugar, e
demais disso assustou de tal forma a mísera injuriada que ela murmurou,
humilhando-se:
- Você bem sabe que eu não sou capaz de
furtar, Mundica. Eu não mereço que você me faça mal, só por haver tirado do que
tinha para repartir consigo.
- Eu também faria o mesmo, se fosse por minha
causa que outra pessoa estivesse quase morrendo de fome. Boa caridade, minha
ladra.
À medida que a atenção convergia para o grupo,
Mundica alterava o tom, de modo que pudesse ser ouvida.
- Homem, aquilo creio que é estralada nova;
elas estão a se chamar ladras.
- Não, uma delas é que é a ladra; não a viu
quase ajoelhar-se diante da outra?
Diversas pessoas se aproximaram e Mundica,
triunfante, continuou:
- Pode pedir até pelas cinzas de meu pai, eu
não hei ficar enxovalhada por sua causa. Vamos à presença da autoridade.
E puxou pelo braço da outra, obrigando-a a
reentrar na casa do subdelegado.
Ao passo que Mundica gesticulava, levantava
estrepitosaente a voz e fazia requebros canalhas, Eulália, traspassada vergonha
e de receio, limitava-se a chorar.
- Então o que temos? - perguntou o
subdelegado.
- Foi esta mulher que furtou no pouso de...
uma carteira do comissário, com mais de um conto de réis.
- Eu?! - interrogou Eulália admirada. - Eu?! –
repetiu a sufocar-se em soluços.
Mundica sentiu falecer-lhe a coragem para
prosseguir na acusação, tanto mais porque ela parecia-lhe agora de todo o ponto
caluniosa. Mas o desejo de vingança, o grito selvagem do ciúme, veio logo
fortalecê-la e a odienta rival acrescentou:
- Você mesma, não podia ser outra.
A autoridade, que simpatizava com Eulália por
vê-la oferecer-se para tomar o encargo de cuidar do filho da assassina,
interveio em favor da infeliz.
- E que prova tem você para fazer uma acusação
destas?
- A prova é que esta moça era filha do
professor de B. V. que morreu pobre como Jó; que ela saiu da paróquia
muito pobre, que a família dela ficou tão pobre que talvez já tenha morrido à
fome, e que ela do pouso de... para cá tem dinheiro e tanto que pode dar
esmolas.
- Mas isto não é prova, pode ser que lhe
dessem dinheiro...
- Mas se, na véspera da saída dela do pouso,
sumiu-se uma carteira do comissário?...
- Isto ainda não é prova.
- Mundica acusa-me de ter tirado a carteira,
mas eu não estive no abarracamento nem fui à casa do comissário; como, pois,
havia de furtar? Ela bem sabe que a minha educação não foi essa.
- Nem a minha. Você tirou o dinheiro para me
fazer mal. E de mais corram a nós duas, e veja-se quem é que traz dinheiro.
- É o que se deve fazer - ponderaram os
circunstantes; - não há testemunhas nem pró nem contra, o dinheiro é quem fala
a verdade.
O subdelegado mandou que ambas mostrassem as
algibeiras dos vestidos e Eulália, sem relutar, tirou do bolso a carteira que
lhe tinha sido dada por Virgulino.
- Eu tenho dinheiro nesta carteira, mas não é
a quantia que sumiu-se ao comissário.
- É que você já deu destino ao que falta.
O dinheiro foi contado, mas com grande
satisfação de Eulália reconheceu-se que a quantia não excedia a cem mil-réis.
- Já vêem que não é a quantia de que fala
aquela mulher - ponderou o subdelegado.
- Vossa Mercê não sabe quem é esta rapariga -
exclamou Mundica; - desde que ela foi amante do vigário de B. V., tem
cometido todos os crimes. ~ tão boa que a família não a quis junto a si.
Eulália, que não havia ainda perdido o recato
da mulher honesta, não sabia responder às acusações de Mundica, senão
admirando-se da perversidade que as gerava, e a sua causa começou a perigar. Os
circunstantes aceitavam todos, como prova de que Mundica dizia a verdade, o
fato de se encontrar a carteira em poder de Eulália.
Observaram uníssonos:
- O melhor é retê-la até que prove que não é
culpada.
O subdelegado lançou um olhar penetrante a
Eulália, que tiritava debulhada em lágrimas. Dir-se-ia que esse olhar, como o
brilho de uma lâmpada sobrenatural, tentava dissipar toda a sombra em que
porventura a acusada se quisesse ocultar, e irradiar no íntimo da consciência
dela.
- Como obteve este dinheiro? - perguntou ele.
- Diga quem lho deu.
Eulália abaixou os olhos e prorrompeu em
soluços.
- Isto é o que ela não pode dizer - sorriu
Mundica; - foi pilhada com a boca na botija.
- Não furtei - respondeu humildemente Eulália
- deram-mo.
- Tem a boca dura como um poldro xucro -
ponderaram os circunstantes. - Não confessa; cadeia com ela.
- Esteve ou não no povoado quando sumiu-se o
dinheiro? - perguntou a autoridade.
- Estive - murmurou Eulália -, mas não conheci
o comissário.
- Não esteve arranchada no abarracamento?
- Não; passei dois dias na casa da irmã do sr.
vigário.
- Quando chegou ao povoado já trazia o
dinheiro?
- Sim, senhor.
- Mas, não era tão pobre em B. V.? Como
pôde conseguir tamanha soma?
“É que o vigário deu-lha” - pensou Mundica; -
"hei de perdê-la, desgraçada. Há de pelo menos provar a cadeia."
- Saí de B. V. sem um vintém, mas em
caminho encontrei com um homem, a quem havia prestado um pequeno serviço e ele
deu-me esta carteira.
- E qual foi o serviço que mereceu tamanha
recompensa? Eulália calou-se e os circunstantes resmungaram:
- Está bem arranjada a desculpa, mas não pega,
neste tempo não há quem faça disto.
- Se não diz quem lhe deu o dinheiro, eu me
vejo obrigado a mandá-la deter até que se justifique. Você não tinha eira nem
beira em B. V.; não podia também arranjar esta soma em viagem porque não
há hoje meios de fazê-lo. Entretanto na sua passagem desapareceu um dinheiro; é
sua obrigação dizer a verdade para que a autoridade saiba o que deve fazer.
O nome de Virgulino veio
pairar à flor dos lábios da infeliz, porém a vergonha evitou que ele fosse
proferido.
- Eu não posso deixar de tomar uma providência
muito séria, minha filha, fale; defenda-se.
- Eu falo pela minha ama, sr. juiz - exclamou
da porta o camarada, que tinha ficado perplexo ouvindo a acusação feita a
Eulália. - Esta mulher - disse apontando Mundica - era amante do comissário
de... Há cinco para seis noites, quando ela se retirou da casa do comissário,
este deu por falta de um conto de réis, e deu-a como ladra desta quantia.
- Eu não nego que assim fosse - acudiu
Mundica- mas o que é verdade é que eu não tive nem com que comprar um pires de
farinha, e outra retirante, como eu, tem até para repartir com os outros.
- Com você, que é uma ingrata, que estava a
morrer de fome e a quem ela deu metade do que trazia para socorrer à família
expulsa de... por sua própria causa, Mundica.
Mundica sentiu-se momentaneamente confundida,
mas o sangue-frio voltou-lhe de pronto e inspirou-lhe uma evasiva feliz.
- Eu não falo sem provas. Quando fui acusada
pelo comissário, não invoquei o nome de Eulália, o que serve para mostrar que
não é por ódio e muito menos por ingratidão que eu falo. Sabia que ela estava
no povoado... mas não quis lançar sobre ela a pecha de que eu tanto me
horrorizava. Mas hoje, que ela se apresenta com dinheiro, eu estou no meu
direito obrigando-a a explicar a origem da sua fortuna.
- Ela não atribuiu a Eulália o crime, quando
foi acusada no abarracamento? - perguntou a autoridade ao camarada.
- Não - respondeu este -, mas também é verdade
que, logo que o fato tornou-se público, o comissário fez retirar a golpes de
chicote Mundica e a sua família.
- Diga-me, onde está a sua família? Quero
vê-la para poder fazer o meu juízo - disse a autoridade; - mandá-la-ei chamar.
- Eu não sei onde ela se acha.
- É o que eu já disse: desde que se fez amante
do vigário Paula, brigou com a família para andar mais à solta.
- É verdade o que esta mulher está dizendo? -
perguntou a autoridade a Eulália.
- É exato que eu me separei dos meus parentes,
porém não fui por eles expulsa, nem lhes quero mal por isso.
A autoridade, visivelmente contrariada, porque
certa da inocência de Eulália, via-a entretanto comprometida no juízo geral, e
murmurou:
- Não tenho remédio senão tirar isto a limpo,
e, para fazê-lo, ambas vocês ficarão às minhas ordens.
- Tenha pena de mim por esta pobre criança -
soluçou Eulália; - a prisão vai prejudicá-la, e o sr. juiz não há de consentir
que por uma calúnia sofra eu e este desgraçadinho.
- Disse que conhecia o vigário Belmiro e tanto
que pousou na casa da sua irmã.
- Dois dias.
- Ele informará a seu respeito, qual o seu
procedimento, a sua entrada e saída do povoado.
Eulália, comovendo-se inexplicavelmente,
soltou um ai aflito ao ouvir as últimas palavras da autoridade e proferiu com
um soluço:
- Estou perdida, meu Deus, eu não me despedi
da família quando me retirei de lá!
Esta declaração de Eulália foi considerada uma
circunstância agravante pelas pessoas presentes, que, por este simples fato,
decidiram-se logo a favor de Mundica.
- Não há dúvida - ponderaram; - ela que fugiu
alguma razão teve.
- Deixe ficar aí a criança - disse o
subdelegado dirigindo-se a Eulália; e, voltando-se para dois dos circunstantes
-. vocês façam-me o favor de conduzir estas duas mulheres até a cadeia.
A ordem do subdelegado foi cumprida pelos
circunstantes e por Eulália, que entretanto demorou-se em abraçar e beijar o
filho da assassina.
- Não sei por que - sorriam os circunstantes
-, mas a verdade é que os criminosos têm sempre uma grande predileção pelos
outros.
Mundica saiu desembaraçada e a sorrir, ao
passo que Eulália mal podia mover-se. A ordem de prisão pesava-lhe sobre o
caráter como se fosse um rochedo que lhe houvessem prendido aos pés.
Na porta da casa estava parada a família de
Mundica, que se lhe dirigiu com a desenvoltura de uma virago:
- Não tenham medo, eu vou presa, mas não me
hei de demorar muito lá. E depois, mais vale um gosto...
- Que gênio soluçou Amelinha. - Não sei de
quem é que ela puxou tanta perversidade.
- Até logo - exclamou alegremente Mundica.
O homem que seguia Eulália impeliu-a
brandamente para fazê-la caminhar e o subdelegado, que chegara à porta,
murmurou com azedume apontando Mundica:
- Se os ânimos não estivessem hoje exaltados,
eu havia de ensiná-la.
Acompanhadas pelos circunstantes, Eulália e
Mundica puseram-se a caminho; a primeira insultada e a segunda felicitada pelos
comentários gerais.
- Quem não deve, não teme.
- O crime é quem a faz andar devagar; não
pensou que se viesse a descobrir tão cedo.
Quase à porta da cadeia, que ficava a pouca
distância da casa do subdelegado, os olhares de Eulália e de Mundica
encontraram-se com o de um cavaleiro, que era desconhecido para todos, mas que
entretanto mostrava conhecer algumas pessoas do ajuntamento.
O pajem, que seguia o cavaleiro, veio por
ordem dele informar-se do que se passava e perguntar, ao mesmo tempo, onde
podiam ser encontrados o pároco e o subdelegado.
- Ambos em casa - responderam; - quanto ao que
está vendo é a prisão de uma ladra.
O cavaleiro dispunha-se a galopar para
apressar a chegada à casa da autoridade, quando um clamor o deteve:
- Lá vai ele acompanhando a assassina do
próprio filho, a fera.
Adiantando-se do grupo, o cavaleiro dirigiu-se
a galope até a porta da cadeia, e entregou ao subdelegado uma carta da parte do
vigário Belmiro.
- Nem de propósito; o senhor vem de lá da
freguesia?
- Parti ontem.
- E estava lá quando foi feito um roubo ao
comissário?
- Feito por uma tal Mundica, não é verdade?
- Ela nega, e atribui a uma outra, chamada
Eulália, o crime.
- É uma infame, aquela perdida; juro-lhe em
como é uma calúnia, para tomar uma vingança miserável contra a outra. Queira
ler a carta.
O subdelegado rasgava a
obreia que fechava o papel, quando o grupo aproximou-se.
- Deixem em liberdade esta moça - disse ele
assinalando Eulália; e dirigindo-se a esta: - pode retirar-se.
O cavaleiro, que havia dado
as costas ao grupo, olhou de através para ver a direção tomada por Eulália.
- Conduzam esta outra para dentro, e esperem
até que decida qual o destino que lhe devo dar.
Houve geral perplexidade da multidão, ainda
despeitada por não ter podido efetuar justiça bárbara na pessoa da infanticida.
- Que vergonha: mosca-morta com uma assassina
e cruel com uma inocente - murmuravam.
O subdelegado, que havia terminado a leitura,
teve um movimento de surpresa e caminhou para o desconhecido.
- Queira perdoar-me qualquer desatenção; não
tinha a subida honra de o conhecer, sr. vigário.
- Queira perdoar-me o vestuário; sirvo-me
deste meio para evitar um escândalo. Pela carta sabe que fui torpemente
caluniado em B. V., e para maior tristeza minha, com esta pobre menina
que V. Sa. acaba de pôr em liberdade.
- A outra argumentou com esta circunstância.
- Ah! Ela tem razão, era filha do meu
sacristão, e pensavam ela e o pai que tudo quanto pertencia direta ou
indiretamente à igreja lhes pertencia.
Sorriram ambos, e o subdelegado perguntou:
- E a respeito do furto do dinheiro, o que hei
de eu dizer?
- Que, felizmente, já apareceu a quantia
furtada. Tem aqui V. Sa. uma prova evidente para dar, é uma carta do próprio
comissário, que comunica ao vigário Belmiro haver encontrado a latinha no lugar
que foi designado pelo seu hóspede.
- E este hóspede, era vossa reverendíssima?
- Exatamente; havia saído à noite para
espairecer e passei pela casa do comissário, que, como sabe, mora na mesma rua
em que reside o vigário. Vi então dois vultos dirigirem-se para a extremidade
da rua e aí enterrarem no areal um objeto. Quando ouvi que o comissário tinha
sido furtado, lembrando-me do caso, comuniquei ao vigário.
- E foi encontrada a quantia exata?
- Pode afirmá-lo sob palavra de honra. O pajem
que me acompanha é do lugar; ele deve conhecer a Mundica, sabe do fato e pode
já referi-lo.
- Bem me pareceu que a tal Mundica mentia, e
que era ela a verdadeira autora.
- Eu não juro que fosse ela, mas juro que não
foi Eulália.
- Não ficou averiguado então.
- Eu fui a única testemunha, e não pude
reconhecer os vultos, quando procediam ao enterramento do furto.
- Neste caso, nada se deve também fazer à
Mundica.
Paula, que temia o encontro com Mundica,
porque tinha certeza da sua perseguição, ponderou com um suspiro:
- É certo que Mundica pernoitava na casa do
comissário; que ambos dormiam no quarto em que estava o dinheiro; que à noite
Mundica pediu ao comissário que lhe desse dinheiro para que ela se retirasse
temporariamente do lugar; é certo também que o comissário mostrou-lhe o
dinheiro que tinha em seu poder e que na mesma noite deu-se o roubo.
- É, pois, quase certo que não podia ser senão
Mundica a autora do furto, porque ninguém senão ela podia saber onde estava o
dinheiro.
- É pelo menos o que parece.
- Neste caso, o melhor é deixá-la ficar aí de
molho, até que venham notícias de lá.
- Eu não faria assim; perdoe-me V. Sa., eu
dava apenas exemplo. Em épocas de miséria tudo é possível e não se pode ser
severo. Detinha-a por uma semana.
E consigo pensava Paula:
"É o tempo necessário para que Eulália
siga até Baturité, e daí por diante não tenho nada mais a temer".
- É o que vou fazer - disse o subdelegado, e,
apontando a Paula o caminho da casa: - queira esperar-me lá; tenho muito que
fazer aqui.
"Bem, cheguei uma vez a tempo" -
pensou Paula, que, distanciando-se do grupo, dirigiu o olhar para o lado que
Eulália havia tomado.
Ela caminhava apressadamente e o vigário, como
se fosse pela força de uma torrente, seguia a mesma direção. No seu olhar
brilhante a paixão tocava rebate ao coração deveras amargurado, convidando a
dessedentar-se nas carícias Eulália, a escrava submissa de outrora, não ousaria
negar.
- Não é na casa do subdelegado que Vossa Mercê
pousar?
- É - respondeu Paula contrariado.
- Então já estamos quase à porta; é ali. Paula
teve um sobressalto semelhante ao de quem é de e acordado, e, para não ter de
parar, observou:
- Devemos ir primeiro entregar a carta ao
pároco; depois pensaremos na casa do subdelegado.
- Se Vossa Mercê quer ir à casa do vigário,
temos de voltar; já lá ficou.
Vendo que para guardar conveniências era
obrigado a parar, porque se continuasse a seguir Eulália todos o perceberiam,
Paula resignou-se a voltar em procura do vigário, a quem principalmente vinha
recomendado.
À porta, não podendo resistir ao desejo que
tinha de falar à Eulália, de conciliar-se com ela, de pedir-lhe, enfim, a
dedicação do passado, Paula perguntou ao pajem:
- Reparou naquelas mulheres que iam presas?
- Uma era a Mundica.
- A outra seguiu por ali; não deve ir longe;
você acompanhe-a e venha dizer-me onde ela está pousada.
Durante a manhã inteira Eulália ocupara-se em
procurar pela vila a família, e foi com este fim que se dirigiu à casa da
autoridade, para onde a maioria da população era atraída pela notícia do crime
descomunal da mulher de Virgulino.
Aí a esperavam, além de uma desilusão, os
sofrimentos que lhe ocasionou a sua presença em tal lugar, e quando, por uma
razão que não sabia explicar, viu-se livre da prisão, a infeliz caminhou a
esmo, apressada como se ouvisse após si os passos da justiça.
Na caminhada que levava, embarafustou pela
feira, sem reparar nos ditos e nos olhares que a sua beleza, embora machucada
pelo tormento, provocava. nos circunstantes. Não reparou também em um homem
que, sentado em uma das saídas da feira, com o queixo fincado nas palmas das
mãos, amargurava-se em silêncio, como uma fermentação de plantas venenosas.
Depois de haver passado por ele, o homem
levantou-se como alucinado, e puxou-a bruscamente por um dos braços:
- É a minha boa ama - exclamou ele. - Eu
estava aqui parafusando como havia de convencer esta gente de que a minha ama
era inocente.
- Estou felizmente livre, meu amigo -
respondeu Eulália - e quero certificar-me de que não estão mais aqui minha tia
e minhas irmãs. Quer você acompanhar-me?
- Até que Vossa Mercê possa
sair da vila; para adiante não, porque tenho também família e devo cuidar dela.
- Volta então?
- Amanhã, uma vez que a minha ama já não corre
perigo. Eulália, depois de repetir os sinais da sua família e de recomendar ao
camarada a maneira pela qual havia de dirigir-se a ela, caso a encontrasse,
separou-se do seu honrado companheiro.
- Assim tenho a certeza de que não fica um
único canto da vila sem ser examinado, e se elas estiverem aqui eu as
encontrarei por força.
A pesquisa recomeçou com todo o ardor da
piedade fraternal de Eulália, mas em vão, porque já d. Ana e as sobrinhas
haviam deixado a vila.
O tratamento que era dado
aos retirantes aconselhou à prudente senhora não demorar-se ai. Ainda na
véspera da chegada, um sério conflito se havia travado entre a comissão, os
seus empregados e os famintos, que, açulados pela fome, arrombaram o armazém do
governo e tentaram assassinar um dos comissários. A punição do delito foi
tremenda severidade e de justiça. Não só os chefes do assalto foram presos e
metidos no tronco, mas as próprias mulheres foram vergastadas em público. Para
que o exagero da pena chegasse ao máximo, mandaram prender todos aqueles que
eram acusados pelos empregados, de modo que muitas pessoas, que não haviam
tomado parte no acontecimento, foram castigadas.
Além disso corria a fama de que a beleza das
mulheres o aferidor das necessidades das famílias, e os empregados, provê-las,
exigiam dos chefes que fossem as filhas, as esposas e as irmãs que as relatassem.
D. Ana julgou mais acertado vender os poucos
objetos que lhe restavam e pôr-se de novo a caminho e sem demora. Não podia ser
mais infeliz do que tinha sido, e além disso a estrada, muito mais habitada do
que o interior do sertão, acenava-lhe como um abrigo em caso de penúria.
Partiu, pois, demora em busca da esperança derradeira, que lhe ficara do
passado de felicidade: encontrar-se com o velho Monte na capital da província.
Só à tardinha Eulália convenceu-se de que não
podia descobrir a família em Quixadá, e, desanimada, fatigada, hesitou sobre a
deliberação que devia tomar. Deveria seguir ou permanecer?
As hipóteses encontroavam-se no seu espírito,
julgava impossível que d. Ana pudesse já haver passado pela vila, quando, além
das meninas menores, tinha ainda a caçula para demorar-lhe a marcha. Por outro
lado a estrada geral para a vila não dava ocasião a que os viajantes se
desgarrassem, e portanto não era possível que d. Ana se houvesse desviado. Não
podia ser também que estivesse ainda na vila, abrigada em qualquer casa, em que
chamassem a comiseração para tamanha desgraça?
Esta hipótese, que era a menos justificável,
mas que se fortalecia nos sentimentos generosos de Eulália, sobrepujou a todas,
e a infeliz resolveu demorar-se na vila.
- Eu partirei amanhã, visto que a minha ama já
não corre perigo - disse o camarada ao saber da resolução de Eulália.
Este aviso impunha à moça a obrigação de pagar
na mesma ocasião os serviços do camarada, e Eulália, que estava na feira, onde
viera encontrar-se com o seu companheiro, levou a mão à cintura.
- Ah! Ainda não fui buscar a carteira na mão
do subdelegado. Espere-me um pouco, e, enquanto eu vou, arranje por aqui um
lugar em que possamos pousar.
Quando Eulália se afastou, o pajem de Paula,
que, ora a cavalo, ora de pé, a havia acompanhado sempre, aproximou-se do
camarada e perguntou-lhe com a familiaridade própria dos sertanejos se aquela
moça não era uma das que tinham sido presas.
Recebendo resposta afirmativa, o pajem,
querendo informar-se do destino que Eulália ia tomar, entabulou uma rápida
conversação com o camarada.
- Foi uma alhada de mil diabos, hein? Quase
que a pobrezinha vai parar no tronco.
- Mas Deus protege os seus, e, como ela é uma
pérola, achou quem a defendesse.
- É verdade; por fortuna, o homem a quem eu
venho acompanhando sabia do negócio da Mundica, e pôde deslindá-lo.
- Aquela é que é uma peste! Passa fora,
demônio! Aquela Mundica é mulher para dizer que Deus não é Deus.
- Má casta de gente. Eu não sei como a sua ama
tem coragem de ficar aqui morando, quando a Mundica também fica. Mais dia menos
dia, arma outra estralada...
- Agora ela já está conhecida, a peste da
odienta, e além disso a ama só se demora aqui uns dias, para ver se encontra a
família.
- Mas neste tempo mesmo...
- Quando a ama voltar, eu ainda hei de ver se
lhe dou um jeito. Ela foi à casa do subdelegado, e não tarda aí. Ainda veremos
se ela fica.
- Pois fale com ela, homem, diga-lhe que é bom
ter cautela, e que é melhor fazer mais umas léguas, e ir descansar em Baturité.
- Havemos de ver isto - respondeu amavelmente
o camarada, e perguntou ao pajem: - você que é mais sabido por aqui, não me
dirá onde a gente poderá pousar aí por uns dois ou três dias? Está tudo isto
tão mudado com a seca, que é custoso arranjar-se até quem dê uma sede de água.
- Pagando, acha-se sempre, vamos perguntar em
qualquer venda.
Caminharam alguns passos e perguntaram em uma
pequena vendola; mas, desde que o camarada informou que Eulália vinha só,
negaram recebê-la. A mesma recusa foi feita em diversas casas, até que afinal o
pajem ponderou:
- Homem, o melhor é não procurar muito; por aí
há casas de algumas pessoas que não são muito lá para que se diga, mas que
sempre servem para dormir. Vamos bater em uma delas?
- É o único recurso.
- Dentro em pouco estava arranjada a pousada
para Eulália, e o pajem se despedia do camarada.
- Vou para a casa do subdelegado; lá no
povoado, na casa do vigário, ficamos amigos, está dito?
- Dito! - respondeu o camarada apertando-lhe a
mão.
Eulália, que não se demorou na casa da
autoridade, encontrou-se ainda com o pajem a pequena distância da feira, e,
admirada pelo cumprimento profundamente respeitoso que este lhe dirigiu,
perguntou ao camarada quem era aquele homem.
- Um conhecido lá do povoado, e como sabe que
eu estou ao serviço de Vossa Mercê, saudou-a.
Depois de haver exposto a dificuldade que
tivera em arranjar pousada, o camarada disse constrangido a Eulália a casa em
que ela devia pernoitar.
- Não faz mal - ponderou Eulália resignadarnente
-, em qualquer lugar se dorme.
Encaminharam-se para a casa, que ficava perto
da feira.
Eulália entrou com a repugnância da
honestidade naquela morada do vício. Duas mulheres mal trajadas, de modos
bruscos, filhos de uma afetação canalha, vieram recebê-la à porta, e
cumprimentá-la por entre baforadas dos cachimbos que tinham entre dentes.
- É como se a casa fosse sua, moça - disse uma
delas; - moramos aqui nós duas: a Candinha e eu, que sou a Nenê; veja os
cômodos, para dizer onde se há de armar a rede.
Eulália, agradecendo o oferecimento, entrou na
saia, que tinha por única mobília uma rede encardida, duas peles de cabrito,
duas almofadas em que havia rendas já principiadas e uma meia dúzia de
tamboretes. Um quadro, representando a crucificação de Cristo, com um grande
aparato de centuriões de lança ao ombro em atitudes teatralmente ameaçadoras,
decorava a sala.
- Eu fico aqui mesmo, não precisam ter maior
incômodo - disse Eulália.
- Oh! Gente! - exclamou a Candinha. - Pois há
de ficar na sala ?! Vote que até parece...
E riu desenvoltamente cuspindo por entre os
dentes, com um chilrado canalha.
- Olhe que de noite, quando estivesse à
fresca, podia alguém espiar - acrescentou ela - e você talvez não gostasse.
- Não, dona - ponderou Nenê, que, notando a
confusão de Eulália, lançou um olhar repreensivo a Candinha; - não se avexe com
a gente, temos quartos lá dentro onde pode ficar a seu gosto. Venha ver.
Eulália, que mal podia levantar os olhos, tão
corrida estava, obedeceu e seguiu as duas moças, que a levaram para um quarto
espaçoso, nos fundos da casa.
- Agrada-se deste?!
- Serve, sim, senhora; é só por um ou dois
dias; qualquer lugarzinho chega.
- E como é só para dormir...
- Sim, senhora, é só para dormir.
- Pois então, é tomar conta a gosto.
- Está numa casa de moças solteiras - disse
Candinha -, mas está tão guardada como na sua própria casa.
- Pode dormir descansada; trouxesse ouro em
pó, não lhe havia faltar uma pitada.
- Na nossa casa há pouco, mas o que há para
duas chega para três.
- Já jantou?
Eulália, que estremecera a princípio
amedrontada pelos modos das duas mulheres, cobrou mais coragem e acolheu, com a
sua boa vontade para com todos, os protestos e os oferecimentos que lhe eram
feitos.
- Não quer mandar entrar o homem? Ele que se
abolete por aí em qualquer canto, isto de homens dormem bem até sobre um
espeto.
Chamaram pelo camarada, que entrou, e
repetiram-lhe o oferecimento que haviam feito a Eulália.
- Minha ama sabe que eu devo seguir viagem
amanhã, e, portanto, é só dar as suas ordens.
- Falaremos mais tarde - disse Eulália.
As duas mulheres saíram para arranjar o jantar
para Eulália e o camarada, que ficaram sós.
- Para mim - disse o camarada - fica mais
cômodo dormir aí em qualquer puxada. Posso levantar-me com a madrugada para
seguir viagem, mas se minha ama quiser posso ficar aqui.
Eulália não respondeu.
- Tem algum receio? - acrescentou o camarada.
- Desconfia que essas mulheres possam fazer-lhe alguma coisa?
- Não, parecem boa gente.
- Quase sempre são umas infelizes, e aquele
rapaz, que foi quem me trouxe aqui, não me deu má nota a respeito delas.
- Eu verei se preciso ou não de si.
As mulheres trouxeram o jantar sem demora, e,
pedindo desculpas, convidaram Eulália a servir-se dele.
- É de muito longe? - perguntou Nenê a
Eulália.
- De umas 20 ou 30 léguas.
- Credo! E fez todo este viajão com essas
cores? Nem parece retirante.
- E as senhoras são daqui mesmo?
- Somos: perdemos desde muito crianças nosso
pai e nossa mãe; ficamos em companhia de uma madrinha, que morreu quando eu
estava com 17 e Candinha com 13 anos. Por isso é que nos vê aqui sozinhas.
- E não têm parentes?
- Temos sim, porém eles nos deixaram por nossa
conta.
Eulália, olhando para o camarada, que estava
de pé a contemplá-la, disse para testemunhar-lhe a confiança que depositava nas
mulheres.
- Quando acabar de jantar pode ir cuidar da
sua vida.
Reatada a conversação, Nenê e Candinha
desfiaram com a ingenuidade sertaneja todas as circunstâncias da posição que
tinham. Acharam-se completamente sós no mundo, eram moças e diziam que eram
bonitas. Houve quem se oferecesse para ajudá-las e aceitaram. Depois estas
pessoas faltaram com as suas palavras e a necessidade veio bater-lhes à porta,
porque as rendas e os labirintos, que faziam ainda hoje, não davam nem para
pagar metade do que elas comiam num mês.
- Cada um tem a sua sorte - murmurou Nenê -,
nós seguimos a nossa.
A sinceridade com que foi feita a narração
comoveu profundamente a mísera Eulália, que antevia o seu destino nas palavras
da moça.
Automaticamente apertava de encontro à cintura
a carteira que lhe fora dada pelo bandido, como se temesse que a fatalidade
viesse misteriosamente esvaziá-la e obrigá-la a cair no mesmo momento na
degradação que ela piedosamente lastimava.
- Vai para o Ceará, não é verdade? - perguntou
Candinha com respeitoso comedimento, nascido dos modos de Eulália.
Recebendo resposta afirmativa, perguntou com
interesse:
- E tem lá parentes?
- Não, tenho amigos.
As duas moças olharam-se tristemente, e como
percebessem que Eulália notara o mútuo olhar, acrescentaram para disfarçar:
- Então não há de passar pelo que temos
passado aqui.
"São umas pobres de Deus", pensou
Eulália, e, quando se despediu do camarada, agradeceu-lhe não só os serviços
que dele havia recebido na viagem como o que lhe acabava de prestar.
À noite, a simpatia que de pronto nasceu no
coração de Eulália pelas desgraçadas aumentou. Haviam-na deixado só, a pretexto
de a deixarem descansar, e, dentro em pouco, soando na sala uma voz de homem,
Eulália ouviu que Nenê recomendava-lhe que abaixasse a voz.
Durante a noite a casa inteira silenciou como
se não fosse habitada. É que uma extraordinária reserva havia imposto
temporariamente moderação à libertinagem. Todavia o vício não levantou daí a
sua tenda, e se Eulália houvesse ousado o limiar do quarto, teria visto entrar
cautelosamente na sala um homem que, sendo desconhecido para as duas moças, era
não obstante recebido por elas.
Este desconhecido sentou-se na rede encardida,
que era um dos ornamentos da sala, e Candinha sentou-se junto dele, com um
requinte irrisório de acanhamento.
Envoltos na claridade crepuscular que espargia
na sala vela de carnaúba colocada sobre um dos bancos em um cantos do recinto,
os dois guardaram por algum tempo
Nenê foi em bicos de pés espreitar o corredor
e, de volta, fez um sinal a Candinha, que abriu os lábios num sorriso
acariciador para o desconhecido.
- Moram sós? - perguntou ele, tomando nas suas
as mãos de Candinha.
- Sozinhas, com a graça de Deus - respondeu
Candinha.
- Não temos a quem dar contas.
- É muito bom viver só.
O silêncio tomou de novo lugar entre o
desconhecido e a moça, que, embaraçada e começando a entediar-se com a frieza
do hóspede, levantou-se e foi ter com a irmã, que estava de costas para a sala,
debruçada na janela.
- Veja se o desemburra: é um matuto muito peco
- disse Candinha. - Está ali calado como uma pedra.
- Pois fale-lhe você, tente saber quem ele é,
anime-o.
Candinha pós em prática a lição que recebera,
mas apenas conseguiu saber que o desconhecido era de B. V., que se
dirigia ao Ceará, e que só se demoraria mais um dia na paróquia. Não pôde
dirigir a conversação ao ponto que visava.
Percebia-se claramente no olhar e no semblante
do desconhecido que a sua visita à casa das duas moças não passava de um meio
para chegar a um fim, que entretanto ele temia desvendar.
- Sabem que eu não sou aqui da vila, não é
verdade? Pois bem, eu não sei se acertei, ou se me enganei vindo a esta casa à
procura de uma pessoa que se hospedou aqui.
As duas irmãs olharam-se despeitadas, e Nenê,
com um gesto amuado, respondeu:
- Veio certo, mas a pessoa não é o que o
senhor pensa. A afirmação de Nenê fez com que o desconhecido resfolegasse à
larga e o semblante se lhe desanuviasse. Perdendo o ar reservado que tinha
guardado desde que chegara, passou o braço pela cinta de Candinha, que foi
suavemente constrangida a sentar-se sobre os joelhos dele, e acenou para Nenê.
- Vamos ficar muito bons amigos; falando é que
os homens se entendem.
- Está tão caído agora - murmurou Candinha -,
não parece o mesmo bitu.
- Em primeiro lugar, aqui têm vosmecês isto -
disse o desconhecido, apresentando duas notas do tesouro às moças; - falemos
agora no nosso negócio.
Embora estivesse falando em voz muito baixa,
abaixou ainda mais a voz, e acrescentou:
- Esta rapariga que aí está dentro é minha
conhecida velha...
- Não temos nada feito - murmurou Nenê. - Pode
guardar o seu dinheiro, se entende que nos compra com ele. A moça que se
hospedou aqui não tem nada com a nossa vida.
- Eu bem o sei. Vi-a pequena, cresceu nos meus
braços. Hoje é infeliz, e eu, que sou amigo da família dela, que posso ler no
seu coração, devo prestar-lhe o auxilio que estiver nas minhas mãos.
- Espere quando ela sair amanhã; nós não podemos
consentir que ninguém vá ter consigo.
- Há outro meio, uma vez que já se conhecem -
ponderou Candinha -, nada mais simples: se ela ainda estiver acordada, pode-se
pedir-lhe que venha até cá.
O alvitre de Nenê foi rejeitado pelo
desconhecido mesmo antes de ter sido de todo formulado, e Nenê acrescentou:
- Se o senhor é conhecido dela, por que não
quer que ela venha aqui? Pode guardar o seu dinheiro; somos pobres, mas não
precisamos dele por semelhante preço.
A altiva recusa de Nenê, que foi secundada
pela irmã, chegou até ao arremesso do dinheiro; mas, longe de irritar como que
lisonjeou o desconhecido.
- Eulália há de agradecer-lhes muito esta
nobre ação -murmurou ele; - eu hei de referir-lhe tudo. Não tenham medo de
deixar-me chegar até junto dela; não lhe desejo mal.
- Não o podemos saber - murmurou Nenê -, não o
conhecemos de todo.
- Eu sou o vigário da freguesia em que Eulália
nasceu, um seu amigo, um velho amigo de seu pai.
As duas mulheres, interditas pela revelação,
não sabiam o que decidir. A profissão do desconhecido era a maior garantia que
lhes podia ser dada do caráter, das intenções e da natureza da missão que ele
queria desempenhar junto de Eulália.
Para assegurar a boa predisposição em que as
via, Paula chamou a atenção das duas perdidas para a sua barba curta, e fê-las
reparar no alto da sua cabeça, em que o disco da coroa não havia desaparecido
de todo.
Uma única dúvida foi sugerida por Nenê, que
buscava descarregar inteiramente a sua consciência - o motivo da fuga de
Eulália, o qual foi explicado facilmente por uma fraqueza com um rapaz, que
havia fugido depois de a ter seduzido.
- Não notam - acentuou ele -, que, em tamanha
penúria da província, quando as estradas se alastram de cadáveres de pessoas
que morrem à fome, quando nas próprias vilas e cidades a alimentação escasseia,
Eulália pôde atravessar incólume tão difíceis caminhos, tão ingratas paragens?
O argumento produziu o efeito esperado pelo
espírito fino
do vigário, que mal podia conter o coração,
que pulsava com a violência da saudade e do desejo de reconciliação com a sua
vitima. Não obstante, uma vaga hesitação, uns visos de temor transpareciam no
ar das duas moças, que o encaravam com a agudeza da dúvida.
- O meu encontro com Eulália - continuou Paula
– é um descanso grande para si. Notícias falsas fazem-na crer que a miséria
bateu também às portas de sua família e que, deixando a paróquia, erra por
essas estradas mendigando como retirante. Quero dissipar-lhe este pesar,
livrá-la do remorso que lhe causa a idéia de que ao seu erro prende-se tão
desastrada conseqüência. Negar-me-ão ainda o aproximar-me de Eulália?
As duas moças não responderam mais. A nobreza
dos intentos que Paula se atribuía desarmou-lhes a resistência, e Nenê pediu
apenas licença para ir ver se Eulália ainda estava acordada.
- Não lhe declare o meu nome - pediu Paula com
empenho; - a vergonha de encarar comigo talvez me proibisse de prestar-lhe um
grande serviço.
Nenê, que se afastara e voltara em bicos de
pés, conduziu Paula até o corredor que ia terminar justamente na porta do
quarto de Eulália, que, deitada na rede, olhava fixamente para o teto, absorta
em seguir, talvez, uma esperança risonha.
- Ela está ali - murmurou; - pode entrar.
Paula caminhou cautelosamente, contendo até a
própria respiração. Sua alma, repassada pelo ante-sabor da alegria com que
contava, fazia-o preparar cuidadosamente a encenação teatral da sua aparição,
para que não falhasse o efeito.
Nenê e Candinha, de pé no corredor,
acompanhavam-no com os olhos, e a primeira resmungou
- Eu não tenho muita fé neste homem; se ele
quiser violentar a moça, não sai daqui senão para a cadeia.
Caminhou direito à porta da rua, trancou-a e,
guardando a chave, veio deitar-se na rede da sala, ao passo que a irmã
recolhia-se ao quarto.
Paula começava a empurrar brandamente a porta
do aposento de Eulália, e logo, entrando sem ruído, cruzados os braços sobre o
peito, os olhos descaídos num desmaio piedoso, os lábios trêmulos, a fisionomia
velada por uma tristeza sincera, foi parar junto à rede em que Eulália
repousava.
A pobreza do aposento
revestia o quadro de uma solenidade tristíssima. O chão do quarto, ondulando
com as depressões das pisadas, estava levemente escavado em um dos contos, e
fazia vir à imaginação a lembrança de uma nesga de cemitério em que houvesse
uma cova recentemente fechada. Também a imobilidade de Paula, diante da
quietude de Eulália, lembrava um coveiro que, apaixonado por um cadáver e
horrorizando-se com a idéia de entregá-lo aos vermes, o contemplasse, como se quisesse
enterrá-lo na irradiação do olhar.
O vigário parecia de todo absorto da sua
contemplação; do semblante de Eulália como que partia uma corrente imânica a
atraí-lo. De feito, os sofrimentos que a haviam emagrecido e descorado
filtravam-lhe no semblante um quê indefinido de santidade; o próprio desleixo
do vestuário, deixando-lhe transparecer as formas ainda belas, dava-lhe um
recato e a respiração cadenciadamente exalada, com as longas pausas dos sonos
sem remorsos, dizia que, apesar de todas amarguras, aquele espírito respirava
uma tranqüila honestidade.
O encantamento de Paula, embora profundo, só
durou alguns minutos: Eulália, que apenas madornava, descerrou as pálpebras
morosamente, e encarou-o com um olhar que era um misto de sobressalto e dúvida.
Mas, já acostumada a conviver com esse olhar e
atitude, que eram a atalaia dos seus delírios, que reproduziam a imagem de
Paula nos primeiros tempos dos seus amores, a vítima não proferiu uma única
palavra. Julgando ter diante de si a visão permanente dos seus sonhos,
limitou-se a esconder os olhos na mão espalmada e a fronte nos punhos da rede.
A mão correu dos olhos até os cabelos, com um movimento pesado, como se Eulália
quisesse apagar da cabeça as pegadas de um horrendo pesadelo. O esforço foi, porém,
baldado; desta vez não se tratava de uma larva da imaginação, mas da realidade.
O enleio da vítima encorajou propiciamente o
vigário, que foi cair de joelhos diante dela.
- O que me quer mais o senhor? - tartamudeou
ela.
- Por que vem perseguir-me até na miséria?
- Quero que o seu amor por mim, Eulália, não
seja mais um tormento; que se regozije com a certeza de que é ardentemente
correspondido.
Eulália percorreu com uma vista de olhos
suspeitosa todo o aposento. Á dúvida a esmagava, porque não podia crer que
tivesse junto a si o seu algoz. Mas de pronto acudiu-lhe à memória a conversa
que ouvira na igreja do último pouso, o que lhe deu a certeza de que já não
dormia. Uma reminiscência da fascinação de outrora assomou-lhe no espírito
através das mágoas pungentíssimas, e um esquecimento momentâneo de todo o
passado amolentou-a inspirando-lhe desejos de condescender.
- Deixe-me em paz - soluçou ela; - é tarde
agora: eu já não o amo.
- Não creio - murmurou Paula tomando-lhe as
mãos nas suas; - diga antes que já não devia amar-me. Teria razão, Eulália;
pareci esquecê-la, ser indiferente às dores que a acabrunhavam, mas, sabe-o
Deus, compartia longe de si o quinhão de angústia que me tocava na sua má
sorte. Dia por dia, hora por hora, passei eu isolado a agravar com o pensamento
o horror do nosso fadário, e, sem esperança de encontrá-la, rasgava pelo
remorso a ferida que a saudade abrira dentro em mim. Perdoe-me, Eulália, o meu
arrependimento é sincero; gerou-o no silêncio e no desespero a dor de consciência
de haver condenado à morte o meu próprio filho. Peço-lhe por ele: para uma mãe
não há crime que não possa ser resgatado pela invocação do filho. Perdoe-me por
ele, Eulália.
À medida que estas palavras, bulhando e
encontroando-se, nos lábios de Paula, eram ouvidas por Eulália, uma reação
indomável se operava no ânimo da moça. Quando o vigário calou-se, ela já não
respirava: a indignação a sufocava e entontecia. As lágrimas que lhe haviam
brotado com as primeiras palavras, extinguiram-se, e os olhos adquiriram um
brilho tigrino.
Como fera enfurecida, ao ver o filho pequeno
preso em uma gaiola de domador raiva em silêncio a sua cólera que nada pede
apaziguar, assim Eulália, recalcando no íntimo a ira que lhe causara a súplica,
ficou a encarar com o vigário. Depois tirando-se com um movimento brusco de
entre as mãos do amante, murmurou com uma acentuação cruciante:
- Deixe-me em paz: eu tenho vivido bem na
miséria, não me queira perverter de novo. As minhas afeições são outras.
- Não se procure iludir, nem iludir-me -
suspirou Paula; o coração desmente-lhe as palavras.
- Não - respondeu com firmeza; - eu já não o
amo, não quero amar; as minhas afeições são outras.
- Veja bem o que diz, Eulália; eu vim com o
coração transbordando de esperanças pedir ao amor a minha redenção. Vim para
lavar do meu passado a mancha ignominiosa que o denegriu; queria reconciliar-me
com o bem e divorciar-me para sempre dos meus erros de outrora. A sua recusa,
porém, fecha-me a porta a esta esperança, abre-me de novo o caminho para a
indiferença e o mal. Qual será a sorte do nosso filho, Eulália, se você
afasta-me de si?
- A sua sorte já não me incomoda mais -
soluçou Eulália.
Paula, que não tinha desviado os olhos do
rosto de Eulália, fitou-a sobressaltado, e, levantando-se de um salto, travou
violentamente dos punhos da sua vítima.
- Diga-me o que é feito dele - exclamou com
uma entoação desesperada; - a vingança aconselhou-a a matá-lo?
- É exato - respondeu afetando calma e
perversidade; - fiz o que o senhor aconselhou-me que fizesse. Não disse que eu
ainda o amava? Pois bem, obedeci-o.
- Miserável! A desgraça fê-la vil como as
outras.
Um arremessão brutal, dado pelos pulsos
vigorosos de Paula, impeliu Eulália, que cambaleou até que se pôde apoiar na
parede. Mas a coragem com que resolvera arrostar as explosões do gênio
irascível do seu ex-senhor não sofreu o menor abalo.
- Continue a sua obra e complete-a. O seu amor
teve por começo um crime, cevou-se de crime e deve acabar por um crime. Eu
estou na casa de umas mulheres perdidas, compradas talvez pelo seu dinheiro;
não tenho defesa, nem a quero; não pode haver melhor lugar para que o senhor se
veja livre para sempre de mim.
- Pode insultar à vontade. A sociedade em que
ultimamente tem vivido dá-lhe direito a que assim proceda. Quantas vezes já tem
entrado na prisão?
O insulto fez com que
Eulália ficasse por largo tempo silenciosa, arquejando de cólera e de vergonha,
mas afinal tornou ela energicamente:
- Nenhuma. Hoje, porém, uma mulher que o
senhor conhece queria acabar a obra pelo senhor começada. Nenhuma, porém, nunca
fiz por isso. Há assassinos que andam sãos e salvos, sem que ninguém sequer
suspeite de que, sob a requintada hipocrisia dos modos delicados, esconde-se um
miserável que faz emboscadas a pessoas desarmadas. Não é muito que eu ainda não
tenha entrado na prisão pelo crime de ser infeliz.
A repulsa calma e enérgica, vibrada com a
superioridade de quem está convencida da justiça da sua indignação, caiu como
uma chuva de metal incandescido sobre o coração de Paula, que doía ao mesmo
tempo de humilhação e de ira.
Por duas ou três vezes resfolegou extensamente
e ensaiou passos para precipitar-se sobre a vítima, e, não obstante a
alucinação que o desvairava, conteve-se.
Um fenômeno principalmente o surpreendia.
Eulália aparecia sempre nas suas cismas como a fascinada amante de outrora, a
qual, ainda mesmo ameaçada de perder o filho, defendia-se com rogativas e
lágrimas. A imaginação, desdobrando-se sobre tais recordações, dava uma
encenação sedutora ao seu encontro com Eulália. Algumas lágrimas - e eram
sinceras - bastariam para lavar todas as ingratidões e delir todos tormentos. A
eloqüência de suas palavras, acreditava ele, a própria confiança de Eulália, a
sua ingênua sinceridade. Mas de repente o castelo dourado se esboroa, em vez da
amante apaixonada de outrora encontra com a mulher ultrajada, com a mãe
ameaçada, que resoluta e calma não recua diante da sua cólera explosiva e nem
ao menos hesita em provocá-la.
- Quem tem razão é a senhora - bradou Paula; -
eu sou é o culpado. Adeus!
Eulália não respondeu, mas
não deu nenhum sinal de alegria pela despedida de Paula: conservou-se como
estava, fria e altiva.
O vigário caminhou até a porta, e, antes de
transpô-la, relanceou um olhar a Eulália, que nem o percebeu. Impelido pelo
despeito, atravessou rapidamente o corredor e a sala, diante de cuja porta
esbarrou, que tinha sido trancada, e chave Nenê guardara para que, no caso de
urgência pudesse prestar auxílio a Eulália.
Paula, sofrendo mais esta contrariedade,
tentou obrigar a porta ceder, mas não levou a cabo o propósito, visto que Nenê
que dormia numa rede a alguns passos apenas, acordada pelo barulho, veio ao seu
encontro.
- Com os diabos ! - disse Paula. - Estão ambas
a dormir, e quase me obrigam a passar mal a noite.
- Era só chamar, sem fazer cerimônia. Já se
vai?
- Não queria, mas se continuam a dormir...
- Não se tinha o que fazer.
- Pois eu fico por aqui esta noite; lá agora
não saio senão com a madrugada.
- E então? - perguntou Nenê admirada. - O que
arranjou lá por dentro: conseguiu o que queria?
- Mudemos de assunto; tratemos de outras
coisas mais divertidas. Candinha! - chamou Paula em voz bem distinta.
- Ó Candinha!
- Pode chamar à vontade; não dá uma nota;
aquilo quando ferra, não se acorda assim, é preciso certo jeito.
- Pois eu vou chamá-la.
Nenê alumiou, mostrando o quarto, e Paula, que
não passara o limiar, saiu logo que Nenê se retirou, e caminhou para o quarto
de Eulália, que se trancara por dentro, desde que se viu livre da importuna
solicitação e das injúrias cruéis.
A vela continuava acesa, e Paula, espreitando
pela fechadura, pôde ver o que se passava lá dentro. Eulália, que não podia
deixar de ter-lhe ouvido a voz, estava sentada na rede e, com os olhos
alevantados para o teto, soluçava compungentemente.
- Abra por um instante - suplicou ele. - Abra.
Eulália voltou-se para a porta, mas, em vez de
atender ao pedido, soprou a vela.
- Vingativa - murmurou Paula. - Mas eu hei de
vencê-la, seja como for. O ciúme talvez ma entregue hoje mesmo. Vejamos.
Voltou à porta do quarto de Candinha, e,
entrando por ele a tatear a escuridão, foi afinal esbarrar com a rede em que
dormia a perdida.
- Afinal acertei - acentuou ele de modo a
poder ser distintamente ouvido. - Acorde, senhora preguiçosa. Então pensava que
eu havia de dormir ao tempo? Oh! Nenê, diga-me cá: não tem em casa nada que se
possa beber?
Nenê, acudindo ao chamado, respondeu que não,
mas que se podia obter, se ele quisesse.
- Pois arranje lá isto; quero uma noite de
pândega. Vou pagar-lhes o enjôo de ainda agora.
- Ele ainda me amará? - perguntava-se Eulália,
soluçando. - Ou será mais uma infâmia que planeja?
A noite escoou-se aturdida pelas estroinices
de Paula, que ao romper do dia retirou-se pensando consigo:
- Se eu insistir, ela não me resistirá.
Mas enganou-se ainda uma vez.
O meio de que lançou mão para reduzir Eulália
a ceder a sua nova sedução, só produziu efeito momentâneo; a reflexão impediu
que a vítima se continuasse a imolar à sua paixão carnal.
Às primeiras palavras trocadas entre o vigário
e Nenê, o natural orgulho da beleza sublevou-se, e, num assomo de indignação,
Eulália, saltando da rede com uma elasticidade felina, veio até a porta,
disposta a exigir de Paula o mesmo respeito que ela tributava ao mútuo passado.
O egoísmo do amor ferido impelia-a a este passo, mas a altivez da honestidade
deteve-a, e a infeliz limitou-se a defender-se do contato do seu repulsivo
ex-amante.
Em vão, num exagero orgíaco, Paula atropelou o
silêncio a noite; em vão soaram as gargalhadas báquicas das duas irmãs meio
ébrias e a voz do vigário ecoou dizendo licenciosidades de sátiro. Eulália
limitou-se a chorar, e a maldizer-se, agitada pela dúvida tremenda:
- Ele ainda me amará?
Cada palavra de Paula trazia-lhe à memória uma
cena do passado, dissolvida em carícias e dedicações, esbatendo-se em um
colorido vivaz sobre sonhos de uma felicidade inextinguível. Então as
brutalidades, as crueldades de Paula apareciam aos olhos de Eulália como
conseqüências perdoáveis da paixão, que ela avaliava pela sua, que tinha
passado os limites excesso para acampar de todo na alucinação.
Arrastada por essas recordações, quase que se
resignava dar ganho de causa ao vigário. O coração pedia-lhe o
esquecimento de todas as mágoas e aconselhava-a a que fosse arrancar dos braços
das duas perdidas o algoz da sua mocidade.
Pela madrugada, Eulália, extenuada pela luta,
sentia-se aniquilar pela idéia da submissão, mas providencialmente o vigário
começou a despedir-se.
- Se ele vier ter comigo - pensou Eulália -,
eu o perdoarei.
Mas Paula, que não mediu perfeitamente a
extensão que devia ter o recurso brutal de que lançara mão, não se lembrou de
ir novamente ao quarto de Eulália. A vergonha do ato que acabava de praticar
desviou-o dali, e, longe de ter uma frase carinhosa, proferiu uma indignidade
ao retirar-se.
- Basta de fingimento! - exclamou ele
afastando Candinha de si. - Vocês todas são as mesmas. Muita festa, muita
promessa, mas a verdade é que só amam o dinheiro.
- Volte que verá claramente que não tem razão.
- Eu as conheço, mesmo as que não vivem como
vocês. Tenho exemplo; quando encontram alguém que faça as despesas, esquecem os
amores puros do passado.
- Que infâmia - soluçou Eulália, percebendo
que o vigário se referia à carteira que servira de acusação contra si; -
julga-me já perdida.
- Mas nem todas lêem pela mesma cartilha...
- Veremos; como é só de passagem, vá lá; até
logo.
Retirou-se plenamente satisfeito consigo
mesmo. Tinha infligido a Eulália um castigo tão cruel como a sua repulsa, e, ao
passo que à infeliz restava apenas a incerteza, Paula voltava com a certeza de
que no seu primeiro encontro com Eulália seria vencedor.
Não me resistirá; há afrontas que são
testemunhos de amor. Não me resistirá.
Dentro em si, Eulália, lembrando-se do
pensamento cobarde que tivera na hora da despedida de Paula, tremeu pela
própria dignidade. À noite ele voltaria e de certo repetiria as mesmas cenas. O
que faria ela? Ceder? Era desarmar-se inteiramente diante dele, e por sua vez
tornar-se indigna diante da própria consciência.
- É preciso que eu saia, que eu fuja daqui.
A resolução, porém, teve de estender-se a todo
o povoado. Não conseguiria hospedar-se em uma casa honesta; não era casada. Não
podia também hospedar-se no abarracamento de retirantes, porque o existente era
composto de pequenas casas e estas fechavam as portas a todos os estranhos.
Logo pela manhã, pois, saiu afetando a maior
cordialidade para com as suas hospedeiras; foi até a feira para ver se
descobria noticias da sua família, e, desenganando-se de poder consegui-las,
decidiu recomeçar imediatamente a marcha para a capital.
"Como é grande o ladrão Virgulino
comparado com um ministro de Deus", pensou Eulália, abrindo a carteira,
não só para deixar na casa em que dormira a quantia com que devia pagar a
hospedagem, mas também para munir-se de provisões.
Todavia, no seu espírito pairava
triunfantemente a imagem do segundo, a ponto de ser-lhe impossível resistir a
informar-se dele.
Na feira, ao ver o pajem, dirigiu-lhe a palavra,
a pretexto de saber notícias do camarada que a acompanhara.
- Já viu hoje o seu amigo? - perguntou ela. -
Seguiu sempre para o pouso?
- Não o vi, e é sinal de que já bateu as
alpargatas.
- O senhor e o seu amo é que não vão tão cedo,
não é verdade?
- Eu devo voltar amanhã; o homem a quem me viu
acompanhar é que não sei quando seguirá. Veio recomendado ao subdelegado, que é
quem o está hospedando, e quem, com o vigário, há de arranjar-lhe condução para
seguir viagem.
Eulália desejava saber dos pormenores da
viagem de Paula, mas notando que por sua vez o pajem tentava obter dela o
destino que ia tomar, apressou-se em retirar-se, tomando como causa a obrigação
em que estava de visitar a mulher que assassinara o próprio filho.
Consolada com a certeza de que teria ocasião
de ver antes de partir aquele mesmo que era a causa de seus medonhos
sofrimentos, tomou a rua que marginava a prisão e em que residia também o
subdelegado, e, como visse que o pajem a seguia de longe, alegrou-se ainda
mais, porque Paula seria avisado da sua passagem e assim ela realizaria o seu
intento - poder vê-lo.
De feito, da porta da prisão distinguiu o
vulto de Paula, que veio colocar-se à janela para que a visse na volta, e
Eulália apressou-se em fazer-lhe a vontade.
"Agora posso partir - pensou ela -, não
me perseguirá e nem eu deixarei de levar viva dentro de mim a sua imagem, que é
o meu castigo e a minha ventura."
À noite Eulália estava muito distante da vila
e abrigava-se numa casa abandonada, lastimando e aplaudindo ao mesmo tempo a
coragem com que fugira de Paula, que, iludido pelo bondoso olhar que a moça lhe
deitara ao passar, contava com a vitória. À mesma hora em que Eulália pensava
nele, Paula entrava alegre pela casa das duas perdidas.
- Boa noite! - exclamou ele. - Como vai o
pássaro? Ainda muito espantado?
- Saiu desde manhã e ainda não voltou à
gaiola. Creio que fugiu - respondeu Nenê - mas não se perde nada.
- Doida - resmungou Paula, levando a mão aos
cabelos. - Para vingar-se, condena-se ao martírio.
Em vão Nenê e Candinha buscaram acordar no
vigário a mesma febre da véspera; conservou-se por largo tempo sentado e
silencioso, até que se retirou cabisbaixo e acabrunhado por uma pergunta que de
continuo lhe dominava a reflexão.
- O que devo eu fazer para salvar Eulália?
Durante a noite não achou solução e, no dia
seguinte, deixando a vila, ainda não atinara com a resposta.
Poucos dias depois da retirada de Eulália e do
vigário a vila alvorotou-se, como se dentro dela convulsasse uma revolução.
Feliz nos tempos normais da província, a
pequena vila era agora uma das mais flageladas. A própria excelência do seu
clima de outrora concorreu para agravar-lhe a situação, porque a convertia num
hospital de moribundos.
A anasarca, que parecia ter assentado o seu
quartel-general na cidade vizinha, emigrara dali para a vila, e batia a todas
as portas com a fatalidade da morte. Acompanhavam-na as febres fulminantes e o
grande cortejo de moléstias produzidas pela penúria em que viviam os
retirantes.
Agora as condições tristíssimas agravaram-se,
porque o novo presidente da província, indignado pelas delapidações
escandalosas, resolvera suspender as remessas de gêneros para o interior e
chamar para a capital e cidades mais próximas aqueles a quem a seca reduzira à
miséria.
Tal ordem recebida na vila exacerbou os
ânimos, e os adversários políticos e os interesses lesados, trabalhando na
sombra, conseguiram dar começo a um movimento popular.
Os retirantes, em massa, acometeram o armazém
em que se guardavam os socorros públicos, e à viva força dividiram os despojos
do assalto, com os quais deviam prover-se durante a retirada para a capital.
Em vão as autoridades procuraram descobrir
quem tinha sido o amotinador que havia conseguido emprocelar a onda estagnada
dos famintos; vários nomes de influências políticas eram repetidos, mas a
acusação contra eles não podia ser seriamente feita, visto que, era sabido,
eles não se comunicavam diretamente com os retirantes.
Quem quer que era o motor do acontecimento
inesperado, sabia esconder-se perfeitamente na treva.
Entretanto os cabeças do movimento andavam bem
às claras pela vila. Eram dois indivíduos vestidos de couro, um de cerca de 30
anos, o outro ainda muito novo e que vestia luto. Os seus modos humildes e
reservados não chamavam a atenção, mas quem cravasse perspicazmente o olhar nos
seus semblantes reconheceria facilmente que os dois retirantes, muito novos na
vila, em nada se pareciam com a massa geral.
As autoridades, porém, que durante o dia
tinham-se exclusivamente ocupado em efetuar prisões daqueles que se mostravam
mais exaltados, passaram descuidadamente por junto dos dois indivíduos, cuja
extrema submissão captava simpatias longe de inspirar suspeitas.
- Se V. Sa. quiser - dirigiu-se um deles ao
subdelegado -nós estamos prontos para qualquer serviço.
- Bem, fique com esses três homens guardando a
cadeia. Revezando as sentinelas o trabalho não é grande.
Investido desta autoridade, o que se dirigira
ao subdelegado aproximou-se do outro para comunicar-lhe o bom êxito da empresa.
- Vai tudo às mil maravilhas; dentro de poucas
horas minha mulher estará salva.
- Se descobrem o que desejamos fazer? Não
estamos de uma vez para sempre perdidos, Desempeno?
- Você está ficando medroso, Diabrete; tem
calafrios por dá cá aquela palha. Vá embora se receia, eu cumpro com o meu
dever.
- Você bem sabe que eu não temo, porém quando
a gente está quase com o pescoço na corda do carrasco, é preciso muito cuidado.
Se estivéssemos os dois lá dentro a tomar conta, não havia nada a temer, porém
você só é difícil.
- Eu preciso mais de si lá fora, entre os
retirantes, aconselhando-os que venham soltar os companheiros de barulho que
foram presos; será nesta ocasião que eu tratarei de libertar a minha
desventurada amiga. Conto consigo?
- Conte - exclamou o Diabrete, apertando
estreitamente a mão de Virgulino. - Faça, porém, as coisas com jeito, porque eu
tenho muito medo da justiça. Ainda não fiquei curado do último susto.
Virgulino, sorrindo desdenhosamente, murmurou:
- Criança.
- É verdade, e é bom de dizer quando se vê as
coisas de longe.
As palavras do Diabrete referiam-se a sucessos
que se haviam dado com a quadrilha dos Viriatos.
O ódio de Pedro passou da temeridade à loucura
e dois grandes combates foram por ele planejados para aniquilar inteiramente os
seus inimigos, que tinham conseguido o malogro do primeiro plano do roubo da
venda e assassinato de Virgulino.
Emissários foram por ele mandados às
autoridades para que se efetuasse a captura dos dois principais chefes
conhecidos da quadrilha, e, como complemento desta medida, Pedro resolveu dar
combate aos Viriatos no mesmo dia em que o sobressalto os pusesse em debandada.
O plano audacioso foi posto em prática e
produziu em parte o resultado que inimigo irreconciliável tinha em vista.
A perícia do Onça, porém, evitou que a
quadrilha fosse aprisionada, e, ainda que a liberdade dos seus companheiros lhe
custasse a vida, o Onça a conseguiu. No campo do combate ficaram os cadáveres
dos dois chefes Pedro e Onça, que, travados em um combate singular, disputaram
palmo a palmo a fama dos seus dois criminosos grupos.
O resto da quadrilha dos Viriatos salvou-se
ganhando as alturas dos Cariris, enquanto que o Diabrete, desligado dela pela
morte do pai, veio juntar-se a Virgulino na vendola das vizinhanças de B.
V., onde partiram em procura da família do segundo.
A rápida sucessão dos acontecimentos causou ao
rapazola um temor inexplicável, porque sabia que para toda parte tinham sido
expedidas precatórias a fim de que fossem capturados os bandidos da quadrilha.
Era por isso que recomendava a Virgulino a maior discrição no plano, que haviam
tramado para libertar a infanticida, que tanto horror causara à vila.
Tinha razão para assim insistir. Estava com
Virgulino quando este soube da inqualificável desgraça que sobreviera à sua
família, e tamanho foi o seu abalo que a pessoa que lhe comunicara o fato
ponderou-lhe:
- Homem, o caso é de espantar e causar pena,
mas para incomodar tanto é preciso que seja a uma pessoa da família.
- Nem a conhecemos - interveio prontamente o
Diabrete.
- O sentimento do meu companheiro é nascido
das muitas dores que a sorte o tem feito sofrer.
Quando a sós com o Diabrete, Virgulino tomara
uma resolução tremenda. Entendeu que o crime de sua mulher devia ser logo
punido e quis ir imediatamente à prisão para atravessá-la com a sua faca de
bandido. Muito custou ao Diabrete conter-lhe este primeiro ímpeto, que não deu
lugar a mais uma cena lastimosa porque o rapazola proferiu uma terrível ameaça.
- Mate-a, está no seu direito, mas saiba que
irá substituí-la na prisão, e aos seus filhos não ficará na terra nem mais um
protetor, e a miséria e a fome será o futuro de todos eles. Faça você como
entender melhor.
Virgulino moderou-se e, fundindo em lágrimas
parte da grande dor que o alucinava, ficou a pensar no destino que devia tomar
e que devia dar à sua mulher.
- Se eu pudesse arranjar algum meio de a
salvar... -pensava ele. - Se eu a pudesse furtar, se eu ao menos a pudesse
envenenar...
Todas as idéias que lhe acudiam, breve se
dissipavam, porque eram de todo inexeqüíveis. No entanto a mais ousada, a mais
audaciosa, que lhe atravessou o espírito, foi a que dominou-o e por fim foi
posta em prática.
O desgosto popular contra a ordem do
presidente da província, mandando suspender os socorros públicos, cresceu com
as horas que se escoavam. Todos murmuravam, censuravam, e. alguns já cheios de
um entusiasmo que vinha mais da paixão partidária que do amor pelos seus
semelhantes, propalavam calúnias contra as intenções presidenciais.
Havia um ponto em que todos os calmos, como os
exaltados, concordavam: que era de todo impossível terminar bruscamente com os
socorros, porque equivalia a condenar toda a população retirante à morte pela
fome.
A comissão incumbida do serviço, porém,
entendeu justamente o contrário do modo de entender geral.
O presidente não tem confiança na comissão, e
a esta cumpre abandonar desde logo o cargo. Demais, o que ele quer é que os
retirantes vão todos para a capital, para que o trabalho da distribuição de
socorros seja feito sob os seus próprios olhos.
- Mas isto não quer dizer que, havendo no
armazém do Estado gêneros, vocês não os queiram distribuir com os retirantes,
que se querem pôr a caminho.
A comissão não atendeu, ferida nos seus brios,
sabendo além disso que o novo presidente não fazia a respeito da generalidade
dos comissários senão um justo juízo: que o patriotismo já tinha produzido
demais e o móvel da persistência devia ser agora alguma coisa bem diversa ao
amor à pátria.
O que pelo menos era verdadeiro e
incontestável era que a mortalidade dos retirantes crescia na razão direta do
dispêndio com os socorros, o que de alguma sorte justificava a fama de que as
comissões eram os verdadeiros retirantes socorridos.
Virgulino e o Diabrete, recém-chegados no
lugar, aturdidos em parte não só pela notícia da desgraça particular, como pela
ameaça tremenda que era feita à massa dos necessitados pelos comissários,
puseram-se a observar miudamente, com o olhar e critério dos bandidos.
- Isto era um momento, se nós tivéssemos quem
nos seguisse. Que bela presa, Diabrete!
- Faziam-nos em cisco.
- Se tivessem tempo; era fazer causa comum com
os retirantes e tudo estava feito.
- Hoje é só haver quem dê um grito, que eles
seguem logo.
Virgulino, ao ouvir as palavras do Diabrete,
teve um estremecimento demorado; tomou-o de uma comoção profunda, que não tinha nenhuma razão de ser na frase
dita.
Diabrete reparou no abalo sofrido pelo
companheiro, mas atribuindo-o ao próprio estado moral em que a notícia fatal o
deixara, não o interpelou.
Caminharam na direção do
abarracamento, mas sem que para lá os conduzisse outra intenção além da
curiosidade.
Aí parecia que tinha transbordado um mar
tempestuoso; havia um movimento geral, brusco e ameaçador; o vozear unia-se
numa zoada ruidosíssima, e gritos de indignação partiam de todos os lados.
Todavia a falta de coragem e de iniciativa
continha nos da ordem a população, e deixava às autoridades confiança bastante
para que não tomassem providências.
Diante deste espetáculo, Virgulino comoveu-se
ainda mais, então, como já não se pudesse conter, disse para Diabrete:
- Houvesse um homem de coragem que se pusesse
à frente deste povaréu, e esta vila podia voar pelos ares.
- Infelizmente não o há, e estes desgraçados
hão de esbravejar aqui à toa, até que morram todos de fome ou os lancem fora da
vila.
- Eu estou perdido, não é verdade? - perguntou
Virgulino depois de uma longa pausa. - Não sobrevivo à desgraça que me feriu
sem que possa salvar Maria, para salvar o meu pobre filho...
- E o que quer você fazer?
- Pôr-me à frente dos retirantes, levá-los até
o armazém, causar um rebuliço na vila para que durante ele possa salvar Maria.
Diabrete pareceu acovardar-se diante da
ousadia da empresa, mas dentro em pouco a abraçava e com tanto entusiasmo, como
se dela fosse o autor.
Os dois não demoraram o ousado cometimento.
Embora desconhecidos, permearam a multidão e, comunicando-se com todos os
grupos mais exaltados, chegaram a conseguir o que desejavam. A multidão arregimentada
caiu como um raio dentro da vila e, precipitando-se de chofre sobre o armazém
de víveres, fez voar portas e janelas em estilhaços. Os gêneros, tomados como
despojos do assalto, foram arrastados para a rua, e aí divididos no meio de uma
confusão que degenerou em conflito.
Virgulino e Diabrete, que só tinham em vista
prender a atenção das autoridades para o lado do armazém, a fim de que eles
pudessem assaltar a cadeia, dirigiram-se para esta.
O cálculo, porém, foi frustrado. A excitação
pública, a que dera lugar a prisão da infanticida, obrigou o subdelegado a
manter a cadeia sempre perfeitamente guardada, para que a mulher não fosse
assassinada. As sentinelas tinham tido ordem terminante de matar a quem quer
que ousasse querer resistir-lhes.
Diante da atitude das sentinelas, Virgulino e
Diabrete recuaram, porque entenderam que não deviam perder a ocasião que tão
azada se lhes oferecia, e esperaram que os acontecimentos lhes viessem em
auxílio.
De feito, a confusão que produziu a divisão
dos gêneros ocasionou a prisão de vários retirantes que se mostravam como
cabeças, e a necessidade de reforçar a guarda da cadeia deu lugar a que
Virgulino se oferecesse e fosse de boa vontade aceito para tal fim.
Embora a dificuldade da empresa, Virgulino
começou desde logo a pô-la em prática, captando a simpatia dos companheiros por
meio de oferecimentos, que são a maior recomendação entre aquele povo
essencialmente hospitaleiro.
Diabrete, por sua vez, entregava-se ao seu
trabalho, que, embora menos arriscado, era muito mais difícil do que o de
Virgulino. A astúcia, porém, conseguiu o que parecia quase impossível. Diabrete
pôs-se a espalhar por entre os grupos a nova de que estavam surrando na cadeia
a quantos retirantes prendiam e que a vila já se estava armando para vir sobre
os outros.
- O que é preciso fazer? - perguntavam todos.
- Assaltar a cadeia; arrasá-la se tanto for
preciso para tomar os presos e depois sair logo da vila.
O plano foi imediatamente acolhido, e a onda
da miséria, ululando o seu rancor concentrado contra os comissários, foi bater
de encontro à cadeia.
Virgulino, ouvindo a grita dos assaltantes,
correu para o interior da cadeia, que era uma casa baixa, cujos quartos serviam
de prisões.
Os guardas vendo-o correr pensaram que ele ia
proteger os fundos da casa e um dos três seguiu-lhe no encalço, enquanto os
outros trancavam as portas.
Virgulino, porém, já havia parado diante da
prisão da sua mulher e entre ela e ele trocaram-se os primeiros cumprimentos:
- Você aqui? - perguntou Maria.
- Eu, sim - respondeu ele. - Avie-se; arranje
a criança é preciso....
As pisadas do outro guarda não o deixaram
acabar a frase e o mergulharam num despeito profundo.
- Estamos perdidos - pensou ele -, não é
possível salvá-las.
- Todo cuidado com esta, pensou muito bem -
exclamou guarda. - Que se safem todos, não importa, porém esta, não; vá ver se
guarda os outros, esta fica por minha conta.
- Sim, sim - respondeu Virgulino
automaticamente; recobrando logo o sangue-frio. - Duvidam, porventura, de mim?
Não serei eu bastante corajoso para defender esta entrada?
- Como quiser, ficaremos então os dois; sempre
faremos muito mais.
Não havia nada a objetar e tanto mais porque o
guarda cortou logo toda a evasiva de que Virgulino se pudesse servir.
- Os outros são retirantes que se meteram no
barulho, não podem ficar presos senão alguns dias; têm sempre de sair, e se há
de ser amanhã, seja hoje.
- Mas...
- É o mesmo; estamos perto um do outro; ali é
a prisão da ladra, de uma tal a quem chamam Mundica. Eu vou para ali.
Estava irremediavelmente malogrado o plano de
Virgulino; qualquer movimento seu seria percebido pelo outro, que, segundo
ordens recebidas, podia disparar a arma sobre quem ousasse querer tocar na
assassina.
Um milhão de pensamentos revolutearam-lhe no
cérebro, e qual deles o mais temeroso. Afinal decidiu-se por um que, por ser o
mais horroroso, era o mais eficaz. O companheiro, conforme se depreendia das
suas palavras, tinha inteira confiança em Virgulino e este podia portanto
aproximar-se dele. Assim o fez. De um salto, dado com a elasticidade e a
certeza de um último recurso, Virgulino caiu sobre o guarda com a polida faca
desembainhada, a qual enterrou-lhe no lado esquerdo. O companheiro não teve
forças senão para soltar um ai soturno e deu em terra com todo o peso do corpo.
O bandido não perdeu tempo; enquanto a sua
vítima arquejava nas últimas contorções da vida, meteu o ombro robusto à porta
da prisão, e como esta não cedesse logo retirou-se a alguma distância e dai
correu e atirou-se com toda a força de encontro à porta, que estalou e
abalou-se.
O esforço do infeliz duplicou-se com o terror
que a própria ação lhe causava.
Ouvia-se o barulho dos assaltantes às portas
da cadeia, e o som dos seus empurrões hercúleos para arrombar as portas e as
janelas. Dentro também começara um barulho infernal, porque os presos, e
principalmente Mundica, pediam socorro e clamavam que já havia morrido um
guarda.
- Cala-te, infame mulher, cala-te, ou morres
também -gritou Virgulino, a quem já parecia inteiramente impossível a salvação
da mulher.
A ameaça produziu felizmente o efeito
desejado, e afinal o bandido pôde tirar da prisão a malsinada esposa.
Uma nova dificuldade veio amedrontá-lo. Doida
sinceramente pelo crime praticado, Maria não tinha tomado alimentos durante os
dias que tinha estado na prisão e o sobressalto, a comoção, reunidos à fraqueza
em que se achava, não permitiam-lhe dar um passo.
Virgulino tomou-a nos braços possantes e saiu
a correr com ela, mas justamente neste momento a onda assaltante acabava de
penetrar na cadeia e já embarafustava pelo corredor para dar liberdade aos
companheiros.
Ao vê-la, ainda Virgulino teve um assomo de
sangue-frio e exclamou:
- Eu já levo aqui uma, que quase morreu de
susto; vamos aos outros.
Falando à medida que corria, chegava ao fim de
uma pequena cerca de pau-a-pique, e levantou sobre ela a mulher.
- Atire-se com Deus, Maria, ganhe forças, ou
estamos de todo perdidos.
- E o nosso filho, Virgulino, o nosso pobre
filho?
- Eu vou buscá-lo; agora não custa.
Mal acabara de dizer estas palavras, Virgulino
ouviu desmentida a sua esperança; um grito uníssono partiu da multidão,
- Morra a assassina, morra a assassina, morra
o infame que a quer salvar.
Felizmente para Virgulino, só aqueles que
estavam para dentro da casa podiam saber onde estava a assassina, visto só eles
tinham podido ouvir de Mundica a narração do sucedera. Isto fazia com que os
assaltantes que estavam junto da porta não se precipitassem logo no quintal, o
que teria como conseqüência a imediata captura de Virgulino e da esposa. Mas,
ao contrário, todos querendo penetrar ainda para tomar parte no arrombamento
das prisões, causavam uma enorme confusão, e impediam a prontidão dos
movimentos, que era agora essencial.
- Pelo cercado, pelo cercado! - gritaram por
fim, e repetiram por vezes o grito.
Já era tarde. Virgulino vendo-se ameaçado pelo
grito -morra a assassina! - saltou também a cerca e, tomando nos braços a
esposa, correu até que pôde deixá-la em lugar seguro na estrada geral que era caminho
de Baturité.
- O nosso filho - murmurou ela. - Perderemos
ainda este?!
- Não me fales nos filhos - arquejou
Virgulino. - Deixe-os comigo e saberei fazer por eles o que você não soube.
Pôs-se a correr na direção da vila, e rápido e
lépido como se não tivera acabado de transportar tamanha carga, e sempre
correndo, veio incorporar-se à massa dos retirantes.
- Fogo! - gritaram na multidão. - Deitaram
fogo na cadeia.
Virgulino, como se tivera um acesso de
loucura, repetiu a fuzilar raios do olhar:
- Fogo! Deitaram fogo à cadeia. Não, não devem
fazer, não é justo, não é direito.
E ia impelindo diante de si aqueles que não se
afastavam para dar-lhe passagem.
Desta sorte abriu caminho até junto da cadeia,
que já se enredava em vivas labaredas e cujo vigamento começava a estalar entre
os braços rubros das chamas.
Virgulino olhou desvairado para aquele
tremendo espetáculo, para aquela cena que punha em sobressalto a vila inteira,
porque toda ela era ameaçada pela brutalidade do furor dos retirantes.
- Meu filho - exclamou finalmente o bandido. -
Não morrerás sozinho.
Com a celeridade da alucinação internou-se nas
chamas e nelas desapareceu com geral assombro dos circunstantes, que só depois
tiveram voz para exprimir a sua comoção.
Passaram alguns minutos, longos como séculos,
e afinal uma nova comoção mais violenta do que a primeira avassalou o coração
da multidão.
Virgulino, semelhante a uma aparição das
tremendas justiças religiosas, das medonhas punições de além-túmulo, assomou
entre as labaredas e as rompeu de novo, com uma coragem indizível.
Fora das chamas que haviam-lhe queimado o
rosto e em parte o tronco, o ousado pai entregou à primeira pessoa que dele se
aproximou a criança que fora buscar e que trazia embrulhada na sua véstia de
couro.
- Morta - exclamaram os circunstantes, olhando
para a criança. - Está morta.
O pai tomou-a de novo nos braços e,
aproveitando-se da perplexidade solene causada pela sua ação inqualificável,
caminhou para o ponto em que deixara a mulher.
Grande número de pessoas o seguiu de longe, e,
ainda que vissem claramente que ele era o marido da assassina ninguém ousou
destratá-lo.
Virgulino parou finalmente junto de Maria, e
com a voz muito sumida disse-lhe:
- Vê? Está aqui, fui buscá-la entre as chamas.
A mulher não respondeu, e o desgraçado
insistiu na sua observação, agora sacudindo o corpo da mulher. O mesmo
silêncio.
- Maria - exclamou ele, precipitadamente -,
Maria!
Olhou em redor de si, e, como daí descobrisse
as labaredas do incêndio, bradou lamentosamente:
- Oh!
Ela adivinhou a nossa desgraça.
E fui eu a causa de tudo.
Ajoelhou-se a chorar sobre os dois cadáveres e
a comover os que se aproximavam do quadro tristonho. Assim jazeu por longo
tempo, até que o subdelegado, mais para arrancá-lo de junto dos entes que lhe
causavam aquela dor do que para cumprir a lei, chegou-se a Virgulino e deu-lhe
voz de prisão como protetor de uma evasão.
- Sim - murmurou ele -, estou pronto. - E
tirando do bolso um revólver, aplicou-o contra o ouvido, e desfechando-o exclamou:
- Vamos!
A agitação da vila não cessou, apesar da
comoção que a todos causou o pungente espetáculo dado pela família do bandido.
Longe de acomodarem-se, os retirantes, mais exacerbados pela desgraça daqueles
companheiros de infortúnios ameaçaram levar a fogo e a ferro várias casas da
vila e só se acalmaram com a promessa formal de que todos os gêneros que
restavam lhes seriam entregues.
- É do imperador - gritavam eles. - Mandou que
nos dessem, é nosso.
A prudência das autoridades conformou-se com a
exigência e todos os gêneros foram distribuídos, mas sem que presidisse à
divisão a eqüidade que só a calma poderia manter.
Só 36 horas depois dos medonhos sucessos que
puseram fim ao estádio dos retirantes na vila, partiram estes, a princípio unidos
como um exército, e enveredaram pela estrada que leva a Baturité.
Para aí dirigiram-se também Eulália e o
vigário Paula, e este já começava a trilhar as terras afortunadas da serra, que
pareciam um grande oásis perdido no meio do imenso deserto da província.
À medida que subia, Paula rejuvenescia e
revigorava-se. Os males dos meses passados dissolviam-se no verdor embalsamado
dos plantios, que lembravam uma parasita disforme vicejando às expensas da
maioria da vegetação morta da província.
Aquele amontoado de morros, que se sucediam
com a gradação dos cones de uma pinha enorme, muito verdes, cintados pelos
vastos leitos fulvos das estradas, afogados numa abundância palaciana de luz,
acordavam no coração deprimido do vigário imagens em que ele já nem ousava
pensar.
A viração, brincando nos cafeeiros, punha no
ar, de mistura com o soar rítmico dos farfalhos, um banho de perfume em que
aquele espírito conturbado lavava-se e bracejava numa aspiração de sensações
tranqüilas. E coisa singular: a lembrança de Eulália, que até então
encarnara-se-lhe no pensamento, como que ia amortecendo, como se ela fosse uma
aparição da noite, que se dissipasse com a claridade triunfal da aurora.
Uma transformação muito semelhante apoderou-se
de Eulália, desde que pisou o solo da serra. Em caminho perguntara pelos seus e
deles tivera indícios e, mais do que isso, uma esperança risonha.
- Pode seguir em paz; daqui a Baturité ninguém
morre de fome.
- Chegarão, pois - pensava Eulália. - Lá ou no
Ceará reunidos, todos poderemos fugir à tortura que o destino nos infligiu.
E o coração dilatava-se-lhe num bem-estar
insólito. A voz dos pássaros filtrava-lhe no espírito e aí entoava uma aleluia
às suas alegrias; diziam-lhe que estava terminado o martírio, que em poucos
dias receberia o prazer de ter junto de si, senão no mesmo teto, ao menos ao
alcance dos olhos, a caçula, as irmãs e a velha tia.
Só uma dúvida vinha turbar-lhe o
contentamento; era uma pergunta que insistentemente subia-lhe da consciência
aos lábios:
- E receber-me-á minha tia?
Não resolvia por si; a maneira por que a
honrada senhora pensava acerca da honestidade fazia-a estremecer e, na
deficiência de uma resposta cabal, apelava para o acaso. Tomava raminhos à
beira da estrada e, desfolhando-os a repetir ao despegar cada folha - sim ou
não - alegrava-se ou entristecia-se com o horóscopo.
As impressões porém, não tinham estabilidade,
boiavam e afundavam-se na inconsciência feliz, que era o resultado da brusca
mudança das perspectivas, que lhe enlevavam os olhos e o pensamento.
No último dia de jornada, Eulália, que já
havia parado em alguns povoados, demorou-se por algum tempo na Conceição e aí
teve indícios da família. Havia dois dias que passara; devia, portanto, estar
com certeza em Baturité.
Todo o longo sofrimento indenizou-se com esta
certeza, e foi quase alucinada de alegria que à tarde desceu em demanda da
cidade.
A noite, porém, a surpreendeu em meio caminho,
nas alturas da Cruz. A sombra, que lançavam na estrada os cafezais e as matas,
causou-lhe medo, e Eulália experimentou de novo a incômoda impressão de quem se
vê só numa estrada.
Seguiu quase a correr, descendo a íngreme
ladeira como se fosse intento seu não parar. Embaixo um panorama esplêndido
desdobrou-se diante de si. Uma situação perfeitamente cultivada estendia-se com
os seus canaviais viridentes, cheios de ruído, com os seus cafezais e
mandiocais verde-negros dominando um grande espaço. Sobre um pequeno tabuleiro
a casa, iluminada, surgia sonora de gargalhadas e gritaria de crianças. Próximo
a ela, num curral espaçoso, o gado meneava os chocalhos, ruminando
tranqüilamente. A pouca distância do curral, um vasto telheiro mostrava-se
inteiramente iluminado por enorme fogueira.
- São felizes - pensou Eulália. - Não negarão
uma telha a quem precisa.
Caminhou até o telheiro, que ficava mais perto
da estrada e em que oscilavam diversas redes, impelidas por pessoas que
conversavam.
- Sabem dizer-me se o dono da casa dá pousada?
-perguntou Eulália.
- A quem pede - respondeu um velho que estava
sentado sobre um forno de bulandeira. - A casa é de quem quer dormir.
- Posso então pousar aqui?
- Sem cerimônia, moça - tornou o velho -, e
principalmente se for bonita.
Todos riram-se, e a própria Eulália sorriu da
jovialidade do velho, que, sendo o dono do sítio, julgava-se obrigado a vir
todas as noites alegrar por um momento os seus hóspedes forasteiros.
- Pois foi o diabo; ontem saiu uma leva que
parecia um pedaço do mundo. A tal ordem do presidente há de dar-lhe na cabeça;
cai a província inteira na capital e Deus queira que não haja muito que
lastimar.
- Mas quem sabe se não é história dos
comissários?
- Não, eu também recebi ofício; é a verdade.
Baturité não tem hoje duzentos retirantes.
Eulália estremeceu. O seu coração anteviu logo
que a família Queiroz não ficara na cidade, uma vez que os seus recursos não
lhe davam para viver independentemente dos socorros.
- Foi um alvoroço dos meus pecados - continuou
o velho.
- Estavam na cidade mais de 8 mil pessoas e de
uma hora para outra ficaram sem um grão de farinha.
- Virgem!
- Aquilo estourou como um morteiro; quase que
vai tudo pelos ares; as mulheres então cortavam o coração.
- Que calamidade!
- Mas também não havia outro meio; os
retirantes não comiam nem metade do que lhes era enviado.
- Ah! A seca tem sido inverno para muita
gente.
- É a verdade. Deram-se cenas muito tristes;
ontem e hoje pela manhã encontraram-se muitas crianças abandonadas pelos pais,
e algumas até recém-nascidas. Parece que já não há sentimentos no povo.
- É a desgraça, meu senhor.
- Hoje quem vai para Baturité precisa de ter
coração duro; senão volta de lá sem um dez réis. Gente que tinha com que passar
está aos paus.
- Mas aqui ao pé da serra?
- Pois então! A serra não dá para todos e nós
que aqui moramos já não podemos. Fomos forçados até a impedir que subissem
retirantes para cá. Daqui para baixo, para cima ninguém, que não vá de
passagem. Se não fizéssemos assim, morreríamos também de fome.
A conversação, como era natural, desfez a
alegre impressão que o aspecto da serra, a sua vegetação sadia e forte Causara
a Eulália.
A imaginação pintava-lhe, no meio do
torvelinho da revolta, a sua desventurada família, sem pão, sem amparo, ao
alcance da mão do primeiro ousado que entendesse desrespeitá-la.
Não havia exagero nessa dolorosa previsão; as
infelicidades tinham descido sobre as fracas mulheres em cardume, como enorme
revoada de corvos. As afrontas, as injúrias como que as elegeram por campo de
manobras e de espanejamento de seus horrores.
Não era, pois, muito que no meio de um
tumulto, quando.. de par com a cegueira da indignação, anda a perversidade
escolher vítimas, d. Ana e as indefesas meninas fossem escolhidas.
Trabalhada por este pensamento, Eulália não
cerrou as pálpebras durante a noite, e ergueu-se com os primeiros raios da
aurora. Embora para si, filha do sertão, o romper do dia tivesse na serra
atrativos infinitos, não se demorou a partir. Cantavam os pássaros alegremente,
vinha um longínquo rumor de cachoeira embalar numa sensação de paz e de
confiança os habitantes e os hóspedes do sítio e convidá-los ao descanso mas
para Eulália o próprio festejo da natureza era uma intimação de retirada.
“Estarão ainda em Baturité?" - pensava. –
“Elas são tão medrosas. Talvez tenham seguido, ou estejam prestes a partir."
A dúvida fazia dobrar a velocidade da
caminhada e tornava-a indiferente para o que via em torno. Não se demorava a
olhar para as perspectivas que as subidas e descidas de ladeiras desenrolavam
por todos os lados.
Não reparava, à margem das estradas, nas casas
de palha dos moradores, que, surgindo de entre o verdor das folhas das canas, e
atapetando-se com a folhagem das batateiras e das aboboreiras viçosas, falavam
de fartura e de tranqüilidade.
O seu alvo era a cidade, o seu desejo era
atingi-lo já, se fosse possível, e apenas quando a ingremidade das ladeiras
obrigava-a a demorar-se encarava com os ribeiros para invejar-lhes a rapidez
extraordinária com que coleavam por entre as plantações e sumiam-se para logo
surgir adiante com a mesma celeridade.
Só depois de longas horas de caminho, com os
pés magoados pelos acidentes do solo e pelas dificuldades da estrada pedregosa
e bronca, Eulália pôde desafogar num suspiro de satisfação. Ao dobrar uma das
curvas da estrada sinuosíssima, apareceu-lhe de improviso a cidade.
O sol matinal, tornando ainda mais negra a
encosta da montanha, a cujo sopé, sob uma pequena elevação, jaz a cidade, fazia
sobressair a cor dos telhados e de algumas fachadas da sua casaria, alinhada em
poucas ruas. A estrada até agora quase sempre silenciosa e solitária enchia-se
de rumor de cargueiros, que subiam, cantando numa toada tristonha, muito
pausada, estrofes inspiradas pela vida agrícola e pastoril.
“Vou saber notícias da cidade" - pensou
Eulália, e dirigiu-se ao comboieiro.
- Lá embaixo está uma epidemia respondeu o homem; - a doença tem atacado
muita gente.
- Tem morrido muitas mulheres?
- É onde a doença faz o seu roçado, e nas
crianças então não falemos.
- Santo Deus ! - exclamou Eulália, e foi com
as lágrimas a merejarem-lhe que perguntou: - E como se chama essa doença?
- Ora, é muito de ver! Quem vem de cima não
sabe o nome da doença dos retirantes?! É a fome...
E o comboieiro afastou-se cantando num
barítono afinado:
O sol
nasce igual p’ra todos,
Mas o home' o dividiu;
Para o pobre o sol em pino
Foi o quinhão que caiu.
Eulália, sobressaltada com a lutuosa nova,
desceu, quase correr, a ladeira e, ganhando a estrada larga que vai desembocar
na cidade, dirigiu-se para uma ponte, formada de um grosso tronco atravessado
sobre um ribeiro que passa pela base da elevação em que assenta a casaria.
Um homem, vestido como os sertanejos, de
camisa sobre as ceroulas, com um grande chicote na mão, tomou-lhe o passo.
- É de cima? - perguntou secamente e como
recebesse resposta afirmativa: - De que lugar da serra?
Eulália hesitou na resposta. A presença do
homem na entrada da cidade explicava que ele estava ali de sentinela, ou que
era talvez algum malfeitor. Respondeu, pois, mentindo serenamente:
- Do alto da Cruz.
- Bom, pode subir a ladeira; se fosse
retirante passava aqui por baixo; hoje deitamos fora o resto dessa praga.
- Como? - perguntou Eulália dolorosamente
impressionada.
- Ora, como? Não havia o que dar-lhes para
comer, estavam ai a fazer motim e a referver como bicharia. Manda-mo-los andar;
quem for dono da alhada que os ature.
- Mas, puseram para fora todos, todos?
- Todinhos, moça, e você que é da terra deve
gostar disso e não estar aí quase a chorar. Olhe que lá diz o ditado: livra-te
dos ares que eu te livrarei dos males.
- Desgraçadas - murmurou Eulália -, o que será
feito delas?
Deu alguns passos, mas de chofre voltou e
perguntou ao guarda da ponte:
- E hoje puseram para fora muitas mulheres?
- Todas quantas estavam aí por essas baiúcas.
Talvez pelo mato estejam algumas acoitadas.
- Não as encontrarei, pois; desventurada de
mim, talvez não as torne a ver.
- Não vale a pena ter dó dessa gente; é uma
canalha -exclamou o guarda. - Demais podem estar no Ceará em três dias, e o
mato ainda tem muito croatá e raiz de mandacaru para que eles comam.
- Obrigado; não quero ouvir mais nada -
exclamou Eulália.
E acrescentou baixinho:
- Que homem sem coração l
Entrou na cidade, que mergulhava no silêncio
que segue as grandes comoções. O olhar dos guardas e das autoridades, mais do
que ele a própria desconfiança, fizeram-na recear que lhe fizessem alguma
violência.
Percorreu a rua em que havia diversas
palhoças, residências marcadas aos retirantes, e viu-as fechadas. A feira, que
era em todos os povoados o ponto de reunião dos esfaimados filhos do sertão,
estava também deserta, e dois negociantes, conversando, deram-lhe uma noção
exata do que se havia dado.
- Foi uma caçada em regra; hoje não se vê um
só, nem se acharia um para remédio, ainda mesmo caminhando uma légua.
- Graças; eles eram capazes de fazer voar isto
tudo.
Certa de que não encontraria ainda a família,
Eulália decidiu-se imediatamente a partir, e mais uma vez recorreu à bolsa do
bandido para comprar provisões.
A cidade, que tão agradável impressão lhe
causara, parecia-lhe agora tristíssima e de um aspecto pronunciadamente hostil.
A esperança que a embelezava, ao desvanecer-se envolvera a cidade na cor
sombria dos padecimentos de Eulália que, sem poder conter mais a tristeza que a
acabrunhava, pôs-se de novo a caminho apesar da soalheira.
Durante mais de 30 horas de jornadas
sucessivas a mísera retirante caminhou, penetrando em cada povoado, e
procurando neles a família.
Cada esperança dissipava-se numa desilusão,
mas nem assim a coragem dedicada de Eulália extinguia-se: as decepções
duplicavam-lhe a constância.
No terceiro dia chegou à vila de Pacatuba, que
ao sopé da serra deste nome vegeta numa tristeza de cegonha.
Era a hora da chegada do trem: quase noite. O
espetáculo da miséria desenrolou-se em toda a amplitude ante os seus olhos.
Dir-se-ia que o solo tinha-se aberto para
expelir um vômito imundo nas cercanias da estação. O silvo da locomotiva
semelhante às palavras mágicas de um evocador, acordava em toda parte seres de
uma aparência fenomenal. Mulheres andrajosas, descuidosas da compostura, umas
carregando crianças nuas, opiladas, com grandes ventres e braços e pernas
atrofiados, corriam para junto do trem e, cercando-o com a impertinência e a
gula das harpias de Virgílio, coagiam os passageiros a dar-lhes esmolas.
Era um coro tristíssimo aquele. A miséria
exagerava as suas tristezas, pensando que era preciso ainda maior horror para
que os felizes se comovessem.
- Veja, meu senhor, esta criança: eu já não
tenho mais leite para dar-lhe.
- Eu tenho perdido aqui quase todos os meus
filhos, mortos à fome.
- Esmola para um cego.
A polícia intervinha para conter a vozeria da
desgraça, com a qual a inclemência muitas vezes se divertia, atirando moedas de
cobre no meio da mó e deleitando-se com o alvoroto e as lutas, que se travavam
tão encarniçadas que tornavam necessário o castigo.
- Quanta miséria, Santo Deus - meditou Eulália
a ver esta cena compungente; - e ainda há pessoas que se distraem em torná-la
mais evidente.
De pé sobre a plataforma da estação, espionava
miudamente a multidão e, como sentisse o coração pulsar-lhe violentamente,
interpretando este resultado da viva impressão que recebera como um horóscopo
de que encontraria a família, demorou-se até que o ajuntamento dissolveu-se.
- Nada - disse ela, indo postar-se na rua que
comunica a estação com o povoado; - ainda aqui não os poderei talvez encontrar.
O desalento avassalou-a então; temeu que a
precipitação da viagem a tivesse feito demorar-se menos do que fora necessário
para uma estreita pesquisa nos povoados intermediários a Baturité e Pacatuba.
Resolveu, pois, ficar o dia seguinte na vila
para que a consciência não a acusasse de haver passado precipitadamente por aí.
Ainda uma vez a desesperança veio enlutar-lhe
o coração, porque, de par com a impossibilidade de encontrar a família,
torturava-a a notícia de que mais de 100 mil retirantes enchiam agora a
capital.
- Como encontrá-las no meio deles? -
perguntava a si mesma, sem saber responder.
Entretanto, devia partir para chegar ao ponto
terminal da viagem, que deviam fazer suas irmãs, onde contava achar lenitivo às
suas saudades, ou desenganar-se para sempre.
Na manhã do segundo dia, Eulália, tomando o
trem que gala para a capital, sentia ao mesmo tempo levantarem-se dentro de si
duas grandes esperanças: o encontro com a família e o encontro com Irena e o
velho Monte. Teriam eles sobrevivido à enorme desventura que os acometera? O
seu infortúnio não podia ser tamanho que de um golpe a despojasse de todas as
suas afeições.
O trem partiu com uma celeridade vertiginosa,
quase tamanha quanto desejava a ansiedade de Eulália.
A planície, coberta de uma vegetação
amarelenta, aqui e ali semeada de pequenos grupos de carnaubeiras, fugia para
trás do comboio com uma rapidez inqualificável e, de espaço em espaço, uma
estação; obrigando a locomotiva a silvar e a parar, como que lhe dava maior
força para recomeçar a carreira.
Em uma dessas estações, em que sempre uma onda
de retirantes vinha esmolar, o que desafiava muito a atenção de Eulália, o trem
demorou-se mais do que em todas as outras.
Estava-se em Arronches, que parecia ser o
quartel-general da miséria; meninas que teriam, no máximo 13 anos, tinham
estampados nos rostos e nos colos descarnados os estigmas perdição. Grandes
círculos dartrosos gravavam nos semblantes tristonhos daquelas infelizes a
condenação eterna dos encarregados dos socorros!
- Veja - diziam os passageiros, chamando a
atenção recíproca; - aquela menina não chega a ter 12 anos, e no entanto em que
estado lá se acha.
- Aqui a perdição faz concorrência à fome.
Eulália sentia-se tão profundamente comovida,
que já não podia olhar para o ajuntamento, e alegrou-se quando ouviu o primeiro
sinal de partida. Estava debruçada em uma das janelas do vagão e relanceou ainda
uma vez o olhar para aquele transbordamento da desgraça.
Soou o último sinal de partida e, de envolta
com ele, um grito dolorosíssimo:
- Mana Eulália! Minha irmã!
Eulália voltou-se como doida, e respondeu por
outro grito.
- Chiquinha! Eu vou já, eu vou já.
Quis dar um passo, mas o arranco de saída do
trem fê-la cair sobre o banco. A alucinação da alegria fê-la, porém, insistir
no seu propósito, e caminhou até a plataforma. Era já muito tarde; o comboio
desfilava e punha entre ela e a irmã o obstáculo invencível do rápido
movimento.
- Pare! Pare, pelo amor de Deus! - gritou
Eulália com acentuação desesperada.
Uma gargalhada estrepitosa dos passageiros
respondeu ao apelo insensato, e Eulália, atingindo ao último grau da
alucinação, tentou precipitar-se.
O recebedor de bilhetes deteve-a, porém,
segurando-a bruscamente e vibrando uma afronta à sinceridade do sentimento que
motivara o temerário procedimento.
- Se está bêbada, vá cozinhar.
E impeliu-a para dentro do vagão.
Eulália foi cair sobre um dos bancos e ai
ficou, inerte e perplexa, a encarar com um olhar estúpido o seu brutal
salvador.
A violência da decepção que acabava de sofrer
arrebatou-lhe os sentidos e, imóvel, muda, conservou-se até que o trem parou na
estação terminal.
Aí o modo grosseiro pelo qual foi sacudida
pelo recebedor fê-la acordar do espasmo.
- Ia fazendo-a boa; estava com o diabo no
corpo em Arronches, bem?
Eulália não respondeu; saiu cambaleando e
tomou o leito da estrada na direção de Arronches.
- Não pode andar por aqui - bradou-lhe um
vigia; - se quer levar o diabo, é outro falar. Para fora, não seja besta.
Eulália, sentindo-se agarrada pelo braço,
voltou e foi sentar-se, lavada em lágrimas e sufocada em soluços, junto à
estação.