OS RETIRANTES

José do Patrocínio

 

PRIMEIRA PARTE

 

A Paróquia Abandonada

 

I

 

Tinha acabado a missa conventual e só à tarde sairia a procissão de prece: a imagem da Senhora da Piedade no seu andor armado de damasco e festões de flores, carregado por virgens; o Cristo de lividez poética na sua cruz negra e desornada.

 

A população de B. V., pequena paróquia cearense, achava-se bem, como quem retesa os músculos depois de um pesadelo; espanejava-se num contentamento largo como um romper da alva. A maior parte dos paroquianos estava reunida a rir e a galhofar e acentuava insistentemente o contraste entre o seu aspecto de hoje e o da véspera.

 

- Olé! - exclamavam uns para os outros. - Você a modo que ouviu o ronco dos guaíbas ou o zunzum da Itaquatiara?

 

A diferença era de fato enorme. Desde dezembro uma tristeza, densa como um nevoeiro, tinha empanado os espíritos ao verem a florescência dos cajueiros esperdiçada aos calores crus do estio. Nem um suor de tempestade embaciou a atmosfera, sempre de limpidez cristalina. Começou desta data a devoção solene, mas foi inteiramente vão o apelo para o céu diante da misantropia da natureza. Os dias secos e ardentes continuaram a devastar o gado, as plantações e as pastagens, ao passo que os rios e os açudes empobreciam como fidalgos pródigos.

 

Também as preces, em vez de levantar os ânimos, copiaram a desolação da terra e tornaram-se a ceva mística do desalento. Quando as procissões recolhiam ao som das monodias religiosas, e extinguiam-se os archotes, e apagavam-se as velas dos altares, escureciam igualmente o templo e as consciências. A claridade elétrica do luar, caindo então sobre a comum tristeza, parecia o olhar esgazeado de miséria a magnetizar o povoado.

 

É que o pânico feriu, de improviso, a energia das populações de sudoeste, assim como a de toda a Província do Ceará. Estatelavam todas ante a perspectiva hostil do futuro, numa resignação de faquir que se imola, e, como se tivessem um prurido de angústias, recontavam-se histórias de outras épocas horrorosamente calamitosas. Demais, a superstição abriu logo as longas asas de corvo e pairou sobre os espíritos acovardados. Um círculo alourado em torno da lua, a queda de um meteoro, as cores do crepúsculo, tudo foi considerado prenúncio da esperada desgraça. O templo substituiu a consolação pela ameaça, a esperança pelo desconforto. Assim é que o vigário Paula, conhecido até então como pouco severo, transformou a calma desleixada do seu olhar numa austeridade fria de juiz; o tom vulgar de suas práticas de outrora numa entoação cava de agouro. As donzelas tiritavam o velo; a sua estola, roxa como o rebordo de uma chaga, e a sobrepeliz, alva como os cogumelos novos, lembravam-lhes o caixão e a mortalha, e a boca do sacerdote afigurava-se-lhes a entrada da cova inexorável.

 

A paróquia tornou-se um imenso beatério, que se angustiava profundamente ao ouvir explicado, com os pormenores da perversidade, um hieróglifo escrito na memória de todos por um missionário capuchinho. O vigário o repetia pausadamente:

 

- Em 77 muito rasto e pouco pasto; em 78 muito pasto e pouco rasto.

 

E explicava em seguida:

 

- É que haveis de fugir de vossas moradas, como a caça acuada, tendo horror ao próprio som das vossas pisadas. A seca, porém, vos seguirá os passos como um cão destro, e para onde quer que fujais, lá encontrareis o desabrigo, a fome e a morte.

 

Estava-se já em princípios de março, e a fatalidade parecia ratificar a crueza de tais predições. Do alto da colina, em que está a sede da paróquia, com suas casas esparsas pela extensão das ruas embrionárias e pelo contorno da praça; com a sua igreja caiada, sem torres, tendo um telheiro por campanário, viam-se os incalculáveis estragos do verão. Era um espetáculo solene e tristonho. A planície estendia-se amplamente, semelhante a uma cicatriz enorme no meio do verdor sadio das carnaubeiras novas e das grandes touceiras de mandacarus, cujos grupamentos de estolhos semelhavam-se a órgãos de esmeralda encravados na charneca. Os pequenos casais, que apareciam ao longe, com os seus tetos de palha, as suas paredes caiadas, e os currais de pau-a-pique, desertos e negros de estrume, recordavam outras tantas tendas da penúria. O rio Jaguaribe, perdida a abundância hibernal, estava reduzido a algumas poças. As suas ribanceiras descobertas, altas como dois muros; o seu leito despido em vastas coroas de areia, amarelas como o âmbar, pareciam uma vala de cemitério, babando viva gula de cadáveres. Uma nuvem de urubus, que, dividindo-se e subdividindo-se, ora pousava nas capoeiras ou no solo, servia de outros tantos marcos à morte. É que o gado caía por centenas, como num matadouro, ou, faminto e sedento, cambaleava a fraqueza das suas ossadas a roer folhas mortas pela intensidade da canícula.

 

Foi, pois, com uma violência selvagem que, na véspera do outono, dia de São José, a alegria irrompeu do seio da paróquia. O sertanejo não desarmou a rede nem arranjou o mocó para partir; vestiu-se de gala, porque o verão simulou chegar ao seu termo. Fria e sombrosa madrugada quebrou a monotonia das auroras enfartadas de sol; uma bafagem úmida bruniu a copa empoeirada das árvores e cochichou nos capoeirões sussurros de temporal. As nuvens obesas de chuveiros alegravam como a carranca mais feia na festa dos bobos, e a paisagem tomou o ar descanoado do convalescente a respirar o ambiente oxigenado de uma hora, ainda úmida da rega matutina.

 

A igreja acompanhou-a na brusca mutação. Já não dobrava como por finados; os sinos, festivamente tangidos, entoavam uma aleluia àquelas vastas ruínas, e os seus repiques prolongados penetravam pelas casas com um ruído jovial de irmãos recém-chegados, sacudindo os sonolentos e acordando-os em sobressalto feliz. Também, à hora da missa, não se via uma população mesta e combalida, mas o povo com a sua alma sonora, enchendo as ruas e a praça de uma prasenteria anárquica.

 

 

 

Cerca de uma hora da tarde, porém, a sede paroquial ficou silenciosa e quase deserta. A multidão, tomando a ladeira norte da colina, escoou-se alvoroçada aspirando os sons de um búzio, três vezes repetidos. Foram como um pedaço de ímã, caído sobre um monte de limalha, aqueles sons cabalísticos; atraíram, arrastaram os grupos, que irresistivelmente correram de encontro a eles. Nem as pessoas mais graduadas, as que não tinham estadiado na praça, puderam conter-se. O próprio vigário Paula, reunido à família do professor público Francisco de Queiroz e à do velho criador Rogério Monte, seguiu alegremente ao encalço da multidão.

 

Havia neste grupo a dignidade da proeminência social. O vigário com seu chapéu redondo de grandes borlas pretas, a sua batina lilás, colhida na cintura pelos alamares da seda, levava pelo braço, com um passo cadenciado, a filha mais velha de Queiroz. Chamava-se Eulália e era uma rapariga de 20 anos, porte direito como a palma da acácia, andar firme e resoluto, ao de leve sacudido, como o ramo do ingazeiro que molha a ponta na correnteza. Rebentavam-lhe os seios com o vigor pujante da puberdade, tomando o corpinho branco e justo a conformação das graviolas verdes. Deles o colo enérgico tirava a curva das estátuas, e como que a cintura desbastava mais a circunferência de cone truncado junto ao ápice. Coroava-lhe o tronco forte uma cabeça sibilina, sumida artisticamente numa cabeleira negra, farta e lustrosa, enquadrando um rosto oval, moreno, corado e carnudo, recebendo um tom de nobreza principesca dos olhos à flor das pálpebras, vividos, maliciosos, e das narinas graciosamente vincadas. Ia pensativa, contra o seu hábito que era uma ponta de estroinice, desfeita em risadas de uma alegria clara, como as pojaduras de leite.

 

O vigário, por sua vez, guardava um retraimento cavalheiresco, de quem não quer incomodar. Só de vez em quando demorava o passo, e com uma voz meio autoritária, meio meiga, fazia notar as devastações da seca.

 

Estava ao natural. Era frio como as pedras de ara, pouco familiar no trato, exceto para com Eulália e o professor, com o qual havia colegiado - bom tempo de que um velho muro guardava a recordação numa frase obscena. O corpo atlético, mas proporcional e correto, ostentava músculos demais, que no entanto não impediam que se lhe sentisse facilmente o estremecimento do coração. O rosto de puro tipo indígena, embutido numa cabeleira dura e corredia, bebia nos negros olhos fundos, extraordinariamente brilhantes, uma expressão entre o escárnio e a piedade. A sua arma predileta era o desprezo, e, quando lhe chegava aos ouvidos alguma murmuração desagradável, movia desdenhosamente os ombros para não se desculpar.

 

Já em meio da ladeira, Eulália, que se tinha limitado a concordar com o seu companheiro, dirigiu-lhe por sua vez a palavra.

 

- Quero pedir-lhe um favor - disse. - Durante todo esse tempo de prece, o senhor nunca se lembrou de mim para fazer parte das virgens, que levam o andor de Nossa Senhora. Peço-lhe que me dê hoje um lugar entre elas.

 

- Não pode ser - respondeu secamente o vigário.

 

- Por quê? - interrompeu-o Eulália, corando com todo o pudor dos seus 20 anos.

 

- Por quê? - repetiu ele com o arrependimento no olhar e meiguice extrema na voz. - Os seus ombros ficariam magoados.

 

- Não, não é esta a razão - respondeu sorrindo ao galanteio. - Eu não sou melhor do que as outras. Irena é mais fraca e não se tem magoado; já vê que posso.

 

- Mas que pecados tem você cometido para querer fazer este sacrifício?

 

- Isto é o que se há de dizer, para notar que eu não fui incluída no número das virgens de Nossa Senhora.

 

- Pois bem - tartamudeou precipitadamente o vigário - diga-lhes que eu não a convidei, porque entre você e a imagem, esta é que deve carregá-la...

 

Eulália fitou-o assombrada, mas já a frieza natural do vigário havia-lhe extinguido o arrebatamento e um sorriso paternal substituíra o grito do coração.

 

- Não se entristeça por ninharias, minha filha. Quer ser uma das virgens? Se-lo-á. Está satisfeita agora?

 

Ela meneou afirmativamente a cabeça, mas conservou baixos os olhos, que tinham descaído num enleio pudico, e pôs-se a demorar o passo para ficar mais próximo da família. Queria evitar que ainda uma vez ouvisse alguma frase que a impressionasse pela afoiteza estranha. Já, em poucas horas, era a segunda vez que o vigário assim se lhe dirigia: em casa, jogando as prendas, conheceu que vinha dele uma sentença que a tornou pensativa: "Está na berlinda porque faz pecar sobre a terra". Agora, num assomo sacrílego dissera-lhe... nem sabia o quê.

 

Paula, compreendendo que a sua ousadia magoara a companheira, e sem saber como distraí-la, apontou para o cemitério que se estendia ao lado, como um vasto supedâneo de um cruzeiro negro, em cujos braços alvejava uma coroa de espinhos. Próximo à base do cruzeiro branqueava uma carneira toscamente acabada.

 

- Ali dorme o velho vigário, descansado da sua asma -disse ele. - Lembra-se de que, em pequena, tinha muito medo da sua tosse e dos seus olhos esbugalhados?

 

Eulália sorriu, olhando para o cemitério como uma criança consolada, e o vigário acrescentou:

 

- Tanto medo como teve ainda agora de mim, não é verdade?

 

A moça continuou a sorrir, e as suas feições asserenaram. A voz dos outros companheiros veio envolvê-los, restituindo assim a paz àquele espírito timorato.

 

Em breve chegaram à planície, e permearam a multidão, que lhes abria alas, cortejando-os e descobrindo-se reverentemente.

 

- Aí está o que lhes agrada - disse o vigário, assinalando a multidão. - Deus é só para os apertos.

 

Os sons do búzio estrugiram com toda a sua aspereza selvagem.

 

Entraram em um barracão vastíssimo, ruína de um antigo engenho que pertenceu ao patrimônio dos Montes. Era um lugar triste como o abandono, e acreditavam que servia de ponto de reunião as almas penadas e de entrevistas de bruxas e demônios.

 

Muita gente viu aí, por horas mortas, tripúdios tetérrimos de esqueletos à luz de fogos-fátuos, cadenciados por uivos de cães e pios de noitibós. Cavava-se um enorme abismo que substituía o solo do casarão por um ambiente visível, de um colorido luminoso como as chamas de álcool num vaso de cobre. Então, como a poeira no raio de sol coado por uma fresta, a aluvião de fantasmas, movendo os maxilares num cântico sem eco, ondeava, baralhava-se, passava daqui para ali, e tomava a catadura marcial dos guerreiros nos baixos-revelos assírios. Depois vinham meiguices e ameaças, atitudes humilhadas e blasfemas, calmas de lago e cóleras de fera.

 

Não era também raro contar que se tinha ouvido, à noite, o estrépito soturno de um desmoronamento. Sentia-se o cavo som do baque das paredes, e depois o prolongado estralar de telhas que se quebravam. E toda a gente acreditava que era o Engenho mal-assombrado que tinha vindo ao chão. No entanto, no dia seguinte, lá estava ele de pé, com os mesmos buracos no telhado, com os mesmos esteios negros enfileirados como um pelotão de gigantes.

 

A imaginação popular sancionava estas criações supersticiosas por uma lenda que habitava o isolamento do triste edifício, enchendo-o de par com o vôo das revoadas negras dos morcegos. Narrava a lenda sombria uma festa esplêndida, em que se casavam rufos de adufes e cantigas de violeiros, os trilos das violas com os sapateados e palmas dos dançadores. No meio da festa, porém, uma horda de facínoras, gente dos Feitosas, entrou e, apunhalando o hospedeiro, constrangeu a sua esposa formosa a dançar em torno do cadáver ensangüentado, baldão e ludíbrio dos assassinos. Hoje, as danças dos duendes reproduziam no seu horror aquela cena medonha.

 

Tal era o lugar em que se achava a multidão, trepada sobre caieiras de entulho das paredes desabadas, que tornavam côncava a superfície do solo. Trouxera-a aí uma curiosidade bárbara, um apetite de desastre e de horror: o espetáculo das cobras com o Feiticeiro.

 

- Hum! - ponderavam alguns. - Esse demônio bate a bota brincando.

 

- Que o leve o diabo! - respondiam outros. - Ele faz-se besta com bichos.

 

- Quem sabe se as cobras têm dentes?

 

- No Crato houve quem duvidasse e pagou com a vida a experiência.

 

- Olhem, está-se mesmo a ver que ele tem parte com o diabo - apontavam outros. - Que olhos!

 

Do meio da grande massa popular destacavam-se dois indivíduos, que havia mais de um mês habitavam a ruína. Um, ainda criança, teria 12 para 13 anos e era robusto, muito esperto, de olhos cheios de vivacidade, boca rasgada entre os lábios grossos, e gengivas vermelhas como cardos, em que se embutiam dentes alvos e sãos; os da frente, no maxilar superior, agudos como os caninos. O outro era um homem de corpo desenvolvido, fisionomia carrancuda, antipática, olhares suspeitosos, gestos untuosos de emboscado, palavra humilde e atenciosa. Levava uma vida misteriosa, sempre em lugares tristes e de má fama. Filho do norte da Província, contavam que, a primeira vez que foi visto, saía da Bajara, a casa encantada que mãos ignoradas cavaram no maciço da Serra Grande, muito espaçosa, com grandes mesas e bancos talhados na homogeneidade da rocha. Quase toda a Província o conhecia e tinha-lhe medo pela sua profissão incrível: brincar com um bando de cascavéis. Chamavam-no por isso o Feiticeiro.

 

A voz da multidão punha no recinto um sussurro de mosqueiro; as mulheres conchegavam-se, os homens punham-se em bicos de pés e tiravam os chapeirões para não incomodar os vizinhos. O pequeno, o Cabrazinho, conforme o chamavam, pôs-se a intermear o povo e a receber no seu chapéu de couro moedas de cobre. Finda a miúda cobrança, começou o desejado espetáculo, na plenitude do seu assombro.

 

No meio do barracão havia uma espécie de abajur, feito de um estreito traçado de taquara, dentro do qual podia-se estar de pé, à vontade, e girar numa área de vinte palmos. Para aí entraram o Feiticeiro e o pequeno, ambos carregando gaiolas onde se viam os corpos das cascavéis, grossas como um antebraço atlético, medonhas apesar do seu fino colorido marrom hidrargirado. O pequeno veio depois colocar-se fora, junto à portinhola que servia de entrada, e aí recebia as gaiolas. esvaziadas pelo Feiticeiro, que sacudia no chão os seus venenosos artistas.

 

O terror começou a invadir a multidão, que silenciou e ficou a olhar embasbacada para aquele ente privilegiado, sereno, embora rodeado pela morte. A musculação forte das omoplatas como que tinha cintilações sobrenaturais; as nuas barrigas das suas pernas esgalgadas pareciam ter concentrado toda a força vivaz da agilidade. As cascavéis fitavam-no com a submissão de cães amigos.

 

O Feiticeiro rugiu então seu maracá, e aos sons do bater das pedras na esfera da lata, corno que se propagou uma alucinação geral. Os espectadores davam-se vaivéns para se arrumarem em bom lugar; as cascavéis, que estavam enroscadas e como que receosas, davam botes e queriam investir. Mas o maracá parou de súbito, e os oito monstros, raivando nas suas enormes rodilhas, por sua vez principiaram a chocalhar, vibrando as pontas das caudas, conformadas como a extremidade dos sabugos de milho.

 

O maracá ressoou novamente, instigando-lhes a fúria. Corria-lhes pelo corpo um arrepio de cólera, que lhes dava às cabeças contrações epilépticas, e lhes descerrava convulsamente os queixos, abrindo saída às línguas trífidas e vermelhas, rápidas como relâmpagos. O Feiticeiro, postado junto às malhas da rede, olhava-as com desdém e dizia frases de palhaço, repassadas de escárnio boçal. Os espectadores tremiam e tinham os sorrisos desenxabidos de quem dissimula o medo. Mas os demônios do sertão pareciam recear e apenas continuavam nos seus botes céleres e repetidos, que não atingiam o alvo.

 

- Coisas ruins! - disse por entre os dentes o Feiticeiro. - E tirando da cinta uma varinha e fustigando-as: - Fora! Não prestam para nada.

 

O  desprezo como que doeu às terríveis envenenadoras. Desenroscando-se e levantando-se ao meio corpo, atiraram-se ao provocador. Neste momento, porém, saltou dentro do circo o pequeno caboclo, e, seminu como
seu pai, pôs-se como ele a agitar o seu pequeno maracá, Possessos e furibundos, os monstros acometeram o tememário, impetuosos como se o fossem estrangular.

 

- Devagar! Devagar! - bradou o Feiticeiro. - Devagar!

 

O terror tinha invadido até a medula dos espectadores boquiabertos: alguns tentaram fugir; as mulheres tiritavam e chamavam baixinho por Jesus. Nas imaginações exaltadas, viam já estrebuchando por terra a pobre criança, talvez violentada a tamanha temeridade. O pequeno, porém, sorria, enquanto as cascavéis trepavam-lhe pelo corpo e enovelavam-se-lhe pelas pernas, pela cintura e pelos braços. O terror aumentava, a morte afigurava-se iminente; mas as cascavéis, em vez de crivarem-no de dentadas, limitaram-se a lamber-lhe o pescoço e as curvas, com a brandura de um cão a afagar seu dono. O rapazinho, encolhendo-se, assim como quem sente frio, continuava a rir sossegado, dentro de sua túnica de veneno, sonora como um chichard de guizos.

 

O Feiticeiro aproximou-se então, e, fitando os monstros com o seu olhar magnético, prosseguiu a enfurecê-los pelo rugir do maracá. Como que afadigadas, as cascavéis, longe de se irritarem, deitaram as cabeças submissamente. Então o Feiticeiro, semelhante ao hortelão desentrançando videiras, pôs-se a desenleá-las e a fechá-las nas gaiolas. Duas apenas, as maiores, ficaram fora, prontas como duas armas engatilhadas.

 

Depois que o rapazinho saiu do circo entre os aplausos da multidão, o maracá rugiu veementemente, provocando nas duas cobras, gigantescas, cólera de energúmeno com espasmos de histeria. Partiram com setas e, ora acometendo, ora enovelando-se, moviam as línguas nervosamente, começando já a querer morder os próprios corpos.

 

O Feiticeiro, sacudindo-se cadenciadamente ao som do rude instrumento, numa dança selvagem, resmoneava uma canção lúgubre; os espectadores olhavam com o olhar os pesadelos.

 

Afinal, o homem sobrenatural acocorou-se ante as duas possessas que o fitavam, agitando-se quase imperceptivelmente, como os gatos, quando face a face se encaram a ensaiar carícias brutais dos seus brutais amores. O instrumento selvagem continuou a espalhar o seu fermento de guerra, até que foi vibrado como ameaça. Num salto rápido e temeroso, as cascavéis galgaram a distância que se lhes interpunham, e com expansabilidade de uma cólera explosiva, agarraram-se aos braços do seu provocador.

 

- Quem compra miçangas?!  gritou o caboclo, com um sorriso mau.

 

Mas, em seguida, deixando-se cair por terra, gemeu sentidamente:

 

- Ai! E desta vez que eu morro.

 

Rompeu então em estrebuchamentos convulsos, compungentes, que não tinham força entretanto para desvencilhá-lo das vingativas dentadas. O pequeno, junto da portinhola, tinha um olhar amedrontado, ao passo que seu pai ia aos poucos diminuindo os movimentos e caindo num relaxamento muscular assustador.

 

- Está morto! Está morto - gritaram. - Desencantou; fuja quem não quer morrer!

 

E a multidão inteira alvorotou-se, e acotovelando-se, atropelando-se, fugiu do medonho lugar, enquanto o pequeno, rindo muito, penetrava no circo para desembaraçar os braços de seu pai dos venenosos ornatos.

 

- Malvados! - disse o Feiticeiro levantando-se. - Deixar-me-iam morrer como um cachorro!

 

 

 

No meio do rebuliço e pânico geral, que esvaziara, como que por encanto, o vasto casarão, deixando-o entregue à sua habitual tristeza de esfinge, só um homem se manteve diferente ao que se passara - o vigário Paula. Durante o espetáculo persistira em seguir com o olhar um rapaz claro, de barbas e cabelos louros, corpo desbastado e esbelto, e cujos olhos insistiam em uma atenção contemplativa ao grupo formado pela filhas de Queiroz e Irena Monte. Em uma das ocasiões o olhar do vigário encontrou-se com o do moço, e este mostrou-se dominado por um vexame profundo.

 

- Conhece o Augusto Feitosa? - perguntou ele a Eulália.

 

- Sim, muito - respondeu-lhe a moça distraidamente - já o vi aqui.

 

Paula concluiu logo que a pertinácia daquela contemplação tinha Eulália por alvo. Lembrou-se de que entre Irena e o rapaz interpunham-se dois séculos de ódio incansável entre as suas famílias; as outras filhas de Queiroz não pensavam ainda em corresponder a galanteios. A sua suspeita, pois, não demorou em tornar-se uma certeza dolorosa, e o vigário ficou sombrio como quem acaba de ouvir as derradeiras palavras de um ente caro.

 

No jantar em casa de Queiroz, enquanto os outros, mastigando com o apetite sertanejo grandes pedaços de assados, riam comentando o espetáculo, ele se conservava mudo a olhar indiferente.

 

- Estou incomodado dos nervos - pretextou para explicar a tristeza.

 

À tardinha, quando na igreja distribuiu os lugares do andor da Virgem, ao passo que se dirigiu a todas com meiguice, dizendo palavras amáveis, ao chegar a Eulália, os seus olhos fuzilaram, e foi com um tom repreensivo e um gesto de contrariedade que lhe disse bruscamente:

 

- A senhora também.

 

Ela o ouviu com estranheza, mas agradecida: não seria apontada, estava entre as virgens de Nossa Senhora. E sentia-se feliz caminhando para esse lugar de honra.

 

A procissão desfilou esplêndida no seu luxo de fé e contrição, sob os olhos do vigário que espiava de preferência o andor da Virgem, sobre os ombros de quatro donzelas. Entre elas figuravam Irena e Eulália, esta agora livre do olhar contemplativo de Feitosa. Paula estava tranqüilo, mas de repente parou e, brandindo o crucifixo que tinha entre as mãos, resmungou com uma entoação angustiada:

 

- Ainda aqui, e eu não posso matá-lo!

 

Esta explosão de cólera tinha sido provocada por Augusto Feitosa, que se colocara ao lado do andor, e, contrastando com a fúria do vigário, abandonava-se à grande paz da multidão, que percorria devotamente as ruas do povoado.

 

Era um espetáculo imponente de singeleza; a crença mergulhava os espíritos num enlevo, que era como um esquecimento da vida, uma aspiração infinita de um sono profundo, como deve ser o dos arcanjos na tepidez das suas asas brancas, na calma da bem-aventurança. Os cânticos, com as notas finais muito prolongadas, trêmulas de contrição, aumentavam esse gozo suave, abafando os ruídos do vento nas árvores e os mugidos tristes das boiadas famintas das cercanias.

 

O crepúsculo trepou em vão pela face da sombra a ostentar o seu corpo vermelho como um campo de recente batalha, e em vão nele dissolveu os tons variegados, vivos, de cambiante indescritível. A alma do sertanejo, deixando escoar toda a sombra que, havia três meses, a escurecia, empanava todo esse brilho, toda essa grandiosa ostentação fidalga e caprichosa de colorido e luz. Para ele se conservava ainda a escuridão promissora, cheia de encantos para sua imaginação, como as faces da rainha de Sabá para a delirante paixão do rei-poeta. A treva era um prêmio da sua fé, a condensação das suas preces tristonhas, e estas ainda ele as conservava inteiras e vivazes.

 

Não via senão as imagens do Cristo e da Virgem, e estas exalavam tanta doçura, tanta consolação, de seus olhos amortecidos pela dor, das suas faces maceradas pela resignação, que era impossível alguém pensar nas ameaças temerosas do verão.

 

Mas, ao dobrar uma das esquinas, a procissão quase que recuou. Estava de pé um homem, alto e magro, dessa magreza que é o extrato da robustez. Seus olhos negros, esbotocados, como grandes laivos de sangue, tinham a vivacidade convulsiva da loucura; os cabelos grandes, emaranhados e muito grisalhos, atufavam-se sobre a cabeça, como um turbante de estopa. Descalço, com as roupas estilhaçadas e sórdidas, esse homem parecia um vômito da penúria deposto aí para envilecer a devoção.

 

- Mau, mau - rosnava-se -, vizinhança de doidos é como traseira de poldro xucro; cuidado! - diziam os fiéis, desviando-se dele receosos.

 

- Coitado! - murmuravam as mulheres - Como anda agora desprezado o pobre Joaquim Maluco! A gente não sabe para que tem filhos.

 

- Qual coitado nem meio coitado - respondia-se-lhes. - Está com o diabo no corpo: te esconjuro!

 

Hirto, embasbacado, a alguma distância das casas da rua, braços cruzados sobre as costas, imóvel como uma estátua, o doido contemplou por largo espaço o desdobramento luminoso do préstito; mas, quando passou o primeiro grupo de virgens, vestidas de branco, com as cabeças cobertas com toalhas alvíssimas, sobressaltou-se e, fundindo em lágrimas, rompendo em soluços, ajoelhou-se com as mãos postas levantadas sobre a cabeça.

 

- São os anjos - repetia o desgraçado -, são os anjos que vêm buscar minha filha.

 

A sua voz, com a inflexão despedaçada do desespero, mudou o temor geral em compaixão; todos esqueceram a antipatia supersticiosa para homologar a sua angústia.

 

- Não se esquecerá nunca, o desgraçado! - diziam os paroquianos.

 

E contavam o caso baixinho aos que não sabiam:

 

O velho era o Joaquim Mateiro, honrado como os que o são. Um dia soube-se na sua casa que a filha mais velha estava grávida e confessava que o seu amante era o defunto vigário, que a seduzira pela quaresma, ao confessá-la no dia das Dores. O Joaquinzinho, irmão da seduzida, calou-se e saiu com a sua espingarda de caça. A matriz estava aberta e o vigário celebrava a missa, já no ponto de levantar a hóstia. Impelido pela alucinação, o moço levou a arma ao rosto e desfechou um tiro contra o vigário, mas a bala apenas varou a hóstia e foi cravar-se na imagem de Nossa Senhora, que estava em frente. Desarmado, perseguido, doido de indignação, o moço correu até a casa, e, no meio da estupefação geral, armou-se com a sua faca de mateiro e cravou-a até o fim da lâmina no coração da irmã. O suicídio concluiu essa tremenda tragédia, e o pai, não podendo resistir a tamanha dor, enlouqueceu.

 

Os grupos de virgens continuaram a desfilar, e o velho, sempre de joelhos, repetia a sua frase de alucinado, sentida e comovente. Subitamente, porém, levantou-se e, caminhando até o meio da ala, atirou para o andor da Senhora da Piedade uma blasfêmia horripilante:

 

- Parem; os anjos da minha filha, os anjos de Deus não devem carregar esta alcoviteira do vigário. Parem, parem!

 

- Virgem Mãe de Deus! - bradaram centenas de vozes.

 

- Perdão, perdão!

 

- Mãe de Deus, não! Não! - gritou o doido. - Foi ela, a malvada, quem disse à minha filha: "vai, escuta o vigário".

 

Os cânticos cessaram, e a massa popular inteira caiu de joelhos, enquanto um grupo arrastava para fora o doido, que se debatia com a força de um tigre uivando amordaçado por mão possante.

 

As claridades do sol posto bruxuleavam no ocaso como uma fresta iluminada por onde algum ente sobrenatural espiasse para a terra. Reinava um silêncio tumular em torno das imagens, que pareciam mais tristes.

 

- Agnus Dei qui tolis peccata mundi - cantou por vezes o vigário, com voz trêmula e comovida, até que o povo lhe respondeu com uma entoação dolorosa:

 

- Miserere nobis.

 

Passou finalmente o estupor e a procissão prosseguiu, envolta em cânticos tristes, repassados da fé ardente que a violenta comoção havia produzido. Sentia-se a contrição profunda dos espíritos no tom das singelas melopéias, que buscavam dar à Virgem um desagravo solene; e foi sob o influxo deste sentimento que o préstito entrou no templo, já noite fechada, à luz ondeante dos archotes.

 

Soprava esperto vento de leste, pondo um farfalho tépido nas gravioleiras dos quintais. A pardacenta homogeneidade das nuvens rompera-se em grandes rasgões, onde luziam estrelas com o alegre contraste das moitas de mimoteias no escuro dos brejos. Dir-se-ia, enfim, que desde o crepúsculo tinha cessado a hospedagem divina, tanto o aspecto do céu prognosticava agora a volta dos luares imaculados e dos dias ardentes, de um esplendor perdulário.

 

Mas a cegueira benéfica da fé adiou a dolorosa desilusão. Embebida nas harmonias acariciadoras dos salmos melancólicos, torturada pela cena do agravo da Virgem, mas certa do perdão, a multidão volveu às suas moradas sem reparar que o dia de São José tinha passado sem chuva. A contrição e a esperança enchiam-lhe o pensamento.

 

O vigário, porém, saiu da igreja sombrio e intratável, sem ter feito prédica.

 

- Tenho o inferno na cabeça - disse ao sacristão. - Arrebento.

 

- Como não, sr. vigário? Aquele endemoninhado...

 

- Sim, o endemoninhado; mas há piores do que ele, e não obstante vivem.

 

Quando chegou a casa, o seu coração de misantropo sangrava como as veias de um estóico dentro do banho suicida. Os movimentos automáticos traiam a inconsciência do delírio; as pupilas negras nas córneas avermelhadas lembravam manchas de gangrena e pareciam querer saltar das órbitas. Estouvado e brutal atirou com o chapéu sobre a mesa; bateu com as janelas, e pisando forte e compassadamente, pôs-se a passear com uma regularidade de pêndulo. A mobília pobre de jacarandá lustrado, com o seu canapé forrado de sola, parecia ter medo. A mesa grande, no meio da sala, como que recuava diante dos seus passos. Um pequeno, que vinha sempre ajudá-lo a despir-se, entrou e, sem ousar interrogá-lo, saiu deixando um castiçal sobre a mesa.

 

Só, estrangulando-se com o seu despeito, o vigário, com o olhar fixo de um gato à espreita, andava, de extremidade a extremidade da sala, de quando em quando segurando a batina, sacudindo-a como um tigre os varões de ferro da sua gaiola.

 

De repente, porem, parou, levantou os punhos cerrados e a cabeça com uma expressão compungente de desespero e de angústia. Como se pulsos de aço o impelissem e subjugassem, cobriu o rosto com as mãos espalmadas e deixou-se cair sobre uma cadeira, com a fronte sobre a mesa.

 

- Sr. vigário - murmurou da porta o pequeno - mandam chamar vosmecê da casa do sr. Queiroz.

 

- Diga que estou doente; não posso ir a pagodes. Não me traga mais recados; safe-se.

 

O pequeno, estremecendo de susto, retirou-se de pronto, mas, antes que tivesse chegado à porta da rua, ouviu de novo a rude voz do seu amo, já menos colérica:

 

- Ouça; pergunte de quem trouxeram o recado.

 

- Da sinhá Eulália - respondeu de fora uma voz de mulher.

 

- Estou doente - repetiu. - Demais não faço falta - e sacudindo a cabeça -; quer divertir-se à minha custa. Víbora!

 

A última palavra foi proferida com um engasgo de cólera demente, e o vigário, como que admirado de si mesmo, cruzou os braços sobre o peito e ficou a olhar estatelado.

 

 

II

 

Eulália recebeu o recado no seu quarto de dormir, para onde se recolhera com Irena. Tinham mudado a roupa, e sentadas, Eulália sobre uma caixa de cedro, Irena encostada na rede, conversavam pequenas futilidades, enquanto descansavam das fadigas da devoção.

 

Uma vela escura de carnaúba, num castiçal de ferro, ardia na extremidade da caixa; um espelho de guarnição de pinho forrado de papel com ramagens verdes e umas flores de miolo amarelo e corola acinerada, reproduzia de quando em quando os traços de Irena aos morosos vaivéns da rede. O desalinho das saias brancas muito engomadas, um vago cheiro de alfazema, a pobreza asseada do quarto, acirravam nas duas moças a necessidade de contarem intimamente o que viram, o que sentiram:

 

A freguesia nunca estivera tão bonita; como que não tinha ficado uma só pessoa em casa. Estavam todos fora de si; quanto contentamento! As mães e as irmãs nem davam pelo peso dos marmanjões que traziam nos braços. É que eram muito fortes e sadias. A praça parecia uma caldeira fervendo; que barulho enorme! Os homens vestidos de ceroulas aniladas, a que se sobrepunham as fraldas das camisas, também, muito azuis do anil, com os seus chapeirões de couro, os pés grandes e esparramados nas alpargatas, faziam rir com a sua originalidade primitiva. Os outros, vestidos de perneiras, véstia e guarda-peito de couro muito cheios de bordados, com o chapeirão no alto a cabeça, lembravam dias de ferra, em que todos perdiam a cabeça, e doidos metiam a galope os cavalos, em risco de serem varados pelos chifres do gado barbatão. Mas nada como as matutas com os seus cabelos longos, corredios e lustrosos, muito negros, trançados em cruz do alto da cabeça à nuca! Que dentes tão alvos, tão pontiagudos, tão bem limados! E que bem feitos corpos, modelados pela compressão das barbatanas na cassa muito viva dos seus vestidos afogados, de mangas curtas, deixando ver completamente nus os seus braços carnudos! Na igreja e durante a procissão, escondidas as cabeças em toalhas muito rendadas, eram todas formosas. Só se lhes via os rostos num oval traçado por junto das órbitas até a ponta do queixo, e assim ficavam mais salientes os seus negros olhos piedosos, as narinas intumescidas, os lábios grossos e rubros, os traços rudes, mais nobres, de mulheres enérgicas. Mas o pior fora o doido; por que o deixavam sair? Por que o não acariciavam em casa, coitado? Era digno de dó; ficou maluco por amor dos filhos; deviam tratá-lo melhor os seus parentes.

 

Foi, interrompendo esta conversação amiga, que as duas moças ouviram o recado de Paula, transmitido com uma fidelidade grosseira; e ambas surpreendidas perguntaram qual a doença do vigário.

 

- Parece que é raiva; ele batia muito com os pés; gritou com o José, e disse que não lhe trouxessem mais recados.

 

- Há de ser doença, a vista do doido talvez - ponderou Irena quando ficaram de novo sós -, ele nem pregou o sermão.

 

Eulália conservou-se silenciosa por algum tempo, a sacudir as pernas que rugiam na saia engomada, e a olha distraidamente com as pálpebras meio cerradas. Os olhos azuis de Irena, preguiçosos como águas represadas, muito fundos no seu rosto sóbrio de carnação, como os dos arcanjos de mármore, e muito proporcionado à sua estatura mediana e corpo franzino; os olhos de Irena envolveram Eulália numa tácita interrogação.

 

Não havia entre elas segredo, eram amigas desde pequenas, porque foi como pensionista de Francisco de Queiroz que Irena aprendeu a ler. Desde então a vivacidade de uma temperava-se com a bonomia da outra, e Irena tonificava o seu ânimo predisposto a ser dominado com a altivez de Eulália, que era a sua força, a sua inspiração, a sua consciência. Tinham intimidades desveladas, maiores do que as de irmãs, e não obstante Eulália calava-se!

 

- O que tem você? - perguntou Irena admirada. - O vigário deu-lhe alguma penitência má?

 

- Nem eu mesma sei o que tenho - respondeu com alguma demora. - Estou a pensar no vigário, na sua raiva, e, de mistura com ela, no Joaquim Maluco.

 

- Então a raiva é com você?

 

- Parece.

 

Pôs-se então a contar a cena da igreja, a ida para o Engenho mal-assombrado, os galanteios, as delicadezas excessivas que por muitas vezes a tinham feito pensar, mas que nunca a impressionaram muito, porque todos que viam e ouviam aplaudiam muito o vigário. Agora todas essas bondades tinham-se mudado repentinamente em grosserias para com ela, em maneiras desabridamente descorteses. Entretanto nunca o desrespeitara; tinha crescido aos seus olhos, estimava-o, e ainda hoje beijava-lhe as mãos. Seu pai repetia-lhe sempre que o vigário era o seu maior amigo, e contava-lhe que tinha sido seu decurião; que viveram sempre como viviam elas duas. "Há quem murmure do Paula - tinha-lhe por várias vezes dito - , mas é que o não conhecem bem; chamaram-no frio e mau, porque é reservado e sério; no fundo, porém, muito boa alma."

 

- Eu, pois - concluiu Eulália -, não lhe podia dar motivo para ser maltratada, e por isso mesmo ressinto-me.

 

- Mas não dê importância; é que ele anda aborrecido. Trata você como filha, e não repara no que diz e no que faz.

 

- Seja - respondeu Eulália, sacudindo os ombros. - E mudando de tom: - Não sei por que estou só a pensar no Joaquim Maluco.

 

- É outra asneira; o que ele diz não ofende a Deus; é doido.

 

Chamaram por elas; saíram, pois, dissimulando os vestígios da pequena contrariedade. Mais uma vez na sala, no calor do jogo de prendas, no esquecimento do "medir fitas", do "tirar do poço", do "se minha boca fora condessa", da "caixinha dos três desejos", Eulália retraiu-se e conservou-se pensativa.

 

Sofria sem saber por que, mas sofria; e como que se sentiu aliviada de um peso na hora em que a reunião se dissolveu entre felicitações pela chegada do inverno.

 

- Não pense mais no vigário nem no doido - disse-lhe Irena ao sair -, sonhe comigo.

 

Eulália acolheu bondosamente o pedido da amiga, e passado pouco tempo, resguardando apenas pela camisa de morim fino o seu pudor virginal à curiosidade do espelho, sacudia os ombros, alongando o lábio desdenhosamente, e metia-se na sua rede para dormir.

 

Lá fora luziam as estrelas com a tranqüilidade de um emboscado seguro do descuido da vítima.

 

 

III

 

Quando já não se ouvia o som de nenhuma passada de transeunte, um jato de luz entornou-se na sombra da praça. Escoara-se da janela da casa do vigário, que vinha de quando em quando debruçar-se ao peitoril, interrompendo assim um passeio automático. O seu semblante, se bem já alguma cousa serenado, dizia que ele ainda estava sob a mesma impressão; que o seu pensamento continuava a pairar sobre a imagem de Eulália, profanando-a com um beijo de sátiro.

 

Cálculos temerosos enovelaram-se e desdobraram-se-lhe no cismar delirante; às vezes parava de chofre e sorria, outras vezes tomava o ar grave de quem aconselha, ou o aspecto carrancudo de quem ameaça; finalmente, ajoelhando-se, exclamou, como quem calcula o efeito de uma cena romântica:

 

- Responder-lhe-ei: porque te amo

 

Este epílogo era inteiramente real. O coração frio de Paula fora aquecido aos poucos, insensivelmente, como num banho-maria, à luz dos olhos vivos de Eulália. Íntimo de Francisco de Queiroz, acompanhara todas fases do desenvolvimento daquela formosura lapidar de estátua grega. Quando voltou dos estudos no seminário tinha 22 anos e Eulália apenas cinco. Era então muito dada com todos, muito afável, e gostava de sentar-se no colo dos hóspedes para correr-lhe a mão macia pela barba. Foi crescendo, crescendo, e, sempre a dobrar de beleza e de afabilidade, ainda aos 11 anos vinha intrometer-se entre os joelhos de Paula, então coadjutor da paróquia. Ele, acariciando-a, corria-lhe a mão pelos cabelos, pela face e pelo colo, onde a demorava, sentindo-o intumescido pela primeira efusão da puberdade. Ela pagava-lhe os afagos, encostando-lhe a face morena sobre o ombro, e perguntando-lhe com um olhar de cordeiro e um tom muito suave, por que é que ele não tinha uma filha para brincar comigo; gostaria mais dela do que das bonecas que lhe davam e que suas irmãs pequenas quebravam. Depois vira-a, à medida que seus vestidos iam aumentado, diminuir as suas carícias, tomá-la um retraimento delicado, limitar-se a um beijo na sua mão grande de atleta e às perguntas pela sua saúde e pela concorrência às missas. Então este beijo, aquecido por um hálito perfumado, enfeixava, como raios num foco, tudo quanto ela lhe dera nas despreocupações da meninice.

 

Viveu assim satisfeito, sob o domínio de uma paixão acomodada, cujo egoísmo se limitava a uma espécie de fanatismo religioso, mas calmo, semelhante aos dos monges pelas santas dos seus conventos. Mais tarde sobressaltou-se muito: Eulália estava com 16 anos, e seu próprio pai falou-lhe em casá-la.

 

Todas as torturas do ciúme assaltaram-no inopinadamente com o ímpeto de uma legião, com o desespero da impotência ofendida. Mas a sua boa estrela veio-lhe em auxílio: a mulher de Queiroz morreu de parto, e Eulália jurou não casar-se antes que sua irmãzinha estivesse criada: um marido podia tirá-la de junto do berço da órfã, e isto mata-la-ia.

 

Paula descansou na resolução de Eulália; conhecia a energia do seu caráter, ardente como o sol, e infalível como ele. A heroicidade do seu voto havia já quatro anos embalsamava-lhe a virgindade e nunca a mais insignificante falha sobreviera. Dai aumentar-se o culto silencioso do vigário, que só ultimamente começava a querer patenteá-lo à maioridade da sua amada. Era, pois, sincero, quando, de joelhos, exclamou

 

- Porque te amo.

 

Veio então recostar-se à janela, enxugando, com a ponta dos dedos, talvez as primeiras lágrimas que tinha chorado depois do dia em que fora sagrado sacerdote. O vento soprava com maior intensidade; era quase violento, dissolvendo as nuvens ou acumulando-as em castelos opalados na curva do ocaso. Já não havia escuridão, mas um leve esfumarado, através do qual via-se o profundo azul do céu nítido e estrelado, como a cauda de um pavão enorme.

 

A solidão esbatia-se na sua esmagadora integridade, cheia de evocações misteriosas e de temores sobrenaturais, e do meio dela levantava-se, negra, como o futuro, silenciosa como o além-túmulo, a massa agigantada do cruzeiro do cemitério, nu e desornado, com os seus paus-a-pique muito conchegados, como se fossem um quadro de esqueletos pulverulentos acostados e unidos para se aquecerem da frialdade do relento. A paróquia inteira parecia dormir. Só uma criança da vizinhança esgoelava um choro birrento, estrídulo, inconsolável, apesar de uma acalentação monótona, paciente como de um sonâmbulo, que se ouvia quando o berreiro descaía em soluços.

 

Jazeu aí por largo tempo; mas as corujas com os seus ululos tristes começaram a chamar-se para os amores nas trevas; os cavalos puseram-se a soprar os seus bufos rumorosos, e batendo os chocalhos, enchiam o espaço de estridentes relinchos, enquanto os galos da vizinhança cantavam profiada e prolongadamente.

 

Paula estremeceu involuntariamente e, endireitando-se, aprumando-se em toda a sua estatura, olhou para o céu, já sem as pegadas da tormenta, e com a voz rude, repassada de perversidade satânica, resmungou, balanceando o corpo:

 

- Bom, não temos inverno, ai vêm a fome e as epidemias; isto vai ficar um inferno. Mas também quanto orgulho vai ser quebrado - acrescentou sorrindo -, quanta baixeza surgir!

 

Fechou pacificamente as duas janelas, e tomando da vela, que já se aproximava do fim, entrou no seu quarto, que abria sobre a sala. Já em trajes de dormir, sentou-se à beira da sua rede, de grandes franjas azuladas, pouco suspensa do chão, e persignou-se olhando de face um Cristo esgrouviado, sarapintado das moscas, e que parecia não querer encará-lo, tão pendida tinha a cabeça.

 

Alguns minutos depois o vigário resfolegava a respiração compassada de quem dorme um sono tranqüilo. A vela ardendo dentro do bocal, ora abatia a chama, ora exalava clarões esverdeados como a luzerna de um vaga-lume.

 

 

IV

 

A placidez do sono desdobrou-se-lhe por sobre os atos do dia.

 

De manhã o vigário levou a aconselhar fé e resignação aos seus vizinhos, que se mostravam aterrorados vendo o estio restituído à sua ominosa soberania, constringindo a vegetação com a força dos arrochos da jibóia. Mostravam-lhe o céu límpido, o sol triunfante, e ao longe as maçarandubas desfolhadas, com os galhos pendentes como os braços de um cadáver levantado pela cintura.

 

Não era mais possível a esperança; urgia tomar destino.

 

- Até junho, objetava ele, não há de que desesperar; não virão grandes chuvas, mas sempre darão para plantar vazantes de feijão e milho; já não se morrerá de fome. Haverá penúria, é verdade, porém maior castigo merecem os nossos pecados.

 

Foi dizer a missa muito sereno, e, cheio de bom humor, ouviu na sacristia as lamentações do velho sacristão, queixando-se de que os pobres já não podiam viver. Ainda ontem comprara rapaduras à pataca; hoje lhe pediram um cruzado, e era se ele quisesse, apesar de serem salobras. Comia-se já a farinha com parcimônia do mariscar dos pintos, e a carne estava pela hora da morte. Ainda o que lhe valia era algum dinheiro que o sr. vigário dava à sua afilhada; mas, se a seca não parasse, já estava prevendo que morreriam de fome.

 

O vigário consolava-o com bonomia: - A paciência é a maior das virtudes. De hora em hora Deus melhora.

 

Já a sair pela porta lateral, Paula teve um movimento brusco, e gritou para o sacristão:

 

- Ó Marciano! Pode começar a desarmar os andores e pôr os santos nos seus nichos.

 

- Então o sr. vigário espera...

 

- Sim, sim, havemos de ter inverno.

 

E saiu com o seu passo demorado e firme, dando a mão a beijar aos pequenos que iam para a escola, e, descobrindo-se ao vê-lo, corriam ao seu encontro como para um pai.

 

Na porta da venda do Antão Ramos, um sovina que se valia da sua autoridade de inspetor para cobrar dívidas, parou ao ver a rusguenta autoridade com um chapéu de palha à cabeça, mangas arregaçadas, vendendo aguardente a dois cabras.

 

- Bom dia, sr. inspetor - disse sorrindo. - Vai cobrar agora os fiados, hein? Felizardo! A vida é para você.

 

- Muito bom dia, sr. vigário... Mas eu não espero; o inverno não parece ainda vir desta.

 

- É por isto mesmo; a seca é o seu inverno; com ela chove-lhe mais em casa.

 

- Qual! Outros serão os felizes.

 

- Vá, vá chorando; lá diz o ditado: quem não chora...

 

- ... não mama - concluiu o inspetor Antão a rir e a endireitar as ceroulas, levantando-se em bicos de pés sobre os tamancos e pendendo-se ao umbral, para onde viera. - Antes falasse pela boca de um anjo, sr. vigário.

 

- Para que houvesse seca, hein?

 

- Não, senhor; para que me chovesse em casa.

 

- Tire o telhado, sr. cauíla.

 

Antão e os fregueses riram muito desse pedacinho do sr. vigário: muito boa saída.

 

- É assim às vezes - ponderou Antão. - Mas quando anda casmurro, não dá nem palavra.

 

- Mas é homem de repentiva - ponderou um freguês.

 

- Dizendo um sermão - acrescentou o inspetor - é de fazer tremer e chorar um homem. Danado! A gente nem se lembra do que rosnam dele com a filha mais velha do sacristão; chora mesmo para ai.

 

- Isto, quanto mais desabusados, mais temíveis.

 

O vigário, sempre no seu passo demorado e firme, continuou a andar pela mesma face da praça, até que parou a uma das janelas da casa de Queiroz.

 

Uma toada alegre escoava-se: era um uníssono de vozes infantis, cristalinas e ternas, solfejo do A, B, C, essa escala singela das grandes composições do gênio. Os meninos, sentados em longos bancos de pau, já muito gastos pelo tempo, faziam movimentos ocultos de desatenção, moviam os lábios, por detrás do livro aberto, em conversas rápidas, que terminavam às vezes por visíveis ameaças, tentavam beliscar-se, careteavam, mas a toada impulsiva dissolvia tudo isso, deixando apenas substituir o eco do alfabeto, da tabuada e das leituras do Catecismo e do Expositor, como um hino grandioso ao trabalho.

 

Ao fundo da sala, numa alta cadeira de braços, junto a uma grande mesa, em torno da qual assentavam-se alguns meninos escrevendo e fazendo contas em lousas negras, Francisco de Queiroz, dobrado o corpo numa curva ampla, proferia censuras aqui e gabos ali, maquinalmente, com o hábito de 22 anos de ensino. Os seus olhos negros, metidos numas órbitas muito fundas, que lhe tornavam as pomas ainda mais salientes, jorravam luz e confusão no espírito das crianças. A voz alteava-se-lhe com a severidade claustral dos velhos mestres, e sua mão desenvolvida, de quarentão reforçado, empunhava uma régua com movimentos nervosos de impaciência.

 

- Deus esteja nesta casa - exclamou o vigário. E como os colegiais se pusessem em pé: - Deus os abençoe; continuem a trabalhar.

 

- Entra, Paula, já vou lá ter - disse o professor.

 

O vigário atravessou a sala e entrou na de jantar, que ficava próxima.

 

As filhas de Queiroz trabalhavam também: as duas menores lendo muito atentas junto da mesa, Eulália e Chiquinha crivando em travesseirinhas vermelhas. Só a pequenita, a caçula, brincava sentada numa banca a ninar uma boneca, de vez em quando dirigindo a sua velha tia, que fazia renda ao pé de si, observações sobre a filhinha manhosa. Um desalinho asseado revestia da respeitabilidade do lar as pessoas e os objetos.

 

Paula cumprimentou-as com o melhor dos seus sorrisos, a receber beijos na mão grande e carnuda.

 

- Pensei que estava mal conosco - disse Eulália. - Não quis vir tomar café ontem.

 

- Ah! Sim, ontem estive doente; os miolos estalavam-me; não sabia o que dizia; fiquei quase doido.

 

- Pareceu-me que o sr. vigário padecia desde a tarde, antes da procissão.

 

- Antes, muito antes; adoeci lá no Engenho; aquele espetáculo. .

 

- Pois nós todos gostamos e muito - interveio Chiquinha.

 

- É verdade, faz medo, mas é bonito - acrescentou Eulália. - Hei de ir sempre ver.

 

- Quem vai a senhora ver? - disse Paula fingindo-se distraído.

 

- O Feiticeiro.

 

- Não vale a pena o trabalho: feiticeiros encontra-os a cada canto.

 

O vigário refreava-se, mas nem por isso a inflexão da sua voz passou despercebida para Eulália, que levantou os olhos das suas carreiras de crivo, e fitou-o penetrantemente. A dissimulação, porém, fechou de todo o pensamento do vigário no incompreensível, e Eulália, sorrindo maliciosamente, calou-se.

 

A conversação travou-se então entre o vigário e d. Ana, a respeito da seca, e Paula profetizou como irredutível o tremendo flagelo.

 

- Vai ser um ano de penúria e de fome. Não há que ver, julgue por hoje: são dez horas, e o sol já queima como brasa; olhe para tudo e note: as árvores têm o ar de quem se despede.

 

- Mas Deus é piedoso, sr. vigário - disse a boa da velha com a sua voz de apática; - ele há de ouvir os nossos rogos.

 

- Ouvir?! Para isto era preciso que não o fizessem surdo com os pecados; mas não é assim infelizmente. Nem junto ao andor da Virgem Mãe de Deus, d. Ana, nem aí há respeito pela religião!...

 

- Ah! Sr. vigário, é um doido, um endemoninhado.

 

- Não é dos doidos que falo, é dos que têm juízo.

 

Eulália corou como se fosse ré, ao passo que suas irmãs e a velha d. Ana encararam o vigário e olharam-se mutuamente, enquanto Paula regozijava-se com o efeito da sua perversidade. Tinha ferido fundo, a julgar pelo espanto geral e a mudança rápida de Eulália. E então aquela alma ulcerada pelo despeito, com a autoridade da hipocrisia respeitada, sedenta de vingança, gulosa de crueldade, repetiu solenemente:

 

- É o que lhes digo, junto do andor da Mãe de Deus falta-se com o respeito à religião!

 

Eulália continuou com a cabeça baixa; o moreno corado das suas faces tomou um colorido ictérico, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas, a sua respiração começou a fazer-se a longos haustos, e a força de dissimular o que sofria quase a obrigou a dar um grito. Sentia ódio e desprezo pelo vigário, e, encarando-o sorrateiramente, mostrava que a impelia o desejo de esbofeteá-lo, calcá-lo aos pés como um inseto asqueroso. Aquelas palavras, que lhe eram dirigidas, tinham a hediondez da calúnia, a frieza da infâmia, a perversidade calculada da cobra, que se enrodilha nas moitas da estrada para morder o caminheiro. Queria visivelmente ofendê-la, torturá-la, infamá-la. Se não fosse esta a verdade, por que lhe regateara um lugar sob o andor de Nossa Senhora, e, só no dia em que de mau humor lho dera, lembrou-se de que faltava-se com o respeito à religião?!

 

- E hão de crer que é uma das pessoas mais queridas do lugar? - ponderou o sacerdote. - Muito pode o pecado!

 

O silêncio dos ouvintes era profundo; com a cabeça inclinada sobre os seus trabalhos parecia procurarem adivinhar quem seria esse ente perverso. Por fim a velha d. Ana, com a sua voz muito cantada, abanando a cabeça, disse:

 

- Não pode ser, sr. vigário; foi por força engano de quem contou-lhe; na procissão de ontem, foi engano por força.

 

- Não...  eu vi - respondeu Paula tranqüilamente - com estes que a terra há de comer.

 

E arregalou os olhos abaixando as pálpebras inferiores com a ponta dos dedos.

 

Um sorriso vitorioso pairou-lhe nos lábios. O despeito da véspera esmagou-lhe o coração, sugou-lhe o que lhe restava de puro; abismou-o em torturas cruas, inquisitoriais. Todas as fúrias do ciúme tinham-se levantado de improviso diante de si, e umas apunhalavam-no enquanto outras riam; umas lhe mostravam uma câmara nupcial, com um par feliz, tímido da própria liberdade, com medo do seu direito suave subterfúgio para prolongar a ventura; outras para vilipendiá-lo, para zombar dos ímpetos do seu amor ultrajado, levantavam um crucifixo entre os seus e os olhos do noivo, e o Cristo assumia então um tamanho disforme, enchia com o seu peito o resto do aposento, como se lhe quisesse dizer que, para chegar até os noivos, ele, sacerdote, seu ministro, havia primeiro de atirá-lo em terra sacrilegamente. Então como que se sentia morrer, enquanto que nos braços do seu rival Eulália deixava-se afagar sem resistência. Vingava agora a sua noite de angústias; estavam agora trocados os quadros dos seus pesadelos; ele podia rir, olhar em face, ao passo que ela baixava os olhos como culpada, e não ousava rir, porque sabia que o seu riso acabaria em lágrimas.

 

Deu-se por satisfeito; o seu quarto de hora matinal, consagrado ao amigo, estava aproveitado; podia partir.

 

- Bem, bem - disse ele -, não posso demorar-me; vou almoçar; até logo!

 

Passando junto à mesa, parou um pouco e, inclinando-se sobre as pequenas que escreviam:

 

- Sim, senhoras - resmungou -, estão com umas letras muito bonitas, parecidas com as donas.

 

- Então o que é isto? Vocês conversam calados ? - disse o professor assomando à porta da sala. - Parece que estão fazendo quarto a defunto

 

- Ficaram admiradas de um sacrilégio que lhes contei.

 

- Ora você, padre-mestre, não há de perder este sestro de me pregar sermões em casa, homem? Quer converter isto em ninho de beatas?! Até Eulália já parece inclinada!

 

- Quais beatas, se elas são suas filhas ?

 

- Gratias agamus Domino Deo nostro - respondeu Queiroz, curvando-se e batendo no peito com grande força; - dignus et justus est.

 

Riram-se todos; o próprio vigário sorriu meneando a cabeça. Eulália, porém, não mudou de atitude, e, ela que era a mais expansiva, conservou-se calada e indiferente.

 

- Estás sentindo alguma coisa, minha filha? - perguntou Queiroz, suspendendo-lhe a cabeça por uma pressão carinhosa sobre a testa.

 

- Eu? - respondeu ela, fitando-o tristemente. E sufocou-se numa explosão de soluços.

 

- Vê? - observou Queiroz ao vigário. - O seu sermão fez-lhe mal.

 

- Ora, uma história à-toa; há de ser nervos.

 

E saiu com o seu passo firme e pausado.

 

 

V

 

As consolações do sr. vigário, na sua manhã de inexplicável bom humor, dissiparam-se como líquido volátil. A desolação veio sentar-se silenciosa no meio da paróquia, enquanto os últimos dias de março rolavam como avalanchas de luz, deixando após si um rastro de desilusões e pânico.

 

A população nem mais ousou implorar; a última esperança terminou o seu sonho de prosperidade no vestíbulo da miséria, e o céu pareceu impenetrável como um edifício bloqueado pelo incêndio. Para que levantar preces, que não voltariam à terra convertidas na piedade divina, como os vapores da terra em chuvas benfazejas? Os espíritos afizeram-se ao horror do seu destino, semelhantes às revoadas dos corvos, os hóspedes negros da podridão, ao mau cheiro da carniça. A dor atrofiou os corações, e a sensibilidade enlerdou-os com a anestesia nojosa dos cães, que morrinhavam a digestão de carnes podres, em sono pesado na areia morna do terreiro.

 

- É tempo de desarmar a rede e arrumar o mocó - já se dizia baixinho. - Não se pode mais esperar.

 

- Amanhã, infalivelmente amanhã! - exclamavam, sempre que ouviam o soturno clamor do vento da tarde, lúgubre como se fosse o uivo longínquo da fome.

 

Mas a terra do berço não perdia o seu encanto; despida das galas da fortuna, adquiria o prestígio da desgraça, e os pobres paroquianos deixavam-se ficar no meio da tristeza dantesca, esmagadora, que os rodeava, como os braços de mãe moribunda. A saudade descobria sempre um pretexto: junho ainda vinha longe; os cajueiros ainda tinham uns farrapos de copa com que farfalhassem ao vento agoureiro; à sombra do carnaubal ainda se respigavam frutos.

 

Tais eram as condições da paróquia em meados de abril, quando foi acabrunhada por mais um presságio da próxima calamidade, objeto dos prós e contras de um grupo que espairecia conversando à porta de Antão Ramos.

 

- A prova da seca é aqui o sr. inspetor com o preço dos seus gêneros.

 

- É - desculpava-se Antão -, vocês se esquecem que daqui ao Aracati é um queijo, e paga-se bom dinheiro para ter quem ponha cá os gêneros. Deus os livre dos freteiros!

 

- Por isso é que Vossa Mercê carrega nos pobres; eles são a sua tropa.

 

- Negócio é negócio, mas eu não sou o que vocês dizem de mim; uma bolacha para os pobres, com a graça de Deus, sempre hei de ter.

 

- Que os anjos digam amém, porque, até hoje, ninguém lhe viu os cunhos à moeda.

 

- Ó sr. Antão, diga-me cá, não está à espera de um cargueiro?

 

- Olaré, e de bem boa soma.

 

- Veja se aquilo que ali vem não faz parte da carga.

 

Voltaram-se todos e olharam para a banda ocidental da praça. Dois homens caminhavam aceleradamente pelo meio do largo e, de um grosso pau atravessado sobre os seus ombros robustos, bojava uma rede de algodão enegrecida pela poeira.

 

- Muito boa graça! - exclamou amuado todo o grupo. -É algum doente ou defunto: é muito boa graça!

 

Puseram-se então a observar para ver se conheciam os homens que transportavam a rede; e como eles tomassem a direção da igreja, Antão e os seus conversadores seguiram também para lá. À porta do templo os dois homens depuseram no chão a sua pesada carga e, arfando de cansaço, limpando com o indicador a testa, de onde borbulhava suor a lhes escorrer pelas espessas barbas negras, cortejaram os curiosos. O inspetor e os seus companheiros olharam-se assombrados e apiedados corresponderam. Os homens, empoeirados, maltrapilhos, emagrecidos, semimortos de fadiga, pareceram-lhes dois destroços do medonho desmoronamento do sertão.

 

- Vossas Mercês me inculcam onde mora o sr. vigário? -perguntou um dos recém-chegados.

 

- E acolá - ensinou-lhes Antão Ramos, assinalando com o dedo a casa do Paula. - O mais certo, porém, é que ele esteja ali.

 

E mostrou o casebre em que residia o sacristão.

 

- E o lugar mais certo - justificaram os outros com malignidade; - é a toca.

 

- Doença ou morte? - perguntou Antão Ramos apontando para a rede.

 

- E morte, sim senhor - respondeu o recém-chegado -, e nós queríamos ver se o sr. vigário encomendava e mandava fazer o enterro.

 

- Pois é ir acolá, enquanto é dia - ponderou o inspetor; - é ir num pé.

 

O sertanejo partiu.

 

Começaram logo as perguntas habituais na província, onde a fraternidade é um sentimento profundo, e o outro sertanejo, que ficou de guarda ao cadáver, desfiou ingenuamente as respostas:

 

Eram de Inhamuns, mesmo do interior do sertão; tinham abandonado um pedacinho de terra que possuíam, porque Inhamuns era hoje o mesmo que uma fornalha. A gente, de alpargatas, sentia tanto calor nos pés como se estivesse descalço sobre brasas. Ia para 30 dias que o defunto, a quem Deus falasse na alma, tinha chegado a Inhamuns. Era de muito longe; morava lá para Maria Pereira, por esses bibocões do mundo, e, muito sabido no entendimento do tempo, não quis mais esperar para ver em que dava o verão. O velho meteu a cara e veio de cabeça baixa, navegando por esses estradões fora que até, Virgem! era um desconforme. Ele vinha a ser sogro daquele que foi chamar o vigário, que era irmão do narrador. Contara o velho que lá em Maria Pereira estava tudo que era uma desgraça, e por isso tinha vindo de mudança. Pelos seus cálculos o Ceará estava perdido. Há duas pedras na serra Grande, a Itaquatiara e a que ele chamava Rei do Fogo. Quando a Itaquatiara fala com a sua voz de pedra, há inverno; mas quando por alta noite o Rei do Fogo acende o seu penacho de luz muito azul e cor de ouro, é um ano de seca. O velho soube que por três vezes brilhou a chama do facho que ninguém acende, e fugiu aos três anos de seca, de epidemia e de morte. Inhamuns, porém, estava já muito crestado da seca, e o pouco que o narrador e seu irmão tinham dava mal para sustentar as suas famílias. Extinguiu-se logo depois da chegada do velho com a sua gente, e então para fugir à fome resolveram partir. O velho coitado, não pôde resistir às longas jornadas, e nesse dia pela madrugada tinha morrido, deixando uma ninhada de dez filhos.

 

- Mas já está tudo tão mau por lá, que é preciso fugir? - perguntou Antão Ramos.

 

- Já para um ano - continuou o narrador - não pousam em bando sobre as ramagens da oiticica as nuvens de papagaios e periquitos, e há mais de seis meses come-se a farinha ralada do miolo da carnaúba. A terra está rachada de secura, e da gadaria não resta mais do que a ossada branca. Nós só deixamos a nossa terra, quando não tínhamos nem mais uma cabeça de bezerro; o último boi que apuramos é que nos tem servido para comer na viagem. Está tudo num desespero, e vem aí para baixo um povaréu de meter medo.

 

- Que desgraça! Santo Deus, que desgraça! - repetiram os ouvintes.

 

O narrador ia prosseguir para satisfazer o crescido número de curiosos que o ouviam comiserados, porque a sorte de Inhamuns era a da sua paróquia, e, talvez, a de toda a província. Mas o vigário acabava de chegar, e força era interromper-se a narração.

 

Os recém-chegados colocaram de novo a rede sobre os ombros e, precedidos pelo vigário, seguidos pelos curiosos, entraram na igreja, cujas portas foram no momento abertas pelo sacristão, com o seu mau humor habitual.

 

Dentro em pouco Paula voltou, e parando junto ao cadáver, em cujo rosto a convulsão da morte estampara o último soluço, principiou a encomendação com os gestos maquinais do homem de ofício, que tem pressa e quer aviar-se. Manejando o hissope com rudeza de pintor a sacudir a brocha, engrolou, com o adjutório do velho sacristão, a mesta solenidade, e rapidamente pronunciou, já de costas para o cadáver, o requiescat in pace.

 

- Que pitada deu-me o bicho! - disse voltando-se para o sacristão. - E que cara tem ele!

 

Os parentes do morto choravam sentidamente, limpando os olhos vermelhos nas mangas sórdidas da camisa. Paula olhou-os com a sua frieza marmórea, e com a mais acentuada indiferença:

 

- Venham daí - disse-lhes; - falta ainda o assentamento e... pagar a cova - acrescentou baixinho, dirigindo-se ao sacristão.

 

Os homens acompanharam-no até a sacristia, onde sobre uma velha mesa um Cristo amarelecia o corpo e empoeirava as chagas ao desabrigo.

 

- Sabem que têm de pagar a cova? - perguntou Paula, recostando-se no espaldar da sua cadeira.

 

- Sim, senhor; mas nós vamos de viagem, e só temos dez tostões para as despesas.

 

- Isto é pouco - refletiu o vigário, olhando para o tinteiro e batendo com a caneta na beirada da mesa -, com dez tostões não se enterra um homem em sagrado.

 

- Mas é o que nós temos.

 

- Pois, meus ricos, o que querem que lhes faça? Vocês podiam ter enterrado o homem no caminho: punham-lhe uma cruz em cima, e livravam-me de incômodos.

 

Os dois sertanejos fundiram-se em lágrimas, e um deles, com uma acentuação triste, respondeu:

 

- É que a gente, com ser pobre, pensa que deve ser enterrado como cristão.

 

- É, mas precisa pagar a cova. Eu já dispenso a encomendação.

 

Os infelizes, com os olhos baixos e fazendo girar nas mãos os seus chapeirões de couro, calaram-se, abafando os soluços que lhes rompiam em bando. Paula, porém, não mudou de atitude; tamanha dor não teve força para impressioná-lo.

 

- Em que ficamos? - perguntou depois de algum tempo de espera. - Está quase a anoitecer, e não posso estar aqui até amanhã.

 

O genro do morto meteu a mão precipitadamente dentro de um bornal, que trazia a tiracolo. Quando a tirou, trouxe suspenso um pequeno cordão de ouro, de cuja extremidade pendia uma cruz.

 

- Isto chega para pagar a cova, sr. vigário? - perguntou timidamente. E acrescentou. -  o mais que eu tenho.

 

O vigário tomou desdenhosamente o objeto, e depois de examiná-lo por miúdo, escovando na lila da sua batina a pequena cruz:

 

- Chega! - disse molhando a pena. - Ficará para Nossa Senhora da Piedade, e sairá da minha algibeira ~ dinheiro da cova. Diga o nome.

 

Pôs-se a lançar o assentamento, e depois, dirigindo-se ao sacristão, fez-lhe sinal para acompanhar os dois fregueses.

 

- Avie-se, Marciano; eu fico esperando-o aqui.

 

- É num pulo - resmungou o velho sacristão.

 

Paula foi debruçar-se à janela, cantarolando e enrolando um cigarro descansadamente.

 

As últimas claridades do dia confundiam-se já com os primeiros brilhos do luar. Pairava no ambiente uma tristeza sobrenatural, que se podia chamar a melancolia de Deus. O carnaubal distante, já invadido pela noite, vergando com uma branda flexão aos assopros do vento vespertino, espalhava uns frêmitos convulsivos e tristes, como se ele fosse a boca por onde se espalhassem os soluços da esterilidade. Os bois magros e trôpegos desciam para o leito do Jaguaribe à procura de água, semelhantes a um bando de esqueletos recolhendo-se a vala mortuária, e junto das poças, com as ventas muito dilatadas, bebendo a longos haustos e ruminando a não satisfeita gula do pasto, mugiam longamente a sua fome, entristecendo ainda mais a hora melancólica da tarde.

 

O vigário, porém, indiferente ao que lhe ia em torno, fumava a longas baforadas, imerso numa distração profunda. Tinha os olhos pregados na casa de Queiroz, onde Eulália e suas irmãs apascentavam também a sua curiosidade no grupo formado à porta do templo. Esse olhar agudo, cheio de lubricidade de sátiro, como que rompia todos os arcanos do pudor de Eulália, e mergulhava o observador no delírio de uma festa orgíaca. Balançando-se nas pernas encurvadas e bambas, acendendo cigarros uns após outros, o seu semblante reproduzia o contentamento do tigre aspirando o cruor quente da vítima. Sentia-se bem naquela preguiça que o deixava na posse inteira do seu desejo, sem que o mais leve temor o perturbasse e o desviasse da sua contemplação. Vendo diversas pessoas correrem para o lado da igreja, sorriu agradecido: era um novo fomento à curiosidade da moça, e mais algum tempo de gozo que lhe era dado ao coração de condenado. A noite, porém, interpôs-se, e o encanto rompeu-se bruscamente.

 

- Está pronto, sr. vigário; lá ficou o homem - disse Marciano.

 

- Bem, vamo-nos embora; leve aquele cordão para a sua Mundica e diga-lhe que me guarde o café logo mais.

 

- Muito obrigado, muito obrigado - repetiu o sacristão, que estava acendendo uma vela -, Deus é quem o há de pagar.

 

Na parede caiada, a sombra do velho esgroviado reproduziu-lhe com um desenvolvimento gigantesco a zumbaia da desonra.

 

E saíram ambos. Marciano na frente, deixando retinir uma cambada de chaves, alumiava e fechava com estrépito as portas e janelas da sacristia. Paula seguia-o a alguma distância com o seu chapéu redondo na mão. As pisadas rijas do vigário e o chap-chap demorado, raspado pelos chinelos do sacristão no soalho tosco, reboavam.

 

Quando a chama da vela abriu-se, semelhante a uma pupila enorme, na escuridão da nave, aumentou-se um burburinho que vinha da porta principal, e no corpo da igreja ressoaram passadas em tropel.

 

- O que teremos mais? - perguntou Paula. - Quer ver que nos trazem outro demônio a encomendar?

 

- Macacos me mordam, se eu duvido - respondeu o sacristão. - Os homens disseram-me que a sua gente vinha pousar na freguesia, e como estão todos a morrer de fome..

 

- Entendem que eu hei de estar aqui às ordens para encomendá-los um por um! Não se façam bestas.

 

A claridade esbateu-se em cheio sobre parte dos que entravam, enquanto os outros formavam círculo em torno do vigário e do velho Marciano. Destacava-se da massa um grupo de vinte e poucas pessoas, entre as quais dois sertanejos já conhecidos do vigário. Dir-se-ia um volvo da miséria trazida ao templo acintosamente, e ao vê-lo misturava-se a comiseração com o nojo. Nos rostos escaveirados, a máscara da fome estagnava-lhes os olhares numa quietação comatosa, e dava-lhes às fisionomias a acentuação do idiotismo. O desleixo enxovalhava a mocidade; envilecia a velhice e deformava a meninice. Uma velhinha de pele pergaminhada, já não podendo suster-se nas pernas fatigadas, sentou-se covando um colo e mostrando os pés inchados, com profundos vincos das correias das alpargatas. Pestanejando silenciosa, com os braços descaídos, lembrava-se a gente das parcas sombrias que o cinzel assenta sobre os túmulos. Duas mulheres, que traziam nos braços os filhos cobertos com uns farrapos, esforçavam-se debalde por acalentá-los: as crianças, ao contato daqueles seios muxibentos, vagiam com o ruído fraco e triste dos sapos magnetizados. As moças, meio corpo em camisa, deixando a descoberto os colos queimados pelas soalheiras e empastados por escuras mascarras de suor e poeira, pareciam as personificações do desânimo. Os seus olhos cearenses, olhos cheios de erupções de altivez, ou de humildades de escrava, conservavam-se baixos, como se quisessem defender-lhes os seios virgens, que tufavam no morim encardido das camisas puídas. As crianças completavam o quadro: vestidas com umas camisolas que mal lhes cobriam os ventres hidrópicos, cabelos emaranhados e piolhosos, olhos ictéricos, o tórax deprimido, braços e pernas atrofiados, pés inchados até os artelhos, assemelhavam-se a rãs mortas. Perfiladas e seguras aos vestidos das mulheres, chupando gulosamente os dedos, narravam no seu semblante bisonho uma longa história de sofrimento.

 

- Sr. vigário - disse Antão Ramos, que aproveitava todo ensejo de mostrar-se autoridade -, este povaréu pede uma pousada. É uma pobre gente de Inhamuns, lá para os confins daquele sertão.

 

- É uma obra de caridade dar pousada aos peregrinos - disse o vigário.

 

- Mas são 23 pessoas; custam a arranchar-se. Nós nos lembramos de Vossa Mercê, por ser na paróquia a pessoa que tem menor família. Eles pedem só para dormir.

 

- Lá está a casa - respondeu Paula, dissimulando a contrariedade com um sorriso -, mas não será só por uma noite, porque as crianças e os grandes mesmo não resistem a mais jornadas sem descansar, pelo menos, quatro dias.

 

Muitas vozes concordaram; estavam dizendo justamente isto. Se os retirantes não parassem para descansar, talvez não deitassem mais duas jornadas fora, sem ficar algum pelo caminho.

 

- O melhor, portanto - continuou Paula serenamente -, é fazê-los acomodarem-se no Engenho: ficarão à vontade, e o tempo que quiserem.

 

- Mas hoje não podem ir para lá - interrompeu Antão Ramos. - Aquilo está um monturo.

 

- Na verdade, aquilo está um monturão - repetiram os circunstantes -, até hão de morar cobras nos entulhos. Demais, o Feiticeiro é má vizinhança.

 

- A minha casa lá está, já o disse - acentuou o vigário.

 

- Somente hão de dormir sobre os ladrilhos, porque eu só disponho de dois armadores para redes.

 

- Três podem ser armadas na meia-água da minha casa, que já está às ordens - observou Antão Ramos.

 

- Mais de três podem ficar na minha bolandeira - disse Rogério Monte, que acabava de chegar.

 

- Graças  - exclamou o vendeiro. - Está tudo arranjado...

 

E mais baixo:

 

- Fez-me não sei o que por dentro a cara desses cabras: isto é boa gente por força.

 

O sertanejo, que à tarde entregara ao vigário o cordão de ouro, teve um movimento brusco de contentamento, e, para testemunhar a sua gratidão, que era partilhada pela família inteira, inclinou-se e beijou a mão do vigário.

 

- Que lábia - resmungou o sacristão. - É que acha tolos.

 

O tom escarninho do velho impressionou profundamente os que o ouviram. Sabiam que Marciano era a crônica viva daquelas paragens, embora não tivesse arredado pé da paróquia havia mais de 30 anos. O pior é que dizia sempre a verdade, e que os seus olhos perspicazes como que viam, dentro de todos, os pensamentos os mais íntimos. Esta qualidade adquirira-lhe inimigos irreconciliáveis e antipatias invencíveis, no número das quais estava Antão Ramos.

 

O que é que está aí resmungando, velho Marciano? Lembre-se de que está com os pés na cova e tem filhas. Não e bom ser palmatória do mundo - disse o inspetor.

 

E, com mais severidade, acrescentou:

 

- Se você não escorropichasse galhetas, veria como não lhe sobrava o tempo para espiar a vida alheia.

 

Marciano caminhou direito para o sertanejo, e, pondo-lhe a mão na testa, exclamou, com um tom impertinente:

 

- Eis aqui por que eu falo; veja bem, sr. Antão, repare Vossa Mercê, antes de mostrar que tem quijila de mim.

 

A sua voz roufenha, incômoda, inclemente, alteou-se então, e, cortante como um punhal, fez ressoar esta tremenda injúria:

 

- É um ladrão que está aqui, uma corja de ladrões, uma ninhada de ladrões.

 

O efeito de tais palavras foi medonho; subitamente a piedade mudou-se em cólera, e os mesmos que pediam agasalho para os caminheiros gritavam agora que os pusessem fora e os acossassem até longe, como se faz às onças que não podem ser mortas.

 

O sertanejo, humilhado, cambaleando, levou maquinalmente a mão à fronte, como se quisesse apagar daí o sinal infamatório, mas retirou-a logo com ligeireza de quem se queimasse num ferro em brasa. O pânico e o desespero injetaram-lhe os olhos de sangue e deixaram-no boquiaberto.

 

- É tarde já para esconder - chasqueou o sacristão. - Todos viram. É uma cruz, por sinal que é feita por mão de mestre e por uma ponta de faca bem afiada.

 

- Eis aí a pobre gente que, sem mais nem menos, queriam meter-me em casa - disse o vigário sorrindo. - Mais cuidado para outra vez, mestre Antão, quando oferecer a casa alheia.

 

O inspetor, olhando de revés para o sertanejo, apenas pôde responder humildemente:

 

- Tem Vossa Mercê toda a razão, sr. vigário, enganei-me.

 

- Eu juro por Nosso Senhor Jesus Cristo - soluçou o desventurado, a quem visavam as acusações. - Não sou um ladrão.

 

E, caindo aos pés do impassível Paula, ajuntou:

 

- Deus, que nos está vendo, fulmine-me com um raio se eu minto...

 

A impaciência dos espectadores interrompeu-o: não queriam ouvi-lo, estavam fartos de lamentações iguais; que se pusesse fora com todos os seus e bem longe do povoado.

 

Em vão as mulheres sufocavam-se em soluços, e o Cristo, muito branco e triste, abria no lusco-fusco do templo o seu abraço de perdão: a palavra de Marciano tinha empedernido todos os corações.

 

Todos os episódios do quadro comovente daquela família fugitiva desapareceram para deixar lugar apenas à cruz infamatória, que se lhe desdobrava agora por toda a altura do porte e pela extensão dos seus braços abertos.

 

- Não acha que é hora de desatravancar a igreja, sr. vigário? E já noite fechada - ponderou o velho impiedoso.

 

Paula meneou afirmativamente a cabeça e tentou seguir; mas o sertanejo, caindo de joelhos, abraçando-se-lhe às pernas e insistindo no juramento, constrangeu-o a parar. Quando viu que eram vãos os seus rogos, apelou para as crianças: não tinham culpa da sua desgraça; por ele nem pediria, mas as pobrezinhas tinham fome, precisavam descansar, e agora era impossível caminharem mais.

 

- As crianças - concluiu ele - não roubam.

 

O velho sacristão, sorrindo escarninhamente, aproximou-se de um dos meninos, e, segurando-lhe o queixo, resmoneou:

 

- Estezinho, pelos olhos, já devia ter também a sua cruz; já pode furtar galinhas.

 

O sertanejo levantou-se com a elasticidade de uma espiral de aço que deixa de ser comprimida, e, cego de cólera, mudada em delírio a resignação, precipitou-se sobre o provocador brutal. Braços possantes, porém, subjugaram-no, enquanto o seu irmão defendia a família das selvagens ameaças.

 

- Fora, assassino ! Fora, ladrão - gritavam impelindo-o brutalmente.

 

O desgraçado cedeu ao seu destino de precito. Desde que se lhe estampou na fronte aquela cruz aviltante, a sua sorte era amargar afrontas. Todas as portas negavam-lhe agasalho, todos os corações, piedade. Nem as suas lágrimas, nem as de todos os seus conseguiram apagar o estigma, que lhe circunscreveu todo o horizonte da vida. Em toda a parte ensinavam-se até às crianças a chamarem-no - ladrão!

 

Saiu, pois, trôpego e humilhado, seguido pela vergonha dos companheiros dos seus padecimentos, da impiedade dos paroquianos e da indiferença do ministro da religião, do perdão e do arrependimento. O céu desnublado vestia-se de um luar deslumbrante; uma viração benfazeja refrigerava o ambiente cálido ainda das irradiações do sol; uns cajueiros esgalhados agitavam os ramos seminus como fazendo um sinal de convite.

 

- Vamos para acolá - disse o sertanejo -, talvez não nos ponham fora.

 

- Não - exclamou Rogério Monte, batendo no ombro do precito -, vamos para ali.

 

E apontou a sua casa, que alvejava em frente, modesta como a bondade.

 

Duas vozes feminis coroaram a piedade do velho Monte, que se viu colhido entre os seus braços.

 

- Muito bem, faz muito bem!   disseram-lhe Irena e Eulália. - Não há de morrer por aí à toa.

 

- É como eu entendo também a caridade - disse Queiroz, que, atraído pelo barulho, conduzira as duas moças até a igreja. - Faze o bem e não olhes a quem.

 

- Está um lindo luar - observou o vigário, que se aproximava do grupo venerando -, dava-se agora um ótimo passeio.

 

 

VI

 

O ato de Rogério para com os sertanejos não foi senão um lampejo da sua fidalguia moral. Vazado no velho molde dos primeiros povoadores e seus descendentes, o seu coração tinha a heroicidade sã da bondade e o desassombro calmo da justiça. Dois terços da paróquia agradeciam-lhe pão e agasalho, consolações na enfermidade, e a cova em que repousavam os entes queridos. Entre os dotes de Irena, a sua filha única, assinalava Monte as suas qualidades de enfermeira, a piedade com que pensava os doentes que vinham acolher-se muitas vezes ao abrigo desinteressado daqueles 16 anos.

 

Orgulhoso de ter calos nas suas mãos fidalgas, despreocupado da ambição de enriquecer, não podendo resistir ao impulso filantrópico e bom, que o levava a enxugar as lágrimas com que deparava em seu caminho, era chamado pródigo pelos seus amigos. Trabalhava de longa data, cerca de 40 anos, e, no entanto, a sua fortuna era apenas a sua fazenda de criação, fortuna precária que o sol do verão podia facilmente dissipar.

 

Os prejuízos do velho criador na quadra atual serviam de confirmação aos seus amigos, que, cheios de severidade, repetiam-lhe o rifão: quem dá o que tem a pedir vem.

 

- Mas encontra quem lhe dê também - respondia Rogério tranqüilamente.

 

Não era, porém, um ente privilegiado; o seu caráter tinha uma enorme falha. O respeito supersticioso pelos seus maiores fazia-o conservar, como relíquia sagrada, ódio encanecido, invencível, intransigente à família dos Feitosas. Sua alma evangélica negar-lhes-ia um gole de água. Quando, na intimidade, fitava o Engenho mal-assombrado, Rogério deixava perceber que a ponta do punhal do facínora da noite lendária atingia-lhe o coração através de dois séculos, e, como que para vingar a dor da esposa alucinada, historiava a longa série de vinganças, de sevos desforços tomados pelos seus antepassados, com a exaltação de quem aplaude.

 

- Não me falem em Feitosa - dizia ele. - Este nome faz-me ficar perverso.

 

E o seu rosto magro, os olhos castanhos desassombrados, os seus movimentos e gestos sempre afáveis mudavam de súbito para uma acentuação frenética, e, aprumando a sua estatura desenvolvida, acrescentava:

 

- Tenho sangue-frio suficiente para atravessar-lhes o coração a um por um e beber o sangue a essas feras.

 

A história da província explica, se não justifica, o ódio secular das duas famílias, hoje desmembradas e espalhadas pela vastidão do território cearense, balda de fortuna e de prestígio. Todo o século 18 reboou com o ruído das batalhas desses poderosos rivais, que, de par com os Lyras, foram os Deucaliões do sul do Ceará. Ramos do mesmo tronco genealógico, uma questão de terras separou-os para sempre, e ambos puseram-se em campo, em guerra fratricida, guerra em que as crueldades assombram, as devastações aterroram. As tribos selvagens, assoldadas por eles, foram os executores dos seus tremendos veredictos, e basta isto para perceber-se a monstruosidade das execuções. Ao anoitecer a quietação claustral das fazendas era perturbada pelo toque dos instrumentos guerreiros. Uma seta inflamada atirava o cartel fatal aos moradores, e as labaredas vermelhas de um incêndio, rompendo a custo novelos densos de fumo, apelavam para um, combate sem tréguas. E, no meio da confusão, do alvoroço e do terror, barulhando-se na treva ou arquejando ao calor insuportável do incêndio, os dois exércitos encontravam-se braço a braço, depois de se terem crivado por nuvens de flechas, por descargas de mosquetaria, e ferozes, sanguissedentos, disputavam linha a linha a vitória, cujo coroamento era o sacrifício de mulheres, de crianças e de anciãos. Debalde as justiças da Metrópole tentaram pôr fim a essas contendas ensangüentadas; as ciladas esperavam-nas, e a derrota das milícias era infalível diante dos poderosos sertanejos, senhores de barço e cutelo das povoações, influências invencíveis nos senados das câmaras, agasalho de perseguidos e facínoras. A rivalidade irreconciliável terminou por desmoronar essa grandeza colossal, intumescida de orgulho e de crimes, e no presente século as ruínas apenas sobrenadam ao vasto mar de sangue que teve por praias a extensão de um século.

 

Não obstante, os velhos descendentes não mudavam na adversidade a paixão dos tempos felizes.

 

O vigário Paula sintetizou um dia o caráter de Rogério numa das suas frases de fino espírito:

 

- É um bom homem, que há de ir parar no inferno a dar esmolas.

 

Queiroz, ouvindo-o proferir esta sentença contra o seu velho amigo, repeliu-a com azedume, admirado de que fosse Paula quem tal dissesse de um homem cujo valimento dera-lhe a paróquia.

 

- O que quer você, Queiroz? Eu digo o que sinto. A maior virtude do homem é o perdão, e Rogério não sabe perdoar.

 

- Ora, adeus, homem  - respondeu-lhe o professor.

 

Mas, impressionado pelas palavras do vigário, tentou remover do coração do amigo aquela mancha, que tinha herdado aos seus maiores. Vão propósito: o ódio de Monte estava dissolvido no seu próprio sangue.

 

Tal era o homem, que não se arreceou de agasalhar a "corja de ladrões" com aplauso de Irena e Eulália e do bondoso Queiroz.

 

Os paroquianos, comentando a cena da igreja, mostravam-se arrependidos. No fim de contas aquela gente era desgraçada, merecia compaixão, e tanto que soube corresponder à bondade de Rogério cavalheirosamente. Desde o dia seguinte foi instalar-se no Engenho, na vizinhança do Feiticeiro.

 

Abonançada a inquietação dos primeiros momentos, ninguém mais se lembrou de chamar temerário ao velho Rogério Monte, e a paróquia recaiu na sua vida monótona, dividida entre os comentários dos acontecimentos dos últimos dias e as antevisões dolorosas do seu destino, entre a devoção matinal e o sono letárgico logo ao cair da noite.

 

Paula continuou a dizer tranqüilamente as suas missas a meter-se três vezes à mesa durante o dia, a consolar o queixoso Marciano, a passar as tardes no casebre deste, a dar o seu quarto de hora de manhã à palestra e duas horas por noite à bisca na casa de Queiroz.

 

Estas duas horas e pouco eram o seu maior tormento e o seu maior prazer. Via Eulália, sempre confusa diante dele, como que amedrontada, a querer abrir-se em uma fraqueza, e a hesitar. O seu despeito folgava com essa tortura lenta, agravada pelo pudor de Eulália; mas o coração repercutia-lhe dolorosamente aquele sofrimento, que já ia alterando a fisionomia santa do seu ídolo, e então Paula custava a domar o desejo impetuoso de ajoelhar-se junto à moça, pedir-lhe que o perdoasse ou desprezasse, mas que vivesse feliz, despreocupada como outrora. Porém o hálito morno do beijo que lhe embalsamava a mão, sempre que entrava ou saía da casa do professor, alucinava-o de novo, e acordava-lhe, ruidosa como um temporal, a paixão que se estorcia na sombra como as torturas do Ugulino dantesco, venenosa como as serpentes, feroz como as panteras. Lábios que tinham hálito tão perfumoso, de uma tepidez tão suave, deviam dizer carícias angélicas, enquanto as mãos delicadas desfiassem afagos de fazer estremecer, como o rolar de uma gota de água pela medula. E que temeridade, que energia heróica não teria aquele amor, erupto de um coração que acordava com a violência da mocidade, depois de um sono cataléptico de quatro anos, consagrados somente à piedade filial? Não; não podia deixar que outrem fruísse os gozos que a fatalidade, aquela batina cruel, que ele sacudia com as raivas do tigre, lhe proibia. Não seria sua, mas também não seria de ninguém!

 

E todos os dias, preocupado com a sua vingança recalcada pelas conveniências, frio como as escamas das cobras, calculava como irritar os brios de Eulália, e afastar para sempre Augusto Feitosa, ainda que para consegui-lo fosse preciso vê-la morta.

 

Uma tarde, a conversar com ela, na horta, achou ocasião de apunhalar-lhe pela terceira vez o mísero coração.

 

- Por que foge sempre de mim - perguntou-lhe -, ou fica tão contrafeita quando me vê?

 

Eulália admirou-se de ouvi-lo com uma entoação meiga e tanta bondade no olhar. Estava agora acostumada a outras maneiras, ao desabrimento brutal ou descortesia hipócrita, e por isso o tom manso e cordial do padre fê-la estremecer; mas logo, lembrando-se das palavras de Irena, alvoroçou-se de contentamento. Tratava-a, de feito, como seu pai, e por isso não percebia que às vezes a magoava muito.

 

- Eu? - respondeu-lhe. - O sr. vigário é que parece continuar mal comigo.

 

- Não hei de tratá-la com intimidade, quando a vejo esquivar-se...

 

- É desconfiança.

 

- É verdade; eu sou meio caboclo, e desconfio muito, principalmente de quem calcula.

 

- De quem... ? - perguntou a moça, que não ouviu bem a última palavra.

 

- Digo que - repetiu o vigário, sorrindo e sacudindo o seu longo indicador - não gosto de quem faz cálculos para fazer-se estimada.

 

- Mas é comigo que fala? - interrogou Eulália, corando muito.

 

- O padre sou eu, minha sonsinha - respondeu com bonomia. - Eu sou quem pode confessar; você apenas deve cumprir as penitências, de que precisa bem.

 

- Eu calculo, para ser estimada? ! Por quem?

 

- Há de ser por mim; pois por quem há de ser mais?. Aviso-a com o segredo do confessionário.

 

E retirou-se, deixando-a humilhada, perplexa, diante da acusação que o seu recato de virgem considerava esmagadora.

 

- Eis aí por que me maltrata - disse ela; - eu vi logo a ponta da intriga: hei de desfazê-la.

 

E perdeu-se num mar de conjeturas, para atinar com a origem da ignóbil difamação.

 

Toda a paróquia com as suas pequenas murmurações, com os seus dichotes à meia voz, desfilou-lhe pelo pensamento, num préstito sombrio e lúgubre, a olhá-la vesgamente como para um ente abjeto. Deixava de ser a santa filha de Queiroz, alegre como o gazear dos pássaros, para ser a mulher sonsa a calcular com os seus encantos - diziam todos talvez a essa hora. Quando passasse, ouviria o cascalhar represo das risadas malignas, provocadas pela infame calúnia, que se insinuara sorrateiramente no ânimo da paróquia, e, sem que ela própria o sentisse, estampara-lhe na fronte um ferrete ignominioso, quem sabe se indelével!

 

A calúnia era infame demais para que a revelasse e pedisse a seu honrado pai uma desafronta. Fora amargurar-lhe a existência, ferir-lhe no âmago a vida, enxovalhar-lhe a nobreza. Demais, o sr. vigário impusera-lhe o segredo do confessionário.

 

Não havia, pois, outro remédio senão ficar abatida aos próprios olhos, deixando-se devorar em silêncio por aquela amargura, até que um dia a justiça do céu se incumbisse da sua reabilitação.

 

Apressou o passo, e chegando-se timidamente ao vigário:

 

- Mas o senhor não acredita nessa mentira, não é verdade?   perguntou com acanhamento.

 

- A mulher perdeu o mundo - respondeu sorrindo... - Eu sei lá ... . mas se diz que não...

 

- Juro que não, pela alma de minha mãe!

 

- Não é bom falar nos mortos, d. Eulália - replicou austeramente; - não se deve profanar as sepulturas; errar é dos homens.

 

As lágrimas rebentaram em fios dos olhos tristes da moça, e os seus lábios trêmulos mal puderam tartamudear:

 

- Seja o que o sr. vigário quiser.

 

- As lágrimas fazem-na tão bonita, Eulália, que eu não tenho forças para deixar de acreditá-la! - exclamou Paula com uma ternura infinita, apertando entre as suas a mão abandonada de Eulália.

 

Estremeceram ambos ao mesmo tempo, como se um olhar indiscreto os surpreendesse. A moça apertou o passo para entrar em casa, e Paula conservou-se imóvel a olhar para o chão, como se uma força ignota lhe violentasse o olhar.

 

Uma toada triste rumorejou então distante, com um eco soturno e lúgubre.

 

Era o Joaquim Maluco, pai inconsolável, que passava, cantando a sua desgraça na inconsciência da loucura.

 

- Será um aviso do céu?! - murmurou Paula perturbado.

 

Mas logo, sacudindo os ombros:

 

- Seja - continuou consigo. - Prefiro o inferno com ela!

 

 

VII

 

De volta à sala de Queiroz, Eulália e Paula estavam apoderados de sentimentos diversos.

 

A filha do professor tinha medo de si mesma. Lembrava-se de que um enleio inexplicável avassalou-a e converteu-a em títere de um impulso ignoto, mas triunfante, que a entregaria ao vigário como escrava. O calor daquelas mãos, que apertaram as suas com um tremor carinhoso, coara-se-lhe como um veneno pelas veias; sentiu-se alquebrada, sem vontade, sem domínio sobre si, e deixar-se-ia até beijar se não fosse o canto providencial do doido.

 

Semelhante recordação afogueava-lhe o pudor e obrigava-a a ocultar-se para esconder as lágrimas. Mas a solidão fazia-lhe medo; via-se fraca, dominável por tudo, inerte ao ponto de se deixar vencer até pelo raio do sol moribundo. O polido do espelho do seu quarto figurava-se-lhe uma lanterna que lhe acendiam dentro da consciência, a cuja luz não podia esconder que o vigário a impelia com um aceno, escravizava-a com um olhar. Lutava então contra o amargor de tão triste certeza, mas a imaginação baralhava-se-lhe num cismar cambiante como as vistas de um caleidoscópio. No entanto, não tinha forças para repreender-se severamente, porque o que sentia agora não era senão a reprodução do que sentira desde a infância pelo sr. vigário.

 

Recordava-se de que, em pequena, era de um gênio violento e excessivamente traquinas. Em vão as carícias paternas e as de sua boa mãe buscavam contê-la: continuava sempre, e, se a castigavam, cedia por temor, mas não por estar convencida de que fizera mal. Entretanto, se a ameaçavam dizendo que iam contar ao sr. vigário, aquietava-se logo, e, sem ressentir-se, distraía-se e ia ler ou amimar sua boneca. Depois de crescida, já mocinha, sentia uma satisfação untuosa, fresca como o contato de uma pele, ouvindo as prédicas daquele homem que fazia estremecer todos os corações, que falava em nome de Deus, e não obstante na sua casa desfazia-se em afagos e em meiguices para consigo. Depois foi gradativamente compreendendo que Paula era um homem de espírito, superior à gente rude da paróquia, que o maldizia porque não o entendia, e não se compenetrava de que o pároco, gravitando em outra esfera, não podia deleitar-se com os seus divertimentos grosseiros e com os seus costumes semi-selvagens. Este conceito exagerado, que cimentou-se com as repetidas afirmações de Queiroz, predispuseram-na a deixar-se levar pelo vigário, a quem devotava uma afeição quase igual à que dava ao pai; afeição desinteressada, sem laços materiais, como se evidenciava do desassombro com que ouvia falar na filha do sacristão, a formosa Mundica.

 

Hoje, porém, descobrira em si fraqueza demais na sua afeição; fora obrigada a corar por ela, e sobressaltada, querendo fugir de si mesma, Eulália não tinha coragem de comunicar a ninguém o estado do seu espírito, e nem ao menos ousava repreender-se: fora confessar a si mesma um crime sem perdão.

 

Paula, ao contrário, deixava transparecer uma alegria serena, mas expansiva, que precisava de corrigir-se pelo seu hábito inveterado de conter-se, ainda nos momentos mais difíceis.

 

O seu espírito, orgulhoso do triunfo conseguido sobre Eulália, tinha necessidade de apossar-se de todo o horizonte, de ter a largueza de quem se espreguiça para afugentar os restos do sono.

 

O conchego da família do seu amigo era um círculo estreito para a sua respiração: abafava-o. Precisava de ar livre, da posse ampla do ambiente para que os seus pulmões resfolegassem com a amplitude do seu contentamento.

 

- Vou fazer uma obra de caridade - disse ele a Queiroz: - vou até o Engenho conversar com essa pobre gente que lá tem arranchado;

 

- É um belo passeio - ponderou-lhe Queiroz -, mas é um pouco distante e você voltará já com a noite.

 

- Que quer? É o meu oficio.

 

- O que vale é que faz luar.

 

- O dever não espera pelo escuro, nem pela claridade.

 

- Nem sempre - respondeu o professor, batendo-lhe no ombro.

 

Paula saiu com o seu passo firme e compassado, e enveredou pela ladeira norte da colina, a cumprimentar aqui e ali os paroquianos, que se descobriam todos ao vê-lo. Pouco demorou a estar fora do povoado e a ficar só, no isolamento sussurrante da estrada e no júbilo do seu amor, agora esperançado.

 

A soledade dava-lhe alguma coisa de fantástico: parecia o luto visitando a devastação. A sua batina negra como que distendia-se por diante do povoado, extensa como a espessa barreira de trevas em que a população inteira vinha abismar-se e asfixiar-se na desesperança e no pranto.

 

A vegetação combalida, agitada pelo vento da tarde, parecia estremecer ante o hóspede inesperado, as claridades do crepúsculo recuavam diante dele como diante da noite. O cruzeiro do cemitério, sobranceiro aos arbustos de copa emurchecida, envolvia-o com o seu olhar sem pupilas, o agudo olhar da crença que penetra no mais insondável do desconhecido. Mas Paula caminhava com o mesmo passo inalterável, tranqüilo, absorto na sua alegria, sentindo talvez nas suas o calor virginal da mão trêmula de Eulália.

 

A cerca do cemitério começou a aparecer diante dele, perfilada como um pelotão apresentando as armas ao seu superior, e Paula, estremecendo, malgrado seu, descobriu-se. Os zumbidos dos grilos, sobressaindo no profundo silêncio, avultavam como se fossem gemidos alados de dentro das sepulturas: um coro trépido vindo de além-túmulo.

 

A solenidade da morte, pairando sobre o terreno limpo do campo-santo, impunha-se com todo o seu respeito supersticioso. Paula sentia a conquista desse poder inexplicável, e tanto que, apesar seu, apressava o passo e fazia ressoar pisadas mais fortes.

 

Em frente à cancela que fechava o cemitério um outro homem impressionava-se também e punha o ouvido à espreita. Era o Joaquim Maluco, o endemoninhado. Todas as noites o mísero pai vinha exacerbar a sua loucura com uma visita ao jazigo dos filhos, ou, como ele dizia, esperar o vigário, que tinha fugido para muito longe. Esta visita dolorosa foi principalmente a causa de o julgarem endemoninhado, porque havia noites em que, nas violências dos seus acessos, o velho Joaquim, depois de abraçar-se com o cruzeiro solitário, rogar-lhe piedade e justiça para a sua angústia, indignava-se contra o seu silêncio e concluía por um grito sacrílego:

 

- Ah! Não me respondes? Vou esbofetear-te, cuspir-te na face, filho daquela alcoviteira; espera!

 

E marinhava alucinado pelo madeiro nu, até chegar aos braços onde julgava encontrar o Cristo, para profaná-lo. Lá em cima, despeitado e receoso, o doido, escarranchando-se no cruzamento dos dois madeiros, atordoava o povoado com uma vozeria horrífica, misto de blasfêmias e de pedidos de socorro, seguido de gargalhadas medonhas.

 

- Fugiu; fugiu também com o vigário; ele também fugiu! Vejam, ele fugiu porque sabia que eu vinha cá em cima esbofeteá-lo!

 

O povoado inteiro abalava-se então, e, transido de terror, suplicava ao endemoninhado que descesse.

 

O Joaquim Maluco, certificando-se de que alguém se aproximava, levou o indicador aos lábios, e, acocorando-se por detrás do esteio da cancela, esperou.

 

Quando Paula ia passar em frente, o doido, pulando com a elasticidade da loucura, veio colocar-se-lhe em frente, agachado como um tigre preparado para dar o bote.

 

- Pare aí, pare! - bradou o desventurado... - Então pensava que ela estava aqui sozinha como no confessionário? Vai morrer já, agora mesmo.

 

Paula, com os cabelos eriçados, a fisionomia descomposta pelo susto, estremecendo convulsivamente, tinha estatelado em face do velho Joaquim. O doido aparecia-lhe com as cores sobrenaturais do remorso; o seu olhar esgarado subjugava-o com a força de um pulso de aço e deixava-o imóvel, mudo e passivo como um cadáver.

 

- Quer rezar primeiro? - perguntou-lhe o doido. - Venha rezar para morrer.

 

Travou-lhe violentamente do braço, puxou-o após si até junto do cruzeiro. Paula, tendo nas veias a anestesia do remorso, deixou-se ir, abandonado àquela fúria que, ao mesmo tempo que o torturava, fazia-lhe bem. A lembrança de Eulália, não tendo tido tempo de esvair-se, sobrestava-lhe o pensamento, radiante no abandono da cena da horta, prestes a vergar ao menor aceno audaz. Ser-lhe-ia agradável morrer assim; a morte viria como um desmaio suave, sob o contato carinhoso daquela imagem imaculada.

 

- Ajoelhe-se e reze - continuou o doido -, eu vou acordá-la; ela está acolá; há de gostar de vê-lo estrebuchar.

 

Retirou-se, olhando de vez em quando para o vigário, que, de pé, o fitava também, imóvel e silencioso. Mas a alguns passos deteve-se, e voltando-se rapidamente, veio de novo parar diante de Paula.

 

- Ajoelhe-se - repetiu o desgraçado. - Tem medo da morte?... A minha filha adormeceu sorrindo; o meu filho, o que está ali fora de sentinela, não pestanejou quando teve de partir. Reze!

 

Livre da pressão do seu temível ameaçador, Paula foi pouco a pouco recobrando o seu sangue-frio habitual. Conservou-se de pé, olhando o doido que se afastava, e sorriu, meneando a cabeça piedosamente. Depois, cruzando os braços sobre o peito, relanceou os olhos pelo cemitério, como quem procura alguma coisa. Encostado à cerca, próximo à cancela, luzia o aço polido de uma enxada, como o olhar facínora, ávido de um crime.

 

Paula, com o seu sorriso de desprezo, encarou para o instrumento, e depois volveu o olhar à direção tomada pelo doido.

 

- Coitado, talvez eu tenha de feri-lo ou estrangulá-lo! -resmungou desdenhosamente.

 

Continuou imóvel à espera, sombrio como a premeditação nefanda de um crime hediondo. A perversidade daquela natureza avultava em todo o seu relevo, na plenitude dos seus contornos. As mangas largas da batina deixavam-lhe ver os pulsos sertanejos, grossos e achatados, traindo a força dos vaqueiros que derrubam com uma laçada os touros bravios, e semelhantes a duas jibóias enroscadas esperando presa. Mas Paula cansou por fim, e com o seu passo firme e pausado, relanceando o olhar em torno de si, retirou-se sem que fosse sentido.

 

O mísero pai, alucinado, de joelhos sobre uma sepultura na extremidade do cemitério, ocupava-se exclusivamente em acordar o esqueleto soterrado da filha.

 

Já o vigário estava no Engenho, sentado a conversar com os seus novos habitantes, e quem passasse pela frente do cemitério veria ainda o doido, ajoelhado, batendo com as mãos espalmadas na terra, e ouvi-lo-ia, com uma rouquidão carinhosa, exclamar repetidas vezes:

 

- Acorda, filha; vem, ele está ali; eu vou matá-lo.

 

 

 

À noite, Eulália e Irena estavam juntas, e, conforme o seu costume, fecharam-se por dentro, na alcova da primeira.

 

Mais do que a porta de cedro, separava-as do resto da família a abstração em que elas se achavam. A caçula dormia e os velhos, na sala das aulas, jogavam calorosamente a bisca, emparceirados com d. Ana e Chiquinha. Duas caboclas, que eram as criadas da casa, encostadas aos umbrais da porta, espiavam o jogo.

 

As duas moças, atravessadas na rede, que Eulália impelia de quando em quando, fincando no ladrilho a pontinha do pé, puseram-se a conversar.

 

- Tem-no visto? - perguntou Eulália.

 

Irena fitou significativamente a sua amiga e meneou a cabeça, afirmando.

 

- E não está alegre?

 

- Você bem sabe que eu não posso ficar alegre quando o vejo; cada olhar seu parece que me afasta de meu pai para sempre.

 

Estas palavras, proferidas com a sincera acentuação de uma dor verdadeira e profunda, foram seguidas por um longo silêncio, durante o qual as duas moças, balançando-se sem se encarar, olhavam com indiferença para o espelho que as refletia em frente.

 

- Você já sondou seu pai, Irena? Talvez não se zangue, ele estima-a tanto! - ponderou Eulália. - Cede por força.

 

- Acredita? Pois era o mesmo que dar-lhe uma facada.

 

E Irena, sentando-se, desfiou as razões da sua afirmação peremptória:

 

Tinha-o conversado sobre os Feitosas, a propósito das palavras do vigário; lembrara-lhe que mais de um rio de sangue já havia passado sobre as ofensas das duas famílias e nada mais devia existir entre os seus parentes e os seus rivais.

 

O velho pai respondeu-lhe, porém, com o laconismo da intransigência:

 

- Os Feitosas são homens que insultam mulheres, que assassinam as crianças dos seus inimigos; não serei eu, nem filho meu, que os perdoe.

 

- Então não há nenhuma esperança?

 

- Nenhuma - suspirou tristemente Irena -, e tenho vontade de dizer-lhe que o melhor para nós ambos é o esquecimento. Mas...

 

- Não pode - continuou Eulália. - E assim mesmo quando se encontra um embaraço.

 

- Não posso, minha amiga, não posso.

 

Pôs-se então a dizer com que profunda dedicação amava Feitosa. Foi através de dois séculos de ódio, separados por um rio de lágrimas e sangue, em cuja correnteza boiavam cabeças decepadas de anciãos, de mulheres e de crianças, recordações tristíssimas das cenas mais bárbaras, destroços de habitações, novelos de fumo ainda prenhes de labaredas de incêndio; foi através da antipatia mais arraigada que se viram. Foi isto em janeiro, em uma procissão de preces. Feitosa estava na paróquia havia poucos dias e era o alvo dos comentários de todos, e só por isso levantou os olhos para ele. Os seus olhares se encontraram, os seus cabelos loiros e a pele muito fina, suando sangue, impressionaram-na. Pareceu-lhe não ser um Feitosa, mas um gêmeo seu, com a mesma alma tímida, com a mesma índole condescendente. Desde logo Irena sentiu que ele também se impressionara consigo, e, de volta da procissão, olhavam-se com um olhar comunicativo, sem sombras, quase sem receio, prestes a ser íntimo.

 

Em fins de janeiro, Rogério Monte deixou por alguns dias o povoado, para ir até a fazenda, e Irena ficou em casa de Queiroz, onde, pela primeira vez, falou com Augusto Feitosa. As poucas palavras que trocaram entre si foram uma revelação invencível, espontânea, partida ao mesmo tempo de ambos, ardente, expansiva, irredutível. Só mais tarde, quando já a saudade alimentava-lhes a paixão, quando o impulso do coração desmoronava os brios tradicionais, pensaram na rivalidade das duas famílias. Feitosa jurou imediatamente contrapor a espontaneidade do seu afeto à resistência dos seus, mas Irena, certa de que era a única alegria do velho Rogério Monte, hesitou e tremeu pelo futuro. Deveria sacrificar ao egoísmo do coração a honra do pai? O amor respondia-lhe peremptoriamente - sim! Mas a piedade filial aconselhava-lhe que - não! Pensou então em suplicar-lhe, em demovê-lo do pensamento mau que lhe pairava como ave agoureira sobre a integridade do caráter, mas não teve coragem de levar por diante a sua tentativa, porque viu alevantar-se ameaçador, intransigente, o ódio vivaz com que o velho tinha sido aleitado, embalado na meninice, alimentado na mocidade. O seu espírito condescendente conciliou por um adiamento as dificuldades da sua posição, e Irena deliberou continuar clandestinamente a amar Feitosa, apesar de seu pai.

 

Um dia o noivo falou-lhe em fugir, e tremeu depois da sua revolta. Pediu-lhe que a deixasse, que não a quisesse perder, assassinando seu pai; mas aos poucos a certeza da intransigência paterna habituou-a com o triste pensamento, e foi ela mesma quem, mais tarde, disse que às vezes tinha vontade de fugir.

 

- E o que há de por fim acontecer - concluiu Irena, enxugando as lágrimas que lhe borbulharam incontinenti.

 

Osilêncio interpôs-se de novo à confidência, e os vaivéns da rede tornaram-se mais fortes, fazendo ranger a corda nos armadores. De espaço a espaço ouviam-se as risadas e os protestos de Chiquinha, arrebatada no calor do jogo, e a barulhada de todas as vozes, comentando a mão acabada.

 

- Penso mal, não é, Eulália?

 

- Não sei, filha; se não houver outro remédio!... Mas pense bem primeiro; talvez se faça por gosto dele: pense bem.

 

- Qual! - murmurou Irena, meneando a cabeça. - Meu pai não volta atrás o que diz.

 

- Você está resolvida então?

 

Irena afirmou com o gesto, mal contendo os soluços, e escondeu a cabeça nos punhos da rede, para ocultar da amiga o rosto envergonhado. Eulália calou-se amigavelmente e, inclinando-se sobre Irena, beijou-lhe a face escaldada pelo pudor.

 

- Eu também resolvi ainda agora uma coisa contra o vigário - disse Eulália. - Não o quero aturar mais.

 

- Continua com os seus modos? - perguntou Irena.

 

- Cada vez mais desabridos; eu sou o seu adufe.

 

- Mas de onde tirou o vigário estes modos com você, ele que a estimava ternamente?...

 

- Agora - disse Eulália, sorrindo tristemente -, eu calculo para ser estimada, como da outra vez eu faltava o respeito à religião junto do andor de Nossa Senhora.

 

- Você calcula? E que ele ainda está doente. Mas você por que não diz isto a seu pai?

 

- Eu?! - disse Eulália sobressaltada - Nem com você podia falar: foi um segredo do confessionário.

 

- Ah!

 

Quando reataram a conversação, Irena parecia alucinada; o seu coração impoluto, ferido pelo golpe desfechado em sua amiga, atinou facilmente com a causa das descortesias insensatas do vigário. Foi com um abraço estreito, com um beijo, longo como o seu sofrimento, que ela começou a revelar à amiga a sua suspeita.

 

- Você vai ficar mal comigo, Eulália, vai abandonar-me.

 

- Está doida, menina! - respondeu Eulália, com uma erupção brusca de jovialidade. - Olhe, o melhor é abreviar antes de tresler.

 

- Antes estivesse doida; mas infelizmente sou eu quem está sendo motivo para seu sofrimento!

 

- Você?

 

- Sim; eu pelo Augusto.

 

- Ah! Que malvado é o tal sr. vigário!

 

- Você bem disse que nós somos bem infelizes! Eu sou a culpada do que você sofre.

 

- Você? Que culpa tem você de que eles julguem mal os outros? Deixa-os ! Eu serei sempre sua amiga.

 

- Mas é preciso desconvencer o vigário, dizer-lhe que se enganou.

 

- Se eu pronunciasse o nome de Augusto era pior ainda: aquele homem é um perverso.

 

A última frase foi acentuada com o amargor da convicção, e a fisionomia de Eulália testemunhava a sinceridade com que fora ela proferida. Dir-se-ia que a filha do professor estava pronta para abrir luta com o maior amigo de seu pai; que lhe pagaria ofensa por ofensa, descortesia por descortesia. Mas o eco da voz de Paula penetrou, como um espião, dentro do quarto, e trazia umas palavras cheias de doçuras para o coração de Eulália.

 

- Onde estão as meninas? - perguntara o vigário.

 

- Enterrando os vivos e desenterrando os mortos - respondeu Queiroz. - Estão fechadas no quarto a conversar... Aproveita a vaza, Ana, não há mais trunfo fora.

 

- Contou mal, contou mal! - gritou Chiquinha, rindo muito. - Cá está o valete.

 

- E aqui um reizinho, minha filha, e você bem sabe que o rei mata.

 

- Mas não faz a gagosa, não passou escoteira.

 

- Paciência, mas vocês tomaram capote.

 

- Boas! Conte.

 

A voz de Queiroz continuou a penetrar no quarto de Eulália, agora com ecos da contagem, e afinal exclamou o professor:

 

- E quatro, oitenta e nove, e dois, noventa e um! Passa o capote ali para o vigário.

 

- Que grande coisa! Quando se está infeliz, tudo acontece.

 

- Tem razão - interveio Paula -, eu ia ainda agora morrendo.

 

Eulália, contendo a tempo um grito, buscou esconder a Irena a sua comoção, e perguntou-lhe sorrindo, com a sensaboria da dissimulação:

 

- Ouve o que ele está dizendo? Que ia morrendo... Irena, que levantara os olhos para a amiga, ficou assombrada de ver como estava descomposta a sua fisionomia.

 

- O que tem você, Eulália?

 

- Nada!... não sinto nada.

 

- Mas está tão pálida!

 

- É que eu não posso ouvir mais a voz do vigário; mas isto passa. Vamos lavar o rosto, porque você também está com os olhos pisados.

 

- É como lhes digo - continuou Paula -, fui assaltado pelo Joaquim Maluco, que me obrigou a voltar acompanhado.

 

Eulália lavava-se sofregamente e apressava Irena, como se lhe quisesse comunicar a própria impaciência.

 

Quando acabaram:

 

- Vamos para a sala - disse ela -, antes que nos chamem. Evitamos alguma graça do sr. vigário; principalmente eu.

 

Entraram na sala e depuseram os seus beijos respeitosos na mão de Paula, que prosseguia em historiar a cena da tarde com o doido.

 

- Aquele é um perigo para você, vigário - ponderou Rogério.

 

- É pedreiro livre - riu Francisco de Queiroz -, inimigo do altar.

 

- Ora, o que se lhe há de fazer? Há maiores doidos que vivem e ninguém os incomoda. Não concorda, não pensa do mesmo modo, d. Eulália?

 

- Mas esses outros são mansos - respondeu a moça; não querem matar os outros de emboscada.

 

- É exato, há diversos modos de ser doido.

 

Quem olhasse atentamente para Eulália veria quanto fel semelhantes palavras lhe haviam coado no coração. Mas felizmente para o vigário só Irena compreendia o amargor que as repassava, e esta limitava-se a desesperar com a sua amiga.

 

Paula demorou-se pouco; viera só deixar a perplexidade no espírito de Eulália, de certo ainda impressionada pelo que se passara na horta. O efeito estava produzido com mais eficácia do que tinha calculado. Saiu, pois, satisfeito, com o seu passo firme e pausado.

 

Rogério Monte entendeu também que devia cessar o jogo, e tomou o chapéu.

 

- Perdoe-me o que eu lhe faço sofrer - disse Irena, mal contendo as lágrimas.

 

- Não me faça padecer mais, Irena; que tem você com isso ? Você faz-me detestar ainda mais aquele miserável.

 

 

VIII

 

Maio entrou pela paróquia com a tristeza profunda de um féretro. Os dias ardentes, mas de uma claridade mesta como a chama dos brandões funerários, envileciam o seu brilho. esbatendo-se em quadros lutulentos.

 

Não havia pôr-de-sol em que o povoado não visse passar, sujos como as enxurradas do inverno, grupos de emigrantes misérrimos, em cujos semblantes transpareciam, com a mesma intensidade, as torturas da fome e da saudade do torrão natal abandonado.

 

O Engenho, com as suas lendas supersticiosas, com o seu aspecto sombrio de crasta alumiada por uma fraca lâmpada tornou-se ainda mais tristonho: parecia um corvo colossal cobrindo com a asa negra desmesurada a sua pútrida carniça. Os seus arredores exalavam o cheiro nauseabundo das sentinas não desinfetadas, o seu interior tresandava as exalações dos curtumes. Já não era a multidão despreocupada, sussurrante, feliz, ávida de contentamento, quem o enchia a transbordar, dando alma às ruínas, evocando-lhes o passado pletórico de vida dos tempos do poderio da família dos seus possuidores. Enchia-o agora a inundação da miséria, o vômito da esterilidade do sertão, gente seminua, cadavérica, faminta, que era atirada pelo cansaço por sobre os seus entulhos, como o náufrago moribundo cuspido pelo mar no lodaçal de um mangue.

 

A vasta área, que serviu de cenário ao espetáculo do Feiticeiro, estava agora dividida em muitos cubículos, feitos pelo envaramento de ramagens, que recatavam-lhes o interior com a folhagem seca. Nos claros deixados, viam-se aqui e ali lareiras improvisadas por três pedras soltas, sobre as quais as panelas negras de fuligem ferviam para escaldar o tapichã, enquanto a lenha, apenas emurchecida, chiava, deitando novelos de fumaça, debaixo da qual a chama vacilava em crescer, como se o próprio fogo se houvera tornado preguiçoso. Em torno das lareiras ou dos borralhos extintos, as crianças quedando sentadas, com a resignação hereditária do cearense, lembravam grandes entranhas acocoradas à beira do brejo.

 

O efeito moral da população adventícia no ânimo da paróquia prostrou-a num abatimento invencível, e, além disso, o tifo começou a tomar um desenvolvimento epidêmico. Pairou então sobre o povoado o ar consternado do penitente na noite do oratório. Via-se condenado a morrer por uma sentença irrevogável, porque a fatalidade pusera-lhe estreito cerco. De um lado, o sertão trasbordava, de outro lado, assustadoras notícias de Aracati diziam que, em quase todas as cidades e povoações, a morte engordava nas hecatombes da fome.

 

A intensidade do horror tinha sugerido uma crueldade atroz ao instinto de conservação da paróquia, tanto mais vivaz agora que a frialdade da cova já invadira, em parte, pelo terror.

 

O Feiticeiro e vários retirantes haviam abandonado o Engenho, deixando alguns deles a mísera família abandonada à desgraça, sem que ao menos lhe dessem, por despedida, uma palavra de conforto. Um pensamento ocorreu logo a todos e impôs-se como certeza. A fama dos Viriatos dos Cariris tomava grande vulto na voz pública; contavam-se já façanhas medonhas dessa quadrilha de ladrões, que se aliara com o flagelo da seca para levar a ruína e a miséria aos cearenses. Onde o sol abrasador, os ventos impetuosos e áridos não podiam chegar, penetravam as mãos dos bandidos; o que não conseguiam as moléstias reinantes, faziam os seus punhais cegos e desapiedados, que eram a guarda de honra que lhes garantiam as suas espoliações.

 

Falava-se muito também do desaparecimento de muitos homens de força provada, de agilidade aclamada. De um dia para outro ninguém mais os descobria: partiam sem deixar rasto, como se o chão os houvesse tragado. Começou-se, pois a suspeitar que esses homens eram voluntários que se iam alistar na temível quadrilha dos Cariris. A paróquia inteira, portanto, ao saber da fuga dos retirantes, volveu os olhos para as bandas de sudoeste, onde se levantavam com um azul de turquesa os picos da cordilheira infestada pelos Viriatos.

 

Alguns indícios apagados, mas ainda assim conducentes a justificar a suspeita, ficaram após os fugitivos. Durante muitos dias o Feiticeiro pareceu olvidar-se das suas cobras, que puderam dormir e enfurecer-se à vontade nas suas estreitas gaiolas. O homem misterioso tinha sido invadido por uma piedade estranha pelos miseráveis que co-habitavam o Engenho, e distribuía esmolas pelas crianças. A sua bolsa tornou-se o complemento da do velho Monte, a cujas expensas se mantinham os retirantes. Rompera-se carinhosamente o seu antipático silêncio; sorrisos paternais desbastavam-lhe a aspereza hostil do semblante: fizera-se conversador e tratável.

 

A seu convite, os homens mais valentes passavam as tardes a provar forças e travavam lutas corpo a corpo, porfiadas, e até algumas vezes ameaçadoras a ponto de ser necessária a intervenção do seu promotor.

 

- Eh! - resmungava o Feiticeiro. - Isto é só para desenferrujar para as viagens: não é de vida ou de morte.

 

Dois dias antes da fuga, o homem misterioso, conversando à tarde, tinha dito aos ouvintes:

 

- Homem! Vocês têm ouvido nomear uns tais Viriatos ?... É gente para se ter respeito - continuou ele após a resposta afirmativa; - é gente de pegar: onde eles chegam, fecha-se o tempo.

 

- São ladrões desabusados - disseram entre os ouvintes -, má casta de gente.

 

- Vingam muitos pobres inocentes - replicou o Feiticeiro - chamados ladrões por tirar uma cana, e às vezes ratada.

 

- Lá isto é verdade - concordou o grupo.

 

- E aqui mesmo há exemplo - continuou o Feiticeiro -, há muita gente que passa por ladrão sem nunca ter furtado nem a porção de açúcar que uma formiga carrega.

 

- Muita verdade, muita verdade, tio Luís - responderam;

 

- lá em Inhamuns toda a gente fala no Virgulino; ele que o diga.

 

Os olhos voltaram-se todos para o homem que na sacristia entregara o cordão de ouro ao vigário Paula, em paga da sepultura do seu sogro.

 

- Ora o que lá vai, lá vai - ponderou Virgulino -, para que falar mais nisso?

 

A insistência do grupo obrigou-o, porém, a vir em auxílio das suas palavras

 

Tinha sido morador num sítio de criação, e ali nunca houve nenhum vaqueiro mais estimado. Era como um filho da casa, confiariam dele montes de ouro em pó. Todas as tardes o filho mais velho do situado vinha prosear no seu rancho e balançar-se na rede da sala, contando histórias divertidas, muito de se ouvir, porque ele tinha ido a estudos na Fortaleza. Era, em suma, um rapaz da praça, bem falante e muito floreador. Virgulino recebia-o em casa sem diferença de irmão; ele e o Anacleto, que os ouvintes estavam vendo, eram uma e a mesma coisa. Mas, uma tarde, o moço adiantara-se com uma das irmãs de Virgulino, que, ao ver semelhante desacato ao seu pundonor de cearense, ainda teve prudência de lhe dizer acomodado:

 

- Mais devagar, amigo; guarde esses modos lá para a praça, quando for ao Ceará.

 

A resposta foi de ferver o sangue:

 

- Cala boca daí; tomara você que eu a queira.

 

Uma onda de indignação engoliu de um trago a prudência do vaqueiro, e, fora de si, rugindo injúrias pungentes, agrediu o rapaz temerário, espalmando-lhe uma tremenda bofetada.

 

O covarde vacilou, bamboleou e rodou por terra, onde o foi subjugar a cólera de Virgulino, que, por desprezo, cuspiu-lhe ainda na face. A vingança não demorou a se fazer sentir atroz, quanto fora brutal a afronta. O próprio pai do rapaz, o velho situado, abriu-lhe na fronte a cruz infamatória, corrente fatal de galé que nada pode quebrar, porque os seus elos são fundidos com o próprio sangue do condenado.

 

- Eis ai por que eu sou apontado como ladrão - terminou Virgulino.

 

- Mirem-se agora neste espelho - exclamou o Feiticeiro - e tenham raiva aos Viriatos.

 

E, prosseguindo com a sua voz pausada, enrouquecida, o Feiticeiro comentou a cena da igreja e a pouca piedade da paróquia.

 

- O velho Monte não pode sozinho matar a fome a mais de cem pessoas; dá o que pode o bom do velho, mas os outros nem um real! O sr. vigário nem confessa a gente, e dá a comunhão; mas a hóstia santa e o gole de água não matam a fome ao cristão. Aqui é como se vê sempre: a presença do pobre não faz dó, mete medo; o rico pensa logo que o infeliz o vem roubar. Eu não vivo da esmola; vivo do veneno das cobras. O veneno é menos cruel do que a esmola. Não preciso de rogar o bocado para a boca. Por isso mesmo não me vexo com o desprezo de todos; não sinto que olhem para mim como para um pesteado. Mas vocês...

 

A voz do Feiticeiro tomou então uma acentuação lúgubre. Enrugou-se-lhe a pele do rosto entre os supercílios, e os seus olhos vermelhos, meio ocultas as pupilas no sobrecenho carregado, luziram como duas brasas.

 

- Não posso ver o que se está passando – continuou ele -, os homens são irmãos e um não deve morrer de fome à porta do outro. Nem ao menos dão o pano para mortalha; os mortos não merecem mais um bocadinho de respeito. Eis a razão por que eu não odeio os Viriatos; quem tem medo de dar uma cuia de farinha ao pobre, quem teme que esta obra de caridade lhe traga a fome em casa, é bem que perca tudo, e venha a sofrer o que os pobres sofrem. Os ouvintes ficaram profundamente impressionados; e alguns ponderaram, para significar a sua aprovação às palavras do Feiticeiro:

 

- E a verdade é que eles não fazem mal aos pobres.

 

- São o castigo de Deus - acrescentou o Feiticeiro.

 

Dois dias depois, dera-se a fuga, figurando no número dos fugitivos o Feiticeiro, Virgulino e seu irmão. O mistério do seu desaparecimento propagou o terror por todo o povoado, que não acreditava que fosse possível alguém abandonar a família moribunda, desamparada, a não ser pela alucinação de um crime.

 

O Feiticeiro passou, portanto, a ser considerado um ladrão, e o povoado ficou à espera para repelir o seu assalto.

 

Antão Ramos, que era o mais diretamente ameaçado, teve então uma idéia, que em outra qualquer ocasião ele mesmo só julgaria digna da fria perversidade de Marciano. O atemorizado inspetor passava os dias a olhar para as pilhas de carne e para os sacos de farinha, e estremecia, como se a sua imaginação lhe pintasse os ladrões sentados a rir, a mofar da sua consternação, enquanto os seus molares afiados mordiam os seus gêneros. Torturado por tão lutuoso temor, Antão Ramos foi ter com o vigário para merecer-lhe um conselho.

 

- Na minha qualidade de inspetor - perguntou ele -, não posso mandar retirar esta gente que está no Engenho?

 

- Homem, tudo se pode fazer; a questão é querer.

 

- Pois então eu vou fazê-lo; não é por desumanidade, sr. vigário, mas por cautela. Os outros fugiram, estes podem querer vir arranjar-se aqui mesmo no povoado. Não acha que previno um grande mal?

 

- E se os que fugiram estiverem aí por perto?

 

- Qual ! Nesta não caíam eles.

 

- Homem, lá diz o rifão: o melhor para o ladrão esconder-se é mesmo na casa em que roubou. Os homens viriam então saquear o povoado.

 

- Neste caso havemos de morrer aqui pesteados por esses diabos?!

 

- Há ainda um outro recurso.

 

- Qual é? Diga pelo amor de Deus, sr. vigário.

 

- Deitar fogo ao Engenho, deixá-los ao tempo - respondeu Paula serenamente.

 

O conselho de Paula avultou como um dom sobrenatural no espírito de Antão Ramos. Achou nobre, justa a monstruosidade sugerida e, num transporte de expansibilidade, atirou-se-lhe ao pescoço, a abraçá-lo calorosamente.

 

- Vossa Mercê é um homem de cabeça; está tudo feito exclamou o inspetor; - foi um excelente achado, uma riqueza.

 

- Não parece mau - ponderou Paula. - Eles cozinham debaixo do casarão; uma brasa esquecida, o Engenho muito velho, o vento da noite explicam tudo.

 

- E vão lá saber - sorriu o inspetor.

 

- A gente mostra-se triste, insiste com eles para que fiquem, eles relutam, partem e.. . acabou.

 

- Olhe que Vossa Mercê sempre é.... Melhor só Deus a engenhava. Muito boa!

 

E alegre, pojando o seu egoísmo em risadas e oferecimentos, Antão Ramos, com os braços cruzados sobre as costas, sacudindo-se morosamente, contemplava Paula.  A fecunda espontaneidade dos seus alvitres, que honrariam uma longa reflexão, espantava o inspetor, que não se fartava de olhá-lo muito e insistentemente.

 

- Olhe, sr. Antão, não vá pensar que lhe dei o conselho por ter mau coração!...

 

- Nem eu penso, nem ninguém. Vote! Pensar mal de quem nos livra dessas pestes? Nunca! Eu sei, eu conheço Vossa Mercê.

 

- Obrigado; mas saiba que eu não lhe aconselharia coisa alguma, se o Evangelho não dissesse: "A árvore, que não dá bom fruto, corta-se pela raiz".

 

- Sim, senhor; e ninguém pode negar que, se essa gente continuar aqui, o povoado está perdido. As febres já aí andam.

 

- Pois é ter coragem. Você é a única autoridade que ficou entre nós; proceda como deve.

 

Antão tomou o seu chapéu para sair, e estendeu ao vigário a sua mão de sertanejo robusto.

 

- Perdoe-me; são horas, e eu vim cá num pulo.  Por entanto, sr. vigário, Deus lhe agradecerá.

 

- Amém - respondeu O vigário;  faça-o, eu encarrego-me do mais.

 

- Por entanto...

 

- Adeus, Antão Ramos.

 

Depois da saída do inspetor, o vigário impressionou-se profundamente; mas não demorou a espairecer e a reintegrar-se na sua indiferença habitual. Recostou-se na rede a fumar e a cantarolar um salmo, e em pouco tempo adormeceu acalentando com os vaivens suaves a quebreira canicular.

 

Não o deixaram gozar por muito tempo o tranqüilo repouso. O velho Marciano veio procurá-lo, porque pediam o Sacramento para o Engenho, e o pequeno José, o timorato criado, entrou pé ante pé pelo quarto a fim de chamar Sua Mercê.

 

- Sr. vigário - murmurou o pequeno, vendo-o acordar meio estremunhado -, é o sr. Marciano quem está chamando para Vossa Mercê ir confessar no Engenho.

 

- Raios te partam, demônio. Não me acordes nunca para dizer tolices.

 

Marciano, que estava na sala, repetiu o chamado, e acrescentou:

 

- Tenha paciência, sr. vigário; quem se aluga a S. Miguel...

 

- Quer saber de uma coisa, Marciano? Nem sempre se está para brincar - respondeu Paula rudemente. - Diga lá a quem lhe trouxe o recado que eu não saio com esta soalheira; se quiser traga cá à igreja o doente.

 

- Foi isto o que eu disse ao portador. Não se zangue Vossa Mercê; eu vou já.

 

Marciano saiu cortejando o vigário com a inalterável boa vontade do seu aviltamento, e na porta de casa passou adiante as palavras desabridas do vigário.

 

- E se quiser - concluiu ele respondendo às objeções do portador do recado.   O sr. vigário não há de ir por este sol fora dar tamanha caminhada.

 

- Mas a doente não pode também apanhar este sol: morrerá antes de chegar à igreja.

 

- Espere então para logo mais; com a fresca da tarde, talvez lhe faça bem. Até logo, ou até já, como quiser.

 

O portador voltou desconsoladamente ao Engenho, e, entrando em um dos cubículos, acercou-se de uma rede, onde uma pobre mulher arquejava sobre a umidade de dejeções disentéricas, e disse-lhe à meia voz:

 

- Não é melhor que você espere mais um pouco, até de tarde, para tomar o Nosso Pai?

 

A enferma sacudiu a cabeça, e a sua voz muito fraca murmurou tristemente:

 

- Já, já.

 

- Mas é preciso que a levemos lá; o sr. vigário não pode vir até cá: está muito quente o sol.

 

- Eu vou - disse a moribunda; - é melhor até ser na igreja, levem-me lá.

 

O homem, enxugando silenciosamente os olhos, saiu a pedir o auxílio de alguém, a procurar um companheiro. Os miseráveis habitantes do Engenho puseram-se todos à disposição do infeliz.

 

- Pronto - disse o primeiro a quem falou.

 

- Prontos - ofereceram-se os que o ouviram.

 

O nobre coração cearense revelava-se inteiro em tamanha espontaneidade. A desgraça encontrava ainda a fraternidade dos tempos prósperos, em que surpresas delicadas vinham honrar o trabalho e arraigar o sentimento de solidariedade entre os vizinhos. Corria a notícia de que um amigo andava a convidar gente para fazer uma derrubada. Calavam-se os vizinhos e, certos do dia em que devia começar o trabalho, lá iam de véspera invadir a mata com os golpes dos seus machados e foices, afiados pela amizade a mais sincera. Quando o proprietário levava a sua gente para o trabalho, mãos desconhecidas já o haviam feito.

 

Foi este sentimento o que ouviu o pedido do esposo da moribunda.

 

Os preparativos para a condução da mísera crente não demoraram. Dentro em meia hora dois homens colocavam sobre os ombros uma rede asseada, e, seguidos por quase todos os habitantes, subiam a colina, ao som do canto tristíssimo do Bendito.

 

A natureza em torno, silenciosa na sufocação da canícula, as carnaubeiras, perfiladas aqui e ali, pareciam grandes pontos de admiração, comentando a cena compungente. Os milhares de focozinhos radiantes, feitos pelo sol nos seixos do areal do Jaguaribe, pareciam miríades de olhos esgarados para verem o requinte da crueldade clerical. Mas os trapilhos, os exilados não participavam da indignação da natureza; absortos na assonância do cântico lúgubre e sentido, limitavam-se a invocar a piedade divina para a infeliz que se avizinhava do túmulo, e cantando, pedindo e prometendo perdão, fizeram a sua entrada tristonha no povoado, que se consternava sem poder explicar o que via.

 

O vigário não se perturbou, apesar dos olhares interrogativos e dos cochichos que o hostilizavam na passagem pelo corpo da igreja. Relanceou o olhar indiferente sobre o grupo que cercava a rede, e disse:

 

- Tragam a doente para junto do confessionário.

 

O esposo infeliz ajoelhou-se para tomar nos braços a moribunda, e, como esta olhasse com uma fixidez assustadora, inclinou-se muito e perguntou-lhe quase ao ouvido:

 

- Não está melhor, não, minha velha?

 

E acrescentou em seguida:

 

- Vamos para junto do confessionário, sim?

 

A moribunda nada respondeu, e nem sequer pestanejou; os seus olhos, brilhantes como a malacacheta, conservaram-se imóveis, nessa estagnação contristadora que gera o pavor do túmulo e dá ao moribundo o ar de quem escuta atentamente um ruído longínquo.

 

- Eu creio que ela já não ouve - exclamou o marido; - não me responde. Chamem depressa o sr. vigário, depressa.

 

Um sussurro piedoso acolheu as palavras do infeliz, e diversas pessoas saíram apressadas para chamar o vigário.

 

Paula já havia saído da sacristia e, revestido com a sua sobrepeliz, atravessava o corredor que desembocava na capela-mor.

 

O sussurro promovido pelas palavras do retirante chegou-lhe aos ouvidos e fê-lo sorrir mofareiramente.

 

- O que vem a ser isto?

 

- Toleimas - respondeu o sacristão; - estavam a dizer que Vossa Mercê é que devia ir ao Engenho.

 

- Tanto melhor para eles - respondeu encolhendo os ombros; - não me faltava mais nada.

 

Paula caminhou até o confessionário e daí, com o seu tom rude, disse em voz alta:

 

- Então não trazem a doente?

 

Responderam-lhe que ela não podia mais ser ouvida de confissão; perdera a fala.

 

- Dá-se-lhe a extrema-unção - ponderou desdenhosamente.

 

E caminhou até junto da rede.

 

Comprimindo as narinas entre o polegar e o indicador, o vigário começou a administrar o sacramento, e, tendo de aplicar os santos óleos, disse dirigindo-se ao marido da infeliz:

 

- Veja se pode levantá-la.

 

- Hei de poder, sr. vigário, hei de poder; mas vou incomodar a coitada. Se Vossa Mercê pudesse agachar-se um nadinha?...

 

- Sim, sim, posso; incomodo-me eu.

 

Marciano sorriu quase imperceptivelmente, aprovando a ironia do protetor da sua filha mais velha e seu compadre. Os outros espectadores não tiveram tempo de perceber a finura da sátira característica do seu pastor espiritual.

 

Quando a cerimônia religiosa terminou, deixava um cadáver estendido sobre o pavimento do templo.

 

- Que fedentina - ponderou o vigário, desrevestindo-se na sacristia. - Vamos ficar com a igreja empestada. É preciso lavar aquele lugar e queimar incenso.

 

- Sim, sr. vigário - disse o sacristão -, mas se todos os dias vier algum doente confessar-se...

 

- Não, havemos de remediar isso; eu vou ver o que devemos fazer.

 

Neste momento o triste enviuvado parou à porta da sacristia, pedindo licença para entrar. Vinha pedir à Sua Mercê licença para que o corpo ficasse depositado na igreja. Era trabalho penoso reconduzi-lo para o Engenho. Não o dizia por si mas pelos seus companheiros que não tinham obrigação nenhuma. Já muito lhe haviam feito, subir de cabeça acima a colina, por este sol danado, carregando o peso de um corpo. O sr. vigário de certo lhe faria o grande favor de consentir que o corpo ficasse em depósito.

 

- Por mim, filho, pode ficar - retorquiu Paula -, mas não sou eu quem cuida de abrir e fechar as portas da igreja; é ali o Marciano; fale com ele.

 

O velho sacristão, que estava dobrando a sobrepeliz, voltou-se bruscamente, e, depois de olhar para o vigário que se fingia distraído, disse timidamente:

 

- Vossa Mercê bem sabe que eu não vivo só de ser sacristão; tenho outros ganchos, e não os posso perder para ficar vigiando a igreja. Mas Vossa Mercê manda...

 

- Eu nada tenho com isso; é lá entre vocês dois - respondeu o vigário.

 

E tomando o seu chapéu redondo, de grandes borlas pretas, afastou-se batendo cadenciadamente com os tacões um passo firme e regular.

 

No corpo da igreja, porém, Paula foi obrigado a parar para falar com Rogério Monte que, depois de cumprimentá-lo, pediu-lhe para consentir que o cadáver ficasse depositado na igreja, pelo menos até a tardinha.

 

- Pois não! - respondeu Paula prazenteiramente.

 

E voltando-se para um dos espectadores:

 

- Diga lá na sacristia ao Marciano para deixar ficar o corpo.

 

- Pobre gente, meu Paula! - ponderou Monte.

 

- É verdade - murmurou o vigário - Desgraçada gente!

 

O velho Marciano, com todo o império de um sacristão ínfimo do sr. vigário, já havia respondido com um não redondo às súplicas do viúvo, quando lhe chegou o recado de Paula.

 

- Graças, meu Deus! - exclamou o viúvo, ouvindo o portador - Graças!

 

- Agora, sim senhor - advertiu-lhe Marciano; - manda quem pode.

 

O ajuntamento foi rareando gradativamente, e dentro em uma hora apenas eram vistos no templo o cadáver, muito espichado no pano azulado da rede, com uma vela amarelada à cabeceira, e algumas pessoas que ficaram de quarto com o viúvo.

 

Os paroquianos, porém, continuavam a comentar o procedimento do sr. vigário. Era incompreensível. A seca ainda não tinha dado senão os primeiros passos, e já ele, agoureiro como as corujas, pregava apontando-a como um castigo sem esperança de perdão. O seu olhar surpreendeu no desconhecido os horrores do futuro e desdobrou-os na pungente nitidez dos seus contornos. Daí a ineficácia das preces, onde o arrependimento bracejava, náufrago no oceano tenebroso da indiferença divina. Mas ainda assim esse congraçamento de lágrimas e dúvidas, de dores e desesperanças, esse caos de agonias que se enovelavam e se distendiam, afundavam-se e sobrenadavam, enoiteciam e clareavam no seio insondável do desconforto, dava à paróquia a solidariedade da desgraça, estendia por toda ela a mesma sensibilidade, como na circunferência de uma água-viva. Paula, não obstante, suprimiu as preces, como se quisesse interpor-se à terra e ao céu, separando-os para sempre com o esplendor dos dias estivos, fatal como a claridade bíblica às portas do paraíso. Não satisfeito ainda, voltou as costas a todos aqueles que precisavam do seu olhar de sacerdote cristão, para minorar os padecimentos da sua desventura. Era inqualificável tanta crueldade, e o próprio Marciano já resmungava à porta do templo:

 

- Eu posso perder o meu dia de trabalho, mas os sete palmos de terra não se dão de graça.

 

- Vamos nós tirar uma porção? - ponderou um grupo estacionado a pouca distância da igreja.

 

- Só assim não veremos outra cena igual à de hoje: um moribundo não ter quem lhe vá levar Nosso Pai e vir morrer na igreja.

 

- E o melhor; falemos nisso ao velho Monte, e se ele quiser está tudo feito.

 

Na mesma tarde começou-se a tratar da porção, ou subscrição paroquial para aumentar a côngrua do sr. vigário, caso ele quisesse encarregar-se de todo o trabalho, ou então para contratar um coadjutor.

 

Paula, informado da resolução dos seus paroquianos, que era uma tácita censura ao seu procedimento, não aprovou nem desaprovou, mas refletiu secamente:

 

- Eu não preciso que me ensinem o caminho a seguir; só eu posso regular o meu procedimento, enquanto for vigário.

 

O seu despeito mostrou-se mais acentuado ainda à tardinha. Foi à igreja e aí, em face do cadáver já amortalhado, subiu ao púlpito para encetar uma nova série de práticas. Pôs-se a discorrer; mas em meio da descrição do quadro contristador da paróquia, seviciada pelo sol, estrangulada pela canícula, empestada pela febre, vendo-se aqui o luto - hóspede forçado em quase todas as moradas - acolá o terror - companheiro sombrio de todos os homens -, por toda parte o pensamento do exílio emboscado em todas as consciências, Paula suspendeu a sua torrente de horrores. Lembrou-se do conselho dado a Antão Ramos, e imóvel, com os braços levantados, os olhos fitos na telha-vã da nave, o semblante ensombrado por um recolhimento ascético, lembrava os antigos profetas invocando o Deus de Israel. Só depois de longos minutos de espanto e de contrição dos ouvintes continuou a falar, mas agora com a hesitação dolorosa que é às vezes a eloqüência da sinceridade, e outras a arma da perfídia.

 

Sonho ou realidade, disse, acabava de esmagá-lo uma visão tremenda. Era um lugar para o lado do Norte, triste, abandonado, pouso das aves da noite, cercado de uma paisagem lôbrega. A vegetação combalida lembrava a floresta dantesca em toda a sua tristeza. Neste lugar ouviam-se queixas e gemidos de velhos e de crianças, que morriam, pedindo em vão socorro aos seus semelhantes, tanto ou mais desgraçados do que os que pediam. De repente um clarão enorme abrira-se nesse lugar de tantas dores e de tanta desventura. Espirais longas de fumo rolando pelo espaço, turbilhonantes como os anjos rebeldes na sua queda, embaciaram a transparência do espaço. Um fragor, soturno como o rodar de um ventilador, mas permeado de ruídos estridentes, fez-se ouvir e logo depois as labaredas vermelhas, assanhadas como um bando de cobras enclausuradas numa gaiola negra, relampejaram, colearam e ergueram-se faiscando sobre o pedestal de fumo. A multidão, que aí habitava, acordando em sobressalto, sem tempo ao menos para salvar os filhos, queria arremessar-se às chamas temerosas, e contida, subjugada, debatia-se na profundeza da sua imensa dor. A noite aqueceu-se no brasido enorme daquela rápida fogueira, e, ao amanhecer, os olhos viam caídos pela estrada, como se ao peso da maldição de Deus, dezenas de pessoas mordendo a terra, desconsoladas como a própria morte.

 

- Ninguém pode penetrar nos arcanos divinos – exclamou o vigário terminando. - O homem não tem olhos para sondar o futuro; o olhar se enturva se quer lobrigar alguma coisa nesses domínios da Providência.

 

A palavra restabeleceu-lhe a força moral em toda a sua integridade; fazia tremer como nas primeiras prédicas repassadas da poesia tenebrosa das superstições. O seu vulto excepcional cresceu até a sua altura de outrora, e foi triunfante que desceu do púlpito, que lhe dava maior majestade do que um trono.

 

A sua perspicácia percebeu logo a inteireza da reabilitação, e Paula, com uma solicitude e sofreguidão pouco habituais, procurou entre os fiéis o timorato Antão Ramos. Quando o encontrou fez-lhe sinal para segui-lo até a sacristia, e aí o conduziu para o recanto de uma janela.

 

- Está ainda disposto a fazer aquela obra de caridade?

 

- Não sei, sr. vigário - respondeu o inspetor -, falta-me a coragem. Pensei no caso; pareceu-me perversidade; não tenho coragem. Eu fugirei daqui.

 

- E a paróquia, e todos ficarão expostos ao roubo, ao assassinato, porque a autoridade não tem força para fazer o bem geral. É muita covardia.

 

- Seja, sr. vigário; mas eu tenho filhos e pensei que pode não haver tempo de salvar as crianças.

 

- Pense melhor, sr. Antão Ramos; eu sou um ministro de Deus e não lhe aconselharia um crime. Os seus filhos serão talvez as primeiras vítimas. Roubado você, eles terão a mesma sorte. Pense que a conservação própria é um dever.

 

- Eu sou fraco, sr. vigário, não tenho coragem.

 

- Não é necessária a mão do homem para fazer o que virá diretamente da mão de Deus. Pode ir.

 

Paula afastou-se e foi ajoelhar-se em frente ao Cristo que ornava a grande mesa da sacristia.

 

O seu rosto sereno, sem a mais leve comoção, o seu olhar claro, embebido nos do crucifixo, alucinaram o simplório inspetor. Não era possível que Paula o aconselhasse a uma perversidade, quando podia fitar desassombradamente a imagem de Deus.

 

Este pensamento conquistou-lhe o espírito e expeliu o receio piedoso que o enchia, dando corpo ás ameaças tremendas do vigário. Frio invencível percorreu-lhe o organismo; as pernas fraquearam-lhe, e, azoinado, sentindo arrepiarem-se-lhe os cabelos, o supersticioso inspetor caminhou até junto do vigário, que, parecendo arrebatado num êxtase, continuava a orar ao Crucificado.

 

- Eu vou, sr. vigário, vou já - segredou-lhe Antão Ramos -, não peça a Deus que faça cair sobre mim o sangue do povoado; eu vou, tenha piedade de meus filhos.

 

- A misericórdia de Deus não precisa do braço do homem, sr. Antão Ramos. O povoado será salvo pela graça do Onipotente.

 

- Não importa - resmoneou o supersticioso -, eu farei a Deus este sacrifício.

 

Levantaram-se ambos, e Paula, abraçando ternamente o inspetor, disse-lhe a sorrir:

 

- Está bem, meu amigo, acalme-se, o sacrifício, para ser recebido, deve ser feito de ânimo calino.

 

- Obrigado, sr. vigário, muito obrigado.

 

Os olhos de Paula foram então encontrar-se com os de Marciano, que a um canto da sacristia acompanhava atentamente a cena, sem poder compreendê-la. Esse olhar aguçado pela curiosidade fez estremecer o vigário.

 

- Marciano, vá acender as velas nos altares, e diga ao povo que eu vou rezar um responso por alma daquela infeliz.

 

O velho retirou-se, depois de acender uma vela junto ao Cristo, e os dois interlocutores puderam ficar sós.

 

- Eu posso detê-los por aqui por mais de uma hora; depois ainda há o enterramento; ninguém o verá, vá.

 

Antão Ramos saiu com o ímpeto da alucinação, enquanto Paula, sorrindo, vestia a sobrepeliz para ir rezar o responso.

 

- Hão de agora respeitar mais os meus atos, sandeus; não hão de resmungar mais.

 

Era já noite fechada quando o inspetor estava preparado para levar a efeito o seu sacrifício à guarda da paróquia. O céu, apenas estrelado, não tinha luz para alumiar o caminho, e Antão Ramos pôde tomar a direção do Engenho sem que ninguém o visse. Só a consciência ia-lhe ao encalço, pondo ruídos assustadores na folhagem das árvores, abrindo mil olhos nos troncos ressequidos, articulando psius indiscretos no rumor trépido dos matagais.

 

A superstição não o tinha investido da coragem necessária para ficar indiferente à revolta silenciosa do seu espírito contra si mesmo, e o inspetor estremecia, hesitava, corria, estacava, sentindo latejarem-lhe as têmperas, encandearem-se-lhe os olhos, tornarem-se-lhe trôpegas as pernas ágeis.

 

Uma secura de febre ressequia-lhe a boca e aportava-lhe a garganta com a constrição do terror.

 

De repente parou, como se o tivessem chumbado ao solo. Estava no começo do cemitério, e a massa negra do cruzeiro pareceu-lhe um embuçado caminhando ao seu encontro, com os braços abertos, como para estrangulá-lo. Perdeu de todo a coragem e encostou-se à cerca para não dar em terra, tonto pela aluvião de pensamentos monstruosos que o salteavam, como num pesadelo.

 

Um rugido de chocalhos fez-se então ouvir no profundo silêncio, e uma voz rouca, ecoando forte, gritou claramente:

 

- Arriba, arriba!

 

Longe de acalmar-se, a exaltação do inspetor deu a estes sons uma origem sobrenatural. Pareceu-lhe que todas as covas se abriam, e que um bando de esqueletos, levantando-se morosamente das suas tenebrosas moradas, caminhavam para ele, brandindo grandes archotes e oferecendo-lhos por escárnio: "Toma, toma; vai incendiar o abrigo dos desgraçados".

 

Quis gritar, mas o seu espanto não tinha voz; quis fugir, mas conservou-se imóvel, como se um laço inquebrantável o amarrasse ao pau-a-pique da cerca.

 

- Arriba, arriba! - ecoou novamente na treva, de par com o bater dos chocalhos.

 

Um estrépito soturno, demorado, de tropa morro acima, ressoou em frente ao cemitério, e na treva alvejaram os pelos brancos dos animais e as camisas dos freteiros. Mas Antão Ramos, no seu delírio, via nos que passavam seres sobrenaturais, e, vencido pelo cansaço, deu em terra com um corpo inerte.

 

A tropa, ressoando os seus chocalhos num passo cadenciado, subiu a pequena ladeira e entrou pela praça da paróquia a alegrá-la e a confortá-la.

 

- Boa noite!

 

- De quem? - perguntaram os transeuntes ao freteiro.

 

- Do imperador - respondeu o freteiro, o Marcelino de Silva, com a sua voz muito cantada e melosa. - É a esmola do imperador.

 

- Bom, homem, chega mesmo ao montar! Como vai por lá o Ceará? Houve chuva?

 

- Que esperança! Está tudo torrado e o povaréu vai por aí de cabeça a baixo que é até um destempero.

 

- Virgem!

 

- As carnaubeiras por aí fora estão num destroço; a força do povo deu nelas com a fome, que é uma calamidade... Ê como uma mata brocada.

 

- É de morte?

 

- Está no Aracati o andaço da febre e do desandamento da barriga: cai gente como folha seca. Mas parece que não há nada, porque o povo é como a cabeça d'água de uma enchente, transborda pela cidade.

 

- Forte desgraça!

 

- E como vamos por cá?

 

- Na mesma toada, homem; está de amarrar a alpargata; num mês já lá vão para mais de 20 ao cemitério. A gente cai para aí com um febrão que é um Deus te livre, e já se sabe que é ir comprar a mortalha. Em menos de quatro dias está lapeado. Na igreja está se encomendando uma cabra de Maria Pereira.

 

- Então acho lá o sr. vigário.

 

- Visto.

 

- Tenho uma carta para ele e outra para o Monte, com muita recomendação.

 

O comboio estacou à esquina da igreja para deixar passar o saimento do cadáver. Um facho junto da rede e outro no meio da multidão alumiavam o caminho aos habitantes do Engenho, silenciosos pelo respeito inato aos mortos. O vigário, sobressaindo na mó, com a sua batina de lila muito preta, aumentava a solenidade da cena.

 

O freteiro, que se havia apeado, caminhou para Paula, e, tirando o chapéu de couro e saudando-o, entregou-lhe a carta, em cujo sobrescito lia-se o S. P. dos ofícios do governo.

 

- Serviço Público - exclamou Paula. - Vejamos o que diz; chegue-me cá este facho.

 

O vigário sorria à medida que ia correndo os olhos pelo bastardinho cuidado da carta, e, terminando a leitura, exclamou alegremente:

 

- Muito bem; saibam que não passarão mais fome. Está tudo remediado. Você, Marcelino, vá ter com o José em minha casa e deixe lá a carga.

 

O freteiro, cavalgando de novo, tangeu a tropa na direção da casa de Paula, enquanto os que se tinham demorado apressavam o passo para ficar mais próximo do caixão mortuário.

 

Uma impaciência invencível começou então a torturar o vigário; com o olhar agudo, penetrante, investigava todas as moitas, e, de vez em quando, enganado por um ruído, dirigia-se à beira da estrada para espiolhar.

 

- Como que ouvi pisadas - dizia ele, ao ver-se enganado.

 

- Seria capaz de jurar que as ouvi.

 

- Pois é engano seu, sr. vigário - respondiam-lhe alguns curiosos da paróquia que o vinham acompanhando.

 

Paula, porém, não se distraía do seu cuidado, e, sem poder mais conter a causa de tanta solicitude, perguntou:

 

- Viram na igreja o Antão Ramos?

 

- É verdade - responderam-lhe -, não apareceu lá, apesar de gostar de espiar tudo.

 

- E não estava também na venda - acrescentaram.

 

- Oh! diabo - exclamou o vigário.

 

Mas contendo logo a sua exaltação, ajuntou:

 

- Eu que precisava tanto conversá-lo!

 

- Isto é algumas diligências que ele foi fazer - ponderou um do grupo, que sorriu maliciosamente.

 

À porta do cemitério, o vigário pôde resfolegar livre da impressão que, mau grado seu, o subjugava. Algumas pessoas correram até junto da cerca, e, com exclamações de dó, puseram-se a levantar um homem que estava caído.

 

- Tragam cá o facho - clamaram -, está aqui um homem expirando.

 

Paula foi o primeiro a correr para o grupo, mas, em vez de entristecer-se como os circunstantes, o seu semblante alegrou-se.

 

- Ah! - exclamou ele, aspirando uma onda de ar -Felizmente.

 

E, como reparasse que tinha chamado a atenção de todos, acrescentou:

 

- Tive um aviso mau a respeito deste infeliz.

 

- Está ardendo em febre!

 

- Foi um susto, isto há de passar; chamem aí quatro desses homens para conduzi-lo até o povoado. Um gole de água com aguardente é quanto basta.

 

E, entre dentes, resmungou:

 

- Pedaço de poltrão!

 

 

IX

 

O freteiro, depois de deixar a carga em casa de Paula, foi bater à porta de Rogério Monte para entregar-lhe a carta que vinha do Aracati.

 

O velho, depois de reparar para o sobrescrito, agradeceu e despediu o freteiro, dizendo-lhe tranqüilamente:

 

- É do meu correspondente, muito obrigado!

 

Pôs-se a ler; mas em meio da carta a sua fisionomia perdeu repentinamente a serenidade, e foi com as mãos trêmulas, os olhos banhados em lágrimas a custo retidas, que Rogério concluiu a leitura.

 

- Cão! - exclamou ele - E eu que fiava-me tanto nas suas palavras!

 

- O que foi, meu pai? - perguntou de dentro a voz meiga de Irena.

 

- Nada, filha, negócios - respondeu Monte buscando modificar a entoação colérica da sua voz.

 

Irena, porém, amedrontada pelo tom rude de seu pai, tom de que ele se apenas servia quando falava dos Feitosas, correu para junto de Rogério. Ao vê-lo estremeceu pelo seu amor: o semblante demudado, as lágrimas, que marejavam-lhe e bailavam-lhe nas pálpebras inopidamente, eram o testemunho de uma dor profunda, e esta dor, pensava Irena, só lhe podia causar um Feitosa.

 

Saberia ele já da sua paixão condenada? Saberia que a vida de uma filha dos Montes dependia hoje do amor de Augusto Feitosa? Na véspera, seu pai tinha estado com o vigário, e bem podia ser que esse homem sem coração, cujos olhos seguiam os passos de Eulália, como a cascavel o rasto da vítima, tivesse surpreendido alguma coisa que deixasse perceber não ser Eulália, mas sua amiga, a amante de Feitosa.

 

A palidez dos cadáveres estampou-se no rosto de Irena, desde que lhe roçou a imaginação a ponta de semelhante pensamento. Paula não seria tão discreto que o ocultasse; gostava de ferir, e não se importava com a profundidade do golpe, senão para torná-lo maior. Seu pai já sabia do seu amor, pensou Irena; e foi com um tom suplicante, quase ajoelhando-se, que ela perguntou a Rogério:

 

- Está zangado comigo, meu pai?

 

- Não; não estou mal contigo, não, minha filha; mas deixa-me: quero ficar só. Deus te abençoe.

 

Irena saiu torturada pela suspeita desesperadora. Cada hipótese que figurava para explicar a repentina tristeza de Rogério ia enfarontar com o seu amor. Estava, pois, perdida, presa de um dilema horroroso: ou morrer, ou desonrar seu pai, que não lhe perdoaria nunca a profanação das tradições da família. Uma aluvião de pensamentos contraditórios tripudiavam sobre a sua exaltação. Ora via-se feliz, recebendo as carícias de Augusto, arrebatado num êxtase, suspenso da meiguice dos seus olhos azuis muito úmidos; ora via Rogério, taciturno, inconsolável, satisfazendo-se em agravar em silêncio a dor que ela, sua filha, causara-lhe já no declínio da vida, quando tinha direito a receber-lhe carícias, em troca das que lhe prodigalizara durante a infância e ainda agora na puberdade. Ora via-se pálida, desgrenhada, emagrecendo silenciosamente, irritando-se com tudo, aborrecendo todos, censurando intimamente seu pai como causa do seu infortúnio; ora o velho Monte, na intimidade de Queiroz, queixando-se da ingratidão inesperada, que o tinha vindo tomar de assalto na hora em que ele, com o coração transbordando de ternura, chegava-se, como de costume, à porta do quarto, para deitar a bênção à filha idolatrada.

 

E o espírito timorato de Irena, lutando na onda de contradições, não sabia resolver! Queria ao mesmo tempo a bênção paterna e as caricias de Augusto, e, no entanto, era obrigada a escolher entre elas, porque a fatalidade as separara para sempre.

 

Pé ante pé, Irena veio coser-se com o umbral da entrada da sala e espiar seu pai, o que era o mesmo que açular o seu padecimento.

 

Rogério continuava sentado, mas o peso do sofrimento fizera-lhe pender a cabeça, que conservava sobre os punhos cerrados. A vela, com a sua claridade frouxa, colocada a pouca distância dos cabelos brancos do criador, repassava a sala de uma tristeza indefinível.

 

As lágrimas rolaram em borbotões dos olhos de Irena, que se viu forçada a fugir, para não ser traída pelos soluços.

 

- E sou eu a causa! - murmurava ela, sentada na rede do seu quarto. - Como pude ficar tão ingrata!

 

Monte, por sua vez, pensava em Irena. De espaço a espaço levantava a cabeça e, olhando para a porta por onde Irena tinha saído, agitava as mãos com os movimentos do desespero. Afinal levantou-se e caminhou até a porta do quarto da filha.

 

- Até amanhã, Irena! - exclamou; e como sentisse que ela se levantava para vir ter consigo: - não te incomodes, até amanhã.

 

Mas a moça não se conteve, e, saindo, tomou-lhe da mão, e, beijando-a, molhou-a com as suas lágrimas. Rogério tornou-se ainda mais desfigurado: abraçou-se com a filha, e deixou transbordar a sua comoção em soluços que pareciam vir do fundo de 50 anos de honestidade. Mas a energia do seu caráter para logo reportou-o à compostura do infortúnio honrado, e o velho, desligando-se delicadamente de Irena e enxugando morosamente as lágrimas, que lhe rolavam das pálpebras sobre os louros cabelos da filha, disse com uma resignação simulada:

 

- Guardemos as lágrimas para mais tarde, para quando tivermos de separar-nos eternamente. Vá dormir - acrescentou com um sorriso triste -, não seja manhosa.

 

Uma vez separados, Rogério foi tomar o seu lugar junto a mesa, e Irena deitou-se de bruços na sua rede, debulhada em lágrimas.

 

As palavras de Rogério tinham-lhe agigantado a suspeita: sabia já, decerto, tanto que lhe falara em separação eterna, pensava ela; e, injuriando-se, maldizendo-se, lutava com o seu amor como que para esmagá-lo.

 

Era uma luta inglória: o sentimento que a absorvera tinha raízes profundas e força tamanha que rompera através dos preconceitos de dois séculos. Bradava-lhe com o egoísmo impassível do avaro, que não ouve lamentações as mais doridas, e inexorável, frio, desdenhoso, levantava-se-lhe diante, exigindo-lhe vida e expansão.

 

- Minha mãe, minha boa mãe - repetiu Irena -, salvai-me!

 

Os soluços e o pranto estancaram-se-lhe por momentos, e levantando-se, alisando precipitadamente as têmporas, murmurou resolutamente:

 

- Vou dizer-lhe tudo, ele há de perdoar-me: não quero, não devo casar-me com um Feitosa.

 

Não chegou porém a mover o terceiro passo. Estatelada, comprimindo o seio com a mão alva e pequena, afogando-se de novo em lágrimas e soluços, exclamou com entoação desesperada:

 

- Não posso; não quero morrer!

 

Tamanho sofrimento foi na manhã seguinte duplicado ainda por um novo golpe.

 

Muito cedo o mal-estar da insônia fê-la deixar o conchego morno da rede, e levantar-se cautelosamente, para ir colocar-se à janela do quarto que dava para a horta. A claridade esparsa no calor da lua cheia afluía para o oriente, congestionando-o de luz. Os cajueiros muito esgalhados, diante das gravioleiras folhudas, muito copadas, pareciam entes aflitos suplicando piedade a poderosos indiferentes. A hortaliça meio amarelada, quase rente com o solo nos canteiros escuros de estrume, como que pediam lhe que fizesse apressar a rega.

 

Começavam a chocalhar à entrada da pequena feira os animais de carga, e muitos dos moradores da praça vinham espreguiçar-se à porta, esticando os braços até bater nos umbrais com os punhos cerrados. Grande número de pessoas encontrando-se, parando, desviando-se, voltando atrás, subiam e desciam as ribanceiras descobertas do Jaguaribe, e uma vez sobre o seu leito, acocoravam-se em torno dos poços para tirar água com as vasilhas negras de barro, ou com as borrachas, espécie de albornozes fechados, com um estreito gargalo.

 

Mas no céu, como na terra, não havia esse regozijo deslumbrante do nascer do dia, senão uma tristeza que buscava disfarçar-se com a prodigalidade da luz, com as risadas dos carregadores de água, com o verdor das gravioleiras.

 

Irena, com os braços seminus cruzados sobre o peitoril, os cabelos louros arrufados pelas reviravoltas da insônia, os olhos amortecidos, as pálpebras manchadas pelo pranto, olhava sem fixidez para tudo isso, como se tudo fosse novo, desconhecido para si.

 

De súbito, estremecendo toda, tiritou com um calafrio, e encurvou a mão em roda da orelha avermelhada pela pressão noturna. Fraco, porém perceptível, espalhou-se no silêncio o ruído do abrir de uma fechadura enferrujada, e momentos depois passou pela frente da horta, cabisbaixo, com um passo tardo, o velho Rogério Monte.

 

- Vai lamentar com os nossos amigos a minha desobediência - pensou Irena.

 

Depois, sacudindo tristemente a cabeça, exclamou:

 

- Desgraçado pai!

 

E imóvel como se estivesse presa, conservou-se na janela apesar do sol nascente envolver-lhe já a cabeleira farta no calor dos seus raios. Foi aí que o velho Monte, de volta da sua excursão matutina, veio abraçá-la e deitar-lhe a bênção paterna, e emoldurá-la num olhar suplicante.

 

- Estás doente, minha filha? Estás tão pálida!

 

- Fiquei triste ontem - respondeu timidamente a moça -, vi-o tão abatido!

 

- Ah! É verdade, estive deveras acabrunhado, mas passou.

 

Uma palidez mortal traiu-lhe porém o desassombro que afetava com as palavras, e os seus lábios depuseram convulsamente um beijo na fronte de Irena.

 

- Ouve cá, minha filha: prometes não ficar triste com o que te vou contar?

 

O olhar da moça teve o movimento inexprimível da resignação, enquanto os lábios mentindo ao coração, como valido ao seu rei, murmuraram com uma inflexão tristíssima:

 

- Prometo.

 

- Tua mãe era corajosa; no princípio da nossa vida tudo parecia conspirado contra nós, e ela confortava-me sempre. Tu és boa como ela, sê forte também. Prometes?

 

Irena meneou a cabeça afirmativamente, e acompanhou seu pai até a sala. Sentaram-se ambos. Então Monte, tirando do bolso a carta que recebera na véspera, leu com voz trêmula:

 

"Dificuldades de nossa casa obrigaram-nos a dirigir-nos a todos os nossos honrados amigos do sertão, a fim de nos entendermos sobre a maneira de liquidar prontamente as nossas transações.

 

Assim, pois, ficamos à espera de ordens de V. Sa. para que possamos, amigavelmente como até hoje temos sempre resolvido os nossos negócios, desobrigar-mo-nos mutuamente dos nossos encargos.

 

Pela conta corrente junta, verá V. Sa. que das nossas transações resulta para V. Sa. um débito de 4:578$000, a que temos direito".

 

Irena resfolegou no fim da leitura: não era ela a causa do sofrimento de seu velho pai, e esta certeza deu-lhe ao coração azo para desafogar num suspiro.

 

Monte, comovido e quase humilhado, dobrou a carta e, depois de metê-la cuidadosamente no bolso, principiou a desdobrar a sua vida à filha atenta e compungida:

 

Ficara muito moço com os encargos da casa paterna, havia cerca de 40 anos, e através das perseguições que sofrera dos seus rivais, que se aproveitaram das comoções revolucionárias da época para continuar a série das suas vinganças, conseguiu honrar a memória de seus pais. À força de trabalho conseguira, com o concurso de sua finada esposa, colocar-se em pé de resistir à seca de 45 e manter-se sempre em posição que, se não era a abastança, era pelo menos o necessário para a vida e socorrer aos desvalidos. Agora, porém, a fatalidade tomara-o de assalto, e tinha de voltar talvez à penúria dos primeiros tempos da vida. Por isso, ao receber a carta que o sentenciava à pobreza, o seu primeiro impulso foi responder enviando para o Aracati, a fim de reembolsar os seus credores, os únicos bens de valor que lhe restavam: as suas duas mucamas, os três escravos e a cria que era o encanto da filha.

 

- Não há de ser preciso, meu pai; Deus lhe dará outros meios... Olhe! Para que não vende o sítio que não dá agora lucro nenhum? - perguntou Irena sofregamente.

 

Um sorriso desconsolado de Rogério Monte acolheu o conselho da inexperiência da moça. As terras nada valiam agora; o sol sugara-lhes a seiva e reduzira-as à infecundidade; ninguém daria hoje por elas nem a décima parte do seu preço. Os únicos valores atualmente eram os escravos, e era deles que lançaria mão na hora extrema. Ia ao Aracati combinar com os seus credores, e de lá voltaria para seguir para o Ceará, onde tinha parentes. Estava tomada a sua resolução, porque, apesar de não ser soberbo, não teria forças para pedir no lugar em que sempre dera.

 

- Está, pois, assentado - concluiu Monte. Devo partir amanhã e tu irás ficar na casa de Queiroz.

 

- Mas não seria melhor que ficássemos aqui? Vive-se com pouco tão bem como com muito - ponderou Irena.

 

Não entendes felizmente disto, minha filha; dentro em pouco a fome há de vir bater a todas as portas.

 

- Com licença - exclamou da porta o vigário Paula... - Continuem, se não é segredo.

 

- Não, não é segredo, e demais eu não os teria consigo. Entre e sente-se.

 

Irena saiu ao encontro de Paula para beijar-lhe a mão, e aproveitou o ensejo para sair da sala, onde era obrigada a sufocar o tumulto do seu coração contra a resolução tomada por Monte: a mudança da paróquia de B. V.

 

- Traz-me aqui hoje um interesse da religião e do governo - disse Paula -, e venho pedir-lhe auxílio.

 

Desencapou demoradamente o ofício que recebera à noite, e entregou-o a Rogério Monte.

 

- Leia; é o primeiro a quem me dirijo.

 

Era uma circular do governo. O coração benfazejo do velho presidente da província alarmara-se desde o segundo dia de abril, com a chegada de grupos famintos e maltrapilhos na capital. Nesta mesma noite o honrado funcionário fora até a praça da Assembléia levar a consolação e o amparo aos retirantes que aí tinham estadiado, inundando de consternação a cidade estupefata.

 

Desde logo o governo provincial, apesar de seus escassos recursos, pôs-se em campo a fim de evitar que o sertão desabasse para sobre as cidades do litoral, e criou comissões por toda parte, autorizadas a socorrerem os miseráveis, e a detê-los nas suas circunscrições. Tais instruções continha o ofício, pelo qual Paula, Rogério Monte e Francisco de Queiroz eram solicitados pelo presidente a aceitar o cargo de comissários dos socorros públicos.

 

- Infelizmente não posso ter a honra de servir - respondeu Rogério, restituindo o ofício ao vigário.

 

- Por quê?! Não era isto o que eu esperava de seus sentimentos caridosos...

 

- Vou liquidar os meus negócios aqui, meu amigo, e retirar-me da paróquia.

 

- Está zombando de mim, seu velho? Vá com Deus, porque eu também não me demorarei muito; mas enquanto está, aceite.

 

- Não posso. As minhas dívidas reduzem-me atualmente a precisar ser socorrido, e eu não quero ser acusado de tirar do governo às ocultas o que ele manda ser dado às claras.

 

- Ora, que escrúpulos tão fora de propósito!

 

- São modos de pensar.

 

Houve um silêncio embaraçoso, que foi finalmente quebrado pelo vigário.

 

- Quase que não tenho coragem de fazer-lhe um outro pedido.

 

- Paciência.

 

- Eu vinha pedir-lhe também consentimento para que a nossa meiga Irena fizesse parte de um grupo de virgens destinado a cuidar das crianças e dos enfermos. Mas a sua frieza...

 

- A minha tristeza antes. Irena não se negará decerto; eu não posso servir, leia esta carta e dê-me razão.

 

- Mas, que diabo! Por quatro contos e quinhentos você quer enforcar-se? - exclamou o vigário após a leitura.

 

- É tudo quanto possuo hoje!

 

- E as terras, e o gado, e tudo isso que o fazia tão estimado como esmoler?

 

- Ouça, Paula, você tem o mau sestro de rir sempre que os outros sofrem, e isto é mau.

 

- Não estou galhofando - respondeu sentenciosamente o vigário -, sinto até bastante o que lhe acontece, mas não hei de morrer por isto. Mande no que eu possa.

 

- Obrigado, meu... amigo; muito obrigado - respondeu Monte. E alteando a voz: - Quer você alguma coisa para o Aracati? Sigo breve.

 

- Boa viagem e pouca demora.

 

Paula saiu sem mostrar a mínima comoção. O seu coração frio, cheio de desprezo por tudo e por todos, bem que compreendesse quanto sofria o honrado criador, não teve para dar-lhe uma consolação sequer. A sociedade esmagara-lhe toda a aspiração lícita ao amor, e ele retribuía a opressora com a mais imperturbável perversidade. Por isso já uma vez havia dito:

 

- Não tenho parentes na terra; nada prende-me aos seus destinos: lavo portanto as mãos.

 

Para o velho Monte, pois, começara a via dolorosa da humilhação. Fora ele quem mais diretamente concorrera para que o padre Paula fosse colado vigário da paróquia. Dera-lhe a mais íntima familiaridade, estimava o mesmo, apesar de notar-lhe grandes erros e defeitos. Doeu-lhe por isso mesmo a inexplicável frieza que mereceu-lhe a história do seu infortúnio, e chamando por Irena, o velho disse com uma entoação sentida:

 

- Ouviste, filha? Olha como é o mundo: a adversidade tem o cheiro da lepra, que só pode ser tolerado pelos amigos sinceros.

 

- Se estes que nos conhecem tratam-nos assim, o que não farão os outros, meu pai?

 

Era uma reflexão dolorosa, mas verdadeira. Paula, com os seus oferecimentos e protestos de ponta de lábios, com a sua condolência banal, era apenas o primeiro termo da progressão de desgraças que lhes cumpria percorrer. O mundo da miséria, com as suas estradas tortuosas, lamacentas e fétidas, os seus dias de mendicidade suplicante e abatida em face dos insensíveis, dos maus e dos cruéis, rasgou-se-lhes diante com avareza cruciante de terra e de céu, de risos e lágrimas, de estimas e maldições, monótono, sombrio, esmagador. É verdade que o velho Monte não havia pensado em estender a mão aos transeuntes, em viver da comiseração passageira, da esmola sem carícia às vezes até desdenhosa dos agradecimentos que recebe. Mas o seu futuro era contudo um problema assustador, cuja solução limitava-se à piedade. Ou os seus credores recebiam-lhe a honra em caução das dívidas, ou teria de recorrer aos seus parentes e aos amigos velhos. Em todo o caso a sua vida ficava dependente da piedade alheia, e esta é sempre inconsistente e variável.

 

- A frieza dos desconhecidos doerá menos, minha Irena - concluiu Monte -, custará menor tristeza e humilhação.

 

- Mas não era hoje, meu pai, que vosmecê devia resolver; está ainda muito vivo o golpe.

 

- Amanhã estará ainda mais profundo e incurável: as feridas da infelicidade são mais fáceis de gangrenar que de cicatrizar. É preciso que partamos, que saiamos daqui, e prouvera a Deus que pudesse ser já!

 

A comoção violenta, produzida por estas palavras no ânimo de Irena, bebeu-lhe de um sorvo todo o sangue. Pálida, entontecida, avassalada pela angústia, pediu ao velho Monte que a levasse para junto de Eulália, ou trouxesse esta para junto de si.

 

- Pobre filha - suspirou Rogério saindo para levar o chamado -, como sofre, e como é pobre de forças para o martírio que a espera!

 

 

X

 

O vigário, retirando-se da casa de Rogério Monte, fora dar os bons dias e levar a honrosa nova ao professor. Francisco de Queiroz, porém, respondeu-lhe com os mesmos escrúpulos de Monte, e recusou formalmente a distinção que lhe era dada pelo governo.

 

Paula, que não achava decentes num professor público semelhantes razões, ponderou-lhe que era uma desculpa sem valor e concluiu por disfarçar uma ameaça:

 

- Se o governo souber que você negou-se à comissão sem um motivo justo, pode tirar-lhe a cadeira.

 

- Paciência - respondeu o professor -, serei castigado por ter brio.

 

Paula não perturbou-se com esta outra negativa, e calmo, escarninho:

 

- Fazem bem - disse a franzir os lábios; - já vejo que era até impossível servir com vocês: os escrúpulos deitariam longe.

 

- Já vê que procedemos bem; confesse-os você ao seu gosto e proceda como entender.

 

- E o procedimento há de ser aplaudido por todos. Ouça: um grupo de virgens se incumbirá de tratar das crianças e dos enfermos. Que lhe parece?

 

- Bom - respondeu sinceramente o professor -, muito bom.

 

- Então espero que a sua falta de religião não impedirá que suas filhas façam parte do grupo.

 

- Certamente.

 

- Eu contava com esta resposta; vamos a ver o que dizem as meninas.

 

Eulália e Chiquinha mostraram-se entusiasticamente dispostas a aceitar a tarefa, e a primeira acrescentou:

 

- É uma obra de caridade; assim é que devem ser tratados os infelizes, e não como naquela noite da expulsão da família chegada de Inhamuns.

 

Desde a vez em que Paula insinuara a Eulália que ela era uma doida, nunca mais tinham trocado palavras, exceto as de cumprimento à entrada e saída do vigário que, ao sentir o hálito morno do beijo habitual da moça, maldizia-se de haver-lhe provocado a frieza hostil. Eulália por sua vez pensava em Paula, mas com o desejo de vingar-se, de humilhá-lo, ferindo-o no seu crédito, desprezando-lhe a amizade. Olhou, pois, em face o vigário, para ver o efeito produzido pelas suas palavras.

 

- A caridade não deve exagerar-se ao ponto de proteger ladrões - respondeu Paula com máxima serenidade. - É verdade que os apóstolos de hoje pregam o contrário, mas em compensação fogem ao menor sacrifício.

 

- Não é por ser apóstolo que eu estranhei; é que sou sincera - replicou Eulália meio embaraçada.

 

- Deus a conserve sempre assim. Bem! Vou ao Antão Ramos.

 

A conversação passou de chofre para os comentários acerca do encontro do inspetor diante do cemitério.

 

- Ele vai melhor? - perguntou o professor.

 

- Deve estar bom já. Dormiu sempre ontem.

 

- Parecia estar doido; falava em incêndio, em serviço a Deus, nos retirantes...

 

- Era um delírio - interrompeu Paula, um pouco perturbado -, mas passou.

 

- Esteve mal o pobre homem; dizia que você o tinha mandado incendiar o Engenho. Que trapalhada! Que febre!

 

- É - ponderou o vigário -, talvez já estivesse doente quando lhe contei o sonho que repeti ontem na prédica; impressionou-se demais. Até logo, vou justamente à sua casa convidá-lo para fazer parte da comissão.

 

- Até logo.

 

Eulália e Chiquinha beijaram a mão do pároco, que batendo-lhes carinhosamente na face, agradeceu em nome do céu o favor que lhe iam fazer.

 

Em meio da sala das aulas, porém, o vigário foi obrigado a retroceder. Monte, que entrava na ocasião, pediu-lhe para servir de companheiro a Eulália até que entrasse em sua casa.

 

- Irena está tristíssima com a partida, e pediu-me para lhe levar a amiga. Faz-me este favor? - perguntou Rogério.

 

- Com todo o gosto.

 

- Ó Queiroz, deixa a tua filha ir ficar alguns minutos com a minha! - exclamou Rogério entrando na sala de jantar.

 

- Eu preciso de conversar, e Irena está inconsolável. O vigário ficou à espera para acompanhar Eulália.

 

O sobressalto da moça não deu lugar a que se acentuasse a contrariedade que lhe causava a companhia de Paula. Não hesitou; apenas demorou-se a consertar as tranças, e saiu muda e apressada.

 

O vigário, apertando um pouco o passo cadenciado, envolvia-a com a lubricidade do seu olhar. O seu vestido e cassa, muito justo no tronco e escorrido sobre as saias sem goma, iludia o recato virginal e deixava completamente desenhados os contornos luxuriantes, a altivez feérica dos seios impolutos, e a tumescência escultural dos quadris das Pomonas de mármore.

 

O sussurro do roçar das saias no chão arenoso da praça chegava-lhe ao ouvido com a sonoridade dos coros das lendas orientais: música suave, que era a surdina das frases quentes e das exuberâncias de gozos de paixões estimuladas por encantamentos de fadas. Paula, sentindo-se só na vida, como que queria dissolver-se nesse mágico som, como os palácios solitários, que eram o abrigo daqueles amores, dissolviam-se com as névoas nos primeiros rumores do dia, prestes, como se fossem eles os materiais com que a aurora construísse o vestíbulo cambiante que dá entrada ao sol no domínio absoluto do firmamento. Trêmulo, ofegante, delirando, o vigário seguia a jovem arrebatado pela paixão, a querer pedir-lhe um gesto, uma palavra, e no entanto mudo e automático. Os lábios secos pelo acesso violento de fascinação embebiam-lhe a voz como a esponja seca embebe a gota de água, e ao passo que o seu andar rítmico devorava a distância, a celeridade desse turbilhão de formosura e pudor punha-lhe no crebro a vertigem da perdição.

 

Eulália percebia o esforço de Paula para colocar-se ao seu lado, e por isso mesmo esmerava-se em malográ-lo acelerando cada vez mais os seus passos. Maltratara-a muito, sem que lhe desse causa; era mister castigá-lo com a mesma crueza, deixando aos olhares da perspicácia maligna verem uma posição equivoca para o vigário, que não gozava de bom nome. Isto bastaria para sua vingança.

 

Mas entre a casa de Queiroz e a de Rogério Monte ficava a do velho sacristão, ao fundo de um pequeno terreno ensombrado por grandes cajueiros. Ao passar em frente, Eulália encarou com a Mundica, a rainha da formosura aclamada pelo povoado inteiro.

 

- Entre um instantinho, Eulália; há que tempos não a vejo - gritou Raimunda correndo para a cancelinha da cerca. E dirigindo-se a Paula: - Bom dia, sr. vigário; está também se tornando fruta.

 

- Não posso; vou com muita pressa - respondeu Eulália, que se limitou a acenar-lhe com a ponta dos dedos.

 

Mundica encostara-se à cancelinha e estendeu a mão ao vigário, detendo-o.

 

- Por que não veio ontem? - perguntou meigamente, repreensiva.

 

- Pelas ocupações, filha; até logo.

 

- Sim? - murmurou a voz suave de Mundica - Olhe que eu tenho ciúmes.

 

- De quem? - perguntou Paula afastando-se.

 

- De todas...

 

- E as outras todas nem se lhe aproximam..

 

Raimunda, que havia intrometido no engradado da cancelinha a cabeça sedutora, como um ideal de deusa pagã, contraiu os finos lábios num muxoxa; depois levando à mão a boca:

 

- Vá depressa; creio que o vento já está soprando para aquele lado - disse.

 

E assinalou Eulália.

 

A beleza oriental de Mundica fez espairecer um pouco o vigário, que, reportando-se à frieza habitual, seguiu no seu passo ordinário. Eulália diminuiu também a celeridade do andar; por duas vezes voltou-se disfarçadamente para trás, e, mordendo os lábios, seguiu ainda mais devagar como para se deixar apanhar. Mas o adiantamento que levava tornava impossível o vigário aproximar-se, sem que ela parasse, antes da casa de Monte, que estava à distância de uns vinte e tantos passos. Cada vez mais percebia-se no andar da moça a dissimulação da vontade de ver-se alcançar, descrita pelo poeta nas ninfas da ilha dos Amores. No entanto prosseguiu até que chegou à porta da casa, de onde via ainda a cabeça encantadora de Mundica.

 

- Anda muito - disse Paula reunindo-se-lhe a sorrir; - é em tudo a Diana caçadora.

 

- Muito obrigada pelo favor de trazer-me - respondeu Eulália.

 

E tomando-lhe a mão, inclinou-se para beijá-la.

 

Paula reteve na sua a mão de Eulália, e fixou nos dela os seus olhos, que fitavam-na com a magia de 15 anos de domínio. Amável, abandonada a uma força que era superior ao seu desejo de vingança, Eulália deixou-se ficar com os olhos baixos sob o magnetismo desse olhar invencível.

 

- Temos estado com os papéis invertidos - murmurou o vigário; - quem deve beijar-lhe a mão sou eu.

 

E fez menção de beijá-la; mas o pudor da mulher reagiu contra a fraqueza da menina de outrora, e Eulália, arquejante de vergonha e de energia, repeliu-o bruscamente, e entrando:

 

- Eu não sou a Mundica, ela ficou mais para trás -resmungou quase a chorar.

 

- Já tem ciúmes? - perguntou Paula baixinho.

 

E alteando a sua voz autoritária, acrescentou:

 

- Lembranças à Irena, ouviu?

 

Eulália em bicos de pés e despercebida, entrou até a sala de jantar.

 

O sol, debruçado por sobre a janela que dava para a horta, parecia um ladrão escarranchado no peitoril, com o pulo já firmado no pé fincado no solo. Um grande quadrilátero de luz punha um tom alegre no fulvo sombrio do enxadrezado do ladrilho. As cadeiras desarrumadas lembravam pessoas tresnoitadas, adormecidas aqui e ali, no desleixo do torpor.

 

Sobre uma corda, amarrada por uma das extremidades à parede da casa, um terno de roupa cheia de dobras e muito preta, aquecia-se, para ser desempoeirado. O abandono e a tristeza, congraçados no silêncio apenas quebrado pelo ferver pouco ruidoso das panelas, na cozinha próxima, davam a tudo um aspecto desolado.

 

A porta do quarto de Irena, apenas encostada, cedeu ao delicado impulso da mão de Eulália, e a claridade da sala rompeu o crepúsculo em que a janela cerrada mantinha o aposento.

 

Irena, toda vestida, estava atirada sobre a rede, a cujos pés uma cabocla velha, com o braço apoiado sobre um joelho, sentada no chão, cochilava e cabeceava. Eulália parou e inclinou-se diante da rede, e depois de contemplar o rosto pálido, as pálpebras roxas, as veias azuladas muito visíveis nos punhos e no colo de Irena, sentou-se em frente à cabocla, e encostou a cabeça à fronte lívida da amiga, que resfolegava demoradamente o seu pesado sono de prostração e de angústia.

 

Esteve muito tempo assim, até que em uma das contrações que de quando em quando obrigavam-na a exalar um longo suspiro, Irena abriu os olhos muito azuis, e conchegando a sua face à de Eulália, prorrompeu num choro histérico, arquejantemente soluçado.

 

- Vá Matilde, vá cuidar das coisas - disse Irena à cabocla; - eu não tardo também.

 

- O que é isso, minha filha? - perguntou Eulália pela terceira vez. - Que desespero! Não sabe ter um pouco de paciência?

 

- Ah! Você não pode calcular o que nos aconteceu! Seu pai não lhe contou nada?

 

- Disse-nos que você ia amanhã lá para casa, porque seu pai vai ao Aracati a negócios.

 

- Não, não é só isto.

 

E interrompendo-se a cada instante, para dar curso ao crebro soluçar, Irena desfiou a história do repentino descalabro da casa paterna.

 

- Mas não vale a pena você afligir-se tanto - disse-lhe Eulália. - Moraremos todos juntos; meu pai há de gostar de poder retribuir ao seu as muitas finezas que lhe deve.

 

- Não é possível, minha filha, e esta é a causa da minha aflição; meu pai quer mudar-se da paróquia e ir para o Ceará, para não viver humilhado aqui. Já vê que eu tenho de partir também.

 

- Partir ... - repetiu Eulália.

 

E confundiu as suas com as lágrimas da amiga.

 

Conchegadas as faces, e misturando o pranto e os hálitos, jazeram por largo tempo. Cada olhar que trocavam era um fermento ao padecimento e fazia recrudescerem os soluços, e redobrar-se o amargor do choro.

 

- Mas, não; eu não parto!

 

- E seu velho pai, Irena?! Há de você desobedecê-lo, quando ele sofre tanto?

 

- Nunca pensei em proceder assim, mas é o meu destino.

 

- O desespero é quem está falando por você: pense melhor.

 

- Parece que você deixou de ser minha amiga, Eulália - disse a filha do criador, sentando-se de improviso no bojo da rede.

 

- Eu?!

 

- Sim, não era de admirar; o vigário, que se mostrava tão amigo de meu pai, soube indiferente da sua desgraça.

 

- Está bem - balbuciou Eulália sentidamente -, eu já dei motivos para ser igualada àquele ser abjeto!

 

As palavras da amiga, pronunciadas com o amargor do ressentimento, como que acabaram de alucinar a desditosa Irena. Descendo precipitadamente da rede, foi sentar-se junto de Eulália, e abraçando-a, pousando a cabeça sobre o seu ombro, suplicou-lhe a arquejar:

 

- Não me queira mal, minha amiga; eu nem sei o que digo!

 

Estava como doida; o coração tornara-se insensível para tudo que não fosse Augusto, que não viesse dele, que não tendesse para ele. Olhando para o fundo da consciência, via todos os seus sentimentos estrebuchando aos pés do seu amor triunfante e bárbaro na vitória. A amizade por seu pai e Eulália ia a pouco e pouco afastando-se-lhe do coração, triste como ao pôr do sol retiram-se das bordas do açude as garças assustadiças. Tinha tido um sonho medonho. que era a tradução fiel de sua alma: Feitosa tinha saltado a janela do seu quarto, e, trêmulo, carinhoso, tinha-a tomado nos braços. Ela madornava, e só acordou traspassada pela frialdade da noite e pela claridade indiscreta do luar, mas nem sequer teve o menor estremecimento. O brilho sereno dos seus olhos pediam-lhe perdão e prometiam-lhe um mundo infinito de alegrias imaculadas, feito de constelações de beijos e das irradiações ardentes do seu amor. Passaram as horas a conversar venturas, a fazer castelos. Tomavam a vida entre os dedos, como a criveira a sua agulha, e com ela bordavam os relevos de um paraíso de amor no tecido de lágrimas do passado. Ao nascer do dia, ela tinha-se vestido de branco, cercado a cabeça por uma coroa de flores de laranjeira e ensombrado o rosto com um véu de escumilha; Augusto, vestido de preto, dera-lhe o braço, e sozinhos, absortos no seu íntimo contentamento, foram ajoelhar-se aos pés do vigário Paula e juraram amar-se até além da morte. A igreja estava solitária, e o Cristo, emoldurado pela claridade da banqueta acesa, tinha a quietação de quem duvida e espera. Ela e seu noivo subiram ao altar, e, depois de ajoelharem-se e rezar, levantaram-se para casar para sempre as suas almas num beijo deposto aos pés do Homem-Deus. Feitosa tomou o crucifixo, e, conchegando o rosto muito descorado ao seu, que escaldava de rubor, aproximou o corpo do Cristo aos lábios de ambos. Porém, como neste momento levantassem os olhos, não viram na cruz o Deus que perdoa, mas Rogério Monte, de uma lividez transparente, deixando ver o coração a sangrar pela fenda de uma punhalada.

 

- Uma gota de sangue - concluiu Irena - caiu entre nós, e então uma força que eu não via começou a separar-nos sempre, sempre, até a morte!

 

- Minha pobre amiga.. ai! Nós somos bem infelizes.

 

- Eu; você não, porque não ama.

 

- É verdade - exclamou Eulália, dominando um tremor convulsivo -, não amo!

 

- Não sabe que dor profunda é amar - continuou Irena exaltando-se - sem poder dizer a ninguém que este amor vive, cresce, escraviza, e matará!

 

- Ai! Desgraçadas de nós! - soluçou Eulália com uma entoação desesperada.

 

Calaram-se, e cruzando as cabeças uma sobre o ombro da outra, quedaram abraçadas estreitamente, como se quisessem consorciar as suas dores gêmeas.

 

O isolamento dava-lhes uma investidura sobrenatural. Pensar-se-ia, ao vê-las, ter diante dos olhos uma dessas páginas rendilhadas dos bons tempos da cavalaria, em que os donzéis galhardos justavam lanças pela posse de nobres damas. Elas eram as castelãs requestadas, lacrimosas, inconsoláveis, no desvão desornado do castelo feudal, sem outra coragem do que enviuvar na virgindade e esperar resignadamente que a morte viesse entressachar de goivos as suas grinaldas puras.

 

De fora vinha a toada triste de uma canção sertaneja, muito prolongada em assonâncias contraltinas, e de quando em quando um arrulho de rolas, escoado dentre as copas das árvores. De mistura com eles ouviu-se dentro em pouco uma voz gutural, áspera, roufenha, arremedando a toada tristonha que os escravos do criador cantavam revolvendo nos canteiros a terra ressequida.

 

- Que voz tão feia - ponderou Eulália, desligando-se dos braços de Irena -; causa-me calafrios.

 

- Há de ser o Joaquim Maluco, que vem almoçar - disse Irena. - Ele também há de sentir muito, quando eu me for embora.

 

A toada e o arremedo continuaram, até que o doido, sacudindo-se na cerca, bradou num assomo de cólera:

 

- Calem-se, não cantem que podem acordar minha filha. Eu não quero que ela vá hoje confessar-se com o vigário; calem-se!

 

Uma gargalhada respondeu ao grito adoidado daquele coração de pai, sublime ainda na loucura.

 

- Cabocla, vai dizer lá fora que não zanguem o doido! - gritou Irena.

 

E pálida, desfigurada, voltando-se para Eulália, acrescentou:

 

- Eu morreria de dor, se meu pai enlouquecesse.

 

- Não fale, não fale assim... Esse homem é uma perseguição; antes morresse.

 

- Padece muito; ainda há pouco, desapareceu de casa, e só dois dias depois foi encontrado, porque souberam pelo vigário que ele estava no cemitério.

 

A toada sertaneja cessou, e o doido, deixando a cerca, acrescentou:

 

- Vamos, vamos ao outro anjo, ao anjo do velho daqui, meu amigo; quando a minha filha acordar há de vir também.

 

- Coitado! - murmurou Irena.

 

E levantando a voz, chamou pela cabocla.

 

- O que é que você vai fazer? - perguntou Eulália.

 

- Mandá-lo entrar para comer.

 

- Não, não o faça entrar; eu tenho medo, tenho vergonha dele.

 

- Você?

 

Eulália escondeu o rosto nas mãos, como que para ocultá-lo de si mesma, e murmurou:

 

- Sempre que o vejo, lembro-me do sr. vigário, e tenho medo.

 

- O sr. vigário é um perverso, frio como as cobras -acentuou Irena.

 

Eulália confirmou e continuou a maldizer do vigário. Parecia deleitar-se em torturá-la sempre. Desde a procissão de prece, nunca entrou em conversação consigo sem acerar no fim uma grosseria que a ficava pungindo cruelmente. Mas o pior, o que a assustava, era que as suas insinuações já como que lhe compraziam; eram como um remédio sobre uma chaga prestes a cicatrizar. E certo que lhe doíam muito, mas era uma dor que passava rápido, uma nuvem negra que se desfazia logo, para deixá-la mais claramente ver o passado que era todo de Paula. Lembrava-se das suas afabilidades de então, e via-o muito carinhoso, chamando-a para junto de si inclinando-se cheio de ternura e beijando-a nas faces. Nesse tempo, o vigário não a maltratava. Tinha, ao contrário, por si desvelos de pai. Queria saber se tinha estudado, como ia cosendo, como já crivava e, sempre que havia portador para o Aracati, mandava-lhe vir bonecas bonitas, com os cabelos louros como os de Irena. Agora que, sem razão, não tinha a dizer-lhe senão palavras desabridas, ela voltava-se para o passado, onde ouvia aquela mesma voz repassada de ternura. Ah! Se pudesse esquecê-lo, se houvesse o que lhe suprimisse da memória os 15 anos de bondade e de carinhos, como seria feliz!

 

Irena, que se ia impacientando à medida que Eulália confiava-lhe o segredo do seu pensamento para com Paula, teve um movimento brusco ao ouvir estas últimas palavras.

 

- Mas então esse vigário continua a fazê-la sofrer?

 

- Muito, muito!

 

- Oh! Meu Deus! - ponderou Irena receosamente. - Quer ver que você o ama!

 

- Eu?! - interveio Eulália, profundamente enleada. - Amo-o sim... como sua filha.

 

 

 

À esta mesma hora o vigário conversava com Antão Ramos.

 

Paula sentia-se bem, tinha tomado uma sangria para se desencalmar, pois viera soalheira em fora, para não dar ao inspetor o azo de pensar que ele se esquecia dos amigos. O quarto, ainda que estivesse com as janelas fechadas, era fresco, atraía pelo asseio e além disso pela presença da mulher de Antão. Era uma trintona de carnes luxuriantes, muito afável, rindo a mostrar toda a dentadura sã, e deixando cair a cabeça para trás, movimento que lhe mostrava o pescoço roliço como um estipe, braços fortes e principalmente olhos prometedores. Estava aleitando uma criança robusta, que, já meio saciada, brincava, ora abandonando, ora pegando de novo no seio nu, moreno, que ele sustinha entre as mãos pequeninas. Paula para a enquijilar, ia de espaço a espaço meter-lhe os dedos entre os lábios e afastar o bico do seio, que depunha na face próspera da criança a gota de leite pendente, essa pérola sacrossanta do eterno diadema da mulher. A criança, revirando-se no colo, voltava-se para o vigário, mas em vez de enfadar-se sorria, e Paula então, cravando com um delambimento hipócrita os seus olhos negros nos da senhora, gabava tamanha mansidão.

 

- Não foi coisa de cuidado, e ainda bem, porque faria agora grande falta - ponderava o vigário, de quando em quando.

 

- Hoje, sr. vigário; mas ontem quando este homem entrou em braços, pensei que os meus filhos iam ficar sem pai.

 

E a sra. d. Teresa passava a mão pela testa do marido, como se temesse ainda perdê-lo e não quisesse regatear-lhe carícias.

 

Alguns minutos depois da chegada, Paula tinha ferido o ponto principal da sua visita, e recebera de Antão Ramos a resposta que esperava.

 

- Muito agradecido pela honra, a Vossa Mercê; conte comigo.

 

- As pequenas compras de gênero hão de ser feitas na sua casa... Felizardo ! - acrescentou o vigário - Vai ser milionário...

 

- Qual, sr. vigário! A farinha e a carne não dão para isso.

 

A conversa estancou de pronto, porque o sr. vigário tinha ainda de ir arranjar um terceiro comissário. Queria que ele fosse o Augusto Feitosa; era um rapaz que tinha algo de seu e pelos modos parecia bom procedido. Retirou-se, portanto, o presidente da comissão de socorros em direção à casa do indigitado.

 

Contava com o efeito das suas visitas àquela hora, porque importava um sacrifício. O sol no meridiano lançava sobre a terra os raios potentes, como o tigre as suas unhas tremendas nas carnes da presa. O solo irradiava o calor de um ferro em brasa, e nem um sopro de vento refrescava a atmosfera. Os grandes como os pequenos dormiam nas suas redes, sem ousar pôr pé fora de casa: seria apanhar febre maligna, que era andaço e que não tinha cura. Só o vigário ousava afrontar a canícula, por amor da caridade, e isto impunha a aceitação do que pedia.

 

Foi, portanto, sem nenhum transporte que recebeu do moço a resposta de que aceitava a comissão.

 

Amanhã, pois, o senhor estará em nossa casa para fazer comigo a distribuição de víveres.

 

- Sem dúvida, sr. vigário; hei de fazer por cumprir o que me for ordenado.

 

Paula começou a discorrer longamente sobre o que tinham a fazer, as medidas para manter o moral entre os desgraçados, os cuidados com que teriam de lutar para bem distribuir os socorros. Concluiu pelo grande concurso que viria à comissão do auxílio de um grupo de moças que se incumbissem das crianças e dos enfermos.

 

Teriam neste número as filhas das maiores pessoas do lugar, o que era um exemplo às outras, e ao mesmo tempo a segurança com que trabalhariam. Entre essas graciosas belezas da paróquia estava Eulália, a filha do professor, uma flor de carne que exala perfumes do céu.

 

- O senhor conhece Eulália, não é verdade, sr. Augusto Feitosa?

 

- Conheço - respondeu Feitosa ingenuamente. - É para o meu modo de entender uma das boas almas daqui, um coração leal e dedicado, fidalga nas afeições.

 

- Então conhece-a bastante?

 

- Muito, muitíssimo. Porém, permita-me uma indiscrição: a Irena Monte faz parte do grupo?

 

- Não podia deixar de convidá-la: dou-me, há muitos anos, com Rogério, e hoje, que ele está próximo da miséria, devo ao menos salvar as aparências.

 

- Longe de mim a menor censura contra o seu procedimento, sr. vigário. De coração lhe confesso, estimo até que assim entendesse.

 

- É um nobre procedimento - disse Paula meneando a cabeça como quem está admirado.

 

Os olhos do vigário desmentiam-lhe, não obstante a aparente cordialidade. Revestia-os já o brilho felino habitual, e foi saturando de escárnio as suas palavras que reatou a conversação.

 

- Está definitivamente assentado; espero-o amanhã pelas dez horas.

 

E tomou o seu chapéu redondo para sair.

 

- Eu não me furtarei a nenhum trabalho; mande, sr. vigário.

 

- Para o inferno - resmoneou este -, raça de cães e assassinos

 

Depois acrescentou alto:

 

- Hei de aconselhá-lo.

 

O ódio recalcado de Paula, insurrecionado pela espontaneidade de Feitosa, pintou-lhe o movimento de caridade como indecente manobra para obter mais tranqüilas, mais fáceis, mais longas entrevistas. Cabisbaixo, vacilando como se estivesse tonto pelo ardor da soalheira, caminhava para casa com a celeridade dos seus pensamentos apaixonados. Não via, não atendia, não cumprimentava, e à porta de venda do inspetor não se demorou senão para certificá-lo da aceitação de Feitosa.

 

Mundica, que viera assentar-se a coser sob o arborizado da frente de sua casa, convidou-o em vão para descansar, mas ele respondeu friamente:

 

- Estou a arder com dores de cabeça.

 

- Há de ser cansaço; venha deitar-se na rede e verá como fica bom.

 

- É o que vou fazer.

 

- Mas por que não me faz a vontade, vindo descansar aqui?

 

- Prefiro o silêncio; adeus

 

Passou adiante e, vendo na sala da escola Queiroz e o velho Monte, limitou-se apenas a dizer que voltaria depois; agora precisava de repouso.

 

Mas em casa o primeiro cuidado de Paula não foi fechar-se no seu quarto para deitar-se. Sentou-se diante da mesa da sala de visitas e tirou de sob os papéis um canivete-punhal, cuja lâmina pôs a nu. Limpou-a cuidadosamente na manga da batina, provou-lhe o fio na palma da mão e, fitando-o com uma atenção de joalheiro, murmurou sombriamente:

 

- Ê preciso que estejas ao meu lado; quem sabe o que teremos de fazer!

 

 

XI

 

 

 

A tristeza entrara na casa de Queiroz, e muito principalmente na de Monte, para não mais deixá-las.

 

Algumas horas tinham bastado para ruir até os fundamentos do edifício construído, havia dois séculos, e cimentado com tremendas mortualhas. Rogério Monte, o último dos representantes que podia bruxulear o brilho dos seus maiores, via diante de si a miséria, e, ameaçado por este inimigo tremendo, não tinha outra saída além da humilhação da esmola ou a prisão perpétua do favor.

 

O velho Queiroz, apalpando com o tato finíssimo todo o horror da situação do seu velho amigo, sofria com a mesma intensidade o desgosto profundo que lhe havia sido reservado para os últimos dias da existência.

 

- Parto, pois, amanhã - disse-lhe Monte no silêncio da sala das aulas; - se eu morrer no Aracati, espero que minha filha não ficará sem pai.

 

- Basta o que já sofres, homem - respondeu-lhe Queiroz; - não me fales em morte.

 

Os dois honrados amigos não tinham, entretanto, medido a extensão da mútua desgraça, apesar da larga e tristíssima face que lhes era dado ver. Para que os seus corações fossem precisamente cruciados pela realidade, era mister que penetrassem no quarto de Irena.

 

Aí as duas amigas continuavam a agravar pela imaginação os seus sofrimentos.

 

O amor violento e intratável de Irena sobreexcitava-se quase até a loucura, e como que despertava no espírito da amiga o desejo de ser também infeliz pela mesma causa e com o mesmo arrebatamento.

 

- Sabe o que hei de fazer, Eulália, sabe o que eu hei de fazer ... Não, não posso dizer.

 

E alucinada, escondendo o rosto nas mãos brancas de jaspe, contava à amiga que tinha medo. Parecia-lhe que a alma de sua mãe, condenava-lhe o amor: ela não tinha conhecido as veemências da paixão; levara uma vida serena do berço até a cova, cercada pelos afagos de seus pais, pela afeição calma do esposo, pelas bênçãos sinceras da pobreza, de que fora mãe desvelada. Sua alma tinha-se desprendido do corpo sem uma contração dolorosa; saíra como o ar respirado pelas plantas; imperceptivelmente. O seu viver foi calmo e bonançoso; nos dias de penúria ela banqueteava-se com o farto quinhão de afetos que lhe talhava o esposo na própria vida. Não podia, pois, compreender por que um outro coração se exaltasse até o delírio e principalmente sendo esse coração de sua filha. A alma de sua mãe devia por força amaldiçoá-la à esta hora.

 

A tristeza de semelhante pensamento fazia com que Irena não exprimisse a sua resolução; julgava que, fechando-a na consciência, escondia-a do olhar do duende que a sua imaginação mesma criou para torturá-la. À semelhança do Caim do poeta, que sobrepunha muros a outros muros e mandava construir moradas subterrâneas para furtar-se a um olho medonho, que o espiava desde o dia do fratricídio, Irena procurava esconder no seio da ternura filial, da saudade, das lágrimas, da amizade sincera, do silêncio, do desespero enfim, a triste resolução que lhe foi aconselhada pelo amor infortunado. Mas, como a sentinela de Caim não se rendia ao cansaço, a consciência de Irena não se deixava vencer e, de quando em quando, a moça, enxugando as lágrimas, repetia:

 

- Sabe o que hei de fazer, Eulália?

 

- Ser um pouco mais resignada, e esperar - respondeu-lhe a amiga.

 

- Não - replicou por fim a mísera Irena: - fugir!

 

- Nunca, minha amiga, nunca! Seria a morte de seu pai.

 

- É a esperança do meu amor.

 

- Doida!   soluçou Eulália.

 

- Desgraçada é que eu sou.

 

A compleição fraca e doentia não lhe dava forças para comportar a violência da paixão e arcar com o horror do seu fadário.

 

À noite, um relaxamento muscular invencível invadiu-a, e, depois de escandescê-la na intensidade de uma febre delirada, prostrou-a na atonia semelhante à da inalação prolongada do clorofórmio.

 

Durante a febre falava em pujança de cavalos, gabava-lhes o esgalgado dos canelos, a compostura nobre com que enfreavam, resfolegando alto e batendo vigorosamente o chão com a presteza da andadura. Faziam-lhe entretanto medo, porque eram russos, e na claridade do luar podiam servir de alvo à perseguição; demais disso, relinchavam freqüentemente, como se quisessem denunciá-los. Se eles fossem murzelos, se tivessem no pêlo o colorido negro do destino dos cavaleiros, seria muito melhor; mas até a cor dos animais rebelava-se contra o seu afeto.

 

Monte, lendo nos olhos de Eulália a impaciência e o temor que lhe causavam as palavras de Irena, perguntou-lhe de que falava a filha, se lhe conhecia algum segredo que justificasse o delírio: ela repetia freqüentemente que a odiavam, que era impossível obedecer, e que preferiria morrer!

 

- É uma história que lemos de dois noivos, que fogem, porque os pais se negam a consentir no casamento - respondeu Eulália.

 

- E que motivos tinha o pai? - sorriu bondosamente Rogério Monte, desafogado da impressão que lhe causara o delírio de Irena.

 

- Odiavam a família do noivo!

 

- Não era motivo bastante; se ele fosse digno...

 

- Ouvindo essa história, Irena observou-me que seria muito desgraçada se amasse um Feitosa.

 

- As mulheres pensam sempre em impossíveis! - acudiu Rogério com exaltação. - Uma filha dos Montes não pode dedicar o coração a um filho daquela raça amaldiçoada!

 

- Felizmente ele não ama - disse Eulália corando muito.

 

- Felizmente; porque eu preferira não vê-la mais levantar-se daí!

 

- Augusto! Augusto! - bradou a doente. - Não insultes meu pai!

 

- É muito singular este delírio! - ponderou o velho Monte.

 

- É o nome do noivo - explicou Eulália. - Ela impressionou-se muito; o senhor sabe quanto Irena sente as dores alheias.

 

O velho Monte, porém, não despreocupou-se de todo com as explicações de Eulália, e um receio assustador lhe sobreveio.

 

A semelhança da história com a situação das duas famílias rivais, o nome do protagonista, podiam ter inclinado o espírito de Irena para o representante dos Feitosas, que era galhardo e sedutor.

 

De madrugada, ao despedir-se para partir, parou junto da rede em que Irena ressonava a sua profunda prostração. Olhou por largo tempo para aquele rosto pálido, para as olheiras roxas e os cabelos desfeitos pelo desalinho, e disse ao velho Queiroz:

 

- Estou com vontade de ficar; não sei o que me diz que faço mal em deixá-la.

 

- É o mesmo que a faz sofrer: a tristeza da separação, a saudade antecipada.

 

- Deve ser isto só!... Não é possível que Irena ame Augusto.

 

- E se fosse?...

 

- Matava-o! - interrompeu Rogério Monte. – Mas... é impossível.

 

Pousou na testa de Irena um beijo, longo como as noites de insônia, e saiu a enxugar as lágrimas que lhe choviam nas barbas brancas.

 

- Adeus; eu estarei de volta em oito dias, em princípios de junho - disse abraçando Queiroz. - Vele pela minha filha; Deus sabe se não será você em breve o seu pai, ou se eu não a chorarei.

 

- Coragem! Isto é desanimar antes de tentar os meios de remediar. Vá tranqüilo por este lado, meu velho; eu a confundi sempre com Eulália. O pior é criar fantasmas.

 

- Não seria o primeiro caso, e a fatalidade não mede os golpes. Mas eu devo obedecer à minha palavra de honra: adeus.

 

- Até breve; que volte mais animado.

 

Quando Monte se afastou e sumiu-se no declive da ladeira, Francisco de Queiroz voltou-se para Eulália que os ouvia:

 

- Tu deves saber se Irena ama o Feitosa; não mintas a teu pai.

 

- Eu não sei - respondeu Eulália -, mas, se soubesse, meu pai mesmo me ensinou que não revelasse nunca o segredo das minhas amigas.

 

Queiroz abaixou a cabeça, humilhado pela indiscrição, sem ter forças para encarar com Eulália. Toda nobreza da sua alma ergueu-se desde então para resgatar a falta momentânea, e a revelação de Irena ficou sendo aparentemente uma inconseqüência de delírio.

 

 

XII

 

O serviço dos socorros tornou-se a preocupação de Paula. Passava os dias assistindo ao corte das rações, distribuindo-as, e visitando as casas das pessoas mais abastadas para pedir-lhes consentissem que as filhas se ocupassem do socorro aos enfermos e às crianças. Tinha perdido em parte os modos rudes para com os retirantes, que já subiam a mais de quinhentos, e era com afabilidade que tratava os desvalidos do povoado.

 

Somente alguns malévolos resmungavam de uma providência que foi tomada por Sua Reverendíssima, e era que os socorros distribuídos às mulheres deviam ser recebidos em sua casa.

 

Mas essa murmuração dissolveu-se no seu próprio eco; a pureza das intenções do vigário ressaltava para o juízo geral do povoado, da corporação de virgens que ele havia formado.

 

- Que tal está o serviço? - perguntava Paula, ancho e satisfeito. - Pode haver tão bom, hein? Porém melhor há de ser difícil.

 

- Nem tão bom - respondiam-lhe sinceramente os paroquianos.

 

Era merecido o elogio: todas as semanas um dos comissários estava à porta da despensa, para ouvir as queixas das socorridas e assistir à distribuição das rações, proporcionais ao número das pessoas de família. À tarde o comissário corria o interior do Engenho. Então já os habitantes tinham transbordado pelos arredores. Uma porção de palhoças alinhadas junto às suas faces, constituíam o centro de um núcleo de povoação a que o vigário chamou cidade da miséria. O comissário visitava também as ruas, no seu trabalho vespertino, e parava de porta em porta para atender os queixosos.

 

A corporação das virgens encarregava-se de ir à casa do vigário receber os socorros para as crianças e os enfermos, as roupas para as mulheres, e à tarde, ia também à “cidade” examinar se tinham cumprido as suas prescrições.

 

Paula não se furtava aos mais árduos trabalhos do seu ministério; dizia missa todas as manhãs e à tarde levava o Sacramento aos moribundos. Todos os dias dobrava de dedicação e com este exemplo mantinha o pessoal no entusiasmo dos primeiros dias. Logo a excelência do serviço fez o povoado inteiro julgar que tinha sido injusto com o seu pároco, e dar razão ao professor Queiroz, que o apregoava como homem superior. Toda a severidade dos bons tempos mudou-a ele em cordura para os desgraçados, em dedicação temerária mesmo, porque passava horas nos cubículos fétidos dos disentéricos e à cabeceira dos doentes de febre, enfim, nos próprios focos da epidemia, que prosseguia, grassando com intensidade.

 

A satisfação era, pois, geral, a excetuar-se o velho Marciano, que entendia não estar pago do acréscimo do serviço com os gêneros que recebia da comissão, para alimentar a família. Passou dias azedando silenciosamente, até que estourou em queixas ao próprio sr. vigário.

 

O vigário desrevestia-se depois da missa e, ao desapertar a alva, notou que estava ficando magro.

 

- E isto é Vossa Mercê, que pode passar bem - resmungou a sacristão; - imagine os pobres cristãos que nada tem...

 

- E quais são eles?

 

- Eu há muitos dias que ando para dizer ao sr. vigário: a minha vida não pode continuar assim.

 

- Você fala de barriga cheia, meu caro - disse Paula, batendo-lhe no ombro.

 

Estava já em batina e recostou-se pachorrentamente na alta cadeira de espaldar, com um joelho apoiado na beirada da mesa. Mandou fechar a porta da sacristia e pôs-se a enrolar um cigarro.

 

O Cristo parecia ter voltada a cabeça para não vê-los.

 

- Então o que é que lhe falta? Peça por boca e não se zangue.

 

Ó velho sacristão desenrolou a meada das suas queixas. Faltava-lhe principalmente o sossego. A Mundica passava os dias a maldizer-se e a arrepelar a irmã, a Amelinha, porque, dizia ela, falava agora muito no sr. vigário: era um inferno. Mundica estava sempre a queixar-se, e ultimamente agravara-se o seu mau humor, porque o sr. vigário havia já seis dias não se tinha dignado ir àquela choupana. O sr. vigário bem devia saber o que são raparigas quando estimam deveras. Levava a falar em desprezo, em ingratidão, em mil coisas, e nem a própria autoridade paterna era por ela respeitada.

 

- Ora, já Vossa Mercê avalia - concluiu ele -, que não é possível continuar a viver assim; não tenho sossego, e nem ao menos tiro algum interesse.

 

- Mas você tem gênero para a sua gente, homem, e pode guardar o que ganha.

 

- Vossa Mercê diz bem; mas não é uma cuia de farinha um taquinho de carne o que dá para o futuro dos filhos.

 

- Ah! você quer então contos de réis? Não os tenho infelizmente.

 

- Mas Vossa Mercê podia ao menos aumentar-me o ordenado.

 

- Não se adiante tanto, Marciano - respondeu o vigário.

 

E levantando-se acrescentou:

 

- Quando for tempo terá, mas por agora diga a sua filha que não estou para a aturar.

 

Bateram neste momento à porta, e o vigário, que se ia retirar, abriu-a com precipitação..

 

- Sou eu que vim saber a causa da demora de meu pai; nós tínhamos ficado no corpo da igreja, à espera - murmurou Mundica enleada.

 

A humildade daquela voz, comparada com os arrebatamentos descritos pelo sacristão, dava a medida da afeição que a rapariga votava a Paula; a utilidade do pretexto realçava-lhe a veemência da paixão que a fazia imponente de dedicação, a melancolia que lhe envernizava de tons de santidade a figura escultural, duplicava-lhe a grandeza do sacrifício.

 

Paula estremeceu, como se tivesse diante de si um juiz inexorável; mas tomando-lhe a mão carinhosamente, aproximou-a de si, e fitou-a compassivo.

 

- Vá, pode ir - disse Marciano sorrindo maliciosamente; - diga às outras que lá vou ter em casa.

 

Mundica tentou retirar-se, porém, o vigário deteve-a com uma branda pressão, e dirigindo-se a Marciano:

 

- Vá você apagar as velas do altar - disse -, enquanto eu ouço Mundica repetir as queixas de que você me falou.

 

O velho saiu com a impassibilidade da desfaçatez, e o vigário, fechando de novo a porta, perguntou a Mundica:

 

- Tem tido muita raiva de mim?

 

A moça não respondeu; limitou-se a olhá-lo com os seus negros olhos úmidos e a sorrir; mas como Paula tentasse colhê-la nos braços:

 

- Olhe - murmurou.

 

E estendeu o indicador apontando.

 

O Cristo, muito lívido, parecia, de envergonhado, ter pendido mais a cabeça sobre o peito ensangüentado. Paula recuou, como que impelido por uma força invisível, e Mundica, correndo à porta e destrancando-a murmurou, acenando-lhe com os dedos:

 

- Até logo, sim? Eu espero!

 

Mas o vigário parecia não ver a onda lúbrica emprocelada nos olhos negros de Mundica. Continuou a fitar atentamente o Cristo, com a prevenção de quem espera ser agredido. Dir-se-ia que ele o via descer da cruz e, ameaçador como as visões dos pesadelos, caminhar direito a si para fazê-lo estalar entre os braços, à semelhança dos demônios exorcismados.

 

Mundica por sua vez embevecia-se na contemplação do seu ídolo. Paula não foi o seu primeiro amor, nem foi ele quem, pela primeira vez, fê-la curtir longas ansiedades suspiradas ao pôr-do-sol, ou ao luar sob as árvores da entrada de casa. Mas com certeza couberam-lhe todas as veemências daquele temperamento selvagem, toda a pletora daquela voluptuosidade silena, e era com elas que Mundica o encarava.

 

- Vamos, menina, são horas, - resmungou no corredor o velho Marciano, fazendo retinir a cambada de chaves; - as outras lá estão à espera.

 

Mundica afastou-se com os olhos baixos; o sacristão entrou arrastando os chinelos e, olhando de soslaio para o pároco, foi colocar a um canto o caniço de que se servia para apagar as velas. Voltou para junto do vigário, colocou as mãos nas ilhargas, e sorrindo tranqüilamente:

 

- Há muito tempo - disse - ando com vontade de falar com Vossa Mercê, para mandar fazer um nicho com uma cortina para aquela imagem. O que acha?

 

- Não vale a pena - respondeu Paula distraidamente.

 

- Sempre era mais bonito e fazia melhor vista; eu mesmo o faria.

 

- É uma imagem velha e sem valor. Temos outras necessidades.

 

- Pois eu, no caso do sr. vigário, já havia tomado esta providência; podia ficar mais à vontade, sem temor do olhar de Deus.

 

- Aquele - exclamou Paula escarninho - não faz medo; é um olhar de verniz. Vou almoçar.

 

E saiu deixando após si, embasbacado e imóvel, o velho Marciano.

 

Mundica retirava-se já com as irmãs e a mãe decrépita, que tossia muito a sua asma, quando Paula assomou na capela-mor. A família, ao vê-lo, parou e foi em companhia dele que deixou a igreja.

 

Iam já em meio da praça, quando à janela da casa de Queiroz apareceu o busto sedutor de Eulália, vestida de branco, toucada a cabeleira negra em uma chuva de tranças, que lembravam uma pieuvre enorme agarrada no alto da cabeça a apertar-lhe o colo e as espáduas com os seus poderosos tentáculos.

 

- Lá está a Eulália - disse Mundica.

 

E pôs-se a acenar com o lenço.

 

Acompanharam-na todos, mas nem por isso Eulália correspondeu ao cumprimento.

 

- Está distraída - observou Paula.

 

- Ou arreliada - objetou Mundica; o sr. vigário vem nos acompanhando...

 

- Qual arreliada! Está olhando para outro lado.

 

- Quando não se quer ver alguém, há sempre desculpa.

 

E foram conversando até a porta de casa, Paula defendendo e Mundica acerando insinuações contra Eulália.

 

- Então até logo, sr. vigário.

 

- Não sei ao certo, filha, tenho tanto que fazer!

 

- É - respondeu Mundica a morder os lábios -, os pobres retirantes... O melhor é não vir mais ver-nos, para não desgostar...

 

- Seja feita a sua vontade; eu danço conforme tocam.

 

E afastou-se em face da perplexidade de Mundica.

 

- Tu hás de pagar-me, sirigaita - resmungou ela; - andas a passar por santa? Eu te mostro.

 

 

XIII

 

A suspeita de Mundica foi para o vigário um motivo de contentamento. Parou à janela do professor e desfez-se em afabilidades com Eulália: Era ela de todas as moças da paróquia a mais pressurosa em socorrer os desgraçados; viam-na todos como a um anjo: com fé, com resignação, com amor. Falava-lhe assim em nome dos desgraçados, que não queriam senão a si; pedia-lhe, pois, que não faltasse à tarde no Engenho, porque, nos dias em que não ia, azoinavam-no com perguntas e queixas.

 

- É bem provável que hoje não vá; meu pai tem estado a queixar-se de dormências nas pernas.

 

- Ah! é o reumatismo: não vale nada.

 

- Não, está se sentindo esquisito, com a voz rouca. Desde o dia da partida do sr. Monte, não se tem sentido bem; fez-lhe mal passar a noite em claro.

 

- Veja se pode ir; na volta viremos juntos, e eu visitarei o velho. Há de ser alguma cisma.

 

Eulália beijou-lhe a mão e ele retirou-se.

 

À tarde, porém, o vigário esperou debalde no Engenho a chegada de Eulália, e levou a entediar-se por largo espaço, ouvindo uma aluvião de queixas que faziam as outras moças incumbidas dos socorros. Não podiam com essa gente, diziam; nunca estava satisfeita, faltava-lhe sempre tudo. As roupas, que lhe eram dadas, desapareciam como por encanto e todos se apresentavam trapilhos e imundos:

 

- Bem - ponderou o vigário -, não querem ser tratados com bondade? Terão o rigor.

 

Deixaram-no finalmente só no Engenho entre a massa dos retirantes, a passear de um lado para outro e a expedir de espaço a espaço portadores para ver se vinham ou não "os dois anjos de Deus", como chamavam os retirantes a Eulália e Irena.

 

Mas, começando a anoitecer, Paula reconheceu que era em vão esperar e, acompanhado por dois retirantes, pôs-se a caminho. Quando chegou à parte já povoada da estrada, despediu os companheiros.

 

- Digam lá às mulheres que amanhã de manhã não venham cá à paróquia, esperem por mim no Engenho. Quanto a vocês, já sabem, vão para o serviço do adobe.

 

Seguiu a passos largos a sua caminhada, e depois de conversar com Antão Ramos sobre a probabilidade de faltarem gêneros para a população adventícia, que aumentava dia a dia, enveredou para a casa de Queiroz.

 

A noite sem luar afastara da praça os passeadores; quase todas as casas estavam fechadas, e o silêncio prolongava e avultava o som das suas passadas na areia.

 

De repente Paula estremeceu, levou uma das mãos ao pavilhão da orelha e encurvou-se para a frente, arregalando muito as pálpebras. Um vulto caminhava apressadamente diante de si e na mesma direção.

 

- Quem será? - resmungou Paula, como se falasse para algum companheiro.

 

Apertou por sua vez o passo no encalço do desconhecido, mas não conseguiu alcançá-lo, porque o vulto levava grande distância de si, e demais disso, era necessário pisar cautelosamente para não fazer rumor. Para maior precaução, Paula desviou-se da trilha geral, e seguiu mais para o meio da praça. De súbito, já em face da horta de Queiroz, o vulto sumiu-se como se a noite o houvesse devorado.

 

Olhou para todos os lados, surpreendido e atento: não viu senão a homogeneidade da noite; depois ajoelhou-se e aplicou o ouvido, mas nenhum rumor percebeu.

 

- Distraí-me e perdi a pista - murmurou levantando-se; - ficará para outra vez.

 

Dera apenas algumas passadas, quando um rosnado de cães e um latido, que para logo cessaram, chamaram-lhe violentamente a atenção.

 

- Ah! - exclamou levando a mão à testa. - Até que enfim!

 

Havia nesse brado represo a satisfação da pantera esfaimada, a pousar o olhar esgarado sobre a presa! Como se tivesse adquirido de chofre a elástica celeridade do tigre, colheu a batina e correu sem ruído para o ponto em que o vulto desaparecera. A cerca de pau-a-pique ergueu-se-lhe diante como invencível barreira. Forcejou para ver se podia destacar algum dos mourões, mas estavam solidamente fincados e a aspereza das suas faces magoava-lhe as mãos.

 

- Mas eu vi - murmurou guturalmente -, vi!...

 

Começou então um trabalho paciente de ladrão, abalando, ao de leve, um por um todos os paus: estes resistiam a sua pergunta sem frase, com a pertinácia de cúmplices. Mas Paula não desanimou; a paciência da vingança premeditada, unida à alucinação do ódio, o impelia e fazia persistir. Afinal um dos mourões estremeceu, e os lábios do vigário arregaçaram-se na treva, enquanto as mãos removiam cautelosas o obstáculo à sua passagem. Entrou, depôs o chapéu junto à cerca, mas logo aos primeiros passos foi obrigado a parar e a esperar: os cães investiram-no furiosamente, e só calaram-se depois de reconhecerem-no. Agachou-se e espantou com um aceno os companheiros impertinentes, que voltaram correndo para o fundo da horta.

 

Paula pôs-se então a gatinhar vagarosamente, até que se pôde coser com o tronco de um cajueiro. Daí espiou em vão para todos os lados: nem o menor ruído perturbava o silêncio noturno.

 

Ficava próximo um pano de hortaliça que, machucada pela carreira dos cães, recendia na treva o seu cheiro ativo. A altura dos canteiros e das plantas ocultava perfeitamente um homem a caminhar de rastos, e Paula, deitando-se sobre as mãos, começou a arrastar-se por entre eles. Depois de longo tempo desta excursão penosa, a sua curiosidade foi enfim satisfeita. O cicio de uma conversação a meia voz veio acender-lhe toda a cólera, até então contida. Levou precipitadamente a mão ao bolso e, depois de tirar de lá o canivete-punhal, prosseguiu na sua marcha de serpente, até que novamente parou perto de uma gravioleira, junto à qual conversavam dois vultos, um vestido de negro e outro de branco.

 

- Amanhã, no Engenho - ouviu o vigário. - Vocês demoraram-se mais, deixam anoitecer e partiremos. Tenha coragem; bem sabe que é o último recurso que nos resta. Adeus!

 

Alguns soluços abafados responderam ao ousado plano e, à despedida, e o vulto negro afastou-se demoradamente, deixando estático junto da gravioleira o que estava de branco.

 

Paula seguiu-o de rastos até a cerca, com a precaução dos selvagens. Reconheceu facilmente Augusto Feitosa, e quando este, já da parte de fora, ia voltar-se para colocar no seu lugar o mourão arrancado, o vigário aprumou-se, e, levantando o braço armado, desfechou brutalmente o golpe na altura das espáduas do seu suposto rival.

 

- Eu morro! - bradou o agredido, cujo corpo esbelto vergou sobre os joelhos e deu redondamente em terra, a golfar sangue.

 

Os cães investiram coléricos para o lugar do crime, porém esbarraram de encontro à cerca, porque o vigário já havia tomado o chapéu e consertado rapidamente o pau-a-pique.

 

Paula fez-se então ao largo na praça e renovou por algum tempo o processo pelo qual se aventurara na horta até junto dos dois amantes, enquanto algumas janelas da vizinhança abriam-se precipitadamente, e os vizinhos, sem ousar sair inermes, perguntavam-se mutuamente se não tinham ouvido um grito.

 

Para logo o barulho dessas perguntas em voz alta mudou-se em alvoroço, e os moradores puseram-se a saltar pelas janelas e a correr aspirando o eco de uma voz, que bradava desesperada:

 

- Socorro, está aqui um homem morto!

 

Um grande grupo de curiosos engrossou imediatamente em torno do agredido; mas a perplexidade, a indignação, a piedade confundiam o movimento e o impossibilitavam de tomar qualquer resolução. Comentavam todos, maldiziam, praguejavam, mas ninguém se lembrava de socorrer o ferido e perseguir o criminoso.

 

- Tragam luzes - gritou por fim o professor, que tinha sido o primeiro a sair e era quem mostrava maior sangue-frio.

 

Ao frouxo clarão de uma vela reconheceu-se Augusto Feitosa.

 

Estava caído de costas, com o rosto muito pálido saindo do capuz do capote, arregaçado em parte pelo braço que se voltara de modo a ficar sobre a ferida aberta próximo à espádua direita; seus olhos, feridos pelo estupor do além-túmulo, tinham a majestade misteriosa da morte.

 

- Está morto! - exclamaram todos.

 

Queiroz, porém, como se não ouvisse a exclamação dolorosa, ajoelhou-se e, debruçando-se por sobre o corpo, aplicou o ouvido naquele peito sem resfolegar.

 

- O coração ainda palpita! - gritou jubiloso.

 

E desabotoando-lhe o capote apertado na garganta, acrescentou:

 

- Levê-mo-lo para dentro; talvez ainda o possamos salvar.

 

Levantaram o corpo, despiram-lhe o capote, que foi atirado de encontro à cerca, onde se esparralhou uma posta de sangue coagulado, e o grupo inteiro entrou pela casa de Queiroz.

 

Uma pessoa, porém, ficou de pé no mesmo ponto, com uma vela na mão, na atitude inconsciente de uma sonâmbula. Foi Eulália. O estupor geral compartiu ela com força dúplice, porque uma suspeita horrorosa alevantou-se-lhe no espírito desde que reconheceu Feitosa. O olhar de todos parecia-lhe convergido sobre si, a pedir-lhe que dissesse o nome do criminoso e desse contas do sangue derramado. E então como que sentia que, irritados pelo seu silêncio, os paroquianos possantes agarravam-na, rasgavam-lhe o colo, arrancavam-lhe o coração e liam nele o nome do culpado; mas ainda assim, imóvel impassível ante o furor geral, ela calava-se como se de nada soubesse.

 

Quando se viu livre do olhar dos curiosos, sacudiu de sobre si essa pressão humilhante. O rosto contraiu-se-lhe com a expressão do sobressalto, e trêmula, ofegante, pôs-se a olhar em roda, como a procurar alguma coisa. Aproximou-se da cerca ensangüentada, e alumiou-a com atenção. De repente, levando precipitadamente a mão à cerca, puxou dentre os mourões um objeto, gotejante de sangue: era o canivete-punhal do vigário Paula.

 

- Eu estou sonhando, meu Deus! - suspirou tristemente a infeliz - Não pode ser senão um sonho.

 

E trêmula, quase sem se poder sustentar de pé, Eulália escondeu no vestido o objeto que tanto a impressionara, entrou, atravessou a sala, e foi trancar-se no seu quarto.

 

Aí, atirada sobre a rede, soluçou por largo tempo; mas de repente, tirando do bolso a arma do crime, abriu pressurosa a caixa em que guardava as suas roupas, e sob elas acautelou e escondeu a prova esmagadora contra o criminoso.

 

Na sala a mais clamorosa injustiça dirigia a suspeita dos circunstantes. O comissário Antão Ramos, na sua qualidade de inspetor, fazendo o inquérito e autuando o coro de delito, meneava a cabeça a cada resposta, e afinal não pôde ter-se que não dissesse de onde lhe vinham as suspeitas.

 

- Querem vocês saber de uma coisa? O melhor meio de castigar o criminoso é mandar mudar aquela peste que lá está no Engenho.

 

E dava as suas razões: Feitosa estava na paróquia havia apenas cinco meses. Não se malquistara, antes enfeixara simpatias pelos seus modos urbanos, pelos seus cumprimentos de cavalheiro e franquezas de fidalgo. O povo da paróquia não era dos tais que assassinam e roubam: era prudente, morigerado e, portanto, não havia hipótese pela qual se justificasse uma suspeita contra qualquer paroquiano. Podia-se, pois, afirmar com a mão na consciência que o assassino era retirante.

 

- Mas para que pôr a culpa sobre os que estão morando aí? Lembre-se do Feiticeiro e dos outros - ponderou Queiroz.

 

- É verdade - concordou Antão Ramos.

 

E, como se temesse pelos seus bens, quis logo retirar-se.

 

- Alto lá! - impediu-lhe o professor. - O senhor é a autoridade e tem por obrigação acompanhar o ferido até a casa.

 

- Pois então avie-se, homem; o que aconteceu a este pode acontecer a minha mulher e a meus filhos, e quem os perde sou eu.

 

Queiroz pensou a ferida como pôde e, fazendo armar uma rede, entregou-a ao inspetor, que logo acompanhou o moço semimorto na direção da casa dos parentes.

 

- Não pode escapar - disse Queiroz aos vizinhos que se retiravam -, o golpe foi mortal: deve ter varado os bofes.

 

- E que alma do diabo perverso será o assassino?

 

- Não sei; só sei que há de escapar, porque o inspetor tem maior medo dos Viriatos do que do próprio inferno. Boa noite.

 

- Boa noite, sr. professor.

 

Queiroz, depois de ter fechado a porta, dirigiu-se para a sala de jantar, de onde partiam soluços abafados.

 

- Vamos, não é preciso chorar; o rapaz ainda está vivo: vocês o agouram.

 

- Não, não é isto - murmurou d. Ana -, é uma outra desgraça.

 

- Outra desgraça?! - perguntou Queiroz.

 

- Irena está como morta.

 

- Oh! céus, nós bem os suspeitamos.

 

O estado de Irena era com efeito assustador. Os seus lábios contraídos deixavam ver os dentes cerrados tenazmente, os braços e as pernas estavam rijamente inteiriçados, o rosto demudado e pálido; a algidez de todo o corpo fariam tomá-la por um cadáver, se uma frouxa respiração e o bater do coração não atestassem que a vida não a abandonara.

 

Havia longo tempo que estava assim. Depois de acalmado o primeiro espanto, Eulália dera por falta de Irena, e saíra em sua procura pela horta, onde a foi encontrar, imóvel e fria, caída no meio dos canteiros.

 

Queiroz não teve mais forças para dar um passo, e sentou-se em frente a sua velha irmã, que se debulhava em lágrimas.

 

- É uma coisa esquisita isto que se está passando com estas duas meninas - murmurou d. Ana; - de uns tempos para cá como que estão sempre a chorar. Agora, enquanto a outra se conserva fora de si, Eulália fica como doida, e até parece ter febre.

 

- Não é esquisito só, minha irmã, é muito triste. É a desgraça que persegue o pobre Monte.

 

D.Ana, que não podia atinar com o sentido das palavras de Queiroz, fez um gesto negativo.

 

- Eu no seu caso procurava saber tudo de Eulália.

 

- Não é preciso; infelizmente eu sei a razão por que julgo o meu pobre Monte completamente desgraçado.

 

Calaram-se. D. Ana dirigiu-se apressada para o quarto da sobrinha, mas foi detida ainda por uma pergunta do professor:

 

- Os escravos de Monte ficaram também em nossa casa?

 

- Não - respondeu d. Ana ingenuamente.

 

E entrou.

 

Queiroz, não podendo mais conter as lágrimas, deixou-as correr livremente; mas receoso de que lhe perguntassem a causa, que ele não daria nem por ameaças à sua vida, levantou-se e, quase arrastando-se, foi fechar-se na sua alcova.

 

- Oh! Que horrorosa suspeita! - exclamou com voz sumida.

 

Alta noite, quem espiasse para dentro veria ainda o honrado professor recostado na rede, com a cabeça apoiada sobre os braços cruzados, a olhar com a tristeza da insônia para a vela que se extinguia.

 

 

 

Eulália, com a energia própria do seu caráter, reagiu contra a espécie de alucinação que a assaltara, causada pelos inesperados sucessos atropelados em tão poucas horas. Enxugou as lágrimas, domou a comoção, e assim conseguiu não aumentar a inquietação de Chiquinha, e principalmente de d.Ana, cujos olhares lhe faziam perguntas incessantes.

 

Mas como a chama de uma lâmpada, cujo maior clarão coincide com o momento da sua extinção, a razão de Eulália pareceu-lhe baquear com esse esforço; a moça sentiu-se adoidar pelo sofrimento e sua imaginação começou a delirar acordada. Via diante de si o vigário ainda com as mãos tintas de sangue, perseguido pelo clamor de toda a paróquia, entrar pelo seu quarto, com os traços em desordem, os lábios ressequidos pela febre, os olhos fuzilando o temor do castigo degradante, mas ainda assim desfiando frases ternas para si, perfumando com a sinceridade do seu afeto o cruor tonteante do sangue derramado, a pedir-lhe que lhe pagasse com o amor a desgraça que lhe votara o destino. O pudor de virgem, os escrúpulos de moça educada endureciam-na e cegavam-na às solicitações trépidas daquela paixão explosiva, que irrompera alucinada do seu mistério e demolira a punhal o obstáculo que julgou impedi-la do objeto amado. Mas os gritos dos perseguidores aproximavam-se cada vez mais; o tropel tornava-se mais distinto; já se diferençavam mesmo as vozes de alguns vizinhos, que exigiam a viva força que entregassem o criminoso. Seu pai, o velho Queiroz, severo e corajoso, impedia a passagem a essa gente, bradando: "Aqui é o quarto de minha filha, e não um couto de assassinos!" Mas não o atendiam; queriam entrar e haviam de entrar. Ombros robustos encostavam-se à porta e impeliam-na com a tresdobrada pujança da cólera. A madeira fraca já estalava, e no entanto Paula ali estava, hirto, com os cabelos ouriçados, tendo ainda à flor dos lábios uma frase de amor paralisada pelo susto. Então o seu recato de donzela soluçou, mas o coração, pagando a temeridade da paixão insensata de Paula, ordenou-lhe que indenizasse em ternura o que o infeliz lhe dera em sacrifícios, e ela, dócil, contente pela idéia de salvá-lo, desfazia as longas tranças negras, e, lavando-lhe as mãos com uma torrente de lágrimas, enxugava-as na sua cabeleira farta e cheirosa das murtas da virgindade. Um riso largo e bom enchia-lhe os arcanos da sua sensibilidade; já não temia que entrassem: era ela mesma que desejava abrir passagem. Repentinamente porém teve de recuar, porque via diante de si um dedo, curvo e brilhante como a lua no crescente, apontar inexorável para a caixa, indicando aos perseguidores uma testemunha do crime. Então Eulália, vendo burlada toda a sua esperança, teve um acesso de choro... e prorrompeu realmente em soluços.

 

Quando as lágrimas dissolveram os traços horrorosos deste quadro, a imaginação substituiu-o por um outro não menos contristador e travoroso. Era Irena que se alentava, e inteiriçada no seu espasmo, encostava-lhe os seus lábios repassados da frialdade dos mortos, e com esse beijo, que parecia ser dado pelo mistério de além-túmulo, acordava-lhe no seio o remorso insopitável e sanhudo, a espremer-lhe do coração a imagem de Paula, com a impassibilidade de um médico a espremer um furúnculo. Então o vácuo deixado escancarava-se como um abismo, e daí surgia, todo banhado em sangue, com a ferida muito aberta e vermelha, como ouvia na infância pintar a garganta do inferno, o corpo lívido de Feitosa a implorar-lhe vingança a troco do paraíso.

 

Agitada por estas visões, Eulália, ora passeava, ora parava, sem saber o que fizesse, até que, vindo ajoelhar-se junto de Irena, disse-lhe com voz sumida, sufocada entre soluços:

 

- Acorda, minha amiga, acorda; o teu sono mata-me.

 

E sacudia-a, e beijava-a, e unia àquelas faces frias a fronte escaldada pela febre.

 

Em vão! O espasmo continuava com a pertinácia da morte, apesar dos cuidados de d. Ana.

 

 

XIV

 

O vigário, esporeado pelo pavor, esgueirou-se cautelosamente, ora recolhendo-se, ora arrastando-se, com receio de ser visto. Quase no fim do largo ficava a sua casa, alvejando o caio novo e deixando perceber luz no interior, pela porta escancarada. Paula afinal parou em frente e, colando-se ainda mais com o solo, pôs-se a escutar. Nenhum outro ruído lhe chegava ao ouvido, além do sussurro das vozes dos vizinhos reunidos no lugar do crime. Ergueu então a cabeça, observou: ninguém passava. A porta de casa, ali tão perto, asserenou-lhe o ânimo. Deu alguns passos, e... estava salvo!

 

Entrou pé ante pé com a batina muito colhida, penetrou na sala escura e silenciosa, e resfolegou longamente. Não o tinham visto, e nem os próprios criados deram pela sua prevenida entrada.

 

- José, traz-me luz - rouquejou com azedume.

 

Entrecerrou as bandeiras da porta, ficou à espera, e quando o pequeno, todo trêmulo, com os olhos apertados pelo sono e pelo choque da claridade, entregou-lhe o castiçal:

 

- Estão frescos guardas para a casa - disse. - Safe-se, moleirão!

 

Fechou-se cuidadosamente, enquanto o pequeno trancava a porta da rua e, pisando de manso, entrou no quarto de dormir, colocando o chapéu e o castiçal sobre a mesa, onde o velho Cristo quedava na sua perpétua escravidão de piedade.

 

Paula, encarando despreocupadamente com a imagem, foi deitar-se na rede; espreguiçou-se muito, escancarou um prolongado bocejo, ajeitou-se nos travesseiros e jazeu tão calmo que dir-se-ia ter adormecido.

 

Mas pouco depois, levantando-se de um salto, pôs-se a examinar miudamente a batina e em seguida o chapéu redondo de grandes borlas pretas. A roupa empoeirada e empastada pela terra da horta, úmida da rega vespertina, estava felizmente intacta; só alguns dos botões tinham desfiado um pouco pelo prolongado roçar. No chapéu não havia o menor vestígio, a não ser uma pequena mancha de sangue.

 

Dirigiu-se até o lavatório, improvisado com um alto mocho e uma bacia de ferro, sobre a qual refletia o polido embaciado de um espelho. Com a cabeça baixa, os lábios contraídos num sorriso, lavou tranqüilamente as mãos e a orla da manga da batina. Depois, pingando com a ponta dos dedos gotas de água no pêlo empastado do chapéu, demorou-se a esfregá-lo com a unha. Voltou então para junto do lavatório, onde, depois de enxugar as mãos, atirou desdenhosamente com a toalha. Calmo, foi a um cabide pendurar a batina e o chapéu, e resmungou finalmente com um sorriso mais franco e acentuado:

 

- Procurem agora pelo homem da capa preta!

 

Ao pronunciar a última palavra, porém, tinha suspendido a cabeça e os seus olhos depararam com a sua imagem no polido do espelho. Inclinou-se sobre ele, passou a mão aberta sobre as faces e, a estremecer como um friorento, veio buscar a vela que deixara junto ao Cristo, tornando a ir mirar-se ao espelho.

 

- Sangue! - disse com um sussurro gutural.

 

E, depositando a vela sobre o lavatório, pôs-se a lavar o rosto sofregamente. Enxugou-se com a mesma precipitação, levantou a tremer a vela e de novo olhou para o espelho. O sorriso voltou-lhe na inteireza da sua perversidade, mas não demorou muito a extinguir-se: um fio de água sanguinolento, escorrendo sobre a volta, molhara-lhe a camisa e aí deixara uma grande mancha comprometedora.

 

- Que teiró - resmungou desabotoando-as convulso e atirando-as com arrebatamento a um canto.

 

O ar fresco do quarto ladrilhado envolveu-lhe o tronco despido, e o frio momentâneo que lhe causou como que lhe pareceu o contato do braço de um agente da justiça, que o segurasse pela nuca. Encurvou-se todo e, trôpego, caminhou para uma caixa de folha, que estava por debaixo da mesa.

 

A postura em que se achava punha-lhe a cabeça na altura do semblante do Cristo. Paula, ao inclinar-se, roçou por ele e fez vacilar na pequena peanha a cruz negra, de verniz já deteriorado. O fraco ruído produzido bastou para fazê-lo recuar desvairado, e como olhando em roda de si nada avistasse, encarou irritado para a imagem.

 

- Não, não me assusto - resmungou com acentuado escárnio; - não tremo, olho-te de face.

 

Mas à proporção que o desvairamento lhe inspirava estas blasfêmias, a consciência punia-o tacitamente. Todo o corpo tremia-lhe, a garganta vasculejava as palavras, os olhos esgaravam-se, os cabelos ouriçavam-se. Malgrado seu, os joelhos dobraram-se-lhe na atitude da prece, enquanto as mãos trêmulas seguravam o crucifixo. Então as lágrimas e os soluços romperam-lhe em quentes borbotões, deslizando-se pelo corpo frio do Cristo, que ele, mordido pelos remorsos, apertava contra o seio.

 

- Perdão! Perdão!... - soluçou contritamente. - Eu não era mau, Senhor; fizeram-me perverso; vós conheceis a minha dor... Oh! meu Deus! Ocultai a minha vergonha, escondei o meu crime para sempre!

 

Quem o visse, prostrado, sufocando-se em soluços, afogando-se nas lágrimas, cheio de arrependimento momentâneo, julgá-lo-ia resgatado.

 

As lágrimas do remorso lavam na imaginação dos crentes a mancha dos maiores crimes. Venha embora a miséria bater à porta da vítima a pedir-lhe as filhas para o alcouce, os filhos para os quartéis, a viúva para o nivelamento tristonho do hospital, não importa; a onipotência divina volta as costas aos que sofrem, e prepara os caminhos estrelados do céu para o criminoso arrependido!...

 

Mas Paula não se conservou por muito tempo nessa postura de penitente; erguendo-se de súbito, com o crucifixo apertado em uma das mãos, caminhou direito à batina, cujos bolsos revolveu freneticamente.

 

- Não está - pronunciou guturalmente -, não está!

 

Pegou então na vela com um dos dedos da mão com que segurava o Cristo, e dirigiu-se à rede, de dentro da qual tirou toda a roupa, que sacudiu por terra.

 

- Não está, não está! - repetiu cada vez mais ofegante.

 

E caminhou para a sala.

 

Todos os papéis que estavam sobre a mesa foram remexidos com impaciência febril; em seguida revistadas atentamente todas as cadeiras; mas ainda uma vez desanimado, lacrimoso, proferiu na garganta o pavoroso desengano:

 

- Não está!

 

A busca minuciosa prolongou-se por toda a sala, pelo quarto e pelo corredor; nem por isso o vigário pede achar o desejado lenitivo à desilusão angustiada, que o estortegava nas suas garras afiadas.

 

- Deixei-o então ficar por lá! - exclamou soluçando aterrado. - Estou perdido, perdido inteiramente!

 

Tinha-se deixado cair sobre uma cadeira; mas, com a inconstância dos pensamentos horríveis que se encontravam na sobre-excitação do seu cérebro, levantou-se e abriu uma das janelas.

 

A vela apagou-se sussurrando a uma esfuziada de vento. Cercada por uma auréola cor de ouro vinha surgindo a lua cheia, rubra como se se houvera espojado em uma sangueira. Uma claridade mortecida enchia já a praça e empalidecia a serenidade do céu, por onde nuvens muito brancas desfilavam com a celeridade das locomotivas, e rentes com o azul como com o solo do hipódromo os ventres dos cavalos disparados. Vinha um ramalhar uivado e tristonho do arvoredo dos quintais, misturado com o chocalhar e o bufar dos animais, que raspavam nos cercados os últimos folíolos de erva.

 

Paula chegou-se à janela e espiou timidamente para todos os lados. A solidão era completa. Fez então um jeito de trepar; o castiçal ressoando deteve-o, e ele, apressado e trêmulo, veio colocá-lo à mesa. De volta, ficou imóvel por algum tempo, como se temesse que o fraco ruído tivesse sido ouvido por alguém. A claridade tornava-se a pouco e pouco maior, e o vigário pede ver na areia o rastro que deixara.

 

- Está tudo, tudo a condenar-me, meu Deus! - disse baixinho.

 

E olhando para o crucifixo, acrescentou:

 

- Senhor, defendei-me, defendei-me!

 

O luar, pondo em relevo a pujança daquele corpo seminu, parecia rir de tamanha fraqueza, assustadiça ao menor ruído, trêmula diante de um fraco vestígio sobre a areia.

 

O vigário olhou ainda uma vez para a extensão da praça, fechou a janela, e foi, tiritando mais de medo que de frio, mergulhar-se na rede, onde afinal adormeceu abraçado tenazmente com a imagem do Cristo.

 

Só no outro dia levantou-se estremunhado com o bater desesperado do pequeno, que vinha lembrá-lo de que eram horas de celebrar a missa.

 

Um sossego farisaico voltara-lhe já inteiro; apenas o semblante denunciava, pela morte-luz do olhar, a luta indescritível da sua noite de remorso.

 

Saiu, conforme seus hábitos, a cortejar com o sorriso de bonomia e escárnio os simples paroquianos que se descobriam à sua passagem, e quando na sacristia ouviu do velho Marciano o acontecimento da noite, não teve senão uma comoção muito natural. Vestiu-se e, quando ia conchegar a alva aos cordões, perguntou serenamente:

 

- E morreu?

 

- Felizmente ainda está vivo, mas todos dizem que ele não escapa.

 

- Pobre rapaz! Era digno de melhor sorte!

 

De volta do altar, desrevestiu-se, queixando-se do calor, e, sentando-se na sua cadeira de espaldar reatou a conversação sobre Feitosa.

 

- E aonde apanhou o golpe, Marciano?

 

- Rente com a espádua, sr. vigário.

 

- Muito largo?

 

- Não, senhor; parece que foi punhal.

 

- Então foi muito fundo?

 

- Deve ser, para que ainda hoje o moço esteja tão prostrado e em perigo de vida...

 

- Mas não há certeza então da arma?

 

- Cisma-se que foi com um punhal, mas não se achou a arma.

 

- E quem desconfiam que seja o criminoso? - perguntou resfolegando.

 

- Da paróquia Vossa Mercê há de concordar que não foi ninguém; o moço está aqui há pouco tempo...

 

- É exato.

 

- Não tem vexado ninguém.

 

- É verdade - continuou Paula sacudindo a cabeça.

 

- Há de ser por força algum desses ladrões, pelos quais Vossa Mercê apanha soalheiras e faz chorar a pobre Mundica.

 

- Bem, bem, Marciano, não é bom fazer juízos temerários. Há testemunhas?

 

- Infelizmente não; porque se houvesse o tinhoso havia de ser feito em postas.

 

Paula levantou-se e, espreguiçando-se demoradamente, exclamou entre um bocejo:

 

- Veja como são os juízos dos homens! Os nossos avós diriam sabendo deste crime: foi algum dos Montes. Você, Marciano, diz hoje que são os pobres retirantes. Ah! mundo, mundo!

 

E saiu com o seu passo imperturbável.

 

- E quem sabe se ainda hoje não se pode dizer o mesmo -resmungou o velho sacristão, pondo a mão sobre a casula que dobrava; - o ódio de Rogério é tão vivo hoje como o de seus antepassados!... Mas, não - exclamou continuando o trabalho -, não pode ser ...

 

 

XV

 

Desde a noite fatal, a essa de Queiroz perdeu inteiramente o ar alegre que a distinguia entre as da paróquia.

 

Os meninos deixaram de cantar, reunidos em aula, a musica monótona das suas contas e leituras. Entravam e saíam com uma vaga tristeza daquela sala grande, que lhes fazia saudades na ausência, e freqüentada entristecia-os.

 

- O mestre está bem doente.

 

- Vamos ter muitos suetos: é este mês todinho.

 

De feito, o velho Queiroz, na manhã seguinte à tentativa de assassinato contra Augusto Feitosa, queixava-se ainda mais das dormências e dores pelas pernas e braços. À tarde, indo espairecer pela horta, sentira as pernas fracas, como que desarticuladas nos joelhos, pesando muito. Dera apenas algumas voltas e, no entanto, chegando a casa, dizia-se cansado, como se houvera feito uma jornada fadigosa.

 

Passara este dia inteiro muito triste; ia de vez em quando à cabeceira de Irena, que havia despertado do seu prolongado espasmo, porém se conservava em grande prostração. Isto o impressionava muito e, para cúmulo de infelicidade, o vigário não tinha aparecido para dar o seu quarto de hora matinal, nem viera depois para distraí-lo com a bisca e com os comentários que necessariamente faria a respeito do sucesso da noite.

 

- E o Paula? - ponderou ele a sua irmã. - Como que vai se esquivando da gente pouco a pouco!

 

- Anda agora entretido com os seus pobres.

 

- Não é razão; sempre veio aqui apesar disso.

 

- Você é muito desconfiado; pelo vigário ponho eu a minha mão no fogo.

 

- Eu hoje não juro nem por mim - murmurou Queiroz; - há coisas que não se explicam.

 

- É verdade, e uma delas é a doença de Irena.

 

- Ora é muito boa esta! Pois o estado do pai, a certeza de que vai sair do lugar onde nasceu, é pouco?

 

- Mas também um sentimento assim é demais.

 

- São gênios; sempre foi assim quando pequena. Você já não se lembra que ela adoecia quando quebrava as bonecas?

 

Desculpando, porém, com tanto zelo a filha do amigo, Queiroz mostrava não ter convicção do que dizia, e as suas palavras junto da rede de Irena eram um desmentido solene que a si próprio dava.

 

D. Ana, por sua parte, limitava-se a sacudir os ombros.

 

 

 

Três dias depois dos múltiplos sucessos da noite do crime, um novo desgosto veio juntar-se aos muitos que torturavam o professor.

 

O inspetor Antão Ramos veio visitá-lo, e pediu-lhe um instante em particular. O começo da conversação foi dolorosamente embaraçoso para ambos, até que se ferisse o ponto.

 

- Você sabe, Queiroz: eu não desconfio nada do velho Monte.

 

- Mas para que declarar isto, homem?! Deve-lhe ele alguma coisa? Conte certo o pagamento.

 

- Antes fosse por isso; neste ponto ninguém lhe põe o pé adiante.

 

- E então por que havia de desconfiar?

 

- Eu lhe digo: rosnam que a partida do Monte para o Aracati foi uma chicana.

 

- E quem é que rosna este desaforo?

 

- Toda a gente.

 

O professor endireitou-se na cadeira, e baixou os olhos para esconder a sua contrariedade.

 

- E a propósito de que dizem esta grande tolice?

 

Antão Ramos demorou-se muito a responder; compreendia que as suas palavras arrastariam o professor a um transe doloroso. Mas, afinal, disse com longas reticências:

 

- Você sabe, bem? Deu-se aquele desastre com o Feitosa, e o rapaz não tem um só inimigo... Para serem os Viriatos, eles não se contentariam com tão pouco, tanto mais que o rapaz não trazia nada consigo. E então..

 

- E então?... - perguntou Queiroz, trêmulo e indignado, a olhar fixamente para o inspetor.

 

- Toda a gente se recordou do ódio que há entre Montes e Feitosas.

 

- Mas pensam esses malvados que foi Rogério quem o quis matar?

 

- Eu por mim não creio mas... O velho mesmo disse muitas vezes que tinha coragem de atravessar o coração a um por um dos Feitosas.

 

- Palavras ditas à toa, Antão Ramos... - ponderou Queiroz, titubeando -, no calor da conversa. Mas Rogério é incapaz de matar uma mosca e, se quisesse atacar um Feitosa, você bem sabe, atacava-o cara a cara.

 

- Tudo isto eu digo, mas o zunzum não deixa de crescer. O próprio rapaz creio que diz a mesma coisa.

 

- Mas é uma calúnia! - bradou Queiroz convulsamente.

 

- Diga-me quem a espalhou que eu vou desmascará-lo.

 

- Vá lá saber quem foi; anda na boca de toda a gente.

 

- E você também acredita?

 

- Eu só farei o que a lei manda, quando se tirar a limpo este negócio.

 

- Muito obrigado; Monte há de justificar-se. Quando o inspetor retirou-se, Queiroz vestiu-se prontamente, e saiu, arfando o seu cansaço, em procura do vigário. Achou-o em casa muito pensativo, com o rosto macerado, a voz muito rouca, e os modos muito distraídos.

 

- Já não aparece pela casa dos pobres, sr. vigário; todos são filhos de Deus, e lá diz o rifão: pobreza não é vileza.

 

- Tenho estado muito doente, e não sabia que você estava tão incomodado.

 

- Deixemo-nos disto: de ingratos está o inferno cheio. O que me traz aqui....

 

- É o seu velho amigo Monte - interrompeu-o o vigário.

 

- Pois você também já ouviu?

 

- Se está tudo cheio - ponderou Paula, contendo um calafrio. - Voz do povo é a voz de Deus, ou.

 

- A do diabo, como neste caso.

 

- Mas vá lá convencê-los.

 

- Você podia fazê-lo - exclamou o professor - se fosse ~r com Augusto Feitosa, se lhe dissesse que tinha lido a carta do Aracati, se provasse como isto não passa de uma emboscada de algum desses miseráveis retirantes.

 

- Tudo Isto já eu lhe disse - respondeu Paula friamente -, mas perdi o meu latim; deram para dizer que foi ordem do Monte, o que quer você que se lhes faça?

 

- Mas então um inocente há de pagar pelo que não fez?

 

- O Cristo morreu assim. Mas não há de que desanimar por ora; não passa de boatos.

 

A frieza do vigário indignara o honrado professor, que se levantou para sair despedindo-se com uma secura hostil.

 

A sua amizade por Monte obrigou-o, porem, a deter-se, e a suplicar o auxílio do vigário.

 

- É um nosso velho amigo, Paula. Você tem um gênio esquisito, mas não há de deixar que um amigo sofra inocente.

 

- Eu tenho um alvitre a aconselhar. Monte retira-se daqui o mais depressa possível e troca o nome; nessa leva de retirantes quem o há de descobrir?

 

- Mas isto é um recurso desesperado.

 

- É para o caso desesperado; se ele ficar, está perdido. A mãe de Feitosa jurou persegui-lo até a morte.

 

Queiroz voltou a casa estalando de amargura. A monstruosidade do infortúnio do seu amigo entontecia-o, embriagando-o de pesar. Pensava em ir ter com Augusto; mas por sua vez sentia-se fraco para convencê-lo da inocência, que ele afirmava como amigo, mas de que em consciência não estava convencido. O que lhe dizia o coração era justamente o que repetiam todos, e demais tinha sempre na memória as palavras de Paula: "É um bom homem que há de ir parar no inferno a dar esmolas". O ódio entranhado e indelével do amigo era capaz de tanto, ou mais.

 

No entanto, alguma coisa lhe dizia ao mesmo tempo que não tinha sido Monte o mandante do crime. Fora sempre leal e nobre, não atacaria de emboscada, embora soubesse que, vingando-se, morreria. Mas essa dúvida favorável desaparecia logo, porque vinha combatê-la a suspeita de Rogério acerca das relações entre Irena e Augusto, o que considerava tamanha afronta ás suas tradições que não trepidara ante a idéia de ver morrer a filha.

 

Enredado pelas agravantes que o próprio Monte fora solícito em acumular contra si, Queiroz por sua vez concordou com o vigário em que só havia um meio para salvar o amigo - a fuga.

 

- Eulália! - chamou o professor.

 

Quando a filha veio ter consigo, disse-lhe bruscamente:

 

- Você, que é a cúmplice da desgraça de Irena, vá convencê-la de que ela deve mostrar-se corajosa e não demorar aqui o pai.

 

As palavras de Queiroz - feriram fundo o coração de Eulália. Debilitada pelas vigílias, torturada pela cruel certeza de que fora a causa de um crime, tinha passado os dias a esconder as suas lágrimas, a reprimir os gritos da consciência, que ora aconselhavam-na a que arrancasse do mistério a origem e o autor do atentado, ora impunham-lhe silêncio em nome da paixão violenta e indomável de Paula. O tom severo de seu pai pareceu-lhe uma sentença que a exilava para sempre do seu coração, e uma dor funda, sem lágrimas, estranguladora como a laçada de um tugue, constringiu-lhe a garganta, e atirá-la-ia por terra sem sentidos, se os braços de Queiroz não a amparassem.

 

- Mas que culpa tenho eu? - murmurou queixosa.

 

- Eu sei lá, filha! - respondeu o pai arrependido; eu sei lá o que digo! Vivíamos todos felizes. Vocês eram a nossa alegria, o nosso orgulho, a nossa esperança. Chamavam-nas por aí as letradas da paróquia, e nós ríamo-nos da inveja dos maldizentes, porque víamos em vocês grande diferença das matutas nossas conterrâneas. Mas, de repente, vocês procedem da mesma sorte que elas, pior ainda do que elas...

 

Eulália abatida, receosa, sem coragem para defender-se, nem pestanejava, pensando que ia ouvir pronunciar o nome do vigário.

 

- O resultado - continuou Queiroz - é que Irena, apesar de ser uma santa, vai cavar a cova para o desgraçado pai, com o seu amor insensato.

 

As lágrimas rebentaram tumultuariamente nos olhos avermelhados do professor, que prosseguiu solenemente:

 

- Ouve, minha filha; eu sei que não era você quem devia ser a denunciante de sua amiga, mas também não lhe ficava bem servir de capa ao seu amor. Eu sei que não se pode muitas vezes fazer caiar o coração, porém responda: uma filha deve condenar á morte, á vergonha, à ignomínia o pai que a idolatra?

 

- Meu pai! - suplicou a mísera Eulália - Não a condene assim; ela tem sofrido muito.

 

- Não há sofrimento que impeça um filho de salvar a honra de seu pai.

 

- Mas também - balbuciou a filha - o ódio dos pais não deve servir de obstáculo à felicidade do filho.

 

- Não se trata disto - respondeu Queiroz visivelmente contrariado. - É da honra de Rogério que se trata. É preciso que Irena se decida a partir hoje, amanhã, agora mesmo, no instante que seu pai quiser.

 

- Mas isto é condená-la à morte, meu pai.

 

- Que morra, entendeu? Mas salve o nome de seu pai, que, de outra sorte será arrastado à prisão, infamado e punido como tendo tentado assassinar Feitosa.

 

Um ai! repassado de angústia indefinível rompeu dos lábios trêmulos de Eulália, que se precipitou nos braços paternos sufocada a soluçar.

 

O professor, ameigando a voz, continuou:

 

- É preciso ter coragem, filha, se quer salvar Irena, salvando a honra de seu pai. Ela não resistiria ao golpe de vê-lo manchado com o labéu de assassino.

 

Surda às consolações do velho, Eulália parecia querer dissolver-se na abundância das lágrimas. Os lábios continham-lhe a custo o segredo, cuja integridade o coração impunha-lhe guardar. Sentia-se bem a luta que lhe ia no espírito, pelos seus movimentos bruscos, ora levantando a cabeça do ombro de Queiroz, ora fitando-o para logo recair nos angustiosos soluços.

 

- Vai, minha filha, vai ter com tua amiga - insistiu o professor. Eu sei quanto ela sofrerá, mas Deus há de ajudar-nos a descobrir o criminoso, e então quem sabe se o próprio sofrimento que hoje nos tortura a todos, não será um meio de unir para sempre Irena e Augusto?

 

O honrado professor enxugou amorosamente os olhos pisados de Eulália e, beijando-lhe a testa, conduziu-a silencioso até a porta do quarto, onde Irena quase passava os dias em madornas sucessivas.

 

Ficando só, conservou-se Eulália de pé por algum tempo a conter a onda tumultuária de soluços que se lhe emarolava no seio, e só entrou para ver se subtraia-se a sua velha tia, que, deixando a costura, veio saber o que tinha havido entre ela e seu pai.

 

A boa senhora, porém, acompanhou-a.

 

- Esta casa parece estar excomungada, disse d. Ana; é desde manhã até a noite choros e mais choros, e sem se saber por quê.

 

- Quer que me ria, quando não tenho vontade, titia?

 

- Pois não tem razão para viver assim; aqui ninguém a maltrata. Estes choros até hão de fazer o mano pensar que é alguma coisa com a gente. Isto é por força e obra de satanás.

 

- Não é então coisa de perigo; benze-se a casa, e tudo cessa.

 

- Oh! Sr. vigário - exclamou d. Ana amaciando o tom de molestada com que falava à sobrinha. - Bons olhos o vejam. Pensei que estava ofendido conosco.

 

Paula assomou na porta da sala de jantar; sorrindo estendeu a mão a d. Ana, que lhe saíra ao encontro, e voltando-se para o lado de Eulália, perguntou-lhe afetuosamente:

 

- Foi você quem trouxe o diabo para casa, menina? É preciso uma semana de penitência.

 

- Eu vou avisar o mano - continuou d. Ana; - a sua presença aqui é agora para cantar-se a boa nova.

 

E a excelente senhora tomou o pequeno corredor que conduzia à sala das aulas, chamando pelo irmão.

 

Eulália, apoiando-se com uma das mãos ao umbral da porta do seu quarto, quedou com os olhos baixos, e Paula, meio perturbado, estatelou também no lugar em que falara com d. Ana.

 

- Já não lhe mereço um aperto de mão? - murmurou depois de um breve silêncio. - É mais severa do que todos, e no entanto é quem não tem razão para isso.

 

Eulália levantou os olhos lacrimosos e encarou severamente com o vigário, que não pôde sofrer de fronte erguida o olhar da moça, misto de indignação e de espanto.

 

Mas, ainda tentando sufocar a consciência, disse com um tremor fraco na voz:

 

- Não sei por que provoquei-lhe tanto ódio...

 

Um impulso brusco de Eulália escancarou a porta, deixando ver no interior do quarto o rosto lívido de Irena, meio reclinada e adormecida, e ao mesmo tempo a moça travou do braço do vigário com violência igual a sua angústia.

 

- Veja, senhor, veja - disse com voz sumida: - Feitosa está moribundo e a minha pobre amiga está assim.

 

O hábito da hipocrisia deu ainda ao vigário forças para sorrir e voz para responder:

 

- Queixe-se do Monte.

 

- Que diz?!

 

- É pelo menos o que todos dizem.

 

- Mente, mente - articulou a moça com voz surda. - Eu vi!...

 

- Mais baixo, mais baixo, que me perdes, acudiu o vigário trêmulo e agarrando a mão de Eulália.

 

- Nunca lhe tinham feito mal e o senhor fê-los desgraçados.

 

- Mais baixo, mais baixo, por piedade! - segredou Paula ansioso e aterrado... - Se te ouvem, estou perdido - suplicou querendo ajoelhar-se.

 

- O senhor fala em piedade, mas não teve...

 

- Não - atalhou o vigário alucinado -, não podia tê-la! Não podia tê-la, porque te amo!... Amo-te como doido, e ele também te amava... Oh! não me interrompas: amo-te!... entendes?... E não serás de outro ainda que eu tenha de despenhar-me no inferno em vida!

 

E erguendo-se de improviso, colheu nos braços a cintura de Eulália, em cujos lábios tentou depor seus lábios abrasados de paixão.

 

Eulália defendeu-se arrebatadamente; soltou-se dos braços que a prendiam, recuou cambaleando para dentro do quarto e foi cair sobre uma caixa. Ai toda a indignação deliu-se de súbito na sua própria energia: com a cabeça pendida entre as mãos, presa de extraordinária ansiedade, derramando amarguradas lágrimas, murmurou afinal entre soluços abafados:

 

- Oh! meu Deus! É um miserável... mas eu... o amo!

 

No corredor tinha-se feito já ouvir a voz de d. Ana:

 

- Desculpe, sr. vigário, mas o mano não pode vir cá; doem-lhe muito as pernas e não pode firmar-se nelas, porque fez um excesso ainda agora.

 

Paula, com uma suprema força de vontade, tinha já recuperado a calma.

 

- Quem sabe se não é o beribéri? - ponderou a d. Ana. - Tem havido muito este ano.

 

A velha senhora, que se havia aproximado, pôs-se a olhar para a rede em que jazia Irena na sua prostração assustadora.

 

- Vê o sr. vigário o que são desgraças? Tem padecido muito esta pobre criatura.

 

- Coitadinha!... Se ela vê o pai quase perdido.

 

D. Ana agitou o indicador negativamente.

 

- Como não? - perguntou o vigário a meia voz.

 

- O mano pediu-me que acompanhasse o sr. vigário até o quarto dele. Vamos?

 

Depois de darem alguns passos, pararam, e a boa senhora pôs-se a vazar no ouvido de Paula as suspeitas que nutria.

 

- Quanto a mim a doença dessa menina é pelo Feitosa.

 

- Qual, d. Ana! Acredita que estas duas famílias chorem uma pela outra?

 

- O certo é que, na noite do rebuliço por causa do rapaz, foi que ela ficou pior.

 

- Mas o pai tinha partido e ela sabia que iam ficar reduzidos a nada...

 

- Pode ser, sr. vigário; mas eu lhe digo aqui como quem se confessa: parece até que o rapaz foi ferido por causa dela.

 

- Não pense nisto, d. Ana; Irena nem por sombra pensa no Feitosa: eu sou o seu confessor.

 

- O sr. vigário me absolve de um mau juízo?

 

- Diga.

 

- Eu não ponho as mãos no fogo; tenho pensado muito neste ponto: Irena foi encontrada fora de si, caída entre os Canteiros.

 

- Deveras, d. Ana?! - acudiu o vigário prontamente. -Diga-me: então foi ela quem esteve?... quem foi achada entre os canteiros?

 

- Já sabia? - perguntou a boa senhora.

 

- Não, soube agora... Estou tão comovido com tudo isso que nem sei o que digo. Foi achada entre os canteiros, dizia a senhora; mas não devia estar só, estava com Eulália... certamente.

 

D. Ana agitou de novo o indicador em sentido negativo.

 

- Eulália estava na sala, porque o mano já se sentia adoentado.

 

- Mas é então uma grande desgraça! - exclamou Paula comprimindo a fronte com uma das mãos. - Oh! uma fatalidade, santo Deus!

 

- Veja o sr. vigário, ninguém poderia desconfiar. Daí para cá tem a infeliz estado sempre como morta...

 

Paula ergueu o busto, parecendo ter tomado uma súbita resolução.

 

- Percebo agora por que Feitosa insiste em que foi o velho Rogério quem o mandou matar, disse serenamente.

 

- Jesus do céu! O pobre não sabe de nada; eu vou jurar que nem lhe passou pela cabeça. Diga a todos, sr. vigário, diga a todos; salve o infeliz de mais este desgosto.

 

- É impossível, d. Ana. Dói-me tanto como à senhora, mas para convencer Feitosa era preciso encontrar o verdadeiro criminoso, e este como se poderá descobrir?

 

- Esta confissão já está sendo longa - ecoou do quarto a voz simpática de Queiroz -, guardem o resto para a quaresma que vem.

 

- Está ralado de dores e ainda brinca, sr. vigário; é mesmo um santo! - disse prazenteiramente d. Ana. - Não lhe diga nada a respeito de Monte: ele ficaria pior.

 

- Fique descansada, d. Ana.

 

Paula entrou no quarto do professor, ainda transfigurado pela confusão que lhe causava o que acabava de ouvir, e sobretudo impressionado por aquela exclamação comprometedora de Eulália, que o fizera fraquear e trair-se.

 

- Ela viu - pensava ele. - Odeia-me sem dúvida e dentro em pouco toda a gente saberá que fui em quem, sem uma queixa, sem a menor ofensa de Feitosa, tentei tirar-lhe a vida. Não haverá um coração por mais piedoso que me perdoe, e o meu nome cobrir-se-á para sempre de vergonha. Oh! como sou maldito!

 

O tumultuar do pensamento estresia-se-lhe no semblante, no imenso fuzilar dos olhos, no mordicar incessante dos lábios, no freqüente confrangir dos supercílios.

 

- Você esteve no quarto das meninas, não? Viu aquele espetáculo? - perguntou o professor.

 

- Cortou-me o coração - respondeu Paula brevemente.

 

- É a desgraçadinha ainda não sabe a sorte que espera o seu velho pai. Talvez não resista a tantos golpes, e a minha Eulália ficará inconsolável se ela morrer. É horrível, incalculável a desgraça do meu infeliz amigo.

 

- É - disse peremptoriamente o vigário - é um mal sem remédio; tudo se conspira contra ele. Irena e Feitosa amavam-se, e Rogério, você bem sabe, não podia tolerar esse amor. Será mais uma prova - acrescentou mais baixo, como se falasse apenas para a consciência.

 

- Acima da fatalidade está Deus, e eu não sei o que me diz que há uma testemunha do crime.

 

- Se existisse já teria denunciado o criminoso! - exclamou o vigário - Estas coisas não se calam, dizem-se logo.

 

- Quer saber? - disse precipitadamente o professor eu desconfio que será possível descobrir algum indício.

 

- Com quem? - perguntou Paula profundamente comovido.

 

- Jura-me segredo?

 

- Não precisa pedir.

 

Eulália parece saber de alguma coisa.

 

- Eulália! - repetiu Paula com uma acentuação dolorosa. - Sim... elas são amigas... que é impossível que ela não saiba tudo.

 

Queiroz relatou então quanto, durante os três longos dias, tinha surpreendido a filha: - a inquietação, os contínuos sobressaltos, as súbitas perplexidades, as incessantes lágrimas, o zelo exagerado por Irena. Na manhã seguinte ao crime, encontrou-as abraçadas, trocando-se mútuos protestos de eterna amizade; mas pouco depois, não podia afirmar, pareceu-lhe ter ouvido a Eulália dar-se como desleal, e prometer resgatar-se vingando a amiga.

 

- Tive ímpetos de interrogá-la mas hesitei; não tinha nenhuma prova...

 

- E fez bem - interrompeu-o o vigário -, nada se pode concluir das suas palavras. É que ela sabia das relações dos dois noivos e inculpava-se de não ter prevenido o desenlace fatal, revelando o segredo.

 

- Não é só isto; eu também sou amigo, sinto profundamente a desgraça de Monte, mas não é com a violência de Eulália. Quando lhe disse que o velho era apontado como criminoso, Eulália como que teve uma explosão de remorso.

 

- As mulheres são mais esquisitas nas amizades, apaixonam-se.

 

- É exato, mas também sacrificariam milhões de amigas ao seu amor.

 

- Mas era preciso que elas fossem rivais - objetou Paula com um sorriso indescritível.

 

- E se o caso se desse, meu bom amigo? Se a nossa desgraça fosse tamanha!...

 

Um calafrio violento abalou na cadeira o corpo todo do vigário, que, boquiaberto, arfando, ficou a olhar de olhos esbugalhados para o professor.

 

- É em que tenho estado a pensar - continuou Queiroz -, talvez Eulália suspeite de alguém...

 

- Sim... sim... - concordou o vigário -, e será possível arrancar-lhe a confissão desse nome.

 

- Mas quem há de poder tanto?!

 

- Eu! com o auxilio de Deus - acudiu Paula.

 

E levantou os olhos para o céu.

 

- Oh! como eu lhe agradeceria! - exclamou Queiroz apertando ambas as mãos do vigário. - Era um desencargo para minha consciência, e a salvação de Monte, contra o qual eu também, eu seu amigo, confesso, tive profundas suspeitas.

 

- Acalme-se - disse o vigário inteiramente reportado à maior perversidade -, eu saberei de tudo.

 

 

XVI

 

Eulália hesitou por largo espaço, antes de dar começo à empresa que lhe fora cometida por seu pai.

 

A entrevista inesperada, o protesto fervoroso do vigário absorveram-na inteiramente na fascinação invencível, que sobre si exercia aquele homem, ora arremessado como um louco, ora submisso como uma criança. Sentia-se avassalada ao seu império, e deixava-se ir pelo declive desse vitorioso sentimento com a passividade de um magnetizado, sem reagir, bendizendo a própria fraqueza. Em vão a consciência protestava contra o segredo fatal, que a envergonhava como uma gravidez criminosa: todo o passado alevantava-se radiante e delia em luz as trevas do remorso. Era uma fatalidade; a sua vida devia levar, pelo impulso da educação, um curso prescrito como o do sol nos diversos signos do zodíaco.

 

Todos os seus escrúpulos de amiga sincera conjuravam-se contra a missão de que fora encarregada; mas ao mesmo tempo recordava-se das últimas palavras de seu pai: talvez da partida rápida de Irena dependesse a sua união com Feitosa. Ajoelhou-se, pois, junto à rede da amiga, e imprimindo-lhe beijos na mão muito branca, acordou-a sem sobressalto.

 

- Você afugentou-me um sonho tão bom, que eu dera tudo para o continuar sempre - disse-lhe Irena no fraco tom de convalescente.

 

- Quem sabe se ele não se realizará ainda, e estando você acordada?

 

- Fora preciso um milagre.

 

- A coragem pode fazê-lo.

 

- Qual, foi apenas um sonho.

 

Ficaram ambas a olhar-se como se estivessem mutuamente a medir nos semblantes a grandeza dos sofrimentos.

 

Pela janela do quarto entrava a claridade melancólica do crepúsculo, frouxa como a esperança daqueles dois corações, e de mistura com ela vinham os ecos de vozes alegres, das risadas francas de Chiquinha e das outras duas irmãs de Eulália, que repetiam as palavras da caçula e folgavam com elas.

 

- Como são felizes! não é, Eulália? Quem nos dera o mesmo tempo!

 

- Você pode ser ainda mais feliz do que elas, se quiser; está nas suas mãos.

 

Irena sorriu com a tristeza do desenganado.

 

Eulália abaixou os olhos como se se arrependesse de ter afrontado a sua amiga, que, notando-lhe o embaraço, murmurou:

 

- Nem você mesma acredita na esperança que deseja dar-me!

 

- Não, não é isto; eu é que sou uma tonta, não sei como dizer: meu pai espera que vocês hão de casar-se..

 

- Ele já sabe?

 

- Sabe tudo, mas não lhe quer mal por isso.

 

- Que vergonha, meu Deus! - soluçou Irena.

 

- Eu sei que vou fazê-la chorar muito, mas é preciso dizer tudo.

 

E com a precipitação do temor desfiou as suas esperanças, de envolta com a situação do velho Rogério Monte.

 

Irena ouviu a exposição pungente, e só no fim perguntou com uma calma heróica:

 

- E Augusto acredita nessa calúnia?

 

- Se ele sabe que é odiado por seu pai, como não acreditar?

 

- Pois bem, eu partirei.

 

E levantando-se a meio, pálida como um cadáver, acrescentou:

 

- Vê? eu já não sinto mais nada. Sei que seu pai há de alegrar-se muito; vá dizer-lhe que eu obedeci ao seu conselho.

 

A altivez da raça sobrepujara a fraqueza da mulher, e o fogo do orgulho, fuzilando nos grandes olhos azuis de Irena extinguiu-lhe inteiramente as lágrimas.

 

Eulália parecia fulminada; deixou-se cair sobre os quadris, e escondeu o rosto no colo da amiga. Julgava-se doida, baldão de um pesadelo cruel, que dava a tudo em torno de si a aparência da vida real, para melhor torturá-la.

 

- Você parte ? - perguntou amedrontada, fitando os olhos rasos de lágrimas nos de Irena.

 

- Juro! partirei com meu pai.

 

- E o seu amor, a sua esperança, e Augusto, e tudo quanto tem sofrido?

 

- Deixo ficar, para não feri-los pelas costas; eu sou da raça dos cobardes.

 

- Mas é a morte, minha filha, porque não tardará muito que você se arrependa.

 

- Nunca! - exclamou Irena resolutamente.

 

Mas as lágrimas apareceram-lhe de novo, de novo os soluços começaram a sufocá-la, e a jovem, deixando-se arrebatar na efusão tempestuosa do seu sofrimento, disse com amargura:

 

- Ele tem razão para supor-nos cobardes. Eu esqueci-me de tudo por seu amor; não pensei nos brios de minha família quando jurei ser sua; afrontei a minha própria honra indo ouvi-lo à noite enquanto o meu pobre pai dormia confiado no meu recato. Augusto pode insultar, tem razão: eu atraiçoava a velhice de meu pai, a quem feria pelas costas, com a minha loucura. Este procedimento - pensou ele talvez - devia ser ensinado pelo velho Monte. Augusto é quem tem razão.

 

- Ai! como eu sou indigna de si - suspirou Eulália, abraçando a amiga -, não devia ser eu quem a estivesse convencendo de que deve partir!

 

Irena, porém, acudiu logo:

 

- Diga a seu pai que obedeci ao seu conselho; partirei.

 

Eulália levantou-se automaticamente e saiu trôpega como um tonto, mas, em vez de ir ter com o professor, tomou a direção da horta.

 

Chiquinha e suas irmãs continuavam a brincar animando a melancolia do crepúsculo com o estrídulo das suas gritas alegres. Paula e d. Ana conversavam a distância: a boa senhora sentada na borda de um canteiro, o vigário com as mãos entrançadas sobre as costas, dando curtos passeios de um para o outro lado e parando de quando em quando em face de d. Ana.

 

Falavam dos acontecimentos, que eram então a conversa obrigada.

 

- Eu lhe disse um dia, não sei se se recorda: falta-se com a religião até junto do andor da Virgem. Há de lembrar-se que Eulália ficou então muito comovida e chegou a chorar. Não se lembra?

 

- Se me lembro, sr. vigário  Mas estava longe de pensar que era com ela que Vossa Mercê falava.

 

- Já o negócio estava adiantado, e o grande caso é que o tal Augusto enganava as duas, entretendo-as com os seus olhares.

 

- As duas?

 

- Sim, porque hoje está mais que provado que ele era o noivo das duas, mas preferia a Irena, pelo faro do dinheiro.

 

- Olhe que sempre se vêem coisas, sr. vigário!

 

- Agora não quererá uma nem outra: o dinheiro de Rogério bateu as asas, e Eulália, depois de saber do que se passou, não o quererá também.

 

- Eu não acreditaria se não fosse o sr. vigário quem me contasse.

 

- E quer saber de mais uma coisa, d. Ana? Para mim o crime se não foi praticado por ordem de Rogério, com certeza é de algum pretendente ao amor de Eulália.

 

- Eu cada vez fico mais abismada!

 

- O Feitosa vinha sempre aqui, e entrava... naturalmente para conversar.

 

- Mas eu nunca o vi, sr. vigário: neste ponto parece que não há muita verdade.

 

- Ah! não vinha às claras, mas de noite. Não sei quem foi que me disse que há ali na cerca um dos paus completamente abalado. Foi pessoa que esteve aqui na noite do ferimento e que descobriu o fato, indo encostar-se na cerca. Mas pelo nome não perca...

 

- Forte desaforo! e com caras de santas.

 

- Talvez o pretendente visse o Feitosa entrar e o esperasse...

 

Eulália tinha entrado na horta, e seguia para o lado da cerca. Pensava que o assomo de dignidade de Irena contra Feitosa extinguir-se-ia, como tantos outros que por várias vezes ela tivera contra Paula. Vinha pois, observar pela janela do quarto os movimentos da amiga.

 

- Olhe para onde ela vai - disse Paula apontando para Eulália.

 

- E até onde pode chegar o desavergonhamento - resmungou d. Ana. - Se ela fosse minha filha...

 

- Perdão! eu estou lhe falando como seu amigo, daqui não passa uma palavra para ninguém.

 

- Mas, sr. vigário, isto que o senhor sabe devia ser dito para que se procurasse o criminoso.

 

O vigário assumiu um tom solene.

 

- Deus, que o esconde, d. Ana, é porque tem lá suas razões...

 

- Mas não se deve deixar sofrer um inocente..

 

- Quem sabe lá se é! Tudo quanto eu disse não passa de meras suposições... Olhe, anda de um lado para outro -acrescentou, apontando de novo para Eulália; - faz-me dó.

 

Pois a mim faz-me ferver o sangue, sr. vigário, só com lembrar-me que os pobres pais padecem tanto.

 

- Devemos perdoar as fraquezas do nosso próximo. Vá ter com o seu irmão, d. Ana; eu vou conversar com Eulália; tenho o que dizer àquela alma atribulada.

 

- Então até logo, sr. vigário.

 

D. Ana deu-se pressa a entrar em casa.

 

Paula exalou um suspiro de satisfação.

 

- Até que enfim! - murmurou ele.

 

E dirigiu-se para onde estava Eulália.

 

O brinquedo das crianças tinha cessado, e só se ouviam mal distintos os ecos das suas conversas em voz alta. Irena mergulhara-se de novo na sua rede e ninguém podia observar o que se passava na horta.

 

- Ainda está com muita raiva de mim? - segredou o vigário aproximando-se de Eulália, sem que ela o pressentisse.

 

Trêmula de indignação, a moça voltou-se de face para ele e atirou-lhe em cheio o brado da sua consciência:

 

- Deixe-me; o senhor é um assassino; mate-me também!

 

Paula não mostrou o menor abalo, mas como Eulália quisesse retirar-se, travou-lhe do braço e prorrompeu em tom amargo:

 

- Eu sei que é seu desejo perder-me. Quinze anos em que eu enchi-a de carícias, os longos anos em que tenho sentido corroerem-me os dentes agudos de uma paixão indomável, e durante os quais vim dia a dia mostrar-lhe o coração ensangüentado, não lhe valeram uma palavra de piedade. Desiludido, desesperado, fui descendo aos poucos aos meus próprios olhos, abismando-me cada vez mais na tristeza e na soledade da minha vida, e de queda em queda passei do ciúme à desesperança, da desesperança ao crime. No entanto da mulher, por quem me aviltei, por quem me perdi, não mereço senão isto: o desprezo, e talvez, ao sair daqui, a denúncia que levar-me-á à prisão e à ignomínia.

 

Eulália sentiu-se comovida até as lágrimas pelo tom pesaroso em que lhe falara o vigário.

 

- Deixe-me ir embora - insistiu ela brandamente -, basta o que eu já tenho feito sofrer a Irena; deixe-me ir.

 

- Mas eu tenho maior direito à compaixão, Eulália, e ninguém se condói do que eu padeço. Que importa que Irena seja sua amiga, se não respeitou o seu amor?...

 

- Que amor?

 

- O seu amor por Feitosa...

 

- É falso! - afirmou Eulália soluçando. - Eu não amo Augusto, nunca o amei!

 

- Oh! - exclamou o vigário radiante de alegria - diga-me outra vez, mil vezes que o não ama!

 

- Não o amo, já disse; se o amasse, teria entregado a prova que condena o criminoso.

 

- E qual é essa prova?

 

- O canivete-punhal ainda tinto do sangue de Feitosa.

 

- Mas o que ainda não fez, poderá fazê-lo em um instante, não é assim? - acudiu Paula visivelmente perturbado. - Pois bem, esqueça tudo, tudo, amor, sofrimentos, sacrifícios, e vá dizer a todos: eis ali o criminoso! prendam-no, infamem-no, matem-no!

 

- E ele não consente que uma pobre moça padeça, que o seu velho pai seja apontado como um assassino cobarde?

 

- Em menos palavras pode dizer tudo: “Este homem ama-me muito; é um grande crime; infamem-no portanto”. Diga; eu prefiro isso, porque então poderei trocar a paixão insensata que sinto pelo mais horrível desprezo. Vá!

 

Eulália deu alguns passos, mas parou de súbito, e erguendo os olhos lacrimosos para o céu:

 

- Não - exclamou alucinada -, pode ficar descansado: não direi nunca o seu nome.

 

- É inteiramente minha - murmurou Paula extasiado -, ama-me como um cão.

 

E seguiu Eulália que voltava para casa.

 

Essa cena deu ao vigário a certeza do domínio absoluto que exercia sobre o espírito de Eulália, mas não bastou para de todo asserenar-lhe o ânimo. Voltou à assiduidade de outrora na casa de Queiroz e, atento ao menor movimento da moça, renovou a miúdo os combates violentos, em que enervava cada vez mais aquela gasta energia.

 

Duas noites passou-as ele, até horas mortas, velando à cabeceira do professor, cuja moléstia agravava-se dia a dia, levando o susto e a consternação à família inteira.

 

- Maldito reumatismo - repetia d. Ana -, há de vexar muito o mano; como veio forte!

 

- Há de durar muito tempo, d. Ana: é dos que não têm mais cura...

 

- O meu medo todo é que o mano fique entrevado. O que será de nós, santo Deus ?! Nem é bom pensar nisso.

 

Em verdade, a moléstia progredira com rapidez, porque a superexcitação nervosa de Queiroz parecia concorrer poderosamente para apressar-lhe a marcha. O dédalo de cogitações em que se desgarravam os pensamentos e as comoções repetidas que o abalavam, os semblantes de Irena e de Eulália, tudo concorria para o mal-estar moral do professor. Na manhã seguinte à tarde da entrevista na horta, ouvindo a asseveração definitiva de Paula de que tinham sido injustos para com Eulália, a quase certeza da culpabilidade de Monte exasperou-o, e prostrou-o num acesso violento de dores que o obrigavam a penar.

 

Todavia, era de notar que a fisionomia de Paula em nada se coadunava com a sua exagerada solicitude junto ao amigo. Brincava muito com a caçula, conservava o ar desassombrado de quem não tem cuidados, e de vez em quando levava o seu bom humor até ir consolar a desventurada Irena, cujo esforço em domar o coração a enfraquecia a ponto de quase dominá-la.

 

Foi nestas disposições que o vigário foi abrir a porta da sala das aulas, na undécima noite depois da partida de Rogério Monte.

 

- Oh! é você? - exclamou ele estremecendo, ao dar cara a cara com Rogério - venha de lá este abraço.

 

Monte abraçou-o sem transporte, e limitou-se às frases de cortesia.

 

- Ó Queiroz - continuou o vigário -, cá está o nosso velho amigo são e rijo.

 

A família inteira rodeou logo o recém-chegado; mas, em vez de sorrisos, havia no rosto de todos a mais acentuada tristeza.

 

- O preguiçoso do Queiroz não sai do quarto? - perguntou Rogério.

 

E forcejando para ser jovial, acrescentou:

 

- Quem traz as pernas em sopa é este seu criado e não pode ir lá agradar a sua preguiça.

 

- Está com um achaque muito forte de reumatismo -disse a boa d. Ana; - nem se pode levantar à vontade.

 

Monte entrou no quarto de Queiroz, seguido pelo vigário.

 

- É a hora fatal, minha amiga - soluçou Eulália retirando-se abraçada com Irena. - Deus nos dê forças.

 

- Não chore assim que me desanima! O pranto não dá remédio. Paciência!...

 

- Eu não posso tê-la; morro! apunhalam-me o coração.

 

No quarto puseram-se os três a conversar. Monte referiu que os seus credores tinham sido inexoráveis; não quiseram estar por nenhuma espera. Nesse mesmo dia ia dar ordem para que os seus escravos fossem para o Aracati à disposição dos credores: pobres escravos, a quem ele tinha vergonha de dizer a sorte que os esperava. Mas não trazia ressentimento: o estado da província era tal que ninguém podia ter confiança no dia de amanhã. Todo o Aracati estava inundado de desgraças; as febres grassavam intensas; os retirantes chegavam ás centenas, piorando cada vez mais o estado sanitário da cidade. A população adventícia era já, com certeza, superior a 30 mil pessoas, que tinham fome, que se exasperavam e morriam como cães.

 

- E você está deliberado a sair da paróquia?

 

- Que remédio! - suspirou Monte. - E quero ver se parto dentro em dois dias.

 

- Muito depressa! - ponderou o vigário.

 

- É que ainda tenho de voltar ao Aracati; o preço dos escravos baixou muito, e eu quero ver se eles dão revés às minhas dívidas.

 

- Eu já não insisto - disse Queiroz: - honra é honra.

 

- Eu entendo assim - respondeu Rogério.

 

- Est modus in rebus - ponderou o vigário. - Às vezes tem-se muita honra à esquerda e negam que haja na direita.

 

E os olhos de Paula cravaram-se no velho criador.

 

Queiroz revolveu-se na rede, malgrado seu.

 

- É o que eu não quero que digam de mim - respondeu Rogério.

 

- Faz muito bem: não quer que se diga - acentuou Paula.

 

- Nem dou ocasião.

 

O vigário fez um movimento.

 

- "Cruel" - pensou o professor, - "ainda quer aumentar aflição ao aflito!"

 

E interveio logo em voz alta:

 

- Ninguém diz isto, felizmente. Monte, vá descansar; deve estar moído da viagem. Entre.

 

- Não - respondeu Rogério - eu vou para nossa casa.

 

- Então espere - acudiu o professor -, eu tenho muito que dizer-lhe.

 

- E eu deixo-os em liberdade - disse Paula, levantando-se e conservando o seu olhar hostil.

 

O pároco saiu e foi reunir-se às senhoras na sala de jantar, enquanto no quarto os dois amigos conversavam a meia voz.

 

O coração bondoso de Queiroz quis poupar o golpe profundo que a nova dos boatos causara ao velho amigo. Depreendia-se isto das palavras de Monte, quando pouco depois referiu na sala de jantar a conversação que tivera com o professor, que se limitou a queixar-se da severidade dos paroquianos ao comentarem a negativa de Rogério para a comissão de socorros.

 

Paula julgou dever adotar uma resolução decisiva.

 

- Já soube do que aconteceu ao Feitosa? - perguntou ele. - A notícia deve agradar-lhe.

 

- Não há notícia que me agrade a respeito de Feitosa: é como se não existissem... Como estás pálida, minha filha! - acrescentou Rogério voltando-se para Irena.

 

Nesse momento a voz do professor chamou no quarto por Eulália.

 

Nos lábios de Paula debuxou-se um sorriso de contentamento.

 

- Pois o Feitosa está a decidir - insistiu ele -, creio que não escapa.

 

Irena não pôde esconder a comoção tremenda que a avassalou, enchendo de espanto o mísero recém-chegado.

 

Mas o que têm você, minha filha? Parece que está com frio.

 

- Ah! ela sabe das circunstâncias do crime, o espesso véu de mistério que o cobre - continuou o vigário. - Um pobre rapaz que não tem inimigos, a não ser você... e que é apunhalado sem mais nem menos...

 

- Mas se você sabe que ela impressiona-se, para que vem falar-me nisso? Eu em nada me interesso por Feitosa, nada tenho com ele...

 

- É o que lhe parece.

 

- Como o que lhe parece? ~ o que é.

 

- Pois não é o que se diz, e em nome da sua honra você deve justificar-se, ou fugir.

 

- Ora, Paula - disse Rogério, franzindo as sobrancelhas você nunca deixará de ser esquisito no seu modo de pensar?

 

- É o que lhe digo.

 

- Então atacam minha honra?

 

- Apelo para todos.

 

Rogério olhou assombrado para os circunstantes, e leu em cada semblante, em cada atitude, a confirmação das ignominiosas palavras que ouvira. Irena prorrompeu em soluços, e o vigário continuou:

 

- Eu não o quero ofender, mas é preciso que você parta, por amor daquela pobre menina. Não se pode abafar a voz do povo.

 

- São muitos golpes repetidos, meu Deus! Eu já não posso resistir! - exclamou Rogério em tom repassado de amargura.

 

- Eu sei também calcular o seu sacrifício - murmurou o vigário - mas a amizade de Queiroz podia perdê-lo pelo escrúpulo de não angustiá-lo. Cumpri o meu dever de amigo, por amor de sua filha. Se tirassem-na dos seus braços para pôr entre ambos a prisão e o aviltamento, eu sei que nenhum de vocês resistiria, e isto é o que viria a acontecer, porque você está arruinado e Augusto Feitosa é um homem estimado e rico.

 

- Não, eu lutarei primeiro! - bradou o velho Monte elevando a cabeça com altivez; quero e hei de confundir os caluniadores.

 

- Será esmagado.

 

- Não importa, nada receio; eu tenho por mim a verdade é a justiça divina.

 

- Enquanto você tratar de justificar-se, Irena morrerá.

 

- Sim... sim... você é que tem razão - gemeu o infeliz. - O que posso eu hoje, mais do que salvar a vida da minha pobre filha! Partirei pois com ela.

 

E apertando entre as mãos a cabeça encanecida, prorrompeu em soluços.

 

D. Ana, que, a enxugar lágrimas renitentes, viera colocar-se ao lado de Irena, chamou a atenção do vigário para outro ponto da sala de jantar.

 

Paula volveu a cabeça num relance e olhou sobressaltado para Eulália. Era a estátua do remorso hesitando em confessar um crime. Apoiando-se por uma das mãos à mesa de jantar, trêmula e boquiaberta, fitava com um olhar felino o miserável, cujos dentes bateram num tiritar violento, enquanto as mãos sumiram-se-lhe no cabelo espesso e negro.

 

Os olhos, porém, baixaram-se-lhe, e envolvendo com rápido olhar o grupo formado por d. Ana e a filha de Rogério o vigário exclamou:

 

- Doidos que somos todos nós! Vejam como torturamos estas duas pobres crianças! E preciso fazê-las repousar.

 

O egoísmo de pai impeliu Rogério para a filha, a quem tomou nos braços, falando-lhe com uma acentuação profunda de desespero.

 

De repente exclamou:

 

- Ela está sem sentidos! ajudem-me a socorrê-la!

 

- Isto é uma infâmia! - exclamou por fim Eulália, fitando o vigário com o seu olhar assustador.

 

Paula pareceu por um momento fulminado, ao passo que o generoso Monte entendeu prudente atenuar o que julgava uma inconveniência da amiga de sua filha.

 

- Perdoe-a - disse ele -, perdoe-a, meu amigo; elas estimam-se tanto... que não admira que uma sinta igualmente a dor da outra.

 

- Não - continuou Eulália -, ele não tem que perdoar, porque tem muita culpa, porque é um malvado...

 

- Pobre criança! - interrompeu o vigário trêmulo, mas com a voz repassada de meiguice e de tristeza. - Veja como retribui a quem a estima tanto!... como será capaz de sacrificar tudo... por causa de sua amiga!

 

A boa d. Ana desfazia-se também em desculpas ao vigário.

 

- Perdoe-a, perdoe-a - exclamava aflita e lacrimosa.

 

Depois, correndo para junto de Eulália:

 

- Acalme-se, minha filha; veja que está faltando com o respeito ao sr. vigário.

 

Paula tinha-se aproximado de sua vítima e, envolvendo-a sempre com o seu olhar ardente, murmurou humilde e angustiosamente:

 

- Eis como se pagam tantos anos de um amor imenso... como o de um pai...  Pode insultar à vontade, Eulália não lhe hei de querer mal por isso; pode dizer o que quiser.

 

D. Ana e Rogério, comovidos por tanta mansuetude e pela sobreexcitação de Eulália, suplicavam calorosamente ao vigário que esquecesse a ofensa recebida.

 

- O que hei de eu fazer? Via-a crescer amando-a... como filha... Eu sou como um segundo pai... - disse Paula em tom triste, e aparentemente sossegado.

 

As lágrimas marejavam-lhe nos olhos, fitos nos de Eulália.

 

E acrescentou em seguida:

 

- Demais, ela diz a verdade: o que sou eu senão um coração cruel... um malvado... um...

 

- Não, não - atalhou a moça vivamente, com o rosto banhado em lágrimas. - Perdoe-me!... O senhor bem sabe que eu já não sei o que digo!

 

- E deixando-se cair sobre uma cadeira afogou-se em entrecortados soluços.

 

Paula tomou-a nos braços - apertou-a fortemente contra o seio, beijou-a na testa com efusão, e suspirou:

 

- Oh! muito temos sofrido...

 

- É verdade - murmurou d. Ana; esta casa parece estar excomungada.

 

- É porque dentro dela está um desgraçado - ponderou tristemente o velho Monte.

 

 

XVII

 

Tinham-se passado alguns dias depois da partida precipitada de Rogério, e o vigário não interrompera a assiduidade na casa de Queiroz.

 

Uma profunda modificação havia-se operado em todas as pessoas da família, e a própria vida da paróquia tinha-se tornado mais triste e monótona. Só na venda de Antão Ramos havia, à tarde, algumas conversações alegres entre os fregueses, que vinham aguardentar-se e cantar o desafio. Todavia o inspetor não tomava, como outrora, parte nessas palestras; andava arredio do balcão e já não dava ensanchas a grandes familiaridades.

 

- Todo o meu tempo é pouco para socorrer àqueles desgraçados - dizia ele.  No principio tudo é flores... O vigário lá anda às voltas com o Queiroz, que está a decidir, e o Feitosa, magro e quase inválido, nada pode fazer. O Engenho inteiro ficou sobre as minhas costas.

 

E o bom do inspetor queixava-se amargamente: era um povo duro de sofrer-se, mole e remisso, amigo de se deixar imundo e de habitar na imundícia. Todos o sabiam na paróquia: um dia o vigário foi obrigado a ir pessoalmente acompanhar os retirantes para conseguir que eles se limpassem e vestissem a roupa nova, que escondiam como se tivessem mais amor pelos andrajos. Demais não se contentavam com o que se lhes dava: pois os paroquianos não viam, quase todos os dias, grupos de mulheres que vinham à venda lastimar-se e pedir disparates? Enfim, era uma vida muito amarga, a de comissário, e o inspetor, só por amor dos seus semelhantes e temor da religião, ainda se conservava em tão espinhoso cargo.

 

- Mas para que Vossa Mercê faz este sacrifício, sr. inspetor? Deixe a comissão que há de haver quem o substitua - ponderavam-lhe.

 

- Homem, não me fica bem como autoridade.

 

- Apele para o seu gênero de negócio.

 

- Isto não embaraça.

 

- Nem faz conta - diziam-lhe amistosamente -, nesta freguesia Vossa Mercê faz e batiza.

 

- É, comecem as más línguas a contar, e eu lhes direi quem é que deixa a paróquia. Para besta já basta.

 

 

 

No dia 12 de junho um novo assunto serviu de pasto à conversação dos cantadores de desafio e a todo o povoado: a doença incurável de Queiroz.

 

De feito, a moléstia do professor tinha-se dia por dia agravado mortalmente, lançando a consternação no ânimo inconsolável da família. As dores, que a princípio apenas lhe tolhiam o movimento das pernas, aumentaram gradativamente e subiram-lhe invadindo os antebraços, a região lombar e a nuca. A canseira que o molestava tornou-se dificuldade quase sufocante de respiração, e o rosto inchou-se-lhe de modo a torná-lo deforme. Nos últimos dias um fenômeno mais incômodo do que todos os outros veio arredar toda a esperança de cura para o doente.

 

- Sinto no estômago um aperto como se estivesse sendo amarrado por um cinturão - queixava-se ele -, tirem-me daqui esta dor que me mata.

 

Eulália, que não abandonava a cabeceira paterna, ouvia-o chorando, e beijava-lhe as mãos, como se quisesse sugar para o seu corpo aquelas dores fatais. Muito descorada, com os cabelos em desordem, as pálpebras inchadas e roxas, com grandes distrações, quase como as de um idiota, dócil até a passividade, a desventurada passava a maior parte do tempo contemplando aflita o pai moribundo. Então ficava ainda mais triste, como se por um milagre houvera sentido as passadas da morte avizinhando-se da rede em que o professor jazia, arfando o cansaço de que só devia descansar no túmulo.

 

Pelas duas horas da tarde, Queiroz fez reunir em torno de si a desolada família, em cujos rostos, macerados pelas continuas vigílias, estava estampada a verdade do sofrimento e a certeza de que em breve devia separar-se, para sempre, do único amparo que tinha sobre a terra.

 

O moribundo chamou então o vigário, que passeava lentamente pela sala, conforme era seu hábito nos longos quartos que fazia todos os dias ao amigo.

 

- Paula - murmurou ele por entre a ânsia penosíssima -, eu sinto-me morrer e deixo na miséria as minhas pobres filhas e a minha boa irmã. Você sabe que eu nada tenho...

 

- Tem um amigo, que não lhe quer ouvir idéias tristes; distraia-se desse teimoso pensamento de morte.

 

- Não me distraio, não. Talvez dentro em poucos minutos eu já não possa falar: sinto a língua trôpega, quase paralisada, e eu seria muito desgraçado se não pudesse dirigir a você um pedido.

 

- Pois faça-o, que eu cumprirei: seja qual for.

 

- Não abandone a minha desgraçada família. Jure-me que não a abandonará.

 

- Juro, meu amigo; mas nem precisava jurar; é o meu dever!

 

Uma solenidade veneranda revestiu o grupo transido pela mais horrorosa das dores, a despedida do moribundo; e cerca de uma hora depois a família ajoelhada recebia no fervor das suas preces, no desolamento do coração, o último suspiro de Queiroz.

 

Paula levantou-se solenemente aportou nos braços e beijou a fronte a cada uma das filhas do honrado homem.

 

- Podem contar com um pai - afirmou gravemente; - eu saberei ser amigo, minhas filhas.

 

Foi então parar em frente de Eulália que, atirada sobre uma cadeira, com a cabeça oculta entre os braços cruzados, soluçava amargurada o seu tristonho desamparo.

 

No olhar de Paula sentia-se alguma coisa que não era digna de uma câmara mortuária. Dir-se-ia que lhe voltara algum dos sonhos das suas noites de ciúme. O sorriso mau, que era a arma temperada da sua hipocrisia apareceu-lhe de novo em toda a sua plenitude, como se todas as baixezas da lubricidade nele se dilatassem.

 

Percebia-se que aquela alma fria e insensível deleitava-se com o som tristonho dos crebros soluços da família, que nem ousava levantar a cabeça para não dar de face com a tremenda realidade do seu futuro. Nos lábios do vigário, esse sorriso, aparentemente bondoso, denunciava o lampejar de um crime.

 

- Tenha paciência - murmurou ele procurando consolar a moça; - não ficou de todo só, creia.

 

E curvando-se, beijou-lhe uma das tranças.

 

Os soluços da infeliz prorromperam com mais força.

 

- Está bom - disse Paula um tanto contrariado -, vou mandar cá o Marciano para ajudar a vestir o cadáver.

 

Poucos momentos depois chegaram o velho sacristão, o inspetor e outros vizinhos que vinham satisfazer o pedido do vigário, e o cadáver foi colocado na sala das aulas, sobre a mesa que servia para a escrita dos meninos, em uma das pontas da qual Marciano colocou um crucifixo, flanqueado por uma das banquetas da modesta igreja paroquial.

 

- Pobre gente! - disse o inspetor saindo da casa do morto; - faz cortar o coração.

 

- É muito triste a posição da família, é, sr. Antão Ramos; mas há outras que ainda ficam em pior estado - respondeu o velho sacristão.

 

- Coitadas! o pai não lhes deixou nada.

 

- Mas elas têm o sr. vigário.

 

- Ora diga-me você esta, Marciano! Pois lá a proteção de um homem é coisa com que se conte? Olhe que dar cansa.

 

- Conforme: o sr. vigário era muito amigo do professor, e além disso as filhas são bonitas...

 

- Isto não vem ao caso.

 

- Eu cá me entendo; aqui vem muito ao caso.

 

- Salta fora, velho sem brio!  exclamou Antão Ramos indignado; começa já a difamação e ainda o pobre Queiroz está sobre a terra!

 

- Pode praguejar e descompor, sr. Antão Ramos; eu que o digo é porque alguma coisa sei.

 

- Infelizmente eu nem posso pedir a Deus que faça com que a sua família passe pelo mesmo - resmungou Antão Ramos; - já lhe aconteceu em vida o que tinha de acontecer. Malvado!

 

- Nós havemos de ver quem acertou no ponto.

 

- Você talvez julgue pelos exemplos de casa: olhe!

 

E apontou para o vigário que vinha saindo da casa do sacristão.

 

Marciano não respondeu e nem mostrou-se molestado com a ofensa pungente que lhe foi vibrada e quando o vigário passou por junto de si, descobriu-se todo, com uma humildade de lacaio.

 

- Lá está tudo pronto, sr. vigário; não ordena mais nada?

 

- Arranje alguns mochos no corpo da igreja, para se depositar o cadáver durante a encomendação.

 

- Veja como ele trata o cadáver do amigo, seu linguarudo, e continue a se fazer besta - ponderou o inspetor quando o vigário se retirou.

 

- Eu não quero brigar com Vossa Mercê; pode dizer o que quiser - respondeu brandamente Marciano.

 

Paula não demorou a voltar para casa do morto, e aí empregou-se em espalhar consolações e esperanças de um futuro menos sombrio, do que o agourava a dor da enorme perda experimentada pela família.

 

 

 

Era já bem tarde da noite, e os prantos e as lamentações continuavam vivos, sentidos como na hora do passamento do professor. Sobre os bancos reunidos e colocados por todo o perímetro da sala, d. Ana e Eulália choravam inconsolavelmente, enquanto Chiquinha e as outras filhas do morto soluçavam, cabeceando sonolentas, vencidas pelo cansaço das muitas noites que tinham passado a velar.

 

- Oh! minha senhora - observou Paula, dirigindo-se a d. Ana - é preciso fazer dormir estas pobres meninas; elas já nem se podem suster, coitadinhas.

 

- Nós podemos ficar aqui mesmo, sr. vigário; não temos mais sono - respondeu Chiquinha receosamente.

 

- Ouça, d. Ana - segredou o vigário -, pode bem ser que elas não queiram deitar-se, porque tenham medo...

 

- É isto mesmo, sr. vigário; eu percebo; mas é melhor, porque ao menos elas ficam vendo o pai, que tanto as estimou.

 

- Pois eu, no seu caso, ia acomodá-las porque deve fazer-lhes mal passar tantas noites em claro.

 

- Tem razão - respondeu a boa senhora.

 

E conduziu as meninas para o interior da casa.

 

Paula ficou finalmente só com Eulália, que continuava a soluçar, sentada em face do cadáver de seu pai. A hora, a solenidade do lugar, a alucinação do sofrimento davam à moça um desalinho que impunha respeito, mas provocava a adoração.

 

O vigário veio postar-se-lhe defronte, mudo e respeitoso, e assim quedou por largo tempo, até que, voltando-se descuidadamente para o cadáver, estremeceu e pôs-se a caminhar ao longo da sala. Quando deixava de olhar para o crucifixo e para o morto, fitava Eulália, que, sentada e encostada a cabeça na parede, chorava como que desacordada. Por fim parou junto à mesa, e descobriu o rosto de Queiroz. Um sorriso inqualificável revestiu a fisionomia perturbada de Paula, que logo encaminhou-se para junto de Eulália.

 

- Por que não vai dormir também? - murmurou sentando-se ao seu lado; - eu ficarei velando o corpo.

 

- Não tenho sono; eu sentiria mais se tivesse de sair daqui.

 

- Mas então busque espairecer um pouquinho; não se mortifique tanto....

 

- Não está na minha vontade.

 

- Não posso consentir que esteja assim a chorar... a molestar os olhos... - disse Paula tomando as mãos de Eulália e apertando-as nas suas ternamente... - Esses olhos que são meus ... que serão meus... para sempre!

 

- Deixe-me, deixe-me por piedade - murmurou a desventurada tentando em vão desenvencilhar-se.

 

O vigário, porém, parecia presa de veemente delírio e, envolvendo a moça nos seus braços, exclamou:

 

- Não; eu quero que me escutes hoje, agora, em face de um cadáver e diante de Deus, o grito que há longos anos repito e que sinto sufocar-me o peito: eu te amo!... te amo!... amo-te muito!...

 

E o silêncio prolongava o som do estribilho apaixonado!...

 

Diante do arrebatamento de Paula, o morto, com os braços cruzados sobre o seio, tinha o ar de quem se horroriza, e o Cristo, com a cabeça descaída, parecia chorar por tão monstruosa infâmia!...

 

Eulália, desorientada, sem energia, sem vontade, entontecida pelas vigílias e pelo choro, opunha fraca resistência à sedução vitoriosa.

 

 

A tristeza tornou-se ainda mais sombria naquela câmara mortuária.

 

Só se ouvia o eco do ressonar cavo e roufenho da família entorpecida pelo cansaço, de vez em quando o estalejar do pavio das velas de carnaúba ardendo sob a pirâmide amarelada da chama tranqüila, e as passadas de Paula, passeando de um para outro lado.

 

Eulália tinha ido abraçar-se com os pés do cadáver de Queiroz, e ali jazia, ora derramando lágrimas silenciosas ora prorrompendo num choro violento, soluçado como o da histeria.

 

O vigário procurava consolá-la; fazia promessas de ventura; pedia-lhe que confiasse em seu amor. Mas a infeliz, escondendo o rosto afogueado, exclamava redobrando o choro:

 

- Meu pai! meu santo pai! por que não morri eu contigo? Afinal os galos da vizinhança começaram a cantar amiudadas vezes, batendo as asas poderosamente como se quisessem com o seu ruído espantar a noite e acordar de súbito a manhã.

 

Paula foi de novo instar com a moça para não se entregar com tanta veemência ao desespero; mas não conseguia desligá-la dos pés do morto.

 

- Mau começo - resmungou ele com azedume. - Vamos ter uma lua-de-mel tresandando a cadáver.

 

Depois, abriu cautelosamente uma das janelas, aquela em que por muitas vezes vira Eulália nos dias em que julgava impossível possuí-la e sentia atenazarem-no o despeito e o ciúme.

 

A aurora assomava esplêndida como uma chuva de brilhantes sobre um tapete solferino. A luz enfraquecida da lua punha o véu da virgindade eterna da natureza sobre a face da terra e do céu e no horizonte a luz e o rubor do amanhecer lembravam o pudor e a hesitação das noivas aldeãs.

 

Paula ficou extasiado diante do espetáculo grandioso da manhã, e disse voltando-se para dentro:

 

- Venha ver como o céu está bonito, Eulália, venha!

 

A infeliz apenas respondeu com uma explosão de soluços ao convite que lhe insultava ainda mais barbaramente o sofrimento.

 

- Eu não quero zangar-me consigo - disse então o vigário aproximando-se da vítima -, por isso vou-me embora.

 

- Oh! como o senhor é cruel! - exclamou Eulália com amargura.

 

- Devia ter visto antes - resmungou ele amuado e impertinente -, não estou para ver loucuras.

 

E foi tomar o chapéu para retirar-se.

 

 

XVIII

 

A morte de Queiroz não desviou Paula de seus hábitos. Nessa mesma manhã disse com muita unção a missa de Santo Antônio e depois acompanhou até o cemitério o cadáver do amigo com o mais solene recolhimento.

 

Isto produziu um ótimo efeito na paróquia. Decididamente haviam-se todos enganado; o sr. vigário era um homem exemplar, amigo do seu amigo, desvelado pelos infelizes.

 

Quando o viam de manhã passar para a igreja e à tarde para o Engenho, diziam:

 

- O hábito não faz o monge; quem o vê tão seco está longe de saber que jóia é o seu coração.

 

Passaram assim mais de quatro meses de triunfos para o chamado pai dos pobres, que, apesar de todas as atenções públicas, nunca mostrava a fisionomia desassombrada, e até, pelo contrário, parecia agora mais carrancudo do que nunca.

 

Por uma das manhãs de outubro, o vigário estava debruçado à janela da sacristia, quando ia passando Augusto Feitosa.

 

- Muito bom dia - disse o vigário; - como vai o seu negócio?

 

- Na mesma, infelizmente; o malvado já não está no Aracati.

 

- Há de ser isto que o anda ralando; está tão desfeito!

 

- Há de ser isto mesmo - respondeu Augusto contendo um suspiro. - Eu daria um conto de réis a quem descobrisse onde pára aquele miserável.

 

- Eu, nas suas condições, já o tenho dito muitas vezes, entregava-o à justiça de Deus. Está pobre como Jó, e isto o deve ter castigado bastante. Perdoava-o pela filha...

 

- Eu penso às vezes nisto; mas enquanto ele existir, diz-mo a consciência, a filha será sempre infeliz. Separá-los seria uma obra de caridade.

 

- São modos de entender.

 

Marciano, que andava a espanar a sacristia, parou para ouvir a conversa e repetiu, deixando cair o pano:

 

- Um conto de réis! Sempre era alguma coisa para um desgraçado.

 

- Não, sr. vigário, eu não posso perdoar aquele monstro - continuou Feitosa -, castigo a sua covardia como ele merece... Até logo, vou para a venda do Ramos; estou na minha semana de comissão.

 

E afastou-se.

 

- É um doido - disse o vigário deixando a janela e vindo sentar-se na sua cadeira de espaldar. - Ouviu o que ele disse, Marciano?

 

- Alguma coisa, sr. vigário, e se não tivesse as pernas já tão cansadas...

 

- Ia ganhar o conto de réis. Mas teria de perder o emprego aqui, porque a freguesia não havia de ficar sem sacristão.

 

- O emprego para nada serve, quase; lá em casa é que se pode ver quanto valem os chorados vinténs, que me dão.

 

- Sempre é mais do que nada, Marciano.

 

- Eu não queria falar nisso, porque enfim o que tem de ser tem muita força - continuou, animando-se, o velho sacristão.

 

- Ah! então você tem alguma coisa a falar?

 

- O sr. vigário bem sabe que, no dia em que eu falar, tenho muito a dizer.

 

- Você não se quer convencer do seu papel, homem! - replicou severamente o vigário; - há de se arrepender.

 

- Paciência; eu não hei de sofrer sozinho.

 

- Ah! você quer ameaçar-me? Tem graça! Ouça pela última vez: você anda-me sempre a dizer coisinhas, e eu não estou mais para aturá-lo.

 

- Não importa, não, sr. vigário: a minha filha mais velha lá está que ninguém a conhece mais. A outra... anda com a cabeça virada; é todo o dia uma barulhada em casa.

 

- É a educação que você lhes dá. Cale-se que está fazendo-me nojo.

 

- Não foi assim, quando o sr. vigário abusou da minha pobreza.

 

Paula teve um movimento brusco de indignação, pôs-se de pé, e fitando desdenhosamente o sacristão:

 

- Você até enxovalha a Igreja... Se eu não tivesse pena das suas filhas, hoje mesmo o despedia. Miserável!...

 

Marciano calou-se e continuou no seu serviço, até que de casa o mandaram chamar para almoçar. O desprezo do vigário pungia-o profundamente, porque a consciência o recebia como justo, e o velho sacristão não podia resistir ao remorso que sentia de ter aberto demais as portas de casa à necessidade de ganhar o pão. Força era tomar alguma deliberação, que o salvasse da situação desesperada que se antolhava, e o velho tomou-a.

 

- Viram lá em casa passar o sr. vigário?

 

- A mana - respondeu o pequeno que tinha vindo chamar o sacristão.

 

- E ele não falou?

 

- A mana disse que ele nem olhou.

 

- Vai: eu me demoro ainda um instantinho.

 

Quando o pequeno retirou-se, Marciano fechou as janelas e a porta da sacristia; dirigiu-se para o corpo da igreja, ajoelhou-se diante do altar da Senhora da Piedade e, depois de uma curta oração, fechou a porta principal. Quando saía, viu na praça Augusto Feitosa, que vinha da casa do inspetor. O velho sacristão apressou-se em ir ao seu encontro e, descobrindo-se, apertou-lhe a mão.

 

- Sabe que eu vou deixar a freguesia, sr. Feitosa?

 

- Eu também não fico por aqui muito tempo; é o que devem fazer todos.

 

- No Ceará há de se viver melhor.

 

- Certamente, muito melhor; há maiores recursos.

 

- Eu levo uma esperança mais: é a palavra de Vossa Mercê sobre quem descobrir onde está Rogério Monte.

 

- Pode contar com ela - respondeu Feitosa, principalmente... se Irena ainda viver.

 

Separaram-se, e o velho Marciano caminhou para o seu casebre, a cuja porta esperava-o a formosa Mundica.

 

- O que foi que lhe aconteceu? - perguntou a moça, vendo as feições demudadas do pai. - Está doente?

 

Marciano não respondeu, entrou e foi sentar-se à mesa, a olhar para o prato que tinha diante de si. As filhas sentaram-se taciturnas em torno da mesa, e a velha mulher de Marciano dirigiu-lhe então a palavra.

 

- O que tem você? Já custa à gente a levar o bocado e ainda por cima tristezas!

 

- Quer saber de uma coisa? - respondeu por fim o sacristão. - Eu não posso mais aturar o vigário.

 

- Todos têm gênio, meu pai - ponderou timidamente Mundica: - o sr. vigário há de voltar de novo às boas.

 

- A conversa não é com você - replicou rudemente o velho -, meta-se com a sua vida, e não queira sujar-me ainda mais. Tivesse você vergonha, que não falaria mais nesse homem.

 

- Nós comemos o que ele nos dá...

 

- Pois não comeremos mais: fique-se você com ele, nós vamo-nos embora para o Ceará.

 

As últimas palavras de Marciano encheram de estupor os circunstantes. O cearense prefere a penúria a abandonar o torrão natal. Só quando a fome bate-lhe inexoravelmente à porta, quando a cova escancara-se-lhe aos pés de modo que o menor passo no solo do seu berço despenhá-lo-ia para sempre nessa pavorosa garganta, cheia de mistérios e de assombros, o desgraçado despede-se das suas charnecas, da sombra das suas carnaubeiras e vai pedir um abrigo nas terras do exílio.

 

- Como fazer essa viagem, Marciano? - perguntou a velha mulher. - Era o mesmo que nos condenar a morrer a fome.

 

- Antes isso; não quero mais comer daquele homem. O dinheiro, que ele manda para... a sua afilhada, não passará mais pelas minhas mãos. Receba-o quem quiser.

 

- Faça o que quiser: eu não vou - resmungou Mundica, esfregando desdenhosamente as mios.

 

- Você, eu sei que fica, ainda que seja como alugada de Eulália para receber-lhe o filho nas mãos.

 

- Talvez - respondeu a filha, mordendo fortemente os lábios. - Havemos de ver.

 

O velho sacristão levantou-se e deu algumas passadas para sair, porém Mundica saiu ao seu encontro, e com os olhos rasos de lágrimas, abraçou-o suplicante.

 

- Não fique mal comigo - disse humildemente -, eu vou também; não quero mais ficar aqui, para ser desprezada por amor daquela perdida.

 

- Faça o que entender, filha; eu não tenho direito para fazer coisa alguma contra si, fui fraco; se quiser seguir-nos, venha; se não, fique.

 

- Eu irei também, não quero mais ficar.

 

Marciano, seguido por Mundica, chegara até a porta do casebre e aí parados trocavam palavras que revelavam a mútua torpeza, quando pela frente da cerca passou, andrajoso, descabelado, resmungando a sua perpétua queixa, o mísero Joaquim Maluco.

 

- Olhe o que fazem os padres - disse o sacristão. - É o futuro que o vigário me preparava.

 

- Eu hei de vingar-nos, meu pai; deixe ficar por minha conta.

 

O velho sacristão tomou para a casa do vigário, vagarosamente, a deter-se de quando em quando, como quem hesita.

 

A casa da família de Queiroz ficava em caminho, muda, sem as cantilenas da meninada do povoado, que havia emigrado para sempre da sala das aulas. Os bancos enfileirados, como outrora, a grande mesa da escrita, onde o sol da manhã depunha uma pasta de luz, tinham, no silêncio que lhes envolvia o conjunto, a majestade das ruínas.

 

Marciano parou na soleira da porta, entrecerrada e, sacudindo a cabeça, enviou ao interior a saudação do uso:

 

- Deus esteja nesta casa.

 

- Entre, sr. Marciano - respondeu da saia de jantar a voz de d. Ana.

 

- Com licença.

 

Descobriu-se e entrou até a sala de jantar, que nada perdera da ordem dos bons tempos, exceto a alegria; as duas meninas liam junto à mesa, a caçula brincava, d. Ana e Chiquinha costuravam. Havia, porém, uma banquinha vazia ao lado das costureiras, e dela como que se irradiava maior tristeza sobre os cinco entes vestidos rigorosamente de luto. A falta de Eulália naquela comunhão do trabalho abria um vazio impreenchível com a alegria perdida.

 

- Como? - perguntou Marciano, depois de cumprimentar a todos. - A d. Eulália ainda na mesma?

 

- Coitada! - respondeu d. Ana -, desde que perdeu o pai tem estado sempre doente.

 

- E não se pode atinar com a moléstia?

 

- É moléstia que não tem cura: está assim a modo de apatetada.

 

- Eu já tive a minha Mundica assim, vai para quatro anos.

 

- E agora veio-lhe uma salivação muito grande: onde ela está faz-se um açude; além disso estão a inchar-lhe muito os pés.

 

Eulália apareceu à porta do seu quarto. Era apenas uma sombra da própria formosura; o rosto moreno e carnudo tornara-se magro e ictérico; a altivez virginal do colo transformara-se no mole arredondado das formas profanadas; a mobilidade graciosa dos gestos mudara-se nos movimentos relaxados dos apáticos. De todo o passado de sua beleza restava apenas a bondade do olhar, que lembrava o florescimento da vida de outrora com tristeza igual à da vegetação brava sobre ruínas majestosas.

 

- Veja-a - continuou d. Ana -, aquela é a nossa Eulália.

 

A boa da senhora enxugou com a ponta dos dedos as lágrimas, que lhe marejaram com a espontaneidade do sentimento, enquanto Eulália caminhava para junto da mesa e assentava-se em frente a Marciano.

 

- Ora valha-me Deus - exclamou o sacristão, depois de ter cumprimentado Eulália -, como está desfeita!

 

- Eu tenho esperança de que isto não há de durar muito - murmurou Eulália. - O sr. vigário diz-nos sempre que a moléstia não é coisa de cuidado.

 

- Eu penso do mesmo modo.

 

- Diga-o por favor à minha tia - sorriu tristemente; - a ela já se lhe afigura que estou morta.

 

- Qual morta! - exclamou o sacristão, sorrindo e sacudindo vagarosamente a cabeça. - A senhora tem vida para dois. Olhe, estamos em outubro, e o nosso bom velho Queiroz morreu em junho, na véspera de Santo Antônio. Eu lhes digo - e pôs-se a contar pelos dedos - temos julho, agosto, setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro e março; nove meses. Em março está com certeza boa ou, muito tardar, em abril.

 

D. Ana deixou cair a costura - pregou maquinalmente a agulha na travesseirinha e, depois de fitar o sacristão, ficou a encarar com Eulália, que descerrou impassível o seu sorriso de hipocondria.

 

- Bom doutor - disse a infeliz -, diz até o mês certo da cura; o senhor há de dar-me remédios.

 

- Ah! - exclamou o sacristão - não é preciso ser grande doutor para conhecer algumas doenças. Quando eu era mais moço, via a minha velha de dois em dois anos padecer da mesma coisa; mas no fim dos nove meses estava sempre boa.

 

Marciano prolongou uma risada roufenha, ao passo que d. Ana, levando as mãos ao rosto, abaixou a cabeça até encostá-la na travesseirinha.

 

- O que tem, minha tia? - perguntou Eulália surpreendida.

 

E dirigindo-se a Chiquinha acrescentou:

 

- Veja o que é que tem nossa tia?

 

- Eulália - soluçou d. Ana -, eu e seu pai fomos sempre honrados. Basta de fingimento.

 

- Mas o que fiz eu, santo Deus? - interrogou perplexa.

 

- Em que lhe ofendi eu, minha tia? Diga-me o que fiz, sr. Marciano; tenha dó de mim!

 

- Eu?! - respondeu tranqüilamente o velho. - Não posso dizer nada; isto é lá entre as senhoras... D. Ana - acrescentou ele depois de uma breve pausa, durante a qual acercara-se da boa velha -, eu não vim aqui para vexá-la; perdoe-me.

 

No meio da perplexidade das moças e das crianças, retirou-se o sacristão com ar satisfeito e, ao passar o limiar da sala das aulas, resmungou:

 

- São umas pobres de Deus; mas não importa, sofram também, porque eu preciso desforrar-me daquele patifão.

 

Seguiu até o fim da praça e entrou na casa de Paula. A submissão da sua voz não denunciava nem longinquamente a extensão das suas intenções hostis.

 

O vigário recebeu-o com o semblante repassado de bonomia e, batendo-lhe amigavelmente no ombro, disse-lhe com um sorriso piedoso:

 

- Então voltou às boas, hein? Está a fazer-se criança depois de velho.

 

Um lampejo de esperança fuzilou no olhar do sacristão.

 

- É que Vossa Mercê já não aparece, e a gente estava acostumada a vê-lo sempre por lá. Não imagina como tem passado a Mundica estes dois meses.

 

- Mas eu não desapareci de todo, nem alterei nada do que fazia.

 

- Sim, senhor; mas a rapariga vê sempre Vossa Mercê na casa da d. Ana.

 

- É que tenho de cuidar daquela gente como se fosse pai.

 

- Depois já rosnam por aí que a moléstia da moça...

 

- Desembuche, ande, homem! O que é que dizem?!...

 

- ... há de acabar lá para março.

 

Marciano, que havia abaixado os olhos hipocritamente, olhou de soslaio para o rosto perturbado de Paula, que, buscando debalde dissipar a sua comoção, tartamudeou:

 

- E por que em março?

 

- É quando pouco mais ou menos fazem os nove meses.

 

- Mas é uma canalhada difamar assim uma família! -gritou o vigário aprumando-se colérico. - Desta maneira nem a Virgem Maria passaria por honesta neste maldito lugar!

 

- É, fala-se muito, sr. vigário: mas neste caso basta a gente ter olhos e ouvidos.

 

- O que diz?

 

- Eu acabo de ouvir a sra. d. Ana dizer que a rapariga está a cuspir muito e traz os pés muito inchados...

 

- Oh! que estúpida que é aquela mulher.

 

- Veja agora Vossa Mercê: a Mundica sabe dessas coisas; Vossa Mercê não aparece lá, passa os dias inteiros na casa de d. Ana... por força a minha pobre filha há de sentir-se.

 

- Mas o que hei de eu fazer? abandonar a família do meu amigo? desprezá-la à miséria?

 

- É verdade que o peso de duas casas...

 

- Ouça, Marciano; você é pai e deve saber quanto dói a desonra de uma filha, a difamação de uma pobre moça. Diga a todos que é falso, que é uma calúnia, que esse povoado é um ninho de miseráveis.

 

- Perdoe-me, sr. vigário, eu não posso dizer ao contrário do que sinto.

 

- Quer tirar a desforra de hoje pela manhã, hein, meu brejeiro? - disse o vigário, batendo no ombro de Marciano e tentando mostrar-se alegre e perspicaz. - Pois está desforrado... tem mais dez mil-réis de ordenado.

 

- Muito obrigado a Vossa Mercê, mas eu com isso não posso dar à minha filha a alegria que ela perdeu.

 

- Estou hoje muito seu amigo, Marciano; faço-lhe mais outra vontade: irei todos os dias à sua casa; serve assim?

 

Marciano meneou humildemente a cabeça e resmungou:

 

- Por mim estava tudo concluído, mas a pobre Mundica é mulher, e quer que não se fale mais do sr. vigário com a filha do professor. Ora Vossa Mercê não há de estar pelo trato de não ir mais a casa de d. Ana...

 

- Não, miserável, não estou! - bradou Paula com arrebatamento. - Suma-se, e diga àquela desavergonhada que não quero mais vê-la.

 

- Às ordens do sr. vigário - responde o sacristão; - mas eu também não quero o aumento de ordenado: para viver triste chega o que tenho.

 

Marciano afastou-se e, ao sair, à soleira da porta da sala, inclinou-se diante de Paula, submissamente.

 

Este ficou tomado de medo, e quis chamar a si o velho sacristão.

 

- Então você quer por força ficar meu inimigo, Marciano? - disse ele. - Já não se pode mais caçoar consigo, hein ... Entre para cá, diga-me que diabo de estralada foi essa que meteram na cabeça de Mundica.

 

Marciano conservou se no limiar, com os olhos baixos, e Paula, contendo a irascibilidade natural, aproximou-se e puxou-o brandamente para dentro.

 

- Você há de continuar, por força, meu amigo. Você é o único que pode lavar a honra da pobre Eulália, e não há de contribuir para perdê-la.

 

- Tomo a Deus por testemunha, murmurou o sacristão.

 

- Faz muito bem - ponderou o vigário sacudindo-o carinhosamente pelos ombros -, você ainda não fez penitência por ter dado demais com a língua nos dentes a respeito do Monte.

 

Marciano estremeceu violentamente e tentou libertar-se das mãos do vigário.

 

- Veja continuou este - a consciência como o acusa. Ah! ninguém pode fugir a este juiz!

 

- Eu disse apenas o que o sr. vigário me disse.

 

- Mas o grande caso é que o homem foi obrigado a fugir daqui.

 

- Pois bem, eu farei a vontade ao sr. vigário: vou contar ao sr. Augusto Feitosa o que se passou. Eu vou já.

 

Paula segurou violentamente nos ombros do velho Marciano e, sacudindo-o com brutalidade, encarou-o longamente, obrigando-o a encolher-se todo trêmulo. Demudaram-se-lhe as feições; os olhos injetados de sangue saltaram-lhe à flor das pálpebras. Dir-se-ia que ele tinha visto derruir-se em globo todos os seus cálculos. A justificação de Monte seria a desgraça, porque teria como conseqüência a intimidade de Eulália e de Irena, e tal intimidade poria em relevo a perfídia do seu procedimento. Facílimo seria então a Irena reunir confidências que necessariamente tiveram, e descobrir por elas, sem que Eulália o insinuasse, o verdadeiro autor do crime contra Feitosa. Agitado por semelhante pensamento, Paula sentiu ímpeto de esmagar o sacristão, esse velho decrépito, a quem julgava seu escravo, e que de repente insurgia-se ameaçador e poderoso.

 

- O que tem você com Rogério? - bradou convulso. - Fez-lhe algum benefício? Estima-o porventura?

 

- Não, mas eu ofendi-o e quero reparar a minha falta. Mas se eu digo que foi ele, que só ele podia pensar em assassinar Feitosa! qual é a sua falta?

 

- O sr. vigário diz também que Eulália não está pejada.

 

- Mas se eu não sei se é verdade ou não, filho!

 

- Não, sr. vigário, a pobre moça teve uma falta - respondeu o sacristão, com acentuação sincera - mas eu a conheço muito: não a teve senão com Vossa Mercê.

 

- Pois seja, seja assim! Você também é pai, e diga-me: se lhe dissessem que abandonasse o seu filho, você o que faria?

 

- Eu?! puno os direitos de minha filha.

 

- Mas se eu lhe dissesse que a abandonasse?

 

- Não o faria; ela é minha filha diante de Deus; não posso negá-la.

 

- Então o filho de Eulália não tem direito ao mesmo amparo?!

 

- Não sei, sr. vigário, eu só devo zelar os meus.

 

- Mas, que direitos, diga, que direitos tem Raimunda sobre mim? - bradou o vigário, possesso de raiva. - Era uma mulher perdida!

 

- É verdade - resmungou Marciano -, ela não tem direitos... nem os quer.

 

Ficaram ambos calados por algum tempo, até que o sacristão pronunciou pela segunda vez:

 

- Às ordens do sr. vigário!

 

Paula, como se fosse tomado de um acesso de loucura, pôs-se a rir, e apontando para o velho Marciano, que o olhou assombrado:

 

- Caiu! - exclamou ele. - Pensou que eu falava sério - ... Besta que você é! Não vê que ninguém pode esquecer Mundica por uma pobre mosca morta? ... Ah! ah! Ah!... Sinto-me alegre; fiz uma experiência e agora vejo que sou amado. Diga à Mundica que eu não torno mais a casa de Eulália.

 

- Sério, sr. vigário? - perguntou, boquiaberto, o sacristão.

 

- Aperte esta mão, meu velho; reconheço agora que você é um grande amigo.

 

E apertaram-se estreitamente as mãos.

 

 

XIX

 

Essa cordialidade entusiástica de Paula cessou, porém, com a separação do grande amigo. Desde que ficou só, rompeu em exclamações contra si próprio, acusando-se da confiança demasiada que tivera em Marciano: esta alma de lodo devia infeccionar-lhe a existência, que se desdobrava luminosa como os meios-dias de verão.

 

Afundou-se num mar de pensamentos que se encontravam, choeavam-se como ondas encapeladas, e desfaziam-se como espuma. A realidade é que Marciano conhecia-lhe a vida inteira e aguerria-se com a própria torpeza para combatê-lo de maneira vantajosa.

 

- Ah! mas eu estrangulo esse velho tonto! - bradou num acesso de cólera. - Não há de ser um miserável quem me venha perder para sempre.

 

A imagem de Eulália surgia-lhe entre as explosões da cólera com a inflexibilidade da sua ternura angélica, súplice, lamentosa, pedindo-lhe que se abonançasse por ela e por seu filho. Se ele se fizesse odiar, se desse motivo a que se lhe alienasse a estima da paróquia, o que seria deles? Era preciso acalmar-se, e condescender para salvá-los.

 

- Miserável! - rugia de quando em quando o rancor sombrio do vigário. - E é pai, e pode sê-lo diante de Deus!

 

- Sr. vigário, mandam chamar da casa da d. Ana - disse o pequeno assomando repentinamente à porta.

 

Paula, estremecendo e levando automaticamente a mão à cabeça, respondeu como se estivesse alucinado:

 

- Vá dizer que eu sei os meus deveres; que não tenho medo de fantasmas.

 

O pequeno, assustado, como se houvesse cometido algum erro, obrigado aos puxões de orelha dolorosíssimos do seu amo, transmitiu o recado, mas acrescentando:

 

- Ele está doente; tem os olhos como postas de sangue e tremeu como se tivesse frio.

 

- Ouça - gritou de dentro o vigário -, diga que não posso ir lá hoje; ficará para amanhã de noite, sem falta. Que dêem o recado a d. Eulália.

 

O som das suas palavras como que o acordou da súbita demência, e, sentando-se junto à mesa do centro da sala, pôs-se a brincar com os dedos sobre os papéis aí esparsos. Os olhos abaixaram-se-lhe distraidamente e um sorriso deslizou-se-lhe manso como os da esperança. Em frente estavam abertas as contas de Antão Ramos, pelo fornecimento aos retirantes.

 

Paula inclinou-se e pôs-se a rubricá-las com a precipitação de um poeta, dando forma a um pensamento que lhe passou de relance.

 

- É mais um amigo que tenho, e ele vale sozinho por 20 Marcianos! Tudo há de ser arranjado com tempo.

 

O bem-estar do cálculo não durou nem dois minutos; o pequeno pediu licença para d. Eulália, que apareceu com ele na entrada da sala.

 

- O que tens tu, Eulália? - perguntou o vigário querendo dissimular o espanto de tão intempestiva visita.

 

- Venho saber o que é que eu tenho que tanto faço chorar minha tia.

 

Paula olhou em torno de si, e fechando as janelas e a porta, abraçou febrilmente a cintura de Eulália.

 

- Vamos para o meu quarto - disse-lhe com voz trêmula -, é preciso que ninguém nos veja e nos ouça.

 

A janela do quarto foi cautelosamente entrecerrada, e o vigário sentou-se na rede, colocando sobre os seus joelhos a sua dócil vítima.

 

- Então a titia não sabe que estás doente? - perguntou conchegando à sua a face da amante.

 

- Sabe, e era muito desvelada comigo; mas de repente tornou-se minha inimiga e nem quer que as minhas irmãs me falem.

 

- Como tens padecido, filha! Eu não pensei que de um amor tão profundo nascessem tamanhos desgostos.

 

- É um amor condenado, e é justo que eu sofra por ele. Se soubesse como eu ainda agora, não sei por que, tive vexame do olhar de Marciano!...

 

- Ah! ele esteve com vocês? - perguntou sobressaltado o vigário.

 

- Esteve, e foi por dizer que a minha doença duraria ainda alguns meses que a minha tia entristeceu-se a ponto de me tratar assim.

 

- Malvado! estende a sua vingança a quem nunca o ofendeu - disse Paula levantando-se de um salto.

 

- Mas o senhor também tem medo das palavras de Marciano?

 

- Se tenho, filha! Tu não sabes a extensão do nosso infortúnio; é agora que ele se faz maior. Dentro do tempo fatal...

 

- O que é que vai acontecer? O senhor não nos deixará nunca, não é verdade? Diga, porque eu nada temo consigo.

 

O vigário envolvia com um olhar de compaixão o rosto da jovem, molhado pelas lágrimas. Toda a hediondez do caráter frio e repelente do sedutor parecia ter-se dissolvido e evaporado na doçura daquele profundo olhar. O semblante comovido dizia que não era somente a paixão bruta, carnal, estimulada pela torpe lubricidade caprina, que o impelira através do povoado, o que o prendia a Eulália. Era alguma coisa, que vinha do lado bom da sua alma, gasta aliás pela hipocrisia, algemada pela insensatez de um juramento, que não podia, que não devia ser obedecido. Embora nodoado pelo crime, empoeirado e enlameado pelas intrigas, marcado pelo estigma do sacrilégio, era o amor com toda a sua força purificadora, com toda a sua pujança de virgindade perpétua, o que nesse momento ele sentia. Causava espanto vê-lo surgir de um seio tão ignominioso, e todavia espanujava-se luxuriante e vivaz: os lírios não perdem a alvura do colorido e a suavidade do perfume por arrebentarem da sepultura de um colérico.

 

- Amas-me então, Eulália?

 

Uma explosão de soluços respondeu à pergunta namorada e o vigário prosseguiu:

 

- Eu sei que a tua sinceridade é igual ao teu sofrimento, por isso mesmo espero que Deus minorará a nossa desgraça.

 

- Mas... - perguntou impaciente a moça - diga-me o que vai acontecer.

 

- Dize-me tu primeiro: não julgarias que seria uma vergonha assassina saberem todos que tu eras minha amante... a amante de um padre?

 

- Mas o senhor bem sabia disso e...

 

- Não te envergonharias um dia, quando tu fosses mãe?...

 

- Não, não quero ouvi-lo falar assim; causa-me tanto medo...

 

- Quando dissessem - prosseguiu Paula animando-se progressivamente - "Aquela moça perdeu-se com um padre!"

 

- Piedade! não é o senhor quem me deve torturar tanto.

 

- Quando todos os maldizentes repetissem: "Aquela criança, que ali vai tão alegre, tão desdobrada na sua inocência, não pode dizer alto o nome de seu pai!"

 

- Ah! o senhor é impossível que me ame, porque então não me falaria assim.

 

- Amo-te! - exclamou com efusão o vigário. - Amo-te hoje mais que nunca!... Mas quero compartir o teu sofrimento, amargurar-me na mesma angústia, porque o dia em que todos saberão do teu erro e do meu crime, está próximo, Eulália, muito próximo!

 

- Vou então ser mãe? - soluçou com terror a desventurada. - Quanta desgraça, santo Deus!

 

Esta explosão de desespero, porém, durou apenas um minuto. O rosto da moça asserenou-se logo, e foi já com a voz tranqüila que acrescentou:

 

- Vou ser mãe, não é assim?... Não importa, será o que Deus quiser.

 

A sublime resignação de Eulália não ecoou no coração de Paula. Muitas vezes nas suas criminosas entrevistas com a moça, quando lhe ouvia as queixas da sua doença, tinha tido ímpetos de, entre carícias e consolações, desvendar-lhe a causa do seu padecimento. Mas falecia-lhe o ânimo, e acovardado forcejava para amordaçar a consciência que lhe repetia baixinho: "já não podes esconder a tua infâmia, ela é mãe". Só este pensamento acabrunhava-o e fazia-o delirar; como que via aparecer entre si e Eulália a figura pálida de Irena, a lastimar-se e a condenar a crueldade da amiga, que oferecera em holocausto a um sentimento indigno a pureza de seu amor por Feitosa. Era para ele um martírio só o pensar que poderia dar-se tal revelação. Quando, pela vizinhança da madrugada, pulava a janela, que se abria do quarto de Eulália sobre a horta, parecia-lhe ver enfileirados junto à cerca os vultos de Irena, de Rogério e Augusto. Eles o perseguiam de contínuo, já apertando-o entre as tenazes ardentes do pesadelo, já surgindo sobre a cruz da hóstia, na hora em que tentava encarnar o pensamento nas frases místicas da missa. Mas neste momento os seus receios tornavam-se mais cruéis e temerosos. Seguiam-no cochichando, com pequenas risadas escarninhas, frias como a impassibilidade do sobrenatural; e de espaço a espaço pendendo-se-lhes ao ouvido, perguntavam-lhe que faria agora do filho e onde esconderia o aviltamento de Eulália. E parecia-lhe ver Feitosa mostrar-lhe a sua chaga estilando sangue; Rogério - os cabelos brancos manchados; Irena - o coração cansado de palpitar saudades e de tragar humilhações.

 

Foi este sevo temor o que o vigário sentiu em face da resignação de Eulália e, parando diante dela, perguntou-lhe a tremer:

 

- E tens coragem para dizer - "eu sou mãe"?

 

- Oh! Deus há de dar-me - murmurou a desventurada.

 

- Mas o teu amor perder-me-á! - exclamou com amargura o vigário. - Toda a gente apontar-me-á como teu amante, e recordando-se de que teu pai confiou-te à minha guarda, odiar-me-á como a um ente abjeto.

 

- É a fatalidade da nossa má sina.

 

- Não, Eulália, escuta: é preciso que ninguém o saiba; a punição que d. Ana te inflige será a que todos te infligirão.

 

- Mas o que hei de eu fazer?

 

Paula chegou-se para mais perto da moça, e trêmulo até o tiritar, pronunciou com uma entoação desesperada:

 

- O que hás de fazer?... Deitar fora... matar essa criança...

 

- Nunca! nunca! - respondeu Eulália ofegante. - Não cometerei mais este crime. Eu saberei defender meu filho contra todos.

 

- Não poderás, Eulália; lutarás em vão, porque para as mulheres como tu, não há perdão - murmurou temerosamente o vigário. - Cede... pelo amor que tinhas ao teu pai, cede...

 

- Não, nunca!

 

- Mas vê que me apontas a todo o povoado...

 

- Partirei então; irei para bem longe onde não o possa... envergonhar.

 

- Doida, não vês que a tua ausência não basta para salvar a minha honra?

 

- E importou-se o senhor com a minha? - exclamou a moça arrebatadamente. - Não quero; não quero ser assassina do meu próprio filho. Deixe-me passar.

 

Paula recuou diante desse assomo de dignidade e ficou perplexo a ver a jovem afastar-se apressada e altiva. Mas de um salto, como se houvera ensandecido, levantou-se, e, segurando-lhe violentamente o braço, voltou-a de face para si, com uma brutal reviravolta:

 

- Eu já te disse - bradou ele colérico - que esta criança há de morrer.

 

- Mate-a - respondeu Eulália resolutamente - mas eu o denunciarei se não me matar também.

 

- Não chegarás a fazê-lo, desgraçada! - bradou o vigário com um tom gutural.

 

E cerrando o punho ameaçou descarregá-lo sobre o ventre da vítima.

 

- Mate-o! - gritou a infeliz fazendo com os braços um escudo para o ventre. - Mate-o! mas se não matar-me também, saberei defender meu filho com a mesma arma com que o pai assassinou!

 

O monstro recuou espavorido, e sem força para vencer o nobre arrojo da desgraçada moça, caiu por sua vez de joelhos e exclamou debulhado em lágrimas:

 

- Perdoa-me, Eulália! Eu sou antes de tudo, um desgraçado! O teu amor perdeu-me!

 

Eulália não chegou a ouvir as últimas palavras do vigário. Levantando-se logo que se viu fora da monstruosa ameaça, correu até a casa, como se sentisse após si as pisadas do seu sedutor, e foi ansiando muito, quase asfixiada de cansaço, trêmula pelo temor de ser alcançada, que arrancou o moirão da cerca, por onde havia saído sem que ninguém da casa desse pela sua falta.

 

- "Meu Deus, como se pode ser tão cruel?! - pensava a infeliz. - "E como eu pude amar esse monstro como o amava?!

 

Embora uma vez entrada na horta se julgasse defendida, caminhou até o fundo, para debaixo de umas árvores, que amareleciam já a copa ampla e frondosa.

 

- Ainda que venha, não poderá descobrir-me sem que eu primeiro o veja.

 

E recostou-se prostrada pela fadiga.

 

De súbito, porém, sobressaltou-se e levando as mãos ao ventre, levantou os olhos embaciados pelas torturas indizíveis que a afligiam. Uma suspeita ecoou-lhe sobre os lábios.

 

- Se eu o machuquei... Talvez o pobre inocente já comece a padecer por mim.

 

Este pensamento de solicitude pelo filho ainda embrionário bastou para superexcitá-la. Olhou em torno de si como se tudo que via lhe afigurasse espectros, prorrompendo em gritos ameaçadores, gestos brutos e hostis.

 

Entretanto a canícula escaldando com o beijo de fogo a vegetação meio morta, dando ao ar a temperatura da vizinhança de uma forja, sepultava a horta e os arredores na quietação das calmarias no oceano. Só de longe em longe ouvia-se o esvoaçar medroso dos galos-de-campina que vinham esconder-se na sombra, e arrufando com o bico os encontros escarlates das asas, a penugem pedresada do peito, palpitavam sedentas queixas contra o ardor da soalheira.

 

Eulália, agitada e trêmula, abandonou o refúgio escolhido, atravessou a horta, a sala de jantar isolada, entrou no quarto em que dormia, e, fechando-se por dentro, correu até junto da caixa, onde escondera o canivete-punhal, que era hoje a sua única defesa. Tirou-o do seu esconderijo ignorado e veio colocar-se junto à janela, olhando com a fixidez do avaro. Nas guardas e nas lâminas havia manchas de sangue e de ferrugem, vestindo-lhe a nudez assustadora, e sobre uma plaqueta de metal, de que se ornava o cabo, as iniciais de Paula guardavam ainda na depressão das letras o sangue do crime.

 

- Ainda está aqui - disse por fim Eulália -, ele não mo poderá roubar.

 

Dirigiu-se à porta e, pondo a mão na chave, ia dar a volta para abri-la, quando estatelou como fulminada.

 

- Com sua licença, d. Ana - ressoou poderosamente a voz de Paula.

 

- Pois não, sr. vigário, entre; nós vamos já - disse a boa senhora.

 

Eulália sentiu que os passos do vigário ecoavam para o seu lado, e encostou-se a parede, de modo a não ser vista.

 

- Então, estão dormindo? - disse Paula batendo à porta do quarto. - Acorde, d. Eulália, são horas de acordar.

 

- "Como é perverso"! - pensou Eulália. - "Ninguém será capaz de desconfiar dele, e entretanto tem coragem para matar o filho".

 

D.Ana, saindo do seu quarto, caminhou ao encontro de Paula, e intencionalmente vibrou com força a voz comovida:

 

- Vossa Mercê é sempre a proteção de Deus sobre esta casa; tenho um grande conselho a pedir-lhe.

 

- Com muito gosto - respondeu Paula -, tudo quanto quiser de mim.

 

- "Pobre tia"! - pensou Eulália - "Vai contar-lhe a própria vergonha".

 

O coração de Eulália adivinhou o que se ia passar entre os dois, mas estava longe de poder fazer o mesmo acerca do que diria Paula, inspirado pelo horror de aparecer aos olhos do povoado na plenitude da sua hediondez.

 

D. Ana, depois de referir os pormenores da moléstia da sobrinha e as suspeitas de Marciano que eram também suas, perguntou ao vigário, que se fingia assombrado:

 

- O que hei de eu fazer? O senhor é o nosso único arrimo, o nosso único amigo.

 

- Eu estimo aquela infeliz como um pai - respondeu ele severamente -, não tomemos as coisas no ar, vamos observar. Diga-me a senhora...

 

E inclinou-se até ficar com os lábios junto ao ouvido de d. Ana, a quem segredou.

 

- Não lhe posso responder - murmurou a boa senhora abaixando os olhos - mas é fácil de saber-se.

 

- Pois esperemos até lá. Por ora nem uma palavra, inteiro silêncio.

 

- Só se fará o que Vossa Mercê mandar, sr. vigário; se eu fosse mãe, já saberia tudo.

 

- Sela muito prudente. Mas... é admirável que ninguém suspeitasse aqui...

 

- Se ela não falava senão com o sr. vigário, não saía...

 

- Há de se deslindar a meada, deixe por minha conta; é preciso que não transpire esta vergonha, e que ninguém suspeite. A senhora aconselhe-a, mostre-se alegre, convide-a quando for à missa. Eu vou falar ao Marciano.

 

- Farei tudo, sr. vigário - soluçou d. Ana - porque me lembro do meu honrado irmão. Bendita a hora de sua morte para que não tivesse de morrer de vergonha.

 

- Coisas do mundo, d. Ana! Tudo há de ser arranjado pelo melhor. Até logo - disse erguendo a voz apertando a mão de d. Ana -, bom apetite.

 

E saiu, calmo e desassombrado, pensando com a sua hipocrisia:

 

- Ainda não está tudo perdido!

 

 

XX

 

Na ausência do vigário alguém foi procurá-lo e deixou com o pequeno seu criado um ofício com a marca Serviço Público.

 

- Então Sua Mercê não está? Eu podia ir levar a carta na casa... Mas não estou para ver poucas-vergonhas.

 

O pequeno, sem entender o sentido das palavras que ouvira, respondeu ingenuamente:

 

- Ele deve estar ali na casa do defunto professor. D. Eulália esteve aqui, chorou muito e saiu correndo.

 

- É isto mesmo; o patife do seu amo é bom... Eu já estive com o Marciano; sei a história.

 

O pequeno muito admirado foi relatar tudo à cozinheira, velha muito discreta, mas amiga de saber por miúdo a vida alheia.

 

- Foi o comboieiro quem me disse, e estava muito zangado.

 

- Olhem só! uma coisa tão velha; já dos tempos do professor as raparigas diziam que andava coisa entre as moças. Da feita da procissão, aquele recado, não sabe?

 

- Fui eu que o recebi.

 

- E na noite da estralada com o Feitosa a que horas ele entrou?

 

- Nós já estávamos dormindo.

 

- O barulho foi perto, espantou... Mas, boca fechada e deixe lá o mundo. Ciumadas!... você não entende disso; lave os pratos para o homem jantar.

 

O pequeno José obedeceu, mas de chofre, parando, perguntou à velha Antônia:

 

- E não se lembra que foi no outro dia da história com o tal Feitosa que nós vimos a camisa e a volta com sangue, e a água da bacia, hein?

 

- Cala a boca, rapaz! você não esteja a lembrar coisas! Arrenego.

 

José calou-se e continuou o seu trabalho, mas, ao pôr a mesa, ainda repetiu com a ingenuidade dos seus 13 anos:

 

- Se o Feitosa soubesse disto, hein, tia Antônia?

 

- Do que há de saber, cabra malvado?

 

- Da bacia, da camisa...

 

- Estupor dê nesta língua, cabra!

 

- Tínhamos o conto de réis, logo a rodar!

 

Antônia, que estava a temperar uma panela e levava a colher à boca para provar, parou de soprar o caldo fumegante e estremeceu, tornando-se carrancuda.

 

- Oh! rapaz, você não espalhe isto, olhe que o sr. vigário desanca-o.

 

- Eu não disse por mal, tia Antônia.

 

Mas o semblante da cozinheira não se desanuviou: dir-se-ia que um pensamento pertinaz a trabalhava profundamente.

 

- Ai! minha pobre gente! - suspirou, retirando do fogo a panela muito carregada de tempero. - Pobrezinhos! o que será deles por esses sertões da Maria Pereira!

 

 

 

Marciano, ao sair da casa do vigário, hesitou sobre a direção que devia tomar, mas resolveu-se por fim a seguir para a outra face da praça, porque lá havia sombra.

 

Andava devagar e com a cabeça pendida; ia pensando na resolução que devia tomar definitivamente sobre o seu negócio.

 

A idéia de ir ao Ceará em procura de Monte fascinava-o, mas ao mesmo tempo acudia-lhe como objeção a dificuldade de viajar agora pelos sertões, carregando todo o indispensável para a vida, e demais disso exposto à crueldade dos Viriatos. Acrescia ainda a má vontade da família, que não lhe perdoaria qualquer desgraça que por fatalidade sobreviesse.

 

Além disso o vigário tinha mudado o modo de tratá-lo, e conservá-lo-ia para não ver assoalhado o seu segredo. Não havia, pois, remédio senão esquecer o sonho dourado da captura de Rogério, e ficar adstrito ao tinir da cambada de chaves e à corda dos dois sinos da paróquia.

 

- Com mais dez mil-réis sempre se vai atamancando -pensou o sacristão; - mais tarde farei o resto.

 

Continuou a caminhar, e já se preparava para ir a casa jantar com a disposição de quem almoçara mal, quando uma pergunta assustadora formulou-se-lhe no espírito, e desdobrou-se numa série de suspeitas.

 

- E se o vigário me enganasse para tomar tempo?

 

Nada mais natural: era um homem que não se importava que lhe atassalhassem a reputação, desprezava as murmurações e ria-se com escárnio daqueles que o julgavam servir, informando-o de tais maledicências. Desde que ele pudesse apagar os vestígios do seu crime para com a filha do amigo, não temeria mais que o acusassem; a sua frieza bastaria para deixar duvidosos os mais convencidos.

 

- Não, eu não lhe deixarei a melhor - pensou o sacristão; - hei de apanhá-lo mesmo lapeando o copázio.

 

Tinha chegado junto à capelinha e parou sob o telheiro, que servia de campanário, olhando para o chão, distraído a seguir o curso do pensamento que lhe aconselhava toda a prevenção contra o vigário. Mas um som vivo de chocalhar e um estrupido intenso de animais chamaram-lhe a atenção e moveram-lhe a curiosidade.

 

Deu volta apressadamente à igrejinha e foi colocar-se do lado oposto.

 

- Como é isso, o comboio já de volta? Anda tudo agora abaixo e acima... Ah! vem quase vazio, não foi muito longe.

 

Quando a tropa desfilou pela sua frente, os camaradas limitaram-se a cumprimentá-lo e pedir novas do povoado, mas o comboieiro parou.

 

- Sabe de uma novidade, velho Marciano?

 

- Não se pode mais vencer com animais até o Aracati, não é?

 

- Qual! é o diabo, mas sempre se chega; haja vista eu. ~ coisa mais fina: o imperador não manda mais gêneros para os retirantes de cá dos sertões.

 

- Deveras?!

 

- Quem quiser há de ir lá para o Ceará; mesmo no Aracati ele já faz cara feia, tem-se descoberto muita muamba, sabe, não é? - muita tratantada. As folhas gritam todos os dias, segundo ouvi falar.

 

- Então isto vai ser o diabo.

 

- O que quer você? Pensa que o Antão Ramos faz o que faz à toa?

 

- Isto sei eu.

 

- Coitados dos pobres!

 

- Vai ser uma calamidade.

 

- A gente do professor está melhor?

 

- Qual, ainda agora venho de lá; a Eulália está com barriga, coitada.

 

- Inchação, hein? - É andaço geral.

 

- É uma inchação que há de acabar no fim de nove meses. Histórias lá com o vigário.

 

- Que me diz? Pois o velhaco divertiu-se também com ela?

 

- Segredo de amigo: é uma verdade.

 

- Qual segredo, nem meio segredo para aquele traste. Aquilo era a pobre rapariga ter alguém que descascasse a faca no diabo.

 

- Mas o que quer? Ela é sozinha...

 

- Pobre gente... Faz-me um favor, Marciano? Eu trago aqui uma carta para a casa do professor. Quem escreve pensa que o infeliz ainda é vivo. Você diga lá que foi um retirante do Aracati quem ma entregou.

 

- Talvez seja do Monte - disse Marciano, olhando muito para o comboieiro.

 

- Talvez, mas eu não o vi. Até logo; vou entregar as cargas do Antão e um ofício ao tal sr. vigário. Até logo.

 

- Por entanto! - respondeu o sacristão metendo a carta no bolso - eu entrego logo mais a carta.

 

Só, e longe dos olhares do comboieiro o sacristão tomou de novo entre as mãos a carta misteriosa e fez menção de abri-la, mas hesitou; e, coçando a cabeça, resmungou:

 

- Diabo! eu devo ler esta carta, mas tenho medo. Se aquele honrado homem soubesse? - acrescentou assinalando o comboieiro; - se o destemido Estevão desconfiasse apenas, matava-me! Não, o melhor é não arriscar; demais posso desanimar da minha empresa; esperarei pois.

 

Tornou a meter a carta na algibeira e caminhou apressadamente para casa precipitado, inconsciente como quem acaba de achar um tesouro e descrê da sua própria felicidade. Mundica esperava-o impaciente e assustada, costurando à sombra das árvores da entrada, e, ao vê-lo apressado correu-lhe ao encontro com a sofreguidão da curiosidade.

 

- Decidiram alguma coisa, meu pai?

 

- O vigário prometeu abandonar Eulália.

 

- Não basta prometer; é preciso que ele o faça logo, e eu duvido...

 

- Vejamos primeiro, filha, pode ser.

 

- Não acredito; eu só ficaria contente se visse aquela delambida fora da paróquia.

 

- Com o tempo há de acontecer isto mesmo.

 

- O sr. vigário prometeu também?

 

Marciano abaixou os olhos e tartamudeou querendo mentir, mas depois respondeu com firmeza:

 

- Não, mas arranja-se: confie você em mim, tenho meios para obrigá-lo a fazer o que eu quiser.

 

Mundica não respondeu, mas inundou o rosto do pai com o seu olhar meio irritação, meio ternura, e pensou consigo:

 

- Eu hei de fazê-la sair, ou então nem eu nem ela.

 

Paula assomou na extremidade da cerca e, olhando para dentro, exclamou afinando a voz no tom de boa camaradagem:

 

- O bom filho à casa torna.

 

- Espere, que eu vou repicar os sinos - disse Marciano, dirigindo-se para a cancelinha fazendo-a girar sobre o pé. - A casa está sempre ás ordens.

 

Mundica não teve forças para dar um passo. Amolentada pela satisfação de ver o amante, parecia a estátua da hesitação à espera de um afago lascivo. Causava-lhe uma sensação suave de bem-estar a oscilação do passo do vigário, que afigurava-se-lhe uma aparição que magnetizava-a, e tinha desejos de servi-lo como escrava, e hospedá-lo como a hebréia lendária, lavando-lhe os pés em óleo perfumoso, dizendo-lhe palavras ternas, que significassem confiança e cordialidade.

 

O vigário pegou-lhe na mão abandonada, colocou-a entre as palmas da sua e fitando-a com um sorriso:

 

- És mesmo uma santa, Mundica! Não tens uma palavra áspera para mim, que a mereço e muito.

 

Entraram na saia e sentaram-se todos silenciosos, até que Paula reatou a conversa.

 

- Há alguma novidade, Marciano?

 

- A chegada do comboieiro do Aracati; ele trouxe carta para Vossa Mercê.

 

- Veio o carregamento?

 

- Diz Estevão que não vem mais nenhum, porque deixaram de dar socorro aos pobres do sertão; quem quiser há de ir para o Ceará.

 

- Oh! isto é grave - Mande-me buscar a carta; já deve estar em casa.

 

- Vou eu mesmo.

 

Paula e Mundica ficaram sós: ele contemplando a moça com o seu olhar desdenhoso, ela cabisbaixa a sacudir as pernas trançadas, que se desenhavam no vestido sem goma.

 

- Vamos ficar bons amigo, como outrora, não é? -perguntou o vigário.

 

- Eu nunca fui sua inimiga.

 

- Sabia bem disto, mas quis experimentar-te.

 

- Deveras ? - sorriu Mundica. - Pois agora vou eu também fazer outra experiência.

 

- Qual?

 

- Peço-lhe que faça com que Eulália deixe a paróquia; só assim...

 

- Mas você bem vê que isto é um impossível...

 

- Não vejo impossível nenhum, desde que o senhor queira.

 

- É uma infeliz rapariga, vocês andam caluniando-a; eu nada tenho com ela.

 

- Vai ser mãe de um filho seu, é o que o é, e o senhor esqueceu-me por ela.

 

Paula conseguiu sufocar a comoção que o assenhoreava, e com uma risada de fingida bonomia:

 

- Quem te meteu isto na cabeça, Mundica? Olha que é tão verdade como eu não estar agora aqui.

 

- Eu não sei se é verdade, ou não - respondeu resolutamente Mundica. - Se ela ficar, hei de espalhar por toda a parte que é assim, e só assim.

 

- E eu - respondeu o vigário contrariado - hei de reduzir vocês a não ter o que comer; percebeu?

 

- É o mesmo - disse Mundica friamente.

 

Calaram-se e ficaram a olhar indiferentes para as árvores; Mundica muito calma, Paula carrancudo, com os olhos brilhantes como os de um tigre que se vai assanhando.

 

- Vocês pensam que eu sou agora o brinquedo da paróquia, não?

 

- Eu não penso nada.

 

- Pois eu hei de ensiná-los... hei de convencê-los de que se enganaram, foram injustos comigo.

 

Depois de corrigir a frase desabrida, Paula ajuntou o afago fingido à sua hipocrisia e caminhou para Mundica, que o esperou com a mesma impassibilidade, deixando-se abraçar e beijar sem resistência.

 

- Por que não hás de ser sempre boa assim? Para que ouves teu pai? Não te zangues; eu prometo-te que dentro em três dias Eulália nos deixará em paz. E inocente, mas... é preciso não parecer culpada.

 

- Jura-me?

 

- Juro.

 

- E se não o fizer?

 

- Faze tu o que entenderes.. . Salvo se ficar provado que não há verdade no que diz teu pai.

 

Mundica perdeu um pouco da frieza com que malgrado seu tratava o amante, e pôs-se a desfiar as queixas que tinha de tão prolongada ausência, que ela não sabia como não a tinha matado.

 

- As mulheres são muito mais sinceras do que os homens; o senhor nem pode imaginar o que nós sofremos - concluiu Mundica.

 

- Talvez; mas eu posso mais ou menos avaliar. Juro-te, porém, que não sofrerás outra vez por mim. Eulália há de aparecer de novo aos teus olhos tão pura como antigamente descansa.

 

- Cá está o ofício, sr. vigário - disse Marciano, aparecendo à porta.

 

E voltando-se para a filha, a sorrir:

 

- Mulheres! Veja como já está com uma carinha de Páscoa.

 

Paula pôs-se a ler o ofício e por fim exclamou:

 

- E exato, estão suspensas as remessas para o sertão. Que inferno vai ficar isto! Ninguém poderá mais ficar aqui. Eu não serei o último a sair.

 

- Parte, então? - perguntou Mundica, sobressaltada.

 

- De certo modo; não hei de morrer à fome.

 

- Ah! - exclamaram a um tempo Marciano e Mundica.

 

E olharam-se enquanto o vigário, abstrato, pôs-se a reler o ofício.

 

- O pior é que eu não sei como acomodar os retirantes -disse Paula; - nós já não temos nada para dar-lhes. Antão Ramos cobra mundos e fundos, mas no fim de contas os retirantes estão à ração magra.

 

- Então o sr. Ramos meteu o dente na esmola? - perguntou Marciano com intenção.

 

- Não digo isso; falo das contas, que são grandes.

 

- Ah! isto é outro contar... eu pensei que...

 

- Você pensa sempre assim. Estás ouvindo bem, Mundica?

 

- Engano de ouvido, sr. vigário.

 

- Ora esta - ponderou Paula. - Então não há mais socorro? Vou já entender-me com Antão Ramos.

 

Tomou o chapéu sorrindo, e abraçou Mundica despedindo-se.

 

- Estamos bons amigos, não? Queira Deus que isto continue. O Marciano já tem o seu auxílio, e está contente; porque diz ele que sem comida não há amor.

 

- É verdade - concordou o sacristão.

 

Mas logo que o vigário afastou-se disse voltando-se para a filha:

 

- O que te disse o monstro?

 

- Que Eulália partiria, se não se provasse a sua inocência.

 

- E você?

 

- Eu disse que sim!

 

- Ainda não o conhece, e já devia conhecê-lo. Ela partirá, porém com ele, e você ficará com uma bonita cara. Não o ouviu dizer que não seria o derradeiro a sair daqui?

 

Os olhos de Mundica fuzilaram o clarão temeroso do ciúme e as lágrimas deslizaram-lhe pelo mortal palor das faces.

 

- Não pense nisto, meu pai; eles hão de pagar-me primeiro.

 

 

XXI

 

À noite já toda a paróquia estava alvorotada.

 

O clamor das mulheres retirantes enchia as ruas e ia condensar-se diante da casa do vigário, que, muito irritado já, mandara fechar as portas da casa, para não vê-la de contínuo invadida pela multidão.

 

- Nada! não é possível ficar mais aqui - pensava Paula; - de um lado estes malditos; do outro, Eulália e aqueles malvados.

 

Já tarde, porém, silenciando o povoado, Paula saiu calmo e vagaroso, costeou a praça e entrou na horta do defunto professor, depois de ter arrancado e reposto o mourão. Parou então defronte e empurrou a janela do quarto de Eulália. Estava trancada.

 

- Eulália! Eulália! - chamou com voz sumida - abre, sou eu.

 

Aplicou o ouvido, chamou de novo com maior insistência, mas o silêncio manteve-se imperturbável, e ninguém apareceu.

 

- O que terá ela feito? - pensou aterrorado. - Não a devia ter perdido de vista; sou em verdade muito mau para consigo!

 

E repetiu com voz trêmula:

 

- Eulália! Eulália!

 

Mas ainda desta vez chamou em vão.

 

Desanimado, inclinou a fronte sobre o peitoril a conter os soluços que irrompiam-lhe numa rebelião do remorso contra a hipocrisia educada.

 

Uma sombra passou pela frente da horta, rente com a cerca, e, depois de olhar para o interior, hesitou e voltou sobre os seus próprios passos.

 

Quando Paula, depois desse violento abalo, entrou cautelosamente em casa, na sala de jantar havia ainda luz e quem reparasse para o umbral veria colado a ele a cabeça da velha Antônia, que tinha estado à espreita.

 

Paula, porém, entrara prevenindo apenas o ruído das suas passadas e não reparou em tamanha e tão insólita curiosidade da cozinheira.

 

No outro dia pela manhã Antônia teve uma demora desusada ao ir às compras; mas o vigário não deu por isso, e só à tarde veio a surpreender-se com a atitude da velha quando lhe participou que se despedia da sua casa.

 

- Mas o que vai você fazer saindo daqui? O que é que há de ser de si?

 

- Vou cuidar da minha vida e da dos meus parentes -respondeu secamente a cozinheira.

 

- Há de ganhar muito; não lhe dou um mês que não se arrependa.

 

- Eu? - Nunca - disse a velha com um tom severo; - nem estaria mais hoje aqui se tivesse pensado bem.

 

- Oh! - sorriu o vigário - então tem grandes queixas de mim? Não malandreja bastante, hein? Há ainda coisa melhor: não fazer nada.

 

A velha porém encolheu os ombros, cortejou o vigário e saiu resmungando:

 

- Antes não fazer nada do que lavar roupas sujas de sangue.

 

Paula, que não pudera ouvir o que disse a cozinheira, distinguiu todavia a palavra sangue, e tanto bastou para ficar desassossegado. Mas apesar dos tratos que deu à imaginação não conseguiu chegar a conclusão alguma. Por isso, passeando pela sala, repetia freqüentemente:

 

- O que quererá dizer aquela velha tonta?

 

Acreditando que o vigário entendera as suas palavras e conhecendo-lhe a fundo o gênio desigual, os arrebatamentos súbitos, os acessos de irascibilidade desse temperamento ardente que se escondia numa calma hipócrita, como um vulcão sob um geleiro, Antônia andava com a presteza do medroso, e, em poucos minutos, entrou pela casa de Marciano.

 

- Venho pedir-lhe uma pousada, por hoje - disse ela ao sacristão. - Deixei a casa do sr. vigário.

 

A casa está aí para todos, tia Antônia, ainda que eu não saiba por que motivo saiu você da casa de seu amo.

 

- Ah! é uma história muito comprida.

 

A curiosidade de Marciano e sua família sobreexcitou-se com esta comprometedora declaração, e todos por sua vez porfiavam em acabrunhar com perguntas a simplória da velha; mas Antônia não satisfez às interrogações curiosas senão quanto a Eulália.

 

- Olhe que dói dentro dalma - ponderou - ver uma menina criada, para bem dizer, nos braços da gente, cair em semelhante desgraça.

 

- Mas que culpa tem o sr. vigário de que isso se desse? - perguntou Mundica. - Ele apenas faz ali o papel de pai.

 

- É o que ele diz, mas entra tarde da noite pela cerca para falar com a filha do defunto professor.

 

- Pela cerca? - interrogou Marciano admirado.

 

- Vi-o eu entrar, e qualquer pode fazer o mesmo, indo espiar.

 

- Eis aí por que ele se prestou logo ao que nós lhe exigimos - pensou Mundica. - Podia continuar a amar Eulália, sem que eu nunca o percebesse.

 

- Eu queria um favor de Vossas Mercês - continuou a velha; - era não dizer que eu vim para aqui. Desde que o sr. vigário entrou-me certa noite em casa, eu tenho medo daquele homem.

 

- Certa noite - pensou o sacristão -, que noite será esta?

 

E como não pudesse atinar com a resposta, disse:

 

- Desconfiança, tia Antônia; o vigário no fundo é um bom homem.

 

- Não digo menos disso, sr. Marciano, mas são coisas que a gente tem.

 

Marciano retirou-se dentre os conversadores, e, como tinha por hábito e dever, dirigiu-se para a igreja à espera do vigário, que para lá ia sempre à tarde encomendar em massa os defuntos da véspera.

 

Abertas as portas, o velho debruçou-se numa das janelas da sacristia, e pôs-se a pensar nas trevas que ele dera tatear, para dar segurança à sua vida, agora exclusivamente à mercê da boa vontade de Paula.

 

Os bandos de retirantes cirandavam lamentosos, pedindo piedade para as crianças e para as mulheres esfaimadas. Havia nas suas fisionomias o abatimento da desesperança, e esse não sei quê que transuda no semblante o temor do desconhecido.

 

- Eis a minha sorte - pensou Marciano; - ao menor aceno do vigário, não terei mais um grão de farinha.

 

Mas, repentinamente, cavaram-se-lhe na fronte rugas fundas, como se elas fossem os vincos deixados por uma resolução inabalável, e o velho, ouvindo os passos do vigário, veio colocar-se ao pé da mesa com os braços cruzados e os olhos cravados no chão.

 

- O que temos de novo, sr. Marciano? - perguntou Paula, afetando bom humor. - Temos novas queixas?

 

- Não lhe pareça a Vossa Mercê.

 

- Então o que há de novo?

 

- Nada, sr. vigário, nada: coisas da vida. Vossa Mercê não vai encomendar?

 

- Vou. Dê-me a sobrepeliz.

 

Paula vestiu-se a olhar e a sorrir para o sacristão, que se conservava carrancudo e seco. Seguiu até a capela-mor, e aí, aspergindo o soalho tosco, desempenhou a sua função de pároco, rezando pela memória dos retirantes mortos.

 

Quando voltaram à sacristia, Marciano apressou-se em reatar a conversação da maneira mais singular. Dir-se-ia um gato farto a brincar com a vítima, antes de estrafegá-la.

 

- Vossa Mercê está sempre disposto a partir?

 

- Conforme; se continuar a penúria, não tenho outro remédio. O Antão Ramos já declarou-me que, se o governo ficar firme na sua resolução, ele também parte.

 

- E os pobres ficam a morrer para ali, como bichos do campo ?!

 

- É a lei do mundo. Eu não hei de morrer só pelo gosto de morrer. Lá diz o rifão: livra-te dos ares, que eu te livrarei dos males.

 

- Também Vossa Mercê vai ficando com a casa vazia: já está sem cozinheira, e breve talvez fique sem o José

 

- Isto é o menos; o que não falta é quem sirva.

 

- É verdade, mas os criados sempre levam consigo alguns segredos.

 

Havia na entoação das últimas palavras do sacristão tanta intenção de impressionar o seu ouvinte que Paula não teve força para dominar a comoção que o assoberbou.

 

Tornou-se-lhe de repente compreensível no espírito a causa pela qual Antônia desligara-se do seu serviço; lembrou-se da camisa e da volta que atirara a um canto da casa na noite do atentado, e teve assim a significação da palavra sangue, que ouvira a velha pronunciar.

 

Mais para não cambalear do que por ter vontade de demorar-se, o vigário sentou-se e, fitos os olhos em Marciano, disse a meia voz:

 

- Às vezes também esses ingratos espalham calúnias.

 

- Ah! - exclamou Marciano, que percebeu a perturbação de Paula - a velha Antônia não está neste caso.

 

- Nem eu digo isto - respondeu o vigário, continuando a fitar o sacristão, porém mais sossegado; - entretanto, se ela o fizesse não era para admirar.

 

- A Mundica é que ficou de novo triste com a sua sorte; o sr. vigário disse que partia...

 

- Mas não disse que a abandonava.

 

- E abandonará a família do seu amigo e o seu filho?

 

- Não falemos mais desses infelizes; você nada tem com eles.

 

- Mas o sr. vigário não está no mesmo caso.

 

O orgulho de Paula, ainda ferido dos recentes golpes que lhe desfecharam o sacristão e a filha, conteve-se todavia para não se expor aos ataques desapiedados de Marciano.

 

- Não avive dores fundas, meu amigo - murmurou com uma submissão comovida; - eu posso esquecer Eulália, mas não quero ouvir falar com desrespeito da sua desgraça.

 

- Eu não sou o culpado - replicou friamente o interlocutor; - Vossa Mercê é quem devia ter pensado assim naquela certa noite, como dizia ainda agora a tia Antônia.

 

Paula estremeceu violentamente e pôs-se de pé como um autômato que sofresse um impulso repentino.

 

- Então aquela bruxa disse alguma coisa?

 

- É; esteve a falar de uma certa noite...

 

- E o que disse ela? - perguntou o vigário com os olhos esbugalhados, a fitar o sacristão.

 

- É o meu segredo...

 

- Veja, Marciano; eu tenho medo que difamem aquela infeliz rapariga, e temo que a velha Antônia dê à língua. Veja você: isto me mataria de vergonha. Você é meu amigo, peça à Antônia, diga-lhe que se cale, eu não duvido fazer o que ela quiser.

 

- Não é para esse lado - ponderou friamente o sacristão; - a coisa há de ser outra.

 

- Não, não pode ser outra - objetou o vigário perturbando-se cada vez mais -, nada mais podia ela dizer.

 

- Meta a mão na sua consciência, sr. vigário, e diga, diante de Deus, se está falando a verdade.

 

- Não, já lho disse! - bradou o vigário. - Se aquela velha tonta se atreveu a dizer mais, eu não hei de errar o golpe: arranco-lhe a língua.

 

- Ela nada disse que eu ouvisse; acalme-se Vossa Mercê; deixe-se de ver fantasmas - disse Marciano, sorrindo.

 

E batendo no ombro de Paula, acrescentou:

 

- A minha Mundica não lhe deu tamanhos desgostos, e o senhor é bem ingrato para com ela.

 

Paula não comungou da brusca jovialidade do sacristão, apesar do requinte que este punha em torná-la comunicativa.

 

- Parece que estamos todos doidos - ponderou ele; levamos o tempo a assustar-nos e a ofender-nos em vão.

 

- Por minha parte, já não tenho receios; o sr. vigário é que não pode ouvir falar na casa do professor; como que Vossa Mercê tem medo daquela .....

 

Uma vozeria estrepitosa levantou-se lá fora. Paula aproveitou-se da curiosidade do sacristão e correu à janela.

 

Estagnada em face da casa de Antão Ramos, uma onda de retirantes, grande e nojosa como um antigo monturo, levantava a grita assustadora, e, como o inspetor houvesse fechado as portas, começava lá a ameaçá-las com o arrombamento.

 

- Vá repicar o sino em sinal de prece - disse Paula - e acenda as velas dos altares. Eu vou acomodá-los.

 

Seguiram ambos ao seu destino, e dentro em pouco o vigário, colocando-se perfilado diante da casa de Antão Ramos, fazia recuar submissa a multidão desvairada pela fome.

 

Os sinos convidavam à prece e à resignação, falavam de paz e de piedade no meio do alvoroço, e eles, mais o que a voz do vigário, arrastaram para o templo e suas circunvizinhanças, os retirantes e os moradores do povoado.

 

Paula subiu então ao púlpito e com uma austeridade angélica pôs-se a doutrinar os fiéis aconselhando-lhes coragem no padecimento e no transitório da vida, - porque dele surge, como a flor do cacto das vergônteas espinhosas, a paz d'além túmulo.

 

- E vão dizer lá que ele é quem é - resmungou a velha Antônia, que estava com a família de Marciano encostada à porta da capela-mor aberta sobre o corredor da sacristia.

 

- É verdade - concordou o sacristão -, é um santo...

 

- Credo! até os sermões dele hão de fazer mal à gente; sempre é homem que se manchou em sangue alheio.

 

- Qual, tia Antônia! isto agora é raiva dele; você como saiu do serviço do vigário...

 

- Pode sim - murmurou a cozinheira - mas ele não nega à minha vista que entrou numa certa noite em casa, com a camisa, a volta, e as mãos cheias de sangue.

 

- E há muito tempo, ou é coisa nova?

 

- Vossa Mercê há de saber mais tarde; quem é o dono da coisa há de puxar pelos seus direitos.

 

- Está bom, venha isto quanto antes.

 

Calaram-se, porém Marciano vivamente impressionado continuou a examinar com olhares vesgos de sofreguidão o semblante calmo da velha. Dir-se-ia, ao vê-lo agora, que ele fazia um retrospecto de todos os acontecimentos extraordinários que se haviam atropelado na paz quase patriarcal da paróquia. Uma idéia vinha-lhe de continuo e era que as palavras de Antônia tinham muita relação com o temor do vigário quando o ouvia dizer que iria revelar a Augusto Feitosa a origem do beato contra Rogério Monte. Mas a suspeita do sacristão de pronto se desvanecia, porque uma série de perguntas vinham demonstrar-lhe a improcedência. Por que razão Paula havia de agredir o rapaz? Eram tão amigos. Feitosa nunca demonstrou ao menos gostar de Eulália; porque havia ele de tentar assassiná-lo?

 

A lembrança da carta passou-lhe pela memória aclarando-lhe as sombras da dúvida como o relâmpago o céu tempestuoso, e Marciano deixando cautelosamente a família, veio para a sacristia, que estava alumiada por uma vela colocada junto ao crucifixo.

 

Levado pelo primeiro impulso da viva curiosidade que o avassalava, o sacristão leu as primeiras linhas da primeira lauda e apressou-se em ver a assinatura. A decepção que o apoderou levantou-lhe os olhos para a imagem de Cristo, que parecia um indiscreto devassando com o olhar descaído as linhas escritas. O signatário da carta não era, como esperava  Marciano, o velho Rogério Monte, mas um homem desconhecido no povoado, provavelmente algum amigo do defunto professor e que nunca tinha vindo à paróquia: Antônio de Louredo.

 

- Perco mais uma esperança - murmurou o sacristão.

 

Rasgou em cruz, amarrotando a folha de papel, e atirou-a pela janela, acrescentando:

 

- Cometi uma ação má sem necessidade.

 

Arrependendo-se de súbito, debruçou-se na janela e olhou para a praça; ainda viu um vulto levantar-se e começar logo a caminhar apressado; mas os pedaços de papel não estavam sobre o areal.

 

- Boa noite - exclamou Marciano.

 

- Boa noite - respondeu o vulto. - Como vai, sr. Marciano?

 

- Ah! é Vossa Mercê, sr. Augusto Feitosa?

 

E deixando a janela correu até a porta lateral, onde foi apertar a mão do moço, sem entretanto ter coragem de perguntar-lhe se tinha ou não visto os pedaços de papel.

 

- Está incomodado? Parece sobressaltado - perguntou o moço.

 

- Seu velho já, sr. Feitosa, e as cenas como as de hoje à tardinha me fazem muito mal.

 

- Mas os infelizes já estão mais acomodados, não é verdade?

 

- Parece; estão ouvindo o sermão.

 

- Não tenha medo, tudo se há de arranjar pelo melhor.

 

Despediram-se. Augusto Feitosa entrou para o templo, enquanto Marciano saía e procurava atentamente sob a janela e nas suas vizinhanças os pedaços de papel. Malograda a sua pesquisa, voltou para a sacristia a fim de ajudar o vigário a desrevestir-se. Depois, retirada a multidão, tornou à sua esperança de achar a carta e, de vela em punho, procurou por largo tempo, até que, desiludido, murmurou a coçar a cabeça:

 

- Não acho, e entretanto pode bem ser que nesta carta eu encontrasse alguma coisa que me auxiliasse.

 

Já a praça estava deserta e nem na venda de Antão Ramos havia luz; as ameaças da tarde o intimidaram a ponto de ter dito que não ficava mais na paróquia. Marciano caminhou até a cancelinha da sua casa, e ia impeli-la quando hesitou e continuou a andar na direção da casa do vigário, junto da qual, parando pôs-se à escuta, e depois a espiar pela fresta de uma das janelas.

 

De chofre correu até o meio da praça e deitou-se de bruços, espichado como um morto.

 

A porta abriu-se cuidadosamente e um vulto negro apareceu no umbral, olhou para todos os lados e saiu.

 

Marciano quedou por largo tempo, conservando apenas a cabeça um pouco levantada para poder seguir o vulto com o olhar; e só quando ele desapareceu de todo e a praça encheu-se homogeneamente da claridade do luar, ergueu-se o velho sacristão, que sempre pelo meio da praça palmilhou a distância que o separava da casa.

 

- Sabe? - disse indo ter com Mundica; - vi-o entrar agora mesmo na casa da Eulália.

 

- Não há de entrar outra vez, eu lhe juro - respondeu Mundica enxugando as lágrimas que lhe rolaram de improviso; - ou eu ou ela.

 

Era domingo, e desde muito cedo o velho Marciano badalejava, no campanário tosco da paróquia, os avisos para a missa conventual.

 

Não obstante, os repetidos repiques não despertavam no povoado a alegria que causa a voz dos sinos, ouvida fora das grandes cidades. As casas conservavam-se na quietação e silêncio dos outros dias, como se elas temessem o sussurro, que causam as pressas devotas do mulherio da roça.

 

Só quando as três badaladas do estilo anunciaram a próxima entrada da missa, os paroquianos, sem esmero no trajo, dirigiram-se para a igrejinha, quase silenciosos.

 

O vigário saiu também e foi parar à porta da casa de d. Ana; que só esperava pelas sobrinhas para ir cumprir com a devoção.

 

- Não há mais perigo de barulho, sr. vigário? Esses coitados de famintos já se resignaram?

 

- Mais baixo, d. Ana, porque eu não quero que Eulália saiba que eu estou aqui. Não me tem querido aparecer... Eu as espero lá; e quanto aos retirantes não há novidade.

 

Seguiu dando passadas largas para distanciar-se, mas quando, já bastante afastado da casa, viu a família sair, foi demorando o passo e afinal detendo-se entre os devotos espalhados junto à igreja, até que a família aproximou-se.

 

- Então a Eulália não veio?

 

- Não - respondeu d. Ana -, chamou-se por ela, mas não quis vir.

 

- Melhor; vamos para aqui, d. Ana; no corpo da igreja as senhoras não acham lugar; vamos para a capela-mor.

 

A família de Marciano já se achava assentada, quando entraram d. Ana e suas sobrinhas, que foram ajoelhar-se junto das suas antigas conhecidas.

 

Mundica, requintando a afabilidade, conversou alegremente com d. Ana, antes e durante a missa, chegando por fim a interessar na conversa as conhecidas que estavam junto. Mas, terminada a missa, no meio do silêncio com que se esperava a prédica do vigário, a voz de Mundica principiou com uma entoação esquisita a impressionar a desventurada senhora.

 

- Eulália está bem doente, não é verdade? Dizem que está sempre a cuspir. Será fraqueza de estômago ?

 

- Deve ser - murmurou d. Ana, concertando o seu xale preto; - mas não é coisa de cuidado.

 

- O sr. vigário é que está cada vez mais forte e mais sadio; vende saúde, não lhe parece ?

 

- Ele foi sempre assim, não muda nunca.

 

- É, há gente assim. A Eulália é que dizem ter feito muita diferença; até pode-se julgar que ela está com barriga d'água: está com ela tamanha! E verdade?

 

- Não é tanto...

 

- Vocês estão ouvindo - disse Mundica chamando a atenção das conhecidas -, é verdade que a Eulália está com a barriga muito grande?

 

- Que modos, Mundica! - murmurou d. Ana. - Isto é reparado.

 

- Quem sabe, d. Ana, se não é graça o que eu ouvi dizer de Eulália com o sr. vigário?

 

D.Ana, com as faces sangrando de vergonha, calou-se e, pretextando que estava doente, mandou que as sobrinhas se levantassem.

 

- Estou com arrepios de frio, não posso ficar para o sermão.

 

- Adeus, d. Ana - respondeu a filha do sacristão -, Deus permita que a sua doença não seja igual à de Eulália; deixe essas macacoas para as moças. A Chiquinha já pode...

 

- Você parece...

 

D.Ana, puxando pelo vestido de Chiquinha, impediu que esta prosseguisse, mas não conseguiu evitar a resposta de Mundica.

 

- Quem parece é sua irmã que está pejada do sr. Vigário e anda a fazer-se sonsa. Não veio à missa para não mostrar a barriga. Vão, podem ir; não se tapa o céu estendendo um lenço.

 

Os cochichos e as risotas das conhecidas de Mundica zumbiram como um enxame e repetiram as palavras da despeitada amante do vigário, enquanto d. Ana e Chiquinha retiravam-se trêmulas e sem poder conter as lágrimas, que se lhes desfiavam abundantemente.

 

- Não sabia que ela tinha este jeito - diziam umas.

 

- Ora, é sempre assim - respondiam outras -, as santas são as piores.

 

Pelo meio dessa erupção da má vontade do mulherio, desde muito percebida por Eulália, que a buscou evitar, quando suplicou um dos lugares do andor na procissão de março, atravessavam as duas infelizes mulheres, precedidas pelas meninas, e só no corredor acharam a quem se dirigir. Marciano, parado à porta lateral, agitava brandamente a sua cambada de chaves, a conversar com a velha Antônia.

 

- É como lhe digo, sai aí uma água suja dos diabos: o moço está como doido, e jura que foi o vigário quem o quis matar.

 

- E como sabe você disto?

 

- Se eu venho de lá! se eu conversei com ele! Como não hei de saber? Lá está a velha mãe agarrada com ele.

 

- Ah! Ele apanhou-me a carta! - exclamou desesperado o sacristão; - roubou-me um conto de réis, que era a minha salvação.

 

Antônia, sem compreender as exclamações de Marciano, ria-se com a franqueza da mulher do povo, quando foi bruscamente interrompida pela voz de Chiquinha.

 

- Ainda bem que lhe encontramos, sr. Marciano - soluçou a mocinha; - vá ouvir o que está dizendo de nós a sua Mundica, a quem nós nunca ofendemos.

 

- Eu sei lá disso - respondeu o sacristão colérico; - ela que o fez é porque tem suas razões.

 

- Não senhor - interveio a velha Antônia; - Mundica não tem razão; Vossa Mercê há de repreendê-la já. D. Ana e suas sobrinhas nunca trataram mal a ninguém no povoado.

 

- Deixe-me com um milhão de diabos! - bradou Marciano -, eu já estou em termos de perder a cabeça, deixe-me!

 

O que Mundica diz está bem dito, eu não tenho nada com a sua gente, d. Ana; vá para o vigário que é o amante da Eulália e talvez desta....

 

Dentre a mó de curiosos que se adensara em torno dos interlocutores, um braço estendeu-se e espalmou em cheio uma bofetada no rosto do sacristão:

 

- Toma a resposta, alcoviteiro, toma! - gritou Antão Ramos.

 

Uma confusão extraordinária espalhou-se em todo o grupo, dividido em partidários do inspetor e do sacristão, que fora cambaleando estender-se a comprido no areal.

 

- Por causa de uma mulher perdida insulta-se desta sorte um pobre velho; isto só a pau! - gritaram alguns.

 

- É ciumada daquela comborca - gritaram outros; - como o vigário protege a família do amigo, ela e este velho sem-vergonha tratam de difamar a pobre d. Eulália. Fora com esta canalha! Fora!

 

E os curiosos, os indignados e os apaziguadores corriam em bando enchendo o corredor e aumentando a gritaria.

 

- Fora o vigário! - bradaram furiosos os partidários de Marciano.

 

E correram precipitadamente para a sacristia, onde entraram tumultuariamente.

 

- Vejam! o miserável fugiu! É que Marciano e Mundica são os que falam a verdade! Vejam! - gritaram os mais indignados.

 

- Fora! Morra o vigário! - gritaram uníssonos os paroquianos. - Fora o sedutor!

 

Dezenas de vozes começaram então a clamar, querendo dirigir o movimento; mas ao passo que uns aconselhavam ir imediatamente à casa de Paula, outros julgavam mais acertado que fossem bater os capoeirões vizinhos. Dir-se-ia que todos estavam representando uma farsa com o fim de deixar o vigário evadir-se, porque a mais inconciliável confusão estabeleceu-se entre os indignados. Só depois de largo tempo a onda começou a espraiar-se por todos os recônditos da igrejinha à procura do fugitivo, e só mais tarde ainda lembraram-se de tomar o expediente de penetrar na casa de Paula. Os foras e morras ecoaram por longo espaço, mas ninguém pôde descobrir o perseguido, que parecia ter desaparecido do povoado por um milagre.

 

Paula entretanto ouvia a gritaria dos paroquianos e temia pela sorte que o aguardava, caso pudessem descobrir o seu esconderijo, aliás bem patente a todos os olhares. Quando romperam as primeiras assuadas e maldições, ouvindo soar por entre elas o nome de Eulália, compreendeu logo que o seu crime não mais se envolvia no misterioso véu em que por tanto tempo o furtara à indignação pública.

 

O seu primeiro desejo foi fugir para bem longe do povoado, mas refletiu em que o alcançariam na fuga e o desacatariam sem piedade. Trepou então ligeiro para cima do velho armário da sacristia e lá se escondeu na funda cuba formada pela guarnição. Daí acompanhou com temor a minuciosa busca que deram em toda a igreja, e ouviu os gritos convocando para a invasão da sua casa. Depois o templo silenciou e só passada cerca de uma hora ouviu de novo falas que se avizinhavam.

 

- Veja você, Estevão, como aquele mau homem desgraçou este povoado - dizia Marciano; - todas as pessoas mais importantes foram feridas por ele. O Monte e a filha lá se foram.

 

- Nem é bom mais falar nisso, faz arrepiar os cabelos da gente.

 

- Você viu em que estado se achava d. Ana, a lastimar a fuga da Eulália?

 

- A alma do professor persiga o malvado; uma pobre moça que era uma santa! Mil raios o partam.

 

- Aquela senhora fica doida com certeza e a Chiquinha e as outras meninas arrebentam de tanto chorar. Até a caçula, coitadinha, não cessa de chamar pela irmã - a sua mamãe.

 

- Só na força. Eu tinha coragem de amarrar aquele demônio, afora a coroa e as mãos bentas.

 

- Deixe estar que ele não perde, não. O Feitosa já sabe quem foi que lhe deu o golpe. A velha Antônia pô-lo ao corrente. Bom rapaz aquele; jurou ir procurar o Monte, pedir perdão e casar com a filha.

 

Mas por causa da saída do Monte daqui do povoado é que se deu a desgraça na casa do defunto professor, e ele não se lembrou da pobre d. Ana.

 

- Como não, Estevão? A família vai ser protegida por Augusto e soube-se que Eulália tinha fugido justamente porque a mãe de Feitosa mandou-a buscar para a sua companhia.

 

- Deus os ajude.

 

- Só eu - resmungou o sacristão - perdi tudo e até a maldita carta, que foi parar às mãos de Augusto.

 

- Hein?

 

- Vai ser um inferno agora: o vigário era o diabo, mas enfim sempre servia para conter os retirantes. De hoje em diante isto fica uma praga, até que se ponha para fora essa cambada.

 

- Isto é o menos, faz-se; primeiro nós, depois vós.

 

- Mas, enquanto não se lhes tira o vezo, temos o que fazer.

 

Os dois interlocutores continuaram a conversar sobre os acontecimentos, voltando a comentar a fuga de Eulália, cuja sorte, muito mais que a tentativa de assassinato, afetava o caráter do vigário aos olhos dos paroquianos. Feitosa era rico e forte, e demais disso a sua família, que não havia escrupulizado em derramar sangue naquelas mesmas paragens, não gozava de grande simpatia entre os habitantes. Cumpria ainda juntar que o moço tivera desde a noite a carta que o fizera acreditar na inocência de Monte, e além disso ouvira de manhã a velha Antônia; portanto tinha tido bastante tempo para vingar-se. É verdade que havia cedido às rogativas de sua mãe, que o não queria ver assassino, mas também era verdade que ele tinha meios de tomar uma desforra tremenda contra Paula.

 

O sofrimento de Eulália era, pois, o ponto fulminante da odiosidade geral contra o vigário, que, no seu esconderijo, ouvia, transido de dor, a narrativa da imensa desgraça.

 

- Bom, vamo-nos embora, eu já prometi a Nossa Senhora da Piedade uma vela para que se descubra o malvado.

 

- Só um milagre - respondeu Estevão; - ele meteu-se em lugar seguro.

 

- Julgam-me fora daqui - pensou o vigário; - posso ficar em paz.

 

Marciano e Estevão saíram trancando as portas e janelas da igrejinha e já se despediam quando se detiveram ouvindo gritos lacerantes vindos da banda da estrada, que, passando pelo cemitério, conduzia ao Engenho.

 

- Oh! que dia de maldição - exclamaram ambos e Marciano acrescentou: - quem sabe se não é alguma barulhada de retirantes? Eles ontem já ensaiaram e é possível que hoje continuem.

 

- Esperemos; todos estão e devem estar prevenidos.

 

Voltaram-se para o lado de onde vinham os gritos e esperaram. Um homem assomou gritando e correndo pelo meio da estrada e dirigiu-se para os dois interlocutores.

 

- Ah! é o Joaquim Maluco - exclamou o sacristão -, temos história, anda furioso ultimamente; entremos.

 

Marciano abriu a porta lateral que dava para o corredor da sacristia da igrejinha, mas não teve tempo de furtar-se com o seu companheiro às mãos do doido.

 

- Venham, venham - suplicou ele arfando de cansaço -, lá está ela, acordei-a.

 

- Sim, nós vamos já - respondeu Estevão - mas deixe-nos ir primeiro a casa; venha conosco.

 

- Eu?! Não, ela está lá, o vigário mandou enterrá-la dizendo que estava morta, ah! o vigário, e ela lá está viva.

 

O meu filho não quis acordar, e ela chora. Lá está beijando a terra.

 

A impaciência com que o pedido era feito, longe de impressionar, serviu apenas para fazer rir os dois interlocutores e alguns curiosos que vieram ouvir o maluco.

 

- Já sabemos que ela está lá, Joaquim, já sabemos disso, ela nem pode deixar de estar lá, entende?

 

- Sim, sim e o meu filho também, mas não acordou.

 

- É porque está com mais sono.

 

Riram-se todos, enquanto o aflito Joaquim Maluco, afastando-se com o seu esgarado olhar de doido, murmurava:

 

- Pensam que é verdade o que disse o vigário, e a minha filha lá está acordada, com fome, mordendo a terra.

 

O desgraçado vagou de porta em porta repetindo as suas tristes palavras, que misturavam o desvario a uma visão dolorosa, mas ninguém lhe deu crédito e menos ainda o quis acompanhar até o cemitério, que era o lugar para onde ele apontava, dizendo ter encontrado a filha.

 

Quando, porém, as palavras chegaram ao conhecimento da família do finado professor, uma esperança assomou ao espírito de d. Ana.

 

- Talvez ele tenha visto Eulália - exclamou a boa senhora e, saindo sem mais refletir, foi pedir ao inspetor que a acompanhasse até o cemitério.

 

A suspeita da boa senhora era a expressão exata da verdade. Com efeito, quando ainda não se haviam desdobrado as cenas tumultuárias, que para logo se atropelaram no templo, Eulália tomara uma resolução digna dos tempos alegres da sua vida: - resolveu fugir.

 

A ameaça de Paula nunca mais deixara de ecoar nos seus ouvidos. Como que o filho embrionário, apavorado pela idéia da morte, repetia-a de contínuo para fortalecer a coragem materna, e Eulália, estremecendo ao menor ruído, apertava logo na mão a arma com que o vigário desfizera a felicidade da sua amiga, e que hoje servia de defesa ao seu abandono.

 

Fechara-se no seu quarto para fugir à vergonha que lhe causavam os olhares da tia e das irmãs inocentes, e nem os chamados da caçula, que a tratava por mãe, faziam-na sair do seu retiro.

 

- Não, não morrerás meu filho - murmurava ela de quando em quando a desfazer-se em lágrimas; - eu denunciarei aquele malvado antes que ele te ponha a mão.

 

Na noite em que o sacristão viu a entrada de Paula na horta, Eulália sentiu, como na anterior, a voz plangente do vigário a chamar por si, enquanto tentava com repetidos empurrões abrir-lhe a janela do quarto.

 

Temendo pelo filho, abriu a porta para que a pudessem socorrer e esperou forte e resolvida a cravar-lhe o punhal se ele, porventura, ousasse querer levar ao fim a sua brutal ameaça.

 

Com a madrugada, fugiu-lhe, porém, o temor, porque a pressão importuna, de espaço a espaço aplicado à janela, cessou inteiramente e os ecos frouxos de um soluçar abafado extinguiram-se também.

 

A tristeza da sua posição ocupou por inteiro o vácuo deixado pelo temor que a havia torturado durante toda a noite, e Eulália teve horror de si mesma, pensando que ainda se conservava na casa honrada dos seus. Sentia-se agora com força e empregá-la-ia contra o vigário, caso ele de alguma sorte viesse renovar as ameaças contra o filho.

 

O contentamento que lhe vinha de imaginar-se mãe absorveu por instantes o negror do seu padecimento numa visão cor-de-rosa e consoladora, que a fazia antegozar o sabor dos beijos, que lhe daria, dos afagos enlevadores que lhe prodigalizaria. Mas o ressonar das suas irmãs veio perturbá-la no seu silêncio feliz, e o remorso de havê-las ela nodoado com a sua paixão criminosa alevantou-se hirto, inexorável diante de si.

 

Pareceu-lhe então ver o honrado professor, com os cabelos sujos e as mãos fechadas, apertando punhados de terras do sepulcro, deformado pela demasia, o seu corpo meão caminhar para si no meio da tremenda solidão do repouso do ler. A boca escancarada pela convulsão da asfixia tornava ainda mais assombrosa a aparição, cujo mutismo afigurou-se à mísera Eulália a intimação formal de abandonar imediatamente o lugar, onde vivera inocente e feliz.

 

Impelida pelo seu próprio pesadelo, a desventurada tateou a escuridão até a sala de jantar e foi parar junto da rede em que, a um canto, dormia a caçula - resfolegando com desafogo o sono da meninice, cujo pequenino coração não tem espaço para dar entrada às grandes dores. Curvando-se por sobre a rede, Eulália beijou longamente a irmãzinha adormecida, a quem, até bem pouco, havia sacrificado todos os gozos da mocidade, e, como se neste beijo houvera sugado mais energia para a sua resolução, resmungou por entre soluços refreados:

 

- Adeus, não hás de ter vergonha de olhar para mim, mais tarde!

 

A manhã veio encontrá-la da mesma sorte deliberada, e os repiques do sino lembrando-lhe o contraste entre a sua sorte e a de Paula consolidaram definitivamente a sua decisão.

 

- Enquanto eu me sinto morrer de vergonha, ele de fronte

 

alevantada recebe as bênçãos de todos - pensou Eulália. - Eu sofro e não tenho ânimo de aparecer nem a mim mesma; ele, com a mão manchada de sangue de um suposto rival, e da ameaça contra o próprio filho, segura tranqüilamente a hóstia consagrada e encara altivo o povo.

 

As lágrimas correram-lhe então em inundação e a mísera foi atirar-se de joelhos, com a cabeça sobre a caixa onde escondera a prova do crime de Paula. Desta violenta prostração só acordou ouvindo a voz de Chiquinha convidá-la para ir à missa.

 

- Não, não posso, minha irmã, rezem você e as outras por mim, adeus! – soluçou a infeliz.

 

Logo que o silêncio, que era o seu fiel companheiro no quarto, sempre fechado, restabeleceu-se na sua inteireza dolorosa, Eulália despiu a roupa de luto e amarrando estreitamente à cintura o canivete-punhal, vestiu-se com um dos seus vestidos de chita, sumiu a cabeça sobre uma toalha, pregada à moda das retirantes, e murmurou:

 

- Ninguém agora me conhecerá e eu não envergonharei mais o nome dos meus.

 

Atravessou resolutamente a casa solitária e a praça por onde os paroquianos, extasiados na sua fé, caminhavam para a missa e internou-se pela estrada, pela qual havia poucos meses passara feliz para ir ver o espetáculo do Feiticeiro.

 

Em frente ao cemitério, porém, vieram-lhe saudades profundas de seu pai, a piedade filial chamou-a a despedir-se ainda uma vez daquelas cinzas adoradas, e Eulália entrou resolutamente e foi ajoelhar-se e beijar a terra onde elas se escondiam.

 

Foi nessa atitude que o doido, que estava em uma das extremidades do campo-santo a despertar a filha há longos anos morta, viu-a e, confundindo-a com a larva que lhe alimentava a loucura, suplicou-lhe, beijou-a e finalmente correu ao povoado para encontrar alguém que a viesse buscar.

 

D. Ana correu a este apelo da loucura do lastimável pai, ouvindo os gritos do próprio coração que sentia por Eulália quase o amor de mãe, e foi ofegando de esperança que penetrou no cemitério.

 

A desilusão matou a última esperança da boa senhora que sufocando-se com a própria angustia só teve forças para exclamar:

 

- Oh! meu santo irmão, perdoai-a.

 

Eulália tinha desaparecido.

 

 

XXII

 

Alta já ia a noite no povoado, quando o vigário entendeu que podia abandonar o seu esconderijo. De um salto, veio bater com estrépito no assoalho da sacristia e, tateando a escuridão, foi abrir uma das janelas, pela qual entrou uma nesga de luar.

 

Espiou cautelosamente a praça deserta e, apoderando-se do crucifixo maltratado, pulou sobre o areal e apertou o passo na direção do Engenho.

 

Não demorou muito a chegar aí e, com a autoridade que exercia despoticamente sobre os ânimos crédulos dos retirantes, pôs logo em movimento todos os desgraçados.

 

Sentado junto de um brasido, que para logo foi convertido em uma fogueira, podia-se agora ver, envolto no clarão avermelhado das labaredas, o semblante do vigário.

 

O dia fora para sua alma um século de sofrimento, que de um lado se avigorava com o desejo de vingança e do outro se aprofundava e afiava o gume na saudade e no temor pela sorte de Eulália. O vestígio do padecer, pouco sensível nas suas faces morenas, estava entretanto claro nos olhos amortecidos, e principalmente na rouquidão da voz.

 

- Vocês souberam do que se passou hoje na hora da missa? - disse Paula a um grupo de retirantes que, de chapéu na mão, o escutava. Uma série de calúnias foi inventada contra mim, e insultaram-me como a um assassino e sedutor.

 

- É exato; nós não fizemos nada porque de nada sabíamos: não tínhamos certeza se era verdade ou mentira.

 

- É uma falsidade, juro-o à face de Deus - exclamou o vigário, olhando para o crucifixo; - eu serei vingado pelo castigo do céu sobre todos os que me insultaram e sobre aqueles que não correrem em minha defesa. A justiça de Deus não é como a justiça dos homens.

 

Os retirantes baixaram os olhos, e Paula, depois de ter conchegado aos lábios, num beijo longo, os pés do Cristo, prosseguiu:

 

- Eu era a defesa dos desgraçados; muitas vezes aqueles malvados tentaram vir aqui desalojá-los e expeli-los, para que não os contaminassem com as enfermidades e não lhes extinguissem o alimento. Eu, com a força deste madeiro - e suspendeu o crucifixo -, os detinha, como por detrás dele furtei-me ao olhar da cegueira dos seus pecados. Hoje, porém, vocês já não têm defensor, e aqueles homens sem coração tramam a expulsão dos irmãos infelizes do povoado.

 

- Nós não esperaremos que eles venham, sr. vigário; sairemos primeiro, amanhã mesmo.

 

- Sim, devem fazê-lo, mas o que vai ser de vocês pelas estradas sem um grão de farinha para comer?

 

- O que quiser a misericórdia de Nosso Senhor.

 

- Ela não poderá evitar que as mulheres e os filhinhos morram à fome, porque a época é de castigo e desafronta divina.

 

- Paciência; Deus se compadecerá das nossas almas.

 

- Entretanto vocês deixam após o povoado rico, feliz no seu egoísmo; a casa de Antão Ramos atulhada de gêneros, que ele roubou ao governo, dando assim causa a que não viesse mais a esmola do Estado; os Feitosas, abastados, orgulhosos, calcando aos pés todos e tudo; esses paroquianos orgulhosos com as casas providas.

 

- Não podemos tirar-lhes isto; Deus é mais piedoso para com eles.

 

- Quem lhes disse? Eu sou o seu sacerdote e, em nome do Deus que aqui tenho nas minhas mãos, juro que esses bens não podem mais pertencer aos incrédulos e aos impenitentes. Devem servir para matar a fome aos desgraçados. Vamos ao povoado reclamar dos inimigos da religião, dos que insultam os ministros de Deus o sustento dos infelizes.

 

Paula levantou o crucifixo e deu um passo à frente; mas os retirantes ficaram imóveis, hesitando.

 

Vendo em perigo a realização da sua vingança, o vigário desviou o caminho pelo qual queria conseguir arrastar o Engenho após si: dirigiu-se às mulheres, em nome da penúria dos filhos. Dentro em pouco havia soluços e lágrimas em todas as faces, em todas as vozes, e as mais queixosas murmuravam:

 

- Que bem lhes importa a eles que nós morramos de fome? Já nem têm religião para ouvir o sr. vigário e os choros dos filhos.

 

O efeito que Paula ambicionava para as suas palavras produziu-se finalmente, e a grande massa de andrajosos gritou por uma única voz:

 

- Ao povoado!

 

- Vamos, meus filhos - exclamou Paula -, não é o roubo que eu aconselho, é a conservação da vossa existência. Ao povoado: será mesmo nos domínios de Deus que encontrareis armas para a defesa; a cerca do cemitério fica em caminho, os seus mourões servirão para arrombar as portas.

 

A multidão abalou-se colina acima com o açodamento de quem deixa a família chorando à fome. Desfazer a cerca da habitação dos mortos foi obra de momento, e, à luz clara do luar, caminhou o povaréu na direção do povoado.

 

Paula seguiu como eles, depois de ter incitado ainda mais os instrumentos da sua vingança; uma circunstância, porém, o fez parar.

 

Desde que principiou o trabalho sacrílego do descercar do cemitério, uma voz rouca alevantou um protesto pungente.

 

- Deixem estar a cerca, deixem. O barulho acorda-a e ela dormiu outra vez.

 

Era o pobre Joaquim Maluco quem assim falava. Impressionado pelo encontro que tivera de manhã com a mísera Eulália, o seu coração de alucinado trouxe-o de novo ao cemitério, no intuito de conduzir consigo a filha idolatrada. Postara-se de joelhos sobre a cova, que lhe roubava o objeto dos seus carinhos, e aí, apesar da soalheira, passara o dia a chorar e suplicar. À noite estendera-se como um cão fiel sobre o leito funerário da morta, e ai permanecera imóvel até que foi despertado pelo barulho da multidão.

 

Vendo que esta não atendia nem às suas rogativas, nem aos seus protestos, o doido correu para junto do cruzeiro negro e pôs-se a suplicar o auxílio do céu. Respondeu-lhe o silêncio do madeiro.

 

Joaquim Maluco trepou então, como tinha por costume, até o cruzamento dos dois braços da cruz enorme, e, escarranchando-se lá, prorrompeu em gritos de socorro.

 

- Aquele endemoninhado é capaz de acordar o povoado - ponderou o vigário - e então não se diria que era a vingança divina, mas uma vingança minha esta revolta para obter o necessário à conservação de tantas vidas. Sigam vocês, não poupem ninguém, eu os seguirei depois.

 

A onda invasora dos famintos obedeceu de pronto e continuou a sua marcha.

 

- Ouçam;  gritem  ao  primeiro  encontro:  viva  os Viriatos.

 

Passo a passo o vigário seguiu o sórdido transbordamento da penúria sobre o povoado, e só deixou-os quando já haviam entrado na praça.

 

A voz estentórea do maluco, avolumada pelo silêncio, gritava debalde alarma aos paroquianos que dormiam; nenhuma porta se abriu, nenhum sinal de prevenção percebeu-se. O sono parecia cooperar com o vigário na obra de vingança.

 

A massa compacta de invasores subdividiu-se, e um grupo foi estacionar às portas de Antão Ramos, enquanto o outro dirigia-se à casa de Feitosa. A senha dada pelo vigário foi passada aos companheiros pelos que ficaram na praça, para que ambos os grupos acometessem ao mesmo tempo.

 

Não durou muito que estrugissem repetidos, prolongados, pavorosos os vivas aos Viriatos e, de par com eles, o bater dos mourões nas portas e janelas das casas. O espanto e a confusão propagaram-se para logo em todas as habitações, e cada um, temendo pela própria sorte, limitava-se a fortificar-se para não ser acometido.

 

Paula decidiu-se então a tomar também a sua parte no assalto. Atirou com o crucifixo e caminhou.

 

Dentro da casa de Antão Ramos o saque inflamava os retirantes até a loucura. Ouvia-se o estourar das garrafas, de mistura com a vozeria e os vivas inconscientes aos Viriatos. De repente a detonação de um tiro prolongou-se e um clamor uníssono da multidão aumentou. A onda entornou-se pelo interior e lá soaram gritos pedindo socorro, lamentações e ais de crianças que se esganiçavam em choros de susto e de horror.

 

- Não matem as crianças - gritou Paula entrando precipitadamente, e querendo em vão conter os seus instrumentos -, piedade para com elas: não são culpadas.

 

- Qual piedade nem meia piedade; eles não a tiveram para com os nossos filhos. Descasca a faca nessa cambada.

 

O vigário, empurrado de um para outro lado pelos retirantes, desatendido, espantado pela extensão inesperada que ia ter a sua desafronta, deixou a venda e correu pela praça, seguido de uma porção dos seus sequazes.

 

- Não esqueça o malvado velho, o pai dos malvados, aquela peste do sacristão - gritou um dos que corriam -, não é verdade, sr. vigário?

 

- Sim, ele é o principal. Entrem, é ali; ele é o responsável de tudo o que acontece.

 

Seguiu correndo, depois de ter apontado o casebre de Marciano à fúria brutal, e foi meter o ombro à janela da casa em que morava.

 

- José! José! - gritou sôfrego -, arreia o meu cavalo, depressa; vamos partir já. O povoado vai arder inteiro.

 

Não foi respondido. O silêncio fê-lo compreender que o pequeno tinha desertado do seu lugar e, sem perder um minuto, o vigário foi arrear o animal que bufava no cercado próximo.

 

- Se me vêm, estou perdido - pensava ele -, que inferno! estou a tremer como uma criança. Pronto, finalmente.

 

Correu ao seu quarto de dormir e, tateando, abriu uma portinha oculta que fechava um cofre cavado na parede, e no qual guardava o produto das suas economias, espoliadas em nome do céu aos paroquianos. Com a mesma celeridade com que viera ao quarto, voltou para encavalgar e partir, mas deteve-se ao montar, proferindo uma blasfêmia:

 

- Persegue-me, Deus cruel, persegue-me; os meus crimes são teus, é a tua religião quem os comete com o meu braço.

 

Uma descarga acabava de detonar na praça e a gritaria dobrou entre os assaltantes.

 

- Vivam os Viriatos.

 

- Morram os ladrões.

 

- Bem; estão travados; lutam: eu posso fugir. - Tomou o cavalo pelas rédeas e encaminhou-se para sair na praça.

 

- O luar, o luar - resmungou trêmulo -, serei alvo de perseguição.

 

Despiu estouvadamente as suas vestes talares e, atando-as, montou resolutamente e soltou a galope o animal justamente na direção da luta, mas pelo lado oposto da praça.

 

Nem um tiro veio sequer intimidá-lo com um erro de alvo; passou incólume e desceu a colina, por onde ainda há pouco havia subido para levar o luto e a desolação ao povoado.

 

O animal tragava o solo com a carreira à briga solta, rápido, bufando como se fosse um cúmplice dos crimes do senhor.

 

- Upa, upa! - repetia incessantemente o vigário, estimulando ainda mais o corredor.

 

O galope dobrando de celeridade soou em breve diante do cemitério, e Paula, satisfeito com a distância que já permeava entre si e o povoado, insistia no incitamento ao animal, que de chofre recuou, encabritou-se sobre as patas traseiras e, revirando-se, lancheou cuspindo fora o cavaleiro; mas para logo recobrou o equilíbrio na disparada vertiginosa.

 

- Cá está, oh! eu jurei apanhar o malvado, cá está - gritou o doido que dera lugar ao incidente, por haver corrido repentinamente para tomar o passo ao animal.

 

Proferindo tais palavras, Joaquim estava já acocorado sobre o vigário e prendia-o nos seus braços fortalecidos pela tremenda força da loucura.

 

- Deixa-me, desgraçado; eu mato-te, se não me largas

 

bradou Paula debatendo-se para levantar-se.

 

- Quer matar, quer, hein? E o meu filho? Não vê que dorme ali? Eu acordo-o. Há de vir comigo, não vai não, que eu não quero.

 

Calaram-se ofegando e revolvendo-se no pó a lutar com uma violência indescritível. Pareciam duas serpentes enleadas, dando-se furiosas crebros golpes envenenados. De repente, ambos dobraram de esforço e ao mesmo tempo, gritaram:

 

- Socorro, que me matam!

 

A vozeria da multidão já era ouvida distintamente, e a detonação dos tiros acenava-se mais e mais no silêncio do declive.

 

- Estou perdido! - exclamou o vigário -, deixa-me desgraçado.

 

- Não; há de vir comigo; - ofegou o doido, que, no acesso de cólera, mordia o seu contendor.

 

Paula finalmente conseguiu fazer com que rolassem pela ladeira, e assim desligaram-se, para logo, de pé, um impelido pela loucura, outro pelo pavor, se travassem corpo a corpo. Desta vez, porém, era o vigário que acometia e, ao passo que o doído queria segurá-lo pela garganta, ele, aplicando-lhe o queixo sobre a omoplata, e estreitando-lhe a cintura nos braços robustos, vergava-o e, fazendo-o cair por terra, com o joelho apertava-lhe o estômago e com uma das mãos o esganava.

 

- Morre endemoninhado, morre! Perde-me, mas desce comigo ao inferno.

 

O doido já não podia responder-lhe senão por uns sons estrangulados de asfixia iminente, mas os gritos, a vozeria, as maldições, o estampido dos tiros ouviam-se já a pequena distância.

 

- Salva-me, salva-me, Senhor meu Deus - resmungou o vigário, e, sacudindo de si o corpo inerte do doído, cujos braços o seguravam como duas tenazes, correu e enterrou-se no matagal vizinho.

 

O estrépito da luta entre os paroquianos e os invasores continuou ainda por muito tempo e só ao romper da manhã cessou de todo. Então os vencedores puderam ver os estragos da invasão e ao mesmo tempo os despojos da desforra.

 

A praça estava semeada de mortos e de moribundos; a venda de Antão Ramos convertida em um monte de ruínas dava entrada para um lago de sangue em que se debatiam as crianças mal feridas e jazia morto o inspetor. Feitosa com um grande golpe na face andava como doido a procurar por sua velha mãe, cujo destino ignorava. O velho Marciano jazia estendido na sala do seu casebre, abandonado pela família. Em toda a parte enfim, havia alguém que lastimava, por que aonde não chegara a mão dos assassinos chegara o temor da morte.

 

- E, por cima de tudo isto, ainda teremos a fome - diziam alguns paroquianos.

 

- A morte hoje mesmo, se não abandonar este maldito lugar - respondiam os ouvintes. - Os que ficaram virão vingar-se.

 

A idéia da fuga espalhou-se imediatamente e à noite não se via no povoado senão alguns velhos trôpegos, que ainda assim se arrastavam na direção das duas estradas.

 

O Engenho não tinha mais uma única rede suspensa, e na estrada, em frente ao cemitério, o cadáver de Joaquim Maluco abria os braços ao luar.

 

Só um homem robusto era visto no meio desta rumaria ensangüentada. Saiu do matagal junto ao campo-santo, despiu na praça a roupa de couro de um dos muitos mortos ali caídos e, depois de ter entrado na casa de Paula, tomou pela estrada de noroeste.