Artur de Azevedo
O SÁ
I
Fora um boêmio outrora, 
  E, para atenuar o seu passado 
  	Vadio e dissoluto, 
  Costumava a dizer: - O meu tributo
  	Paguei - Era outro agora:
  	Tranqüilo e sossegado,
  	Muito bem comportado,
  Tal qual Pêro Botelho
  Que se faz ermitão depois de velho,
  Ou como certas cortesãs que, ao cabo
  De uma vida de gozos e loucuras,
  Julgando assim ficar menos impuras,
  Voltam a Deus o que não quis o diabo.
Ele, entretanto, ainda não era idoso; 
  Da montanha da vida não chegara
  	Ao cume pavoroso:
  Cinqüenta anos não tinha, e - coisa rara! -
  Não obstante a existência que levara,
  Estava já grisalho, mas não tinha
  Esses pés de galinha
  A que no mundo pouca gente escapa,
  E que o aspecto dão à nossa cara 
  	De castanha ou de mapa. 
  	É que a pele, que estica,
  Livre de sulcos mais ou menos fica, 
  	E o Sá (era esse o nome 
  	Do herói dessa novela)
  Se havia sido em moço um magricela 
  	E padecido fome,
  	Teve, afinal, sossego 
  Quando, volvidos quase os quarenta anos,
  	Num suculento emprego, 
  Fez boas digestões, dormiu bons sonos, 
  E entrou, como entra um pássaro, na muda. 
  Tanto corpo deitou, engordou tanto,
  	Que era um deus-nos-acuda, 
  E até causava a toda a gente espanto.
  	Os amigos de outrora
  	Não no reconheciam, 
  Quando sereno por acaso o viam 
  Medindo os passos pela rua afora,
  	Respirando virtude
  	E vendendo saúde.
  	No entanto, que passado!
  Que existência infeliz de aventureiro!
  Ator, contínuo, sacristão, soldado,
  Negociante, jogador, ficheiro,
  Grande "pianista" de primeira classe, 
  	Tudo o Sá tinha sido;
  Não houve profissão que não tentasse,
  Sem haver em nenhuma se mantido,
  Afinal - tudo cansa! - encontrou rumo,
  E assentou no lugar, que lhe foi dado, 
  	De fiscal do consumo, 
  	Graças a um deputado, 
  	Seu companheiro antigo,
  Que por milagre inda era seu amigo.
  Numa província aonde o levara a sorte,
  Já não sei se do sul ou se do norte,
  O Sã gostara de uma pequerrucha 
  	Que, apesar de gorducha,
  Não deixava de ter seus atrativos. 
  Olhos travessos, petulantes, vivos,
  	E magníficos dentes.
  - Não são precisos mais ingredientes
  Para alimento de uma paixãozinha,
  E esses a nossa provinciana os tinha.
  Ela perdera ambos os pais; morava 
  	Em casa da madrinha
  Que com olhos de mãe a vigiava,
  - Tanto que Sá tentou, como um demônio, 
  	Possuir a pequena 
  Sem a preliminar do matrimônio 
  Que, a dar-lhe ouvidos, não valia a pena; 
  Mas a madrinha, vigilante hiena, 
  Pondo a cidade inteira em alvoroço, 
  	Cortou-lhe o mau intento,
  E, como estava apaixonado, o moço 
  Teve que sujeitar-se ao casamento.
	Mas na manhã seguinte, 
  	Por negregado acinte
  O Sá (que a tudo um bárbaro se afoita) 
  Da cidade abalou sem dizer nada, 
  Abandonando a esposa de uma noite,
  	Casada e não casada!
  	Nunca se soube ao certo
  Se ele achou descoberto 
  Aquilo que supunha inexplorado,
  	Ou se foi simplesmente 
  	Um injusto, um malvado.
Que numa forca não padeceria 
  Castigo suficiente.
  O caso é que daquele	
  Dia em diante - angustioso dia, 
  Cuja lembrança os nervos arrepela! 
  - Ela não teve mais notícias dele,
  	Nem ele as teve dela.
II
Da janela do quarto em que morava 
  	Entre nuvens de fumo
  Que num cachimbo sórdido aspirava,
  O fiscal do consumo 
  Namoriscava uma mulher magrinha, 
  Que nas lides caseiras avistava
  No interior da cozinha 
  De um sobrado do qual só via os fundos.
  Não sei por que, a vizinha, 
  Entre panelas, caldeirões imundos,
  	Tachos e caçarolas,
  	Impressionou-o a ponto
  	De o fazer dar às solas,
  Tonto, ainda mais tonto 
  Que quando requestava a moça imbele
  	Que se casou com ele. 
  	À vizinha sorria
  Aos gatimanhos que lhe o Sá fazia, 
  E não tardou que uma correspondência
  Epistolar houvesse... 
  Desimpedida a mísera não era:
  "Deus a livrasse que o doutor soubesse...
  	Tinha ciúme de fera!
  	Entretanto, a explorava,
  	Tornando-a, coitadinha,
  	Numa espécie de escrava,
  	Metida na cozinha." 
  O Sá pensou, com certo fundamento,
  Que, na impossibilidade 
  De recorrer a novo casamento 
  Pois não sabia, na realidade,
  	Qual era o seu estado,
  	Se viúvo ou casado, 
  Precisava arranjar, da sua idade,
  	Uma mulher solteira 
  Que quisesse ser sua companheira; 
  Escreveu à vizinha cozinheira
  	E na carta lhe disse
  	Que de casa saísse
  	E fosse procurá-lo, 
  Pois lhe daria muito mais regalo.
  Ela, que estava farta 
  Do tal doutor, mal recebeu a carta,
  	Por aqui é o caminho:
  	Logo trocou de ninho!
  O Sá ficou pasmado e boquiaberto, 
  	Vendo agora, de perto, 
  	Que era a boa vizinha
  Sua mulher que emagrecido tinha,
  - E ao mesmo tempo ela reconhecia 
  	Naquele novo amante
  O esposo magro que engordado havia! 
  	Que cena interessante!
  Ela contou a sua história triste, 
  E ele, o cínico, achou-lhe certo chiste!
Repelida dos seus, da sua terra, 
  	Onde esteve na berra, 
  	De mão em mão andara, 
  	Até que a sorte avara
  Deu com ela no Rio de Janeiro.
  E aqui, depois de ser do mundo inteiro, 
  Caiu nas mãos do tal doutor mesquinho,
  E agora, loucamente, 
  Às seduções cedendo de um vizinho, 
  Vinha neste encontrar - fado inclemente!
  	O marido que outrora 
  De maneira tão vil se fora embora!
III
Indivíduos na terra os há capazes 
  Das mais feias e estranhas aventuras;
  	As duas criaturas 
  	Celebraram as pazes,
  E o Sá, que no impudor não tem segundo, 
  	Deu este exemplo ao mundo
  De um cidadão casado, 
  Co'a legitima esposa amasiado.
(Contos em Verso)