Capistrano de Abreu
CAPÍTULOS DE HISTÓRIA COLONIAL
I
biblio
ANTECEDENTES INDÍGENAS
biblio
A quase totalidade do Brasil demora no hemisfério
meridional, e entre o Equador e o trópico de
Capricórnio alcança o país as
maiores dimensões.
biblio Cercam-no ao Sul,
a Sudoeste, Oeste e Noroeste as nações
castelhanas do continente, exceto o Chile, por se
interpor a Bolívia, e o Panamá por se
interpor a Colômbia. Se confrontará algum
dia com o Equador hão de decidir negociações
ainda ilíquidas. Desde o alto rio Branco até
beira-mar seguem-se colônias de Inglaterra,
Holanda e França, ao Norte.
biblio Banha-o ao Oriente
o oceano Atlântico, numa extensão pouco
mais ou menos de oito mil quilômetros. Como
o cabo de Orange, limite com a Guiana Francesa, dista
37 graus do Chuí, limite com o Uruguai, salta
logo aos olhos a insignificância da periferia
marítima; repete-se o espetáculo observado
na África e na Austrália: nem o mar
invade, nem a terra avança; faltam mediterrâneos,
penínsulas, golfos, ilhas consideráveis;
os dois elementos coexistem quase sem transições
e sem penetração; com recursos próprios
o homem não pôde ir além da pescaria
em jangadas.
biblio A borda litorânea
dispõe-se em dois rumos principais: Noroeste–Sueste
do Pará a Pernambuco, Nordeste–Sudoeste
de Pernambuco ao extremo Sul.
biblio A costa de NO–SE,
corre baixa, quase retilínea, intermeada de
dunas e lençóis de areia, aquém
do Amazonas, baixa, lamacenta, de contornos variáveis,
entre o Amazonas e o Oiapoque. Os materiais marinhos,
os sedimentos fluviais dão-lhe o aspecto das
costas compensadas; os portos rareiam, as barras dos
rios são as verdadeiras entradas, em geral
precárias. O desenvolvimento econômico
ou as exigências administrativas mais que as
condições naturais levam a navegação
de longo curso para Belém, São Luís,
Amarração, Fortaleza, Natal, Paraíba
e Recife. Outros portos servem apenas à cabotagem.
Tutóia franqueia o Parnaíba a embarcações
de maior porte.
biblio A costa de Sudoeste
desde Pernambuco até Santa Catarina arrima-se
à Serra do Mar, varia de aspecto, aqui extensões
arenosas, além barreiras vermelhas, encostas
cobertas de matas, ou montanhas que arcam com as ondas.
Nela existem as maiores baías do Brasil: Todos
os Santos, Camamu, Rio, Angra dos Reis, Paranaguá.
A navegação de alto bordo procura as
capitais dos estados, exceto as de Sergipe e Paraná,
mais os portos de Santos, Paranaguá e S. Francisco
do Sul. Também neste trecho se encontram as
maiores e mais numerosas ilhas, em geral dentro de
baías, todas de procedência continental.
biblio A partir de Santa
Catarina a costa se abaixa novamente; no Rio Grande
do Sul dominam lagunas, cujo extenso litoral interno
só poderá verdadeiramente prosperar
quando a arte der a saída franca que a natureza
lhes negou para o oceano.
biblio As ilhas de procedência
vulcânica, Fernão de Noronha, fronteira
ao Rio Grande do Norte, Trindade, fronteira a Espírito
Santo, pouco representam agora. Trindade parece imprópria
à ocupação permanente: a Inglaterra
só a disputou nos últimos anos por se
prestar ao amarradio de cabos transatlânticos.
biblio A faixa marítima
apresenta largura variável: em geral avantaja-se
mais de Pernambuco para o Pará, e no Rio Grande
do Sul; no restante sua expansão subordina-se
aos caprichos da serra do Mar: temos aqui as chamadas
costas concordantes.
biblio Ao Norte liga-se
com a baixada do Amazonas, muito ampla à saída,
relativamente estreita entre Xingu e Nhamundá,
amplíssima a Oeste do Madeira e do Negro até
o sopé dos Andes. As cachoeiras mais setentrionais
do Tocantins, do Xingu, do Tapajós e do Madeira
balizam a baixada pela banda do Sul. Pela banda do
Norte, a Este do Negro, logo a algumas dezenas de
quilômetros da foz, começa o trecho encachoeirado
nos rios que descem da Guiana. De Este a Oeste apresenta
declive insensível: mais desce o S. Francisco
na cachoeira de Paulo Afonso do que o Amazonas nos
três mil quilômetros que vão de
Tabatinga ao mar.
biblio A baixada marítima
liga-se ainda ao Sul com a do Paraguai que começa
no estatuário do Prata e prossegue até
Mato Grosso. Cuiabá, na gema do continente,
pouco mais de duzentos metros terá de altitude.
As margens do rio principal, bastante altas no curso
inferior, vão se abaixando à medida
que se marcha para o Norte, até uma região
anualmente alagada por espaços de muitas léguas,
o chamado lago Xarais dos primeiros exploradores.
Abundam aliás os lagos marginais, conhecidos
pela denominação de baías; por
uma série de baías passa a linha lindeira
com a Bolívia.
biblio As baixadas amazônica
e paraguaia, contínuas com a do oceano, aproximam-se
muito a Oeste: entre o Aguapeí, afluente do
Jauru, tributário do Paraguai, e o Alegre,
afluente do Guaporé, um dos formadores do Madeira,
inserem-se apenas poucos quilômetros de distância.
O governo português pensou em cortar este varadouro
por um canal que levaria do Prata ao Amazonas, e deste,
aproveitando o Cassiquiare, ao Orenoco, à ilha
da Trinidad, ao mar das Antilhas.
biblio A obra começada
parou logo e parece inexeqüível, porque
uma língua de terras bastante altas aparece
e se estende até Chiquitos, na Bolívia,
produzindo um desnivelamento pouco favorável.
biblio As bacias do Amazonas
e do Paraguai com os rios que as cortam, as ilhas
numerosas, os lagos consideráveis e os canais
sem conta compensam até certo ponto a pobreza
do desenvolvimento marítimo, e são os
verdadeiros mediterrâneos brasileiros. A depressão
do Paraguai reunida à do alto Amazonas separa
dos Andes as terras altas do Brasil, que a baixada
amazônica ao Norte aparta do planalto da Guiana,
e a baixada marítima precede pelos outros lados.
A partir do Jauru, o Paraguai não recebe afluentes
consideráveis em território brasileiro,
à direita.
biblio Desde o rio Uruguai
o planalto brasileiro é limitado pela serra
do Mar, áspera e coberta de matas na falda
voltada para o oceano, mais suave na parte interior,
de largura entre vinte e oitenta quilômetros,
com picos que raramente passam de dois mil metros.
Serve de divisora das águas entre os rios que
procuram diretamente o Atlântico — em
geral de pequeno curso, pois apenas dois, o Iguape
e o Paraíba, rompem a serra, e os outros são
rios transversais ou de meia água — e
os rios que se destinam ao Prata, de muito maior extensão
e cabedal: o Uruguai pertencente ao Brasil pelos dois
lados até Peperi-guaçu, limite com a
Argentina, e pelo lado esquerdo até Quaraím,
limite com o Uruguai; o Iguaçu, com saltos
de maravilhosa beleza, no trecho em que a esquerda
pertence à Argentina e a direita ao Brasil;
o Ivaí, próximo ao salto de Guairá;
o Paranapanema, o Tietê, de tamanha significação
histórica, e outros afluentes orientais do
Paraná.
biblio Da serra do Mar
desprende-se a da Mantiqueira, que mais pelo interior
vai desde o Estado do Paraná até Minas
Gerais. Nela fica o pico mais alto do Brasil, o do
Itatiaia, com cerca de três mil metros de altitude.
Vem depois a serra do Espinhaço, que acompanha
o rio S. Francisco pelo lado direito até ser
cortada na grande curva traçada a Nordeste
por ele antes de se lançar no oceano. Ambas
representam papel somenos como divisoras das águas:
a da Mantiqueira entre o Paraíba do Sul e o
alto Paraná, a do Espinhaço entre o
S. Francisco, de que estreita a bacia ao Oriente,
logo depois de formado o rio das Velhas, e os rios
de meia-água que se dirigem ao mar: Doce, Jequitinhonha,
Pardo, Contas, Paraguaçu.
biblio Das alturas de
Barbacena arranca uma lombada transversal no rumo
aproximado Este-Oeste que, com várias denominações,
a trechos rigorosamente montanhosos, alhures meramente
denudada, é o maior divisor das águas
dentro do planalto. Chamou-a Serra das Vertentes o
benemérito Eschwege, denominação
excelente se, deixada de parte a estrutura, se atender
somente ao papel representado na América do
Sul. A um lado as águas vertem para o Paraná
e para o Paraguai, ambos nascidos nesta zona e, como
o Uruguai, terminando o curso em território
estrangeiro; ao outro lado da vertente, correm os
tributários do Madeira, objeto de longas disputas
desde que Manuel Félix de Lima, em 1742, foi
pela primeira vez das minas de Mato Grosso até
a sua foz; o Tapajós, antigo caminho dos Cuiabanos
para a compra do guaraná entre os Maués;
o Xingu, cujas más condições
de navegabilidade desviaram as explorações
por muito tempo e deixaram viver até poucos
anos numerosas tribos indígenas em pura idade
da pedra, cujo estudo impulsionou poderosamente a
etnografia sul-americana; o Araguaia-Tocantins, o
Parnaíba, o S. Francisco.
biblio O S. Francisco,
de grande importância histórica, é
formado pelo rio que com este nome desce da serra
da Canastra, e pelo rio das Velhas. No trecho superior,
os afluentes mais consideráveis correm entre
estas duas cabeceiras até sua confluência;
transposto já o salto de Pirapora, a divisora
das águas com o Tocantins afasta-se e deixa
que se desenvolvam o Paracatu, o Urucuia, o Carinhanha,
o Corrente, o Grande, ao passo que a serra do Espinhaço
se aproxima. Desde a barra do rio Grande para o mar,
nem de uma, nem de outra margem concorre afluente
algum considerável; os embaraços encontrados
pela navegação acumulam-se, e tolheram
as comunicações até ser transposto
por uma via-férrea o trecho encachoeirado.
biblio O S. Francisco
é, por assim dizer, a imagem de quase todos
os rios do Brasil: no planalto, apenas o volume de
água o permite uma extensão de centenas
de léguas, às vezes, perenemente navegável
por embarcações de maior ou menor capacidade;
em seguida, a descida do planalto com saltos e corredeiras,
como os do Madeira, o Augusto no Tapajós, o
Itaboca no Tocantins, o Paulo Afonso no S. Francisco,
e tantos outros; finalmente, as águas se acalmam
e aprofundam, e os embaraços de todo desaparecem
quando lhes sobra força suficiente para impedir
a formação de baixios na barra.
biblio Deste tipo se
apartam o Amazonas, cuja região tormentosa
é vencida logo nas cabeceiras, muito antes
de entrar no Brasil, e seus afluentes situados a Oeste
do Madeira e do Negro, no chamado Solimões,
nascidos todos em regiões pouco elevadas e
logo difundidos por grandes baixadas, quase niveladas.
Em menores dimensões reproduz-se o fato com
o rio Paraguai e alguns de seus afluentes. O Parnaíba
e os rios do Maranhão, descendo suavemente
por um declive graduado ao longo do seu curso, apresentam
uma forma de transição entre o tipo
dos rios das baixadas e dos chapadões.
biblio As montanhas preparam
e os rios esculpem no planalto brasileiro quatro divisões
bem distintas: o chapadão amazônico desde
o Guaporé ao Tocantins; o do Parnaíba,
inserido entre o primeiro e o do S. Francisco, mais
vasto, que alcança sua maior expansão
à margem esquerda desta bacia; finalmente o
do Paraná-Uruguai, entre a serra do Mar e as
montanhas de Guaiás. As relações
existentes entre estes chapadões atuaram sobre
o povoamento do território.
biblio O planalto das
Guianas apresenta outro chapadão elevado, com
alguns picos graníticos, poucos de mais de
mil metros.
biblio A Oeste alguns
afluentes amazônicos nascidos fora do Brasil,
o Içá, Japurá, Negro, em seu
trecho inferior correm por algum espaço paralelamente
ao rio principal. Pouco extensas, pouco navegáveis
correntes de meia-água desembocam a Este do
Negro, descendo da borda meridional do chapadão
das Guianas.
biblio O rio das Amazonas vaza uma bacia de sete milhões
de quilômetros quadrados, a maior do globo,
tamanha, quase, como o Brasil inteiro. Sangram para
ela grandes partes dos planaltos brasileiro, guianês
e andino; como a quadra das chuvas não cai
em todos eles ao mesmo tempo, sucede que quando começam
a baixar os afluentes de um enchem os do outro lado,
e a vazante nunca se dá completa. Às
vezes tanto se avoluma o rio-mar que represa os tributários
e por seus furos manda-lhes água a muitos quilômetros
da foz. Os lagos marginais, as ilhas numerosas, os
furos, os paranamirins permitiram navegar desde o
oceano até os confins do país sem nunca
penetrar na madre. Suas inundações alcançam
quase vinte metros acima do nível ordinário;
por cima das florestas podem então passar embarcações,
das quais algumas semanas antes mal se avistava o
topo do arvoredo. O Amazonas corre de Oeste para Este,
acompanhando a equinocial, e seu clima pode dizer-se
proximamente o mesmo em toda esta extensão:
genuinamente tropical, pouco variável, sem
diferenças sensíveis de temperatura,
de atmosfera úmida, abundantemente chuvosa,
máxime junto do mar e perto dos Andes. A maior
ou menor freqüência relativa de chuvas
se designa pelos nomes de verão e inverno;
de inverno só pode dar idéia aproximada,
pelo lado da temperatura, o ligeiro refrigério
sentido à noite.
biblio Ao Sul do Amazonas, entre os rios Parnaíba
e São Francisco, estende-se uma zona periodicamente
flagelada por secas. Quando as estações
correm regularmente há leves chuveiros, chamados
de caju, à passagem do sol para o Sul; chuvas
maiores caem antes ou depois do equinócio de
março; São João é já
fins d’água. No caso contrário
secam os rios, exceto em alguns poços e depressões,
murcham os pastos, permanecem nuas as árvores,
sucumbe o gado à sede ou à inanição,
e a gente morre à fome quando só dispõe
dos recursos locais. A necessidade de lutar contra
a calamidade inspirou a construção de
açudes, a cultura das vazantes, a retirada
do gado, a distribuição de ramas para
alimentá-lo, as grandes levas de retirantes.
biblio À
beira-mar entre o Oiapoque e o Parnaíba, e
do S. Francisco para o Sul domina igualmente o clima
tropical até Santa Catarina: em alguns trechos
quase todos os meses do ano chove, em outros intervêm
estiadas maiores, em geral subordinadas à marcha
solar.
biblio A distância
do equador avulta as diferenças termométricas,
aliás contidas em extremos pouco apartados.
Com o solstício de junho, pouco antes ou pouco
depois, coincidem o maior abaixamento termométrico
e a diminuição nos precipitados atmosféricos.
biblio No Rio Grande
do Sul as estações fria e quente já
aparecem melhor delimitadas, as variações
de temperatura tornam-se mais notáveis, e a
estação das águas tende a emparelhar-se
com a do frio.
biblio Isto se refere
ao litoral. No interior do país, reina também
o clima tropical, modificado mais ou menos por fatores
locais e revestindo certa feição continental.
Geralmente chove no sertão menos que à
beira-mar; as estações seca e úmida
andam mais nitidamente discriminadas; o ar do planalto,
facilmente aquecível durante o dia em conseqüência
de sua pouca densidade, rapidamente esfria à
noite pelo mesmo motivo, produzindo às vezes
variações bruscas no decurso de vinte
e quatro horas.
biblio Também
aqui as chuvas compassam-se pelo sol: em vários
pontos há uma estação úmida
menor e anterior, outra maior e posterior ao solstício
de dezembro.
biblio Na depressão
amazônica associam-se o calor e a umidade, a
vegetação atinge o máximo desenvolvimento,
alardeia-se grande mata terreal.
biblio A luta pelo ar
e pela luz arremessa as plantas para cima, repelem-se
nas alturas as copas do arvoredo, árvores possantes
viram trepadeiras, cruzam-se lianas em todos os sentidos.
Plantas sociais como a imbaúba e a monguba
constituem exceção; em regra numa superfície
dada cresce o maior número possível
de espécies diferentes.
biblio Pouco influi sobre
a fisionomia do conjunto a distância do oceano;
muito mais atua o apartamento do rio: no caa-igapó,
sujeito à inundação ânua,
avultam palmeiras, muitas delas espinhosas, reduz-se
o porte das árvores; no caa-eté, sobranceiro
a ela, culminam gigantes vegetais triunfam dicotiledôneas
e epífitos; mais adiante começam os
xerófitos.
biblio A região
flagelada pela seca possui também matas, porém
solteiras, nas serras capazes de condensarem vapores
atmosféricos, nas margens dos rios, em lugares
favorecidos pela umidade do subsolo. De dimensões
restritas, sustentam a outros respeitos o confronto
com as das regiões mais felizes; não
representam, entretanto, fielmente a feição
dominante.
biblio Desde a Bahia
começa a mata virgem contínua, e com
os mesmos caracteres orla a borda oriental da serra
do Mar: troncos eretos, ramificação
muita acima do solo, folhagem sempre verdejante, variedade
de espécies dentro de pequenas áreas,
abundância de epífitos. Os acidentes
topográficos introduzem aqui na paisagem uma
variedade golpeante, desconhecida na monotonia intérmina
da Amazônia.
biblio Além da
serra do Mar abrem-se os campos, vastas extensões
ocupadas por gramíneas e ervas mais ou menos
rasteiras.
biblio Onde a altitude
o permite surgem araucárias; em certos pontos
adensam-se capões, cujo nome indígena
está indicando a forma circular. Os campos
do Sul explicam alguns pela baixa temperatura durante
o período germinativo. Ao Norte existem igualmente
campos, cuja explicação parece outra:
o solo, muito quente e pouco úmido, requeimando
as sementes das árvores, rouba-lhes a vitalidade.
biblio Catinga, carrasco,
cerrado, agreste designam todos várias formas
de vegetação xerófila, caracterizada
pelas raízes às vezes muito profundas,
munidas muitas de bulbo que prende a água,
pelo tronco áspero, gretado, exíguo,
esgalhado, como se procurasse para os lados o desenvolvimento
que lhe foge na vertical, pelas folhas mais ou menos
miúdas, que caem numa parte do ano para melhor
resistir à seca, limitando a evaporação.
biblio Na região
das secas esta forma de vegetação chega
quase à beira-mar; em quase todos os estados
existe, mais ou menos, testemunho e efeito do clima
continental. O povo brasileiro, começando pelo
Oriente a ocupação do território,
concentrou-se principalmente na zona da mata, que
lhe fornecia pau-brasil, madeira de construção,
terrenos próprios para cana, para fumo, e,
afinal, para café. A mata amazônica forneceu
também o cravo, o cacau, a salsaparrilha, a
castanha e, mais importante que todos os outros produtos
florestais, a borracha. Os campos do Sul produzem
mate. Nos do Norte, em geral, e nas zonas de vegetação
xerófila, plantam-se cereais ou algodão
e pasta o gado. A obra do homem chama-se capoeira:
terreno privado da vegetação primitiva,
ocupado depois por vegetais adventícios cuja
fisionomia ainda não assumiu feição
bem caracterizada. Os capoeirões podem dar
a ilusão de verdadeiras matas.
biblio A fauna do Brasil
é muita rica em insetos, reptis, aves, peixes,
e pequenos quadrúpedes. São formas características
as emas, os papagaios, os beija-flores, os desdentados,
os marsúpios, os macacos platirrínios.
biblioNa baixada litorânea, muitas formas de
moluscos, peixes e aves há comuns ao Atlântico
do Sul; o colorido de alguns por tal modo se assemelha
à areia que custa descobri-los em repouso.
biblio A fauna da mata
apresenta, ao contrário, o colorido mais vistoso,
principalmente nas borboletas, que às vezes
atingem tamanho enorme, e nas aves. A maior parte
das espécies adaptou-se à vida arbórea,
e algumas, como a arcaica preguiça, vão
desaparecendo com as derrubadas.
biblio “Mais
pálida em colorido e fraca em força
numérica é a fauna do sertão”
lembra Goeldi. Suntuoso uniforme de gala nos descampados
não seria desejável nem proveitoso.
Para os animais sertanejos é demais vantagem
a sua roupa branco-amarelada e monótona que
no meio do capim se conserva neutra entre a cor do
solo e o colorido da macega torrada pelo sol.
biblioSe por um lado, no litoral, é aparelho
útil a asa comprida, apropriada ao vôo
persistente, e, por outro lado, o pé trepador,
para o morador da mata, torna-se precioso dote para
formas animais que vivem correndo pelo solo uma perna
comprida e capaz de corresponder a fortes exigências.
Aí estão para atestá-lo a seriema
de alto coturno e a gigantesca ema. O próprio
lobo brasileiro muniu-se, além de umas orelhas
grandes, a modo de chacal do deserto, de longas pernas
a feitio de galgo.
biblio Entre estes animais
nem um pareceu próprio ao indígena para
colaborar na evolução social, dando
leite, fornecendo vestimenta ou auxiliando o transporte;
apenas domesticou um ou outro, os mimbabas da língua
geral, — em maioria aves, principalmente papagaios,
só para recreio. De caça e principalmente
de pesca era composta sua alimentação
animal. Possuía agricultura incipiente, de
mandioca, de milho, de várias frutas. Como
eram-lhe desconhecidos os metais, o fogo, produzido
pelo atrito, fazia quase todos os ofícios do
ferro. A plantação e colheita, a cozinha,
a louça, as bebidas fermentadas competiam às
mulheres; encarregavam-se os homens das derrubadas,
das pescarias, das caçadas e da guerra.
biblio As guerras ferviam
contínuas; a cunhã prisioneira agregava-se
à tribo vitoriosa, pois vigorava a idéia
da nulidade da fêmea na procriação,
exatamente com a da terra no processo vegetativo;
os homens eram comidos em muitas tribos no meio de
festas rituais. A antropofagia não despertava
repugnância e parece ter sido muito vulgarizada:
algumas tribos comiam os inimigos, outras os parentes
e amigos, eis a diferença.
biblio Viviam em pequenas
comunidades. Pouco trabalho dava fincar uns paus e
estender folhas por cima, carregar algumas cabaças
e panelas; por isso andavam em contínuas mudanças,
já necessitadas pela escassez dos animais próprios
à alimentação.
biblio De rixas minúsculas
surgiam separações definitivas; grassava
uma fissiparidade constante. Tradição
muito vulgarizada explicava grandes migrações
por disputas a propósito de um papagaio.
biblio O chefe apenas
possuía autoridade nominal. Maior força
cabia ao poder espiritual. Acreditavam em seres luminosos,
bons e inertes, que não exigiam culto, e poderes
tenebrosos, maus, vingativos, que cumpria propiciar
para apartar sua cólera e angariar-lhes o favor
contra os perigos: eram as almas dos avós.
Entre eles contava-se o curador, pagé ou caraíba,
senhor da vida e da morte, que ressuscitara depois
de finado, e não podia mais tornar a morrer.
biblio Tinham os sentidos
mais apurados, e intensidade de observação
da natureza inconcebível para o homem civilizado.
Não lhes faltava talento artístico,
revelado em produtos cerâmicos, trançados,
pinturas de cuia, máscaras, adornos, danças
e músicas.
biblio Das suas lendas,
que às vezes os conservavam noites inteiras
acordados e atentos, muito pouco sabemos: um dos primeiros
cuidados dos missionários consistia e consiste
ainda em apagá-las e substituí-las.
biblio Falavam línguas
diversas, quanto ao léxico, mas obedecendo
ao mesmo tipo: o nome substantivo tinha passado e
futuro como o verbo; o verbo intransitivo fazia de
verdadeiro substantivo; o verbo transitivo pedia dois
pronomes, um agente e outro paciente: a primeira pessoa
do plural apresentava às vezes uma flexão
inclusiva e outra exclusiva; no falar comum a parataxe
dominava. A abundância e flexibilidade dos supinos
facilitaram a tradução de certas idéias
européias.
biblio Fundada no exame
lingüístico a etnografia moderna conseguiu
agregar em grupos certas tribos mais ou menos estreitamente
conexas entre si. No primeiro entram os que falavam
a língua geral, assim chamada por sua área
de distribuição. Predominavam próximo
de beira-mar, vindos do sertão, e formavam
três migrações diversas: a dos
Carijós ou Guaranis, desde Cananéia
e Paranapanema para o Sul e Oeste; os Tupiniquins,
no Tietê, no Jequitinhonha, na costa e sertão
da Bahia, na serra da Ibiapaba; os Tupinambás
no Rio de Janeiro, a um e outro lado baixo S. Francisco
até o Rio Grande do Norte, e do Maranhão
até o Pará. O centro de irradiação
das três migrações deve procurar-se
entre o rio Paraná e o Paraguai.
biblio Nos outros grupos
falavam-se as línguas travadas: os Gés,
representados pelos Aimorés ou Botocudos próximo
do mar, e ainda hoje numerosos no interior; os cariris
disseminados do Paraguaçu até Itapecuru
e talvez Mearim, em geral pelo sertão, conquanto
os Tremembés habitassem as praias do Ceará;
os Caraíbas, cujos representantes mais orientais
são os Pimenteiras, no Piauí, ainda
hoje encontrados no chapadão e na bacia do
Amazonas; os Maipure ou Nu-Aruaque, que desde a Guiana
penetraram até o rio Paraguai e ainda aparecem
nas cercanias de sua antiga pátria, e até
no alto Purus; os Panos, os Guaicurus, etc., etc.
biblio Se abstrairmos
do Amazonas, onde havia muitos Maipure e não
poucos Caraíbas, só os Tupis e os Cariris
foram incorporados em grande proporção
à atual população do Brasil.
biblio Os Cariris, pelo
menos na Bahia e na antiga capitania de Pernambuco,
já ocupavam a beira-mar quando chegaram os
portadores da língua geral. Repelidos por estes
para o interior, resistiram bravamente à invasão
dos colonos europeus, mas os missionários conseguiram
aldear muitos e a criação de gado ajudou
a conciliar outros. Talvez provenha dos Cariris a
cabeça chata, comum nos sertanejos de certas
zonas.
biblio Se agora examinarmos
a influência do meio sobre estes povos naturais,
não se afigura a indolência o seu principal
característico. Indolente o indígena
era sem dúvida, mas também capaz de
grandes esforços, podia dar e deu muito de
si. O principal efeito dos fatores antropogeográficos
foi dispensar a cooperação.
biblio Que medidas conjuntas
e preventivas se podem tomar contra o calor? qual
o incentivo para condensar as associações?
como progredir com a comunidade reduzida a meia dúzia
de famílias?
biblio A mesma ausência
de cooperação, a mesma incapacidade
de ação incorporada e inteligente, limitada
apenas pela divisão do trabalho e suas conseqüências,
parece terem os indígenas legado aos seus sucessores.